Ética: um conceito cada vez mais divorciado da política
O vale-tudo eleitoral, as mentiras das campanhas, as candidaturas de políticos corruptos e os recentes escândalos nos Três Poderes expõem a crise dos valores éticos no País
Josie Jeronimo (josie@istoe.com.br)
As primeiras eleições presidenciais
depois da ditadura militar, realizadas em 1989, ficaram marcadas pela
acirrada disputa entre o “caçador de marajás” Fernando Collor de Mello e
o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Na reta final da campanha, quando
as pesquisas apontavam empate técnico entre os dois concorrentes, Collor
levou ao programa de TV o depoimento de Miriam Cordeiro. Ex-namorada de
Lula, ela o acusava de ter proposto um aborto quando estava grávida de
Lurian, filha do casal, na época com 15 anos.
A cartada foi decisiva para a vitória de
Collor e o episódio entrou para a história brasileira como a primeira
grande baixaria política da democracia que se instalava no País. O que
poderia servir de exemplo sobre práticas a serem esquecidas e condenadas
pela sociedade, porém, tornou-se regra das campanhas eleitorais. Nos 25
anos seguintes à refrega de 1989, a ética e a política seguiram
caminhos distintos. Sucessivos escândalos de corrupção em quase três
décadas de democracia revelaram aos brasileiros uma profunda crise nos
valores que deveriam nortear o comportamento dos governantes. Apesar de
avanços inegáveis, como a Lei da Ficha Limpa, hoje prevalece nas
campanhas e no exercício do poder um vale-tudo que contamina candidatos e
instituições. Os programas dos partidos apresentados no rádio e na TV
expõem ataques pessoais, acusações infundadas, mentiras e distorções
sobre as propostas dos adversários. Nesta semana que antecede o dia das
eleições, o jogo bruto das campanhas tende a se intensificar. Nesse
ambiente de abusos, resta aos eleitores redobrar a atenção na hora do
voto, método mais eficiente na tentativa de resgatar os valores éticos
tão imprescindíveis a uma sociedade desenvolvida em todos os aspectos.
A tática do jogo sujo ficou tão banalizada
que nem mesmo as autoridades escondem seus maus costumes. Em março do
ano passado, num lampejo de sinceridade, a presidenta Dilma Rousseff
revelou em um discurso feito na Paraíba sua filosofia nas disputas pelo
poder: “Podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. Pelo que se viu
nas últimas semanas, Dilma e outros candidatos cumprem à risca esse
ensinamento. A falta de filtros morais no jeito de fazer política se
manifesta desde a negociação das coligações, acertadas na maioria das
vezes em função de mais tempo nos programas de TV, até a formação dos
governos, definida em função do rateio de cargos em todos os escalões.
“A ética brasileira foi cunhada pelo absolutismo, que centraliza os
poderes do Estado, mas que por não ser um governo totalmente legítimo
precisou cativar os setores que poderiam se rebelar. Daí nasceu a troca
de favores e a venda de cargos”, afirma o professor da Unicamp Roberto
Romano, especialista em filosofia política e ética.
Estudo elaborado pela ONG alemã Transparência Internacional situa o País
na 72ª posição entre 177 nações analisadas sob o critério de percepção de corrupção
na 72ª posição entre 177 nações analisadas sob o critério de percepção de corrupção
Esse sentimento de subversão generalizada
dos preceitos republicanos tem reflexos deletérios para a imagem do
Brasil no mundo. O último estudo elaborado pela ONG alemã Transparência
Internacional situa o País na 72ª posição entre 177 nações analisadas
sob o critério de percepção de corrupção. Pelas projeções feitas sobre
os resultados de 2014, a tendência é piorar essa classificação. “Há
criminosos candidatos que não foram enquadrados pela Lei da Ficha Limpa,
e escândalos como o da Petrobras impactam os avaliadores. Fica a
impressão de que no setor público até os contratos de faxina têm esquema
de corrupção e que sem propina nem o cafezinho é servido”, afirma Léo
Torresan, presidente da Amarribo, associação que representa a
organização alemã em solo brasileiro.
Os exemplos da falta de honestidade
apareceram com força logo depois da primeira eleição direta para a
Presidência. Em 1992, o então presidente, Fernando Collor, foi submetido
a um processo de impeachment após ser alvo de denúncias de corrupção.
No governo Fernando Henrique Cardoso, para aprovar a emenda
constitucional que permitiu a reeleição de ocupantes de cargos
executivos, deputados foram acusados de vender seus votos. Em 2005, no
mais rumoroso caso de corrupção da história recente, os brasileiros
foram surpreendidos com o “mensalão”, nome pelo qual ficou conhecida a
transferência de dinheiro ilegal do PT para partidos aliados. O então
presidente Lula se defendeu com o argumento de que se tratava de “caixa
2” de campanha, o que configura crime eleitoral, mas é disseminado por
quase todas as legendas. O STF, porém, entendeu que se tratava de compra
de apoio parlamentar. Com isso, foram parar na cadeia alguns figurões
do PT, como o ex-ministro José Dirceu, da Casa Civil, e o ex-presidente
do partido José Genoino.
A lista de escândalos com dinheiro público,
no entanto, não escolhe partidos. No ano passado, os brasileiros
souberam pela ISTOÉ que, no Estado de São Paulo, durante as gestões
tucanas de Mário Covas, José Serra e Geraldo Alckmin foi montado um
propinoduto em que autoridades, em troca de verbas para campanhas do
PSDB paulista, usavam influência política para interferir na assinatura
de contratos com as empresas Alstom e Siemens para a construção do
metrô. Investigações identificaram pagamento de R$ 13,5 milhões só em
propinas. No Distrito Federal, o então governador José Roberto Arruda
teve a carreira interrompida depois de divulgadas imagens de um vídeo
que o mostraram recebendo pacotes de dinheiro ilegal. O envolvimento no
caso provocou a prisão de Arruda, por dois meses, na sede da
Superintendência da PF em Brasília. Apesar da imoralidade das imagens,
até três semanas atrás, Arruda liderava as pesquisas para governador.
Ele só decidiu desistir da disputa depois que teve a candidatura
impugnada pelo TSE com base na Lei da Ficha Limpa. Mais recentemente,
irrompeu o escândalo da Petrobras. Em depoimento sob o regime de delação
premiada, o ex-diretor da estatal, hoje preso, acusou parlamentares,
governadores e ministros do governo Dilma de participação de um esquema
de corrupção que sangrou os cofres da Petrobras em bilhões. O próprio
delator admitiu ter recebido US$ 23 milhões de uma única empreiteira.
Os métodos condenáveis não são
exclusividade do Executivo e Legislativo do País. Mancham também o
Judiciário. Embora não seja crime, a prática de indicar parentes para
cargos de destaque se tornou corriqueira nos tribunais. É o que faz
atualmente o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF). Fux
está empenhado em assegurar a nomeação de sua filha Marianna Fux para
desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ela disputa o
posto com outros 38 cidadãos com credenciais para a função. A pressão do
ministro do STF ganhou repercussão nacional nos últimos dias e fez com
que a OAB mudasse o processo de escolha, com o objetivo de blindar-se de
possíveis críticas de favorecimento à filha do ministro. Letícia Mello,
filha de outro ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, teve sucesso em
empreitada semelhante. Em abril deste ano, ela tomou posse como
desembargadora no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro
e Espírito Santo). Marco Aurélio afirmou, à época, que não pediu votos
aos desembargadores, mas reconheceu que telefonou para agradecer a
atenção que os magistrados deram à filha quando ela os visitou nos
gabinetes.
"Fica a impressão de que no setor público até os contratos de faxina têm
esquema de corrupção e que sem propina nem o cafezinho é servido",
afirma Léo Torresan, presidente da Amarribo
esquema de corrupção e que sem propina nem o cafezinho é servido",
afirma Léo Torresan, presidente da Amarribo
O presidente da Câmara, Henrique Alves, quer que o juiz Marlon Reis,
idealizador da Lei da Ficha Limpa, seja punido pela publicação de um
livro em que relata casos de parlamentares corruptos
idealizador da Lei da Ficha Limpa, seja punido pela publicação de um
livro em que relata casos de parlamentares corruptos
Na atual campanha eleitoral, os exemplos de
tentativas de ludibriar os eleitores surgem aos borbotões. Durante
entrevista na semana passada ao telejornal “Bom Dia Brasil”, da TV
Globo, a presidenta Dilma apresentou números econômicos irreais
contestados de imediato pelos jornalistas. Ao forjar situações
inexistentes, distorcer e falsear dados oficiais, os políticos conseguem
piorar uma prática tornada pública, involuntariamente, em 1994, pelo
então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero. Na ocasião, enquanto
aguardava o momento em que seria entrevistado pela TV Globo e, sem saber
que o microfone estava aberto, Ricupero expôs o que nenhuma autoridade
diz em público. “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura, o
que é ruim a gente esconde”, disse o ministro. Captadas por aparelhos
com antena parabólica, o ministro perdeu o cargo.
Apesar das evidentes rupturas com os
princípios éticos, a realidade demonstra como é difícil mudar o
comportamento dos poderosos. Em junho do ano passado, as ruas das
principais cidades brasileiras foram tomadas por milhões de pessoas que
protestavam por mudanças na política e nos governos. Agora, no entanto,
observa-se a dificuldade em institucionalizar esse clamor. O mesmo
aconteceu com a “Primavera Árabe”, nome pelo qual ficaram conhecidas as
manifestações que sacudiram países do Oriente Médio e do norte da África
a partir de dezembro de 2010. Passada a turbulência inicial, muita
coisa continua como antes. No Egito, por exemplo, depois da derrubada do
ditador Hosni Mubarak, a disputa pelo poder no país continua sendo
travada pelos militares e pela Irmandade Muçulmana. Também no Brasil, a
história demonstra que mesmo as grandes rupturas ocorridas em nome do
combate à corrupção se revelaram inócuas. Em 1954, Getúlio Vargas
cometeu suicídio quando seu governo era acusado pelos adversários de se
ter transformado em um “mar de lama”. Dez anos depois, os militares
deram um golpe e assumiram o poder com a bandeira da moralidade, mas
foram escorraçados do poder em 1985 quando a censura não conseguia mais
abafar o que ocorria nos porões do regime autoritário.
A poucos dias do primeiro turno das
eleições, ainda há tempo para os brasileiros provocarem uma
interferência efetiva na triste realidade. Somente o eleitor, na solidão
da cabine de votação, pode afastar os maus políticos. Se dependêssemos
apenas das autoridades, não haveria solução. O melhor exemplo disso
talvez tenha sido dado pelo presidente da Câmara, Henrique Eduardo
Alves. Na semana passada, ele encaminhou ao Conselho Nacional de Justiça
uma representação contra o juiz Marlon Reis, um dos principais
responsáveis pela aprovação da Lei da Ficha Limpa. Alves quer que Reis
seja punido pela publicação de um livro em que relata dezenas de casos
de parlamentares envolvidos em corrupção. “Afirmei e reafirmo que há
entre os deputados pessoas que alcançaram seus mandatos por vias
ilícitas. Estes precisam ser detidos, o que demanda uma profunda mudança
do vigente sistema eleitoral, corroído por uma mercantilização do
conceito de política”, diz o juiz. O primeiro passo para isso pode ser
dado pela sociedade no dia 5 de outubro.
Corruptos, tremei!
Com a aposentadoria do ministro
Joaquim Barbosa, é do juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba Sérgio Moro o
título de algoz dos corruptos, atualmente. Moro é considerado o
principal especialista brasileiro no crime de lavagem de dinheiro. À
frente do Caso Banestado, criou método de trabalho que levou à
condenação de 15 réus e o mapeamento da movimentação irregular de U$ 30
bilhões. Aos 41 anos, o magistrado tem um extenso currículo. Assessorou a
ministra Rosa Weber durante o julgamento do mensalão, em 2012, e agora é
o responsável pelo processo da Operação Lava Jato, escândalo que abala
as estruturas do poder por envolver a Petrobras e parlamentares da base
governista.
ALGOZ
O juiz Sérgio Moro é o responsável pelo
processo da Operação Lava Jato
processo da Operação Lava Jato