A ética e o assessor anônimo
A Fapesp e o CNPq criaram, recentemente, códigos de conduta para cientistas, visando a prevenir eventos antiéticos como a fabricação de resultados, a falsificação de dados, o plágio, a inclusão de autores nos trabalhos sem que estes tivessem uma contribuição significativa para a realização do estudo. A repercussão na mídia reflete o crescente interesse público pela ciência e a atividade dos cientistas. Preocupação ética mais antiga com a atividade científica foi originada pelos produtos que ameaçam a humanidade ou a natureza, como os agrotóxicos ou armas.
Acompanhando a tendência global, introduzi, em 2008, na pós-graduação no Instituto de Química da USP, a disciplina Ética Para os Profissionais de Química, envolvendo a discussão de problemas originários do questionamento público e da vivência dos próprios cientistas, orientadores e alunos de pós-graduação. Revelou-se como figura de destaque nas discussões o assessor anônimo, personagem não contemplada nesses códigos de conduta. Como sabemos, a análise de projetos de pesquisa, solicitações de bolsa, verba para a aquisição de equipamento de pesquisa, o financiamento de viagens junto aos órgãos financiadores dependem quase que decisivamente do parecer de assessores ad hoc, cuja identidade é mantida em segredo. É o assessor anônimo.
A favor do anonimato são usados dois argumentos, discutíveis. Um, que “em todas as partes do mundo é assim”. É a falácia da “prática comum”: a defesa com base em que, se todo mundo age de uma dada maneira, então tal prática é válida. Omitem-se a análise e a crítica. Em segundo, que o anonimato do assessor garante uma avaliação isenta, visto que ele não temerá represálias e conflitos pessoais no caso de uma recomendação desfavorável. Pressupõe-se que os cientistas sejam incapazes de manter a objetividade ao analisar projetos de seus pares em procedimento aberto e que os solicitantes não consigam aceitar objetivamente uma análise parcial ou inteiramente desfavorável a suas pretensões. Ora, na hipótese de os cientistas não conseguirem atuar objetivamente em procedimentos transparentes, é razoável supor que serão objetivos e isentos em assessorias às escondidas?
Expectativa e esperança que carecem de lógica. O segredo é solo fértil para a manifestação das fraquezas humanas das quais nem todo cientista escapa, por um lado, e o surgimento de boataria sem fim, por outro. Algumas das más práticas são constatáveis nos próprios pareceres aos quais os solicitantes têm acesso (sem assinatura do “parecerista”, obviamente). Vejamos alguns exemplos. Já ocorreu a não recomendação de pedido de bolsa de pós-doutorado no exterior, com o assessor anônimo alegando que o solicitante nunca havia trabalhado no assunto proposto, daí o trabalho no laboratório a visitar teria o aproveitamento comprometido. Pedido igual foi recusado por outro assessor (ou, quem sabe, o mesmo), porque o solicitante, já tendo trabalhado no tema, teria pouco aproveitamento com a permanência no exterior.
Da minha vivência posso citar o caso da recusa sucessiva de relatórios referentes a projeto cujo equipamento foi financiado por uma das agências mencionadas. Embora elaborados em conformidade com as exigências e anexados os artigos publicados em revistas estrangeiras indexadas, o relatório foi recusado – a primeira vez por ser sucinto, a segunda vez por muito detalhado. O assessor cometera a imprudência, ainda, de comentar com um amigo comum que “estrepei fulano” (usando, porém, termos chulos). Por motivos óbvios, respeitei o anonimato do “isento” anônimo. Mais difíceis de comprovação são as queixas de que o assessor anônimo, normalmente da mesma área de pesquisa que o solicitante, se apropriou das ideias deste e, eventualmente, “segurou” o projeto por tempo suficiente para tirar vantagem. São boatos apenas? Possivelmente.
Mais uma vez de vivência pessoal, um evento pouco lisonjeiro. Colegas que atuavam em área semelhante à minha me procuraram dizendo saber que solicitação minha a uma das agências financiadoras recebera parecer negativo. Queriam me assegurar que nenhum deles fora o assessor e me pediam que, portanto, não tomasse represálias, caso indicado para analisar pedidos deles. Acredite o leitor, a resposta gentil, de que jamais suspeitei deles, nem pensaria em desforra, exigiu considerável autocontrole.
Tratasse de casos raros, não levantaria este questionamento. Mas os pesquisadores todos sabem que o procedimento do assessor anônimo é, com certa frequência, de ética questionável. Daí, creio que – enquanto continuarmos descrentes da objetividade do cientista que atue às claras e for mantida a figura suspeitosa do assessor anônimo, salvaguardada a honra daqueles que às claras ou no anonimato, igualmente, não abrem mão da honestidade – os avanços em ética continuarão insuficientes. Isto, além da questionável alocação de fundos públicos com base em recomendações anônimas.
Tibor Rabóczkay é professor titular aposentado do Instituto de Química da USP