Após ocupação, mulheres do Complexo do Alemão denunciam mais à polícia casos de abuso
Especial para o UOL Notícias
No Rio de Janeiro
Habitado por cerca de 200 mil pessoas e ocupado desde novembro de 2010 pelas Forças Armadas, o Complexo do Alemão apresenta uma mudança significativa quanto a agressão contra mulheres. O número de notificações de casos de violência doméstica aumentou quase 50% nos primeiros meses deste ano, segundo confirmou ao UOL Notícias o titular da 22ª Delegacia da Penha, José Pedro Costa da Silva.
Em um balanço dos primeiros meses deste ano, foram registradas 571 queixas de mulheres que sofriam com abusos em casa, a maior parte das vezes pelos próprios maridos. Em relação ao mesmo período do ano passado, de janeiro a julho de 2010 antes da pacificação, o número de casos registrados foi de 279.
“Houve um aumento de quase 50% no número de ocorrências. Após o período de pacificação, realmente as mulheres estão comparecendo muito à delegacia para denunciar abusos ou violência. Antes elas não podiam ir à polícia porque as comunidades eram dominadas pelo tráfico”, afirmou o delegado.
Crime velado
Antes as mulheres que vivem no Alemão não comunicavam. Era rotina, elas sofriam e não comunicavam
José Pedro Costa da Silva, delegado titular da 22ª Delegacia da PenhaEnquanto o tráfico de drogas era uma modalidade criminosa comum conhecida pela polícia, a violência doméstica e a agressão contra as mulheres eram alguns dos crimes velados que mais aconteciam sem a devida atenção das autoridades.
Segundo o titular da 22ª DP, os números de registros não apontam para o aumento da violência doméstica, mas sim para o número de notificações. “Antes as mulheres que vivem no Alemão não comunicavam. Era rotina, elas sofriam e não comunicavam”, destacou.
Embora não tenha uma Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) no Alemão, as queixas acabam sendo registradas na Delegacia da Penha e, mesmo assim, é feito um trabalho especializado para receber as mulheres, explicou o delegado.
“Os atendimentos são feitos por psicólogos, e a gente dá prioridade para atendimentos feitos por mulheres, mas os homens também foram preparados. Até em casos de violência sexual, o atendimento é feito prioritariamente por mulheres”, completou José Pedro da Silva.
Agora, a vida da Polícia Civil está mais fácil quando tem que checar as denúncias, admitiu. “Antes, para entrar no Complexo tinha que preparar uma grande operação geralmente envolvendo mais policiais. Hoje, dois ou três homens tranquilamente sobem o Alemão para checar as denúncias”, confirmou.
“Mulheres tomaram coragem”
Elas não podiam abrir a boca e não tinham a quem recorrer. Havia muita agressão mesmo, maridos violentos que espancavam as mulheres
Sheila Santos de Andrade, moradora do Complexo do AlemãoA moradora Sheila Santos de Andrade, 35 anos, disse ao UOL Notícias que após a Lei Maria da Penha e a saída do tráfico que dominava o conjunto de favelas, “as mulheres tomaram coragem”.
“Hoje a maioria das mulheres denunciam, elas estão com mais coragem de ir à delegacia. Agora, os casos têm chegado aos nossos ouvidos”, disse Sheila, que integra o projeto Mulheres da Paz e preside uma associação de mulheres do Alemão que já existe há dois anos.
Mesmo assim, Sheila conta que após a pacificação já houve três casos de morte de mulheres que sofriam abusos de seus maridos. “Não sabemos se elas chegaram a denunciar. Quando chegou a notícia, elas já estavam mortas”, lamentou.
A presidente da associação lembrou do caso de sua vizinha que, após ter sido espancada pelo marido, “desceu na hora e chamou a Força de Pacificação, que a encaminhou para a polícia”, conta.
Sheila Santos já havia dito ao UOL Notícias anteriormente que, de fato, era grande aviolência doméstica antes da pacificação. “Elas não podiam abrir a boca e não tinham a quem recorrer. Havia muita agressão mesmo, maridos violentos que espancavam as mulheres. Isso tem em toda a sociedade, mas numa comunidade por ser fechada, as leis, a proteção, tudo ficava mais vulnerável. Aqui achavam que a pessoa ficava impune e a agressão passava despercebida.”
A presidente da associação que mora no Alemão há 30 anos já viveu a violência dentro de casa, não foi pelo seu marido, mas sua filha de 13 anos foi baleada em 2007 durante um confronto em que tiros atravessaram a parede de sua casa e feriram a adolescente.
REVEJA COMO FOI A OCUPAÇÃO DO ALEMÃO
Veja outras imagens da violência no Rio Mais Jefferson Bernardes/AFP
Mudança na rotina
Sheila diz ser “constrangedor” ver soldados armados do lado da sua casa o dia todo. “Mas quando a gente vê que ele está do lado da lei é melhor. Antes quando tinha os civis armados, eles agiam por impulso. Hoje a tranquilidade das pessoas é maior de irem atrás de seus direitos”, ressalta.
A rotina no Alemão mudou, afirma, e para melhor. “Quando a gente pensa em paz, a gente pensa em liberdade”. Ela torce para a chegada da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), mas receia que não haja policial suficiente e que a situação se torne mais vulnerável.
O Complexo do Alemão concentra o maior número de casos do Estado. Preocupada com o aumento de notificações de violência contra a mulher na região – duas a três por dia –, a chefe de polícia civil Martha Rocha esteve no Alemão, em maio deste ano, e anunciou que estão sendo planejadas ações para combater esse tipo de crime.
“É um sinal de que as mulheres estão confiando mais na autoridade policial. Com o que está sendo feito aqui, ela não é mais vitimizada pela segunda vez. Antes, a mulher era vitimizada pelo companheiro e, além disso, não podia ir a uma delegacia. Com a retomada do território, com a retomada da cidadania aqui, é natural que as mulheres procurem a unidade policial”, declarou Martha Rocha.
Segundo anunciou a chefe de polícia na ocasião, as autoridades estão traçando novas estratégias de como trazer o trabalho das delegacias de atendimento à mulher para a região do Alemão e realizar um trabalho de prevenção junto às mulheres.
“Temos, atualmente, um retrato do empoderamento das mulheres e da confiança delas no poder público”, disse Martha Rocha.
O Complexo do Alemão foi ocupado pelas forças de segurança, em novembro de 2010, durante uma megaoperação de retomada do território, que envolveu cerca de 2.700 agentes das polícias Civil e Militar e do Exército.
Sem previsão de saída do Exército da localidade, a Força de Paz substituiu dia 12 de agosto o contingente por outros 1.800 soldados da 9ª Brigada de Infantaria Motorizada, que vão ocupar este semestre.