A mais emblemática caricatura de Alfredo Astiz, “o anjo loiro da morte” ou “o corvo”. A ilustração é do genial Alfredo Sábat, filho do supimpa Hermengildo Sábat. Mais caricaturas e informações sobre Sábat filho, no site wwww.alfredosabat.com
O tribunal oral federal número 5 da capital argentina anunciou nesta quarta-feira à noite as sentenças de 18 militares acusados de 86 casos de crimes contra a Humanidade realizados na Escola de Mecânica da Armada (ESMA), o maior centro clandestino de detenção da ditadura militar argentina (1976-83). A condenação mais esperada era a do ex-capitão Alfredo Astiz – apelidado de “o anjo loiro da morte” – uma das figuras mais emblemáticas do regime militar. Os parentes das vítimas de Astiz – que completará 60 anos no próximo dia 8 de novembro – celebraram quando ouviram que os juízes federais condenavam o ex-capitão à prisão perpétua.
Do lado de fora do edifício do tribunal, no bairro portenho de Retiro, representantes de organismos de defesa dos direitos humanos, ex-prisioneiros sobreviventes também festejaram. “Acabaram 30 anos de impunidade”, gritavam exultantes. No entanto, duas dezenas de pessoas, simpatizantes dos militares, protestaram contra a condenação dentro do tribunal.
Estimativas de ONG argentinas e de organismos internacionais como a Anistia Internacional indicam que a ditadura argentina assassinou 30 mil civis. Destes, 5 mil teriam passado pela ESMA. Menos de 150 sobreviveram às torturas e os fuzilamentos feitos pelos oficiais da Marinha.
O tribunal também condenou perpétua o capitão de corveta Jorge ‘Tigre’ Acosta, famoso pelos requintes de crueldade que aplicava aos civis detidos na ESMA. Segundo testemunhas, o capitão de corveta falava sozinho à noite, em delírio místico. O próprio Acosta explicava que conversava com “Jesucito” (O pequeno Jesus), ao qual “perguntava” qual dos prisioneiros deveria torturar no dia seguinte.
Acosta foi um dos criadores dos “voos da morte” (voos sobre o rio da Prata ou o mar, desde os quais eram jogados os prisioneiros, ainda vivos), uma das modalidades preferidas do grupo de tarefas da ESMA para eliminar vestígios dos corpos. Durante o julgamento no tribunal número 5, Acosta afirmou que havia “lutado como um soldado em uma guerra”.
Entre os outros ex-militares julgados estão Alfredo Donda Tigel, que sequestrou seu próprio irmão e a cunhada – militantes da esquerda – os assassinou e ficou com suas filhas. Donda foi condenado a prisão perpétua.
A Justiça determinou perpétua para os oficiais Oscar Montes, Antonio Pernías, Raúl Scheller, Ricardo Cavallo, Jorge Rádice, Alberto González, Julio César Coronel e Ernesto Weber. Este era apelidado de “220” pelos colegas militares pelo prazer que sentia em aplicar essa voltagem nas torturas.
Além deles, Juan Carlos “Lobo” Fotea Daneri foi condenado a 25 anos de prisão. Manuel Tallada recebeu 25 anos; Carlos Capdevilla, que realizou os partos clandestinos na ESMA, foi condenado a 20 anos de prisão. Um dos mais ferozes torturadores, Juan Antonio “Piranha” Azic, recebeu a pena de 18 anos.
A longa lista de sequestros, torturas e assassinatos de civis – além do roubo de bebês e o ocultamento da identidade dessas crianças – implicou em quase dois anos de audiências. No total, prestaram depoimento de 160 testemunhas, incluídos um grupo de 79 sobreviventes do centro de detenção clandestino.
A ESMA, segundo o jornalista Eduardo Aliverti, era “um clube de perversão”. Ali, afirma, “a tortura e os assassinatos tiveram características diferentes dos outros centros de detenção da ditadura”.
BEBÊS - O sequestro de bebês foi uma das marcas desse centro clandestino. Diversas estimativas calculam que ali teriam nascido entre 150 e 250 bebês. Suas mães, as prisioneiras, eram assassinadas poucos dias após os partos. Na sequência, as crianças eram entregues a famílias de militares ou policiais estéreis.
Outra das marcas da ESMA foram os negócios realizados no “El Pañol” (O Paiol), um armazém no qual acumulavam-se eletrodomésticos, móveis e obras de arte roubadas das pessoas sequestradas. Os apartamentos e casas dos desaparecidos eram vendidas por uma imobiliária montada pelo almirante Emilio Massera, um dos três integrantes da primeira junta militar que governou a Argentina após o golpe de 1976. Massera morreu há quase um ano, depois de uma década em estado vegetativo.
A capa do jornal Página 12 quando Massera pegou o ferry boat de Caronte
HITLER E NATAL - Nas salas de torturas da ESMA os militares colocavam a todo volume marchas militares alemãs e discursos de Adolf Hitler para abafar os gritos de prisioneiros cujas unhas eram arrancadas, seus testículos apertados com alicates, os mamilos queimados com brasas de cigarro e os lábios vaginais eletrocutados.
Segundo os sobreviventes, nas celas da ESMA, que acumulavam dezenas de prisioneiros, ninguém podia conversar, sob o risco de ser espancado. Os depoimentos indicam que esta era uma forma dos carcereiros eliminar qualquer noção de tempo e espaço dos detidos, que boa parte do tempo tinham um capuz cobrindo sua cabeça.
Antes das sessões de tortura os prisioneiros recebiam uma boa refeição – chamada de a “última ceia” – servida pelos oficiais com um sorriso sarcástico. Depois, eram levados pela “Avenida da Felicidade”, denominação do corredor que ligava as celas com as salas de torturas. Ali, a longa sequência de torturas começava com choques elétricos. As fortes descargas causavam apagões no resto das instalações da Esma. Para que a condução elétrica fosse melhor, os homens de Massera molhavam os corpos dos torturados.
Os moradores do bairro de Núñez acreditavam que a ESMA era um quartel comum. Poucos sabiam sobre o cotidiano dantesco que transcorria nesses edifícios, localizados sobre a movimentada Avenida Libertador. No Natal, tal como nos edifícios residenciais vizinhos, a Esma ostentava um frondoso pinheiro com luzes coloridas. Massera dizia que orgulhava-se de ser “um bom cristão”.
ASTIZ, O “ANJO LOIRO DA MORTE”
Oficial autor de torturas e assassinatos foi o “garoto mimado” da ditadura
“É o mais sinistro paradigma do terrorismo de Estado”. Com esta frase, o escritor e jornalista Jorge Camarasa, definiu ao Estado a personalidade do ex-capitão Alfredo Astiz, um dos mais famosos integrantes da ditadura argentina (1976-83), apelidado de “O anjo loiro da morte” por suas vítimas e “O Corvo” por seus amigos (por seu ar sempre sombrio). Camarasa é o autor de “O Verdugo – Astiz, um soldado do terrorismo de Estado”, biografia não-autorizada do frio torturador que foi a estrela da ESMA.
“Astiz possuía várias patologias. Ele costumava lembrar dos aniversários de prisioneiros, aos quais levava presentes na ESMA. Astiz era capaz de retirar um prisioneiro da cela, levá-lo a um restaurante e depois transportá-lo de volta para uma sessão de torturas na ESMA. E por incrível que pareça, ele pretendia que fosse uma espécie de relação na qual todos seriam amigos!”
“Garoto mimado” da ditadura, a alta hierarquia militar encomendava a Astiz as missões mais complexas. Entre seus assassinatos mais famosos de Astiz estão os das freiras francesas Alice Domon e Leonie Duqueta, além de três fundadoras das Mães da Praça de Mayo, entre elas, Azucena Villaflor.
Durante uma operação para sequestrar militantes de esquerda, Astiz e seu grupo entraram na casa de uma estudante. Ali estava Dagmar Hagelin, uma jovem sueca, sem atividades políticas, amiga da jovem procurada. A adolescente, assustada, fugiu e – a 100 metros de distância – foi derrubada com um tiro certeiro de Astiz na nuca. O oficial, ao comprovar sua pontaria, soltou uma gargalhada.
Astiz foi recompensado por seus serviços com o cargo de governador das ilhas Geórgias durante a Guerra das Malvinas, em 1982. No entanto, essas ilhas foram o primeiro ponto recuperado pelos britânicos durante o conflito. Após um único tiro de bazuca disparado pelos britânicos, Astiz desistiu de resistir “até a morte”, como havia prometido. Com com um copo cheio de whisky em uma das mãos, assinou a rendição incondicional.
Astiz foi beneficiado em 1987 pelas leis de Perdão aos Militares e recuperou a liberdade. Durante doze anos era visto frequentemente em discotecas acompanhado de belas mulheres. No entanto, nunca mais pode sair do país, já que a Justiça da França o condenou à revelia pelo assassinato das freiras francesas e pediu sua captura internacional. As Justiças da Itália, Espanha e Suécia também pediram sua captura pelo sequestro e morte de cidadãos desses países.
Em 1998 foi detido por um mês e expulso da Marinha por declarar à revista Trespuntos que era “o homem melhor preparado no país para matar um presidente”. Em 2003, foi novamente processado graças à anulação das leis de Ponto Final e Obediência Devida (as leis de perdão aos militares) e colocado em prisão preventiva. Há poucos dias, na reta final de seu julgamento, afirmou no tribunal que considerava-se um “perseguido político”.
DELÍRIOS - Miriam Lewin, uma das sobreviventes da ESMA e ex-prisioneira de Astiz, analisou para o Estado os delírios de grandeza de Astiz: “ele tinha absoluta certeza que estava destinado a grandes missões em sua vida e acreditava que era um cavaleiro nas Cruzadas!”. Autora de “Esse inferno” – livro que relata a passagem de várias prisioneiras mulheres nesse centro de torturas – Lewin sustenta que “Astiz é o ex-integrante da ditadura com o perfil psicológico mais intrincado”.
Leopoldo Fortunato Galtieri, ditador com intenso approach pelos destilados
MODALIDADES DE TORTURAS DA DITADURA
- Picana elétrica: criada nos anos 30 na Argentina por Leopoldo Lugones Hijo, filho do escritor Leopoldo Lugones. Era o instrumento para assustar o gado com choques elétricos. Aplicado a seres humanos, tornou-se no instrumento preferido de tortura na Argentina.
- Submarino molhado: afundar a cabeça de uma pessoa em uma tina d’água. Ocasionalmente a tina também estava cheia de excrementos humanos.
- Submarino seco: colocar a cabeça de uma pessoa dentro de um saco de plástico e esperar que ela ficasse quase asfixiada.
- O rato no cólon: colocação de um rato, faminto, no cólon de um homem. Nas mulheres, o rato era colocado na vagina.
Diversas testemunhas indicam que os torturadores argentinos ouviam marchas militares do Terceiro Reich e discursos de Adolf Hitler enquanto torturavam.
FRACASSOS ECONÔMICOS E MILITARES: Além de ter sido a mais sanguinária Ditadura foi um fracasso tanto na área militar como na esfera econômica.
Fiascos Militares:
- Entre 1976 e 1978 a Ditadura colocou quase a totalidade das Forças Armadas para perseguir uma guerrilha que já estava praticamente desmantelada desde antes do golpe, em 1975. Analistas militares destacam que este desvio das Forças Armadas argentinas (que havia iniciado no final dos anos 60 mas intensificou-se a partir do golpe) reduziu drásticamente o profissionalismo dos militares.
- Em 1978, a Junta Militar argentina levou o país a uma escalada armamentista contra o Chile. Em dezembro daquele ano, a invasão argentina do território chileno foi detida graças à intermediação papal. O custo da corrida armamentista colocou o país em graves problemas financeiros.
- Em 1982, perante uma crise social, perda de sustentabilidade política e problemas econômicos, o então ditador Leopoldo Fortunato Galtieri – famoso por seu intenso approach ao scotch – decidiu invadir as ilhas Malvinas para distrair a atenção da população. Resultado: após um breve período de combate, os oficiais do ditador renderam-se às tropas britânicas.
Desastres econômicos:
- Em sete anos de Ditadura, a dívida externa subiu de US$ 8 bilhões para US$ 45 bilhões.
- A inflação do governo civil derrubado pela Ditadura, que era considerada um índice “absurdo alto” pelos militares havia sido de 182% anual. Mas, este índice foi superado pela política econômica caótica da Ditadura, que encerrou sua administração com 343% anual.
- A pobreza disparou de 5% da população argentina para 28%
- A participação da indústria no PIB caiu de 37,5% para 25%, o que equivaleu a um retrocesso dos níveis dos anos 60.
- Além disso, a Ditadura criou uma ciranda financeira, conhecida como “la plata dulce”, ou, “o doce dinheiro”.
- Ao mesmo tempo em que tomavam medidas neoliberais, como a abertura irrestrita das importações, os militares continuavam mantendo imensas estruturas nas empresas estatais, que transformaram-se em cabides de emprego de generais, coronéis e seus parentes.
- Os militares também estatizaram US$ 15 bilhões de dívidas das principais empresas privadas do país (além das filiais argentinas de empresas estrangeiras).
- No meio desse caos econômico, os militares provocaram um déficit fiscal de 15% do PIB.
- A repressão provocou um êxodo de centenas de milhares de profissionais do país. Os militares, em cargos burocráticos, exacerbaram a corrupção na máquina estatal.
‘GUERRA’ OU REBELIÃO LOCALIZADA? – Os militares deram o golpe e instauraram a ditadura mais sanguinária da História da América do Sul (América do Sul, não América Latina) com o argumento (um dos vários) de que a guerrilha controlava grande parte do país. Segundo os ex-integrantes da ditadura, os militares argentinos implementaram uma “guerra”.
No entanto, trata-se de um exagero para justificar os massacres cometidos durante a ditadura.
A pequena guerrilha argentina, mais especificamente o ERP, dominava às duras penas uma pequena porcentagem da província de Tucumán, a menor província da Argentina (Tucumán inteirinha equivale a 0,81% da área geográfica do país).
A magnificação da guerrilha foi útil para os militares e também para o prestígio dos guerrilheiros. A nenhum dos dois lados era conveniente admitir a realidade, de que a área controlada pela guerrilha era ínfima.
Os militares e os setores civis que apoiaram o golpe (e os saudosistas daqueles tempos) afirmavam (e ainda afirmam) que o país estava em guerra civil nos nos 70.
Mas, “guerra civil”, rigorosamente, seriam conflitos de proporções mais substanciais, tais como a Guerra da Secessão dos EUA, a Guerra Civil Espanhola, a Guerra Civil Russa logo após a proclamação do Estado Soviético, a Guerra das Duas Rosas (Lancasters versus Yorks, na Inglaterra) ou a Guerra Civil da Grécia após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Ainda: a Guerra Civil da Nicarágua, e a de El Salvador. Isto é: bombardeios de cidades, grandes êxodos de refugiados, centenas de milhares de mortos, uma boa parte de um país controlado por um dos lados, e outra parte controlada por outro lado. Isso não ocorreu na Argentina nos anos 70.
PERFIL: Ariel Palacios fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993. Desde 1995 é o correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires. Além da Argentina, também cobre o Uruguai, Paraguai e Chile. Ele foi correspondente da rádio CBN (1996-1997) e da rádio Eldorado (1997-2005). Ariel também é correspondente do canal de notícias Globo News desde 1996.