A o discutir eleições e religião, o hábito é imaginar que as primeiras sofrem a força da segunda de maneira rapsódica. Nas campanhas para escolher governantes civis e legisladores parece surgir algo que “não deveria ocorrer”, quebrando as barreiras entre o campo teológico e o político. Tal perspectiva subestima os elos históricos e antropológicos entre o Estado, Igrejas ou seitas. Na verdade, eleições apenas radicalizam modos de pensar e de agir imperantes nos templos que, ao mesmo tempo, acolhem cidadãos políticos. Em nenhum momento quem acredita em valores religiosos aceita tranquilamente fronteiras entre ordem estatal e círculo da fé. Jamais as autoridades religiosas desta ou daquela confissão abandonam o imperativo de indicar à comunidade mais ampla as suas teses sobre a natureza e os homens. Religião que não luta para se expandir desaparece.
O mesmo ocorre na ordem pública, interna e internacional. Agrupamentos religiosos, políticos ou Estados estão submetidos a idênticos, mas diversificados, choques de forças. E, como ensina Maquiavel interpretado pelo alemão J.G. Fichte, no mundo inteiro “quem não cresce, diminui enquanto outros crescem” . Religião e política nunca foram domínios “desinteressados e objetivos”. É preciso examinar de modo realista aqueles agrupamentos humanos. O que segue abaixo tenta contribuir para o entendimento de semelhante quebra-cabeças, que já consumiu muita tinta no mundo acadêmico e na ordem prática. Um país fascinante para o exame dos intrincados elos entre poder civil e Igrejas é a federação norte-americana. Ali se apresentam cristãos e judeus, estratos islâmicos, budistas, hinduístas, xintoístas e outros. Difícil residir naquele coletivo sem precisar dizer aos vizinhos qual a sede do próprio culto. Não pertencer a nenhuma Igreja causa no mínimo estranheza. E, no entanto, a separação de Igreja e Estado é posta na Primeira Emenda e definida ao longo da história política e institucional. Tais diretivas nunca foram pacíficas ou plenamente consensuais . Desde os primeiros instantes daquele Estado surgiram tensões entre as leis e as diferentes linhas teológicas. Os choques ocorrem no cotidiano, mas se tornam mais evidentes em períodos eleitorais. Não existe ali um partido de certa Igreja ou seita. As duas agremiações proeminentes integram em seus quadros pessoas dos mais diversos credos, em especial cristãos. No Partido Republicano, no entanto, militam atualmente os mais fortes defensores do conservadorismo religioso (um integrismo fundamentalista). Os adeptos da vida fundamentalista estão presentes no Partido Democrata, mas com menor peso .
No Brasil, também não existe um partido confessional católico ou protestante. Nada aqui se compara à Democrazia Cristiana, de conspícuo desempenho na Itália. Nascida à sombra do catolicismo e tendo os setores protestantes instalados em data recente (sobretudo a partir do século XIX) , a estrutura nacional de poder viveu a Colônia e o Império sob o elo do altar e do trono, tangida por instrumentos como o Padroado. Tal status jurídico prejudicou a própria Igreja, conforme reconheceram os bispos brasileiros ao ser proclamada a República. O Padroado era visto por eles como a “gaiola de ouro” que impedia o desenvolvimento da Igreja sob a monarquia . “Proteção” do trono: perigo ao catolicismo
Em nossa terra, a “proteção” do trono trouxe ao catolicismo um perigo duplo. Primeiro, o desaparecimento físico dos meios de mobilização popular, como as ordens religiosas. Com o instituto da mão-morta e a proibição de ingressos de noviços e de estrangeiros, conventos eram fechados, uns após outros. Em segundo lugar, existiu a impossibilidade de qualquer mudança doutrinária que atingisse os alicerces das relações entre Igreja e Império. Tal é o fundamento da Questão Religiosa que abalou o trato das duas instituições. Segundo os mentores da monarquia, os bispos, em vez de se orientarem por um projeto autônomo, deveriam sujeitar-se aos fins do Estado. Com o ultramontanismo surge a reação governamental contra a Igreja. Os políticos laicos, conservadores ou jacobinos, tentaram reduzi-la ao plano particular das consciências . Acuada no mundo pelos movimentos liberais, positivistas e socialistas, a Igreja reagiu com agressiva política para reconquistar os estratos populares, assumindo propaganda cerrada contra a “modernidade”, reavivando ideários românticos e conservadores sobre a Idade Média, criticando acerbamente os “pecados do capitalismo”. Ela, no entanto, sempre buscou a estabilidade social e política, sendo aliada preciosa dos poderes civis. Desde que fosse reconhecida sua preeminência em matérias éticas e religiosas, a Igreja deixou de se perguntar em demasia sobre a fonte legítima ou ilegítima dos poderes nacionais. Já na encíclica Immortale Dei (1885), Leão XIII afirma de modo inequívoco sua indiferença em face das formas de governo, com a condição de que a liberdade eclesiástica fosse respeitada: “A soberania não é em si mesma e necessariamente ligada a nenhuma forma política; ela pode muito bem se adaptar a esta ou aquela, desde que seja apta ao que é útil para o bem comum” . A norma foi mantida pelos demais Pontífices.
A duração e a força do Estado conseguiram o apoio da Igreja, com legitimações de regimes, não raro ad hoc. Tal perfil marcou o trato das instituições até o Concílio Vaticano II. A doutrina reserva ao mando religioso o campo dos valores éticos e deixa ao Estado a tarefa de seguir o paradigma idealizado pela Santa Sé: “é incontestável a competência da Igreja nesta parte da ordem social que entra em contato com a moral para julgar se as bases de uma organização social dada são conformes à ordem imutável das coisas” . A Igreja católica, no mundo e no Brasil durante o século XX, buscou manter para si a competência maior na definição dos caminhos éticos recomendáveis aos povos e aos Estados . Em nossa terra, ela encontrou a firme resistência dos setores liberais, positivistas, anarquistas e socialistas. E sua política de estreita colaboração com todos os regimes, mesmo os ditatoriais, seguiu de maneira constante e coerente. A Hierarquia apoiou Vargas (recebendo em troca o alijamento dos liberais da cena política) . A LEC (Liga Eleitoral Católica) funcionou no período como técnica de pressão eclesiástica, tendo em vista a adoção dos princípios católicos nas leis . O que foi conseguido: incorporou-se na Carta Magna a sacralidade da família e, no plano educacional, a instrução religiosa em escolas públicas. Foi para dar eficácia a tais conquistas que os bispos impediram a fundação de partidos católicos, o que viria dividir as fileiras religiosas e ameaçar a direção monolítica da Hierarquia, na época sob o controle do cardeal Leme. Aliás, o catolicismo nunca teve, no Brasil, um partido forte que o representasse . A agremiação que durante certo tempo recebeu o nome de “cristã” deixou de prosperar no intervalo entre a ditadura Vargas e a de 1964. Ela reuniu e formou algumas lideranças significativas, mas não teve impacto maior nas massas urbanas ou rurais .
AP: movimento político com origem católica
Um ensaio de movimento político com origem católica, no início do anos 60 do século XX, foi a AP (Ação Popular). Mas ela abandonou a sua marca de nascimento religiosa ao se fragmentar durante o regime autoritário. A quebra interna da organização veio da linha assumida por setores dominantes em seu interior, que romperam com o paradigma cristão para assumir o pensamento e programas marxistas e guerrilheiros . Tal fato ajuda a entender o grande apoio ao Partido dos Trabalhadores, no seu início, por parte da Hierarquia e dos militantes católicos de esquerda .
O PT poderia ser, para o setor, o partido que os religiosos nunca conseguiram constituir no Brasil. Isto também pode explicar a querela ocorrida nos primeiros tempos do PT, sobre as “duas camisas”: os católicos do PT acusavam os outros segmentos de usarem a camisa petista e, sob ela, a dos seus movimentos (marxistas sobretudo) de origem. O ardor por fazer do PT um partido afinado com a Igreja só diminuiu com o primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, sobretudo após o episódio vulgarmente denominado “mensalão”. É muito provável que o refluxo de intenções de votos, que levou ao segundo turno nas eleições presidenciais de 2010, da parte católica, não se deva apenas a razões éticas de fundamento dogmático, como o aborto. Os fatos que abalaram a Casa Civil, sob a direção da ministra Erenice Guerra, tiveram seu papel naquele esfriamento católico diante do governo e da sua candidatura. Mas é preciso sublinhar o papel ativo dos bispos em todas as ocasiões. Hierarquia católica apoiou regime de 1964
A Hierarquia católica também ajudou a iniciar e apoiou o regime de 1964. Desafiada em sua ideia de ordem natural da sociedade, tolhida a disciplina hierárquica com frequência inquietante, e vendo as massas dirigirem-se para setores secularizados, com o perigo socialista, ou mesmo – lembremos que estamos em plena colheita da Guerra Fria – comunista, surgem sob a direção de hierarcas a Cruzada do Rosário do padre Peyton, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, os movimentos católicos conservadores, que passam a disputar espaço com a Ação Católica especializada, em especial a juventude estudantil e universitária, que rumavam para opções políticas e até mesmo ideológicas opostas às da Hierarquia (é o caso da já mencionada Ação Popular, liderada por Betinho, cujo teórico, de extração filosófica hegeliana, foi o jesuíta padre Vaz).Todos esses movimentos responderam às ameaças, reais ou supostas, à Igreja. Milhões e milhões de fiéis foram conduzidos às ruas sob o báculo de bispos fortemente ajudados pelos autores do golpe e pela imprensa, para mostrar – mais uma vez na história republicana, depois das demonstrações de força que marcaram os Congressos Eucarísticos – que a Igreja deveria ser levada em conta no futuro e no presente institucional brasileiro.
Convergiu a Igreja, na sua face hegemônica, com os setores privilegiados e particulares que tramavam contra o governo. Assim, nas palavras de Alberto Antoniazzi, o golpe de 1964 “leva a uma ‘reunião extraordinária dos Metropolitas’ em 27-29 de maio, da qual sai uma declaração que aceita a intenção da ‘Revolução de livrar o País do comunismo’ e agradece aos militares, mas faz ressalvas e o voto de que a reconstrução do País siga a Doutrina Social da Igreja” . A Igreja acolheu com excelente ânimo o pior golpe dentro do golpe, o Ato Institucional no 5. No Comunicado de 19 de fevereiro de 1969, os bispos, reunidos na CNBB, propõem ao governo uma “leal colaboração” para melhor cumprir “as reformas de base”, sepultadas com o governo Goulart. Naquele texto eles reconhecem a legitimidade do novo regime “institucionalizado em dezembro último” e chegam a considerar que os poderes de exceção permitiriam “realizar rapidamente as reformas de base”. Ao mesmo tempo os bispos ofereceram “leal colaboração” ao governo militar reforçado pelo AI-5, reconhecendo que, em face da repressão generalizada conduzida pelos militares, as elites católicas sofriam ameaças, o que as conduzia a se afastar da Igreja, penetrando numa “perigosa clandestinidade” .
Após a ditadura, o papel da Igreja como defensora dos direitos humanos foi idealizado, sem maiores cautelas científicas, por intelectuais e movimentos políticos. É preciso ser prudente no caso. De fato, vários bispos e padres, além de muitos leigos, lutaram pela justiça e contra o arbítrio. Mas a linha oficial da Igreja foi mais do que ambígua: ela apoiou o regime. O episódio brasileiro teve muitos antecedentes na história moderna. Recordo apenas a Concordata de Império entre a Igreja e o nascente (e legal) governo de Adolf Hitler. No art. 1º daquele documento, podemos ler: “O Reich alemão garante a liberdade da profissão e o exercício público da religião católica”. No art. 32 se enuncia: “Em razão das atuais circunstâncias particulares da Alemanha e em consideração das garantias criadas pelas disposições da presente Concordata, de uma legislação que salvaguarda os direitos e as liberdades da Igreja Católica no Reich […] a Santa Sé editará disposições excluindo para os eclesiásticos e religiosos o ingresso nos partidos políticos e sua atividade a este respeito” . Como os bispos que apoiaram o golpe de Estado em 1964, a Santa Sé acreditou que um regime autoritário poderia ser aceito, desde que a liberdade eclesiástica fosse preservada. Felizmente, para a restauração da plena democracia, na Alemanha e no Brasil, alguns fiéis não aceitaram as ordens das autoridades religiosas.
Eleições e exigências aos políticos e partidos
No retorno do Estado ao controle civil e ao tenso convívio de vastos setores ideológicos, na esquerda e na imprensa, a Hierarquia católica, esquecida muito convenientemente de seu apoio ao regime caído, cobrou fatura alta por sua atuação contra as violações dos direitos humanos sob o regime ditatorial. Com base nos atos de alguns setores seus que lideraram a denúncia das torturas e abusos policiais, a formação religiosa foi posta como a “grande aliada” das linhas democráticas e, mesmo, socialistas . Durante os trabalhos para a Constituição de 1988, a CNBB efetuou forte operação de lobby para inserir na Carta pontos favoráveis aos seus fins. Os frutos não tardaram, como a instauração dos cursos religiosos em escolas públicas, o veto ao aborto e outras questões éticas. A cada nova eleição presidencial ou legislativa, os hierarcas radicalizam exigências para os partidos e candidatos, o que resultou na guerra pouco santa das últimas eleições, sobretudo a de 2010. Um prisma a ser investigado é a divisão nas hostes do catolicismo naquele pleito. Ficou patente que alguns bispos, com respectivos rebanhos, assumiram a defesa do Partido dos Trabalhadores e de sua candidata, enquanto outros (antístites e fiéis) seguiram a linha da pressão hierárquica da Igreja como um todo. São as duas estratégias possíveis e tentadas pelos católicos desde o século XIX: a via, sempre fracassada, de possuir um partido que represente os seus interesses no plano civil, ou o caminho da pressão direta, sobre o mundo político, pelos hierarcas e órgãos de comando (como a CNBB).
EUA: aumentam debates sobre religião
Deixo de lado, por enquanto, o caso do Brasil católico e retorno aos EUA puritanos. Pelo menos desde o período Reagan, nota-se o recrudescimento dos debates sobre a religião, nos rumos daquela república. Há uma evidente presença de proposições, genericamente denominadas conservadoras, que buscam atribuir ao Estado mandamentos éticos e dogmáticos, nem sempre saídos das doutrinas teológicas ortodoxas, tanto no que se refere ao catolicismo quanto no relativo ao protestantismo. Nas eleições legislativas de 2010, que geraram prejuízos ao Partido Democrata e ao seu líder, Barack Obama, uma presença notória foi do agrupamento heteróclito chamado, intencionalmente, Tea Party. Embora não hegemônico entre os aderentes do Partido Republicano, e não representando todos os segmentos conservadores ou fundamentalistas do protestantismo, aquele núcleo se notabiliza por ampliar de maneira insólita as pretensões de controle do poder civil pelas aglomerações religiosas. Nas últimas eleições para o Congresso, aquele segmento chegou a interpretar a Constituição como se nela não existissem determinações separando Igreja e Estado. Embora mais notável pela tosca hermenêutica da Primeira Emenda, a candidata Christine O’Donnell não foi a única a falar daquele modo . Caráter racional do puritanismo versus fundamentalismo atual
Quem consulta o volume clássico, escrito por Perry Miller, The New England Mind , estranha a presença fundamentalista na ordem política e social dos EUA em nossos dias. O primeiro elemento a ser sublinhado na ordem religiosa é o caráter racional do puritanismo em seus primeiros instantes na América. Miller mostra que os pastores, teólogos e fiéis calvinistas usaram instrumentos lógicos, filosóficos, exegéticos com fundamentos na cultura comum europeia, tanto os da Antiguidade quanto os advindos do Renascimento. A mente puritana, ordenada pelas reformas lógicas de Petrus Ramus e de outros inovadores da retórica, sintetiza os ensinos da Reforma e a herança cultural do Ocidente de modo a não desmerecer o intelecto nem valorizar a vontade arbitrária em detrimento do plano racional. “Os puritanos acreditavam não apenas em seu credo religioso, mas na razão, na lógica e nas artes. Quando examinamos com minúcia seu pensamento, se torna claro que o impulso emocional da pie¬dade era, de fato, […] mais fortemente movido pela sua herança intelectual do que pela fome do espírito” .
Considerando a urgente resposta aos problemas éticos, políticos e jurídicos da nova terra, os puritanos, ao lutarem contra heresias como o arminianismo (este atenua a tese da predestinação e acentua a escolha dos indivíduos), encontraram situações que, para serem respondidas, deveriam gerar reparos na obra de Calvino. Os teólogos, sobretudo, ao discutirem a coesão do Estado e seu poder de constrangimento, notaram que, tomado literalmente (com fundamentalismo, diríamos hoje), o rigor calvinista levaria à impossibilidade de sancionar os cidadãos, positiva ou negativamente. “Segundo Calvino, a piedade dogmática que se prende à moral é apenas uma série de consentimentos aleatórios (aos decretos divinos [RR]), ela não teria outra base”. Ora, “para a teologia do pacto aquela base era inadequada, pois reduzia a moralidade ao edito arbitrário (divino [RR]), e não oferecia à humanidade, em termos de obediência, nada senão chicote e chibatadas. Consequentemente, a moralidade da Nova Inglaterra se estabelecia, não tanto a partir dos decretos divinos, mas nos termos de um pacto. Pacto federativo: das formas religiosas às políticas
A vontade humana era empenhada em tal assunto não por medo do Senhor, mas por respeito à palavra dada. A lei diante da qual o homem se curva era o seu bem maior como ente racional, lógico, dono de todas as suas faculdades, investigador da natureza e das artes liberais. Ela era justa de modo imanente e ninguém poderia reclamar por ser obrigado a segui-la .
A noção de pacto, pensado de maneira federativa, segue quase naturalmente das formas religiosas às políticas. Miller define a síntese de razão e fé na leitura puritana de Calvino feita na América. Deus deixa de ser apresentado como Rei absoluto e senhor arbitrário, tal como o Jeová do Antigo Testamento, para assumir a forma de um professor “que leva os alunos à verdade, não por compulsão, mas por convicção”. A figura divina aparece como a do “pai gentil preocupado com seus filhos perdidos, mais próximo do nume benevolente do século XVIII e da física newtoniana”. Tal pensamento teológico, associado às disciplinas acadêmicas e às artes, edifica a doutrina sobre o pacto e se torna “o elemento capital do esforço deliberado dos puritanos para combinar piedade e conceitos intelectuais, preservar a força irracional da revelação e mesmo assim harmonizá-la com as proposições da razão e da lógica, das artes e da física, da psicologia e os efeitos causais dos meios”. Last but not least, adianta Miller, a doutrina do pacto mantém relações contemporâneas com a história social, “aos pontos defendidos pelos puritanos nas lutas econômicas e políticas do século, na aliança entre puritanismo e a lei comum”.
Temos aí as matrizes que deram o padrão do Estado federativo e democrático, no qual elites formadas em centros de excelência (basta recordar a Ivy League e sua fieira de instituições de ensino e pesquisa) seguem a regra do contrato e das responsabilidades dele emanadas. “No common weale can be founded but by free consent” é a frase de John Winthrop, citada por Miller, que resume o ideário puritano na América. O Estado se origina, sobretudo, na sujeição voluntária dos cidadãos às leis e regras que definem o bem comum.
Deus atua por meio da liberdade humana
Em tal perspectiva teológico-política, Deus “cria o Estado, embora não diretamente, não por sua própria imediata instituição. Ele atua por meio da liberdade humana exatamente como, ao trabalhar com um efeito, Ele emprega uma causa. Ele pode, em todos os casos, dispensar meios e ordem por um fiat, mas prefere operar mais racionalmente”. As instituições civis possuem relativa autonomia diante do sagrado. Mas não existe, nem poderia existir, no pensamento primevo dos puritanos da América, absoluta separação entre o religioso e o secular. “Um Estado puritano”, adianta Miller, “deve garantir adequada liberdade aos cidadãos se, após ter assegurado os direitos óbvios de julgamento por júri e habeas corpus, lhes garante as ordenações de Cristo, os meios de conversão, com os sermões da fé e os sacramentos. As leis civis não deveriam ser tanto a proteção dos direitos dos governados, mas instrumento pelo qual o Estado define as suas obrigações sociais e dirige o exercício de sua liberdade” .
Em tal sentido, adianta Miller, “os magistrados civis da Nova Inglaterra, concebendo a si mesmos como executivos de um Estado cristão, assumiam poderes para os quais todo governo europeu, nos inícios do século XVII, consideravam legítimos, para expulsar ou executar heréticos e punir quem perturbasse a paz eclesiástica. Eles sentiam a si mesmos obrigados, devido ao ofício, a não tolerar erros, a proibir em suas jurisdições todas as Igrejas exceto a ortodoxa. Eles deveriam zelar pelo estabelecimento da religião pura, em doutrina, adoração e governo, segundo a palavra divina”. Nada excepcional para o tempo, visto que as mentes religiosas europeias, protestantes ou católicas, “estavam certas no ano de 1630 de que o Estado e a Igreja devem se ajudar reciprocamente; a política civil ratificando os casos das Igrejas, por meio de leis civis e castigos, enquanto a política eclesiástica ajuda o Estado e a comunidade em seus casos, declarando as leis e regras divinas”. O Estado conduz, segundo os padrões aristotélicos, à vida boa. A Igreja declara o que significa tal vida. Dialética entre Igreja e Estado .
Em parte da Nova Inglaterra (por exemplo, Massachusetts e Connecticut) se desenvolveu uma forma de secularização forçada pela própria dialética descrita acima, entre Igreja e Estado. Ali, e depois em setores cada vez mais amplos do território, “o sistema eclesiástico traduziu a teologia abstrata da graça e do pacto para os pactos concretos das Igrejas. O resultado imediato foi a criação de duas classes distintas de pessoas, os santos visíveis e os que não seria possível mais dizer regenerados de modo evidente, e tal divisão cortou as antigas linhas convencionais de classe. A base da distinção foi um ato da vontade, uma aptidão para a fé. O regime político foi levado a manter aquela distinção; a ‘forma devida’ no governo determinou-se como um mecanismo para permitir as duas sortes de pessoas a serem discriminadas. Onde outros governos lutavam para prender todo mundo nas Igrejas e nelas manter o povo, as autoridades coloniais deveriam separar santos e pecadores, enquanto suprimiam os heréticos notórios pela força, deviam garantir o jogo livre para o querer humano para se colocar num ou noutro setor. Eles não podiam forçar ninguém a assumir as obrigações de um membro que as não desejava” .
Apesar de o Estado ser conduzido à manutenção da fé e deveres cristãos, a franja dos que não vivenciavam no dia-a-dia os preceitos eclesiásticos aumentou, gradativamente. Na própria formação religiosa, com a doutrina do pacto, residia a tese que favoreceu semelhante brecha entre disciplina interna e vida no mundo (político, econômico). O povo cristão se notabiliza por ser um willing people; faith is not forced, tal era o lema dos teólogos e pastores puritanos. Desse modo, surgem mais tarde os paradigmas que, acentuados na Constituição e no ordenamento do poder civil, definiram a separação entre Estado e Igreja nos EUA. Embora sejam nítidas as distintas ordens e ofícios, apesar da secularização da cultura encetada pelas universidades e demais instituições de ensino e pesquisa, mesmo com a diversidade religiosa que, hoje sobretudo, vai muito além das fronteiras puritanas, reunindo os mais diversos cultos, o Estado assume o múnus de zelar pelos padrões éticos e morais, cujos pilares situam-se ao redor de doutrinas como a do pacto teológico e político. Não posso, aqui, ampliar o exame do importante arsenal de história jurídica e de cultura amealhado por Miller. É preciso, no entanto, referir as grandes linhas da “mente” que instauraram a república norte-americana.
Em primeiro lugar, temos a fuga puritana do regime absolutista europeu, e a retomada por teólogos e pastores, além dos fiéis, das doutrinas sobre o pacto, contra o arbitrário divino e governamental. Depois, a marca racional de semelhante política eclesiástica e civil, com base na cultura do Ocidente (desde a Grécia até o Renascimento), com a valorização do intelecto, da lógica, da pesquisa científica e humanística. Finalmente, a separação complexa entre o mister religioso e o campo da política que, no entanto e gradativamente, deu origem a uma ampla camada laica entre os governados e também entre as elites do continente. Disciplina religiosa e liberdade civil
Quando hoje são discutidos (e nas últimas eleições de 2010, não foi diferente) problemas como o aborto, a moral do casamento, as questões de gênero e escolha de orientação sexual, as drogas e tantas outras questões, nota-se que o pêndulo entre disciplina religiosa e liberdade civil (com suas obrigações) não está em repouso. Pelo contrário, sempre que na ordem do Estado surgem propostas de políticas para determinar por meio legal todos aqueles quesitos, aparecem nas Igrejas (e não apenas nas protestantes) exigências de impor às regras civis as ordenações religiosas. Eleições se transformam numa luta intensa para o controle ético, econômico e político, seja a partir dos “santos”, seja a partir da óptica dos “pecadores”. De modo geral, as instituições do Estado, tanto no Judiciário quanto no Legislativo (e mesmo quando o Executivo é dirigido por um “santo” ou suposto santo, como foi o caso de G. Bush), têm conseguido manter o caráter laico do Estado e a independência de Estado e Igreja.
É preciso, no entanto, convir que a atual situação religiosa dos EUA reside nos antípodas da “mente” da Nova Inglaterra, tal como retratada por Miller . Após séculos de vida pública, mudanças estruturais e de costumes na sociedade norte-americana, o pano de fundo religioso surge com muitas diferenças em relação à fé original. Trata-se de uma nova espécie de protestantismo, não mais alicerçado na razão, nas ciências e no humanismo clássico, como foi o caso da teologia do pacto que marcou os primeiros tempos da colonização e do desenvolvimento político dos EUA. Existem hoje, naquele país, outros modos de encarar as relações entre religião e poder . Se estivéssemos traçando uma linha no espaço, num momento inicial apareceria o mundo puritano, ainda embebido pela cultura grega, latina, renascentista e aberta para o universo da lógica, da física, da retórica e do direito público com base no contrato. Hoje surgem doutrinas e modos de agir de elites e massas que não se baseiam na razão tradicional, mas na fé com maior base emotiva e no querer comandado pelo desejo de mando nacional e internacional. Existe um acúmulo de dados, documentos históricos que evidenciam certo pensamento religioso que propõe, contra as premissas do
Estado laico, na América e no mundo, apressar o advento de um Cristo inusitado, o do poder e da riqueza. Se a teologia da Nova Inglaterra se fundava na razão e no contrato jurídico e político, a nova teologia procura instaurar a soberania do Cristo Rei. Importa notar que mesmo esta terminologia e título não têm origem protestante, mas é apanágio dos setores católicos . Nova teologia do poder e da riqueza
A religiosidade assumida por setores predominantes das elites, nos EUA, retoma figuras da soberania religiosa e formas de cunho místico que evidenciam uma estratégia de trato direto com o poder econômico e político. A busca pelo poder supera o traço de simpatia pelos procedimentos racionais ou científicos, tendo como alvo não a democracia, mas o Reino de Cristo. O nome de um daqueles grupos de elite, na ordem pública é significativo: International Christian Leadership. Ele não se preocupa tanto com as relações morais dos indivíduos, mas com a civilização cristã que deve comandar o mundo tendo como foco os EUA. Como subproduto da nova teologia do poder e da riqueza, surgem as seitas que pregam um contrato entre Deus e o homem, não mais no sentido ético e racional definido pelos puritanos da Nova Inglaterra, mas cada vez mais dirigido ao retorno em riqueza e poder para os indivíduos e grupos que fazem um “contrato” com Cristo. Brasil: Igreja afirmará sempre sua soberania
Volto ao Brasil. O monobloco de autoridade ética e política representado pelo catolicismo não desiste nem pode desistir de suas pretensões à “soberania espiritual” sobre o Estado . A doutrina é perene e não se modifica ao sabor das circunstâncias políticas ou econômicas. Esteja quem estiver na direção do poder laico, a Igreja sempre afirmará a sua suposta soberania, a exemplo de Pio XI quando ocorreu o Tratado de Latrão: “Também na Concordata estão um diante do outro, senão dois Estados, certissimamente duas soberanias plenas, isto é, perfeitas, cada uma em sua ordem, ordem necessariamente determinada pelos respectivos fins onde quase não é preciso dizer que a dignidade objetiva dos fins determina não menos objetivamente e necessariamente a absoluta superioridade da Igreja” . Desse modo, do lado católico nenhum partido, candidato ou governo pode esperar atitude passiva em períodos eleitorais. É naquelas ocasiões que o famoso complexio oppositorum (a expressão, feliz, vem de um autor que gerou e causará muita infelicidade no mundo, o católico Carl Schmitt) tenta, por todos os meios, conseguir o que a LEC não logrou: assegurar que nas leis e no exercício do poder a doutrina teológica, social e política do catolicismo se mantenha, soberana, no campo ético e moral.
Por outro lado, as confissões protestantes tradicionais (ligadas ao impulso da Reforma e da cultura renascentista, com as marcas identificadas por Perry Miller para a “mente puritana”), sejam elas presbiterianas, metodistas, batistas ou anglicanas, com muita relutância entram na liça política para reivindicar privilégios (ao modo católico) ou impor sua visão ética do mundo. Nelas, o equilíbrio entre fé e razão é mantido (com variações de Igreja a Igreja) e não existe fundamentalismo ao modo experimentado nos EUA. Virada fundamentalista: Igreja Universal
Mas crescem a olhos vistos as formas confessionais similares à virada fundamentalista norte-americana. Um dos exemplos mais claros de tal perspectiva é a Igreja Universal do Reino de Deus, liderada por Edir Macedo. Não ostentando bases culturais sólidas nas humanidades e na ciência, aqueles ramos pregam a “teologia da prosperidade”, na qual, em vez do Covenant entre crentes e Deus, rege o contrato de compra e venda, estritamente nos planos do mercado da fé: os pastores exigem dízimos e, em troca, garantem empregos, dinheiro, sucesso no mundo aos aderentes. Como uma empresa altamente competente na conquista do mercado, aquele setor domina vasta rede de comunicação e propaganda, conseguindo em consequência fatias ponderáveis do poder político.
Seguindo o modo de pensar que se aproxima do da International Christian Leadership exposta por Jeff Sharlet , Macedo apresentou em 2008 um plano de conquista política que trouxe preocupações aos partidos laicos e ao setor católico. Segundo ele, Deus tem um plano político para os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus e seus aliados evangélicos: governar o Brasil . Macedo propõe que se mobilize uma nova máquina partidária segundo um “projeto de nação”, com modelo no que Deus ordenou aos antigos israelitas. “Tudo é uma questão de engajamento, consenso e mobilização dos evangélicos. Nunca, em nenhum tempo da história do evangelho no Brasil, foi tão oportuno como agora chamá-los de forma incisiva a participar da política nacional”, diz Macedo, que avalia em quarenta milhões o coletivo de evangélicos no País. “A potencialidade numérica dos evangélicos como eleitores pode decidir qualquer pleito eletivo, tanto no Legislativo, quanto no Executivo, em qualquer que seja o escalão, municipal, estadual ou federal”.
Para essa comunidade cristã (Macedo exclui os católicos, et pour cause...), Deus teria feito os planos de governo. O texto, com forte linguagem de marketing e administração, lança as bases para a militância político-partidária dos crentes. No Brasil, afirma o líder, a comunidade evangélica é como um “gigante adormecido” alheio ao processo eleitoral. Não se trata, portanto, de uma outra corrente protestante que entra na arena política, mas de uma forma inovada, nos parâmetros do fundamentalismo e da luta pelo poder, que se manifesta no cotidiano de extensa rede de TV, rádio, jornais, militância . Era e será de esperar a atuação cada vez mais agressiva do setor nos períodos eleitorais. A inflexibilidade dogmática, na instituição, se forma ao redor dos dízimos e dos contratos. Ela é menos rígida em assuntos de teor ético. Edir Macedo, por exemplo, não é contrário ao aborto, indo em sentido oposto às Igrejas protestantes tradicionais e à católica. Debate eleitoral e pauta religiosa no Brasil
T ermino. Pretendi, com as considerações acima, indicar que o debate eleitoral, quando é dominado pela pauta religiosa no Brasil, deve levar em conta as mudanças e permanências dos vários segmentos místicos. Mudanças: é preciso entender que a lógica protestante tradicional não exclui as confissões presbiterianas, anglicanas e demais, do processo político. Mas nelas não existe a doutrina da riqueza e do poder na forma adquirida nos últimos tempos, a partir dos EUA. E também não existe plano algum para a formação de um partido para a conquista do Estado. Já o mesmo não é possível afirmar de segmentos como os da Igreja Universal do Reino de Deus. Resulta que as igrejas protestantes tradicionais tendem a se aproximar da católica quando se trata de exigir que a pauta ética cristã seja obedecida pelos partidos e candidatos. Donde surgem graves contradições práticas e teóricas, visto que a Hierarquia do catolicismo, sempre que possível, tenta assegurar para si, sem muitas partilhas, as concessões do Estado. Foi o que ocorreu recentemente no caso da Concordata assinada entre o Brasil e o Vaticano. As confissões evangélicas foram praticamente silenciadas quando se tratou, entre outros, do ensino religioso . Laicidade do Estado
A única trilha para evitar o acirramento das lutas religiosas (supostas ou efetivas) em período eleitoral e no cotidiano residiria numa corajosa atitude de todos os partidos políticos e lideranças nacionais em prol da laicidade do Estado. Infelizmente, nem os partidos, nem os estratos acadêmicos, nem a imprensa tomam hoje a questão a sério. Entre as causas de tamanha imprudência, podem ser elencados os oportunismos, a ausência de saber sobre as lógicas religiosas, a fanática arrogância dos crentes com seus ultimatos ao poder civil, o emperramento da máquina estatal em todas as suas partes, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário.
Falta no Brasil o entendimento dos limites entre ordem religiosa e poder secular. Talvez falte a leitura de pensadores éticos estratégicos na vida do espírito moderno, como Spinoza. Este último termina o Tratado Teológico-Político advertindo contra as lutas das seitas. Com elas, “os costumes mais dignos de respeito e a boa-fé se corrompem, enquanto os aduladores e os pérfidos se levantam; os adversários […] triunfam porque cedemos diante de sua fúria e os chefes de Estado se enfileiram entre os sectários de doutrinas, das quais eles se fizeram intérpretes. Os sectários chegarão ao ponto de usurpar o prestígio e o direito da Autoridade Soberana, terão a ousadia de se dizerem eleitos imediatamente por Deus, de modo que a Autoridade política humana deveria se inclinar diante do seu querer divino. Ora, tal situação, ninguém pode ignorar, é absolutamente contrária à salvação da república […] se quisermos garantir segurança à mesma república, é preciso que todos os fervores devotos ou de religião sejam reduzidos à prática da justiça e da caridade. É preciso que a legislação do poder soberano, tanto no domínio sagrado quanto no profano, vise exclusivamente os atos dos governados, e garanta a cada um deles a liberdade de pensamento e de expressão” . Quem assistiu e participou das últimas eleições presidenciais brasileiras, percebe o quão sábias são as palavras de Spinoza, o grande discípulo moderno de Maquiavel. Justifica-se o rápido cotejo feito por mim entre os nexos de religião e mundo estatal nos EUA e no Brasil. Entre nós, não apenas as convicções ideológicas ou econômicas barram o caminho da ordem laica e da livre expressão do pensamento. Há uma insuportável “soberania” do religioso sobre o político que, nas eleições, opera ditatorialmente, não aceitando sequer discussões sobre sua legitimidade. Não é assim nos EUA, pelo menos por enquanto. A Primeira Emenda, justamente, ordena a separação entre Igreja e Estado no mesmo fôlego em que define a mais ampla liberdade de expressão . Senda que, infelizmente, parece fechada no cipoal ético brasileiro. •
ROBERTO ROMANO é graduado em Filosofia pela USP e com doutoramento na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris (1978). Livre-docente, Adjunto e Titular na Unicamp. Leciona Ética e Política no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas (IFCH), Unicamp. Autor de livros e artigos sobre Religião, Política, Ética, História da Filosofia. |