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segunda-feira, 3 de outubro de 2011
ARTIGO ESPECIAL: Outubro 2011
A COMISSÃO DA VERDADE
Edgar Aquino Duarte, ligado à luta armada e desaparecido desde 1973
Na última quarta-feira o plenário da Câmara dos Deputados aprovou a criação da Comissão da Verdade, criada para trazer a público os documentos mantidos sigilosos do período do Regime Militar (1964 – 1985), bem como fatos relacionados a atividade dos órgãos de segurança durante esse período. Em princípio, as atividades devem ser orientadas para a verificação da atuação das forças armadas na repressão dos movimentos de esquerda e eventuais excessos ocorridos no período, mas é possível – na verdade é bem provável – que as atribuições dessa comissão ultrapassassem essas atividades e abarquem toda a rotina do Regime Militar. Cumpre lembrar que o texto aprovado foi resultado de um amplo acordo no qual partidos de esquerda, centro e direita se congregaram para aprovarem o referido projeto, o que é de se destacar para que não se diga por aí que se trata de imposição do Poder Executivo, como se fosse pecado esclarecer de uma vez por todas toda imensa tragédia que se converteu esse momento tão terrível para a história do país. Sobretudo, nos meios evangélicos, a atitude em relação ao Regime Militar tem chamado bastante atenção. Pastores como o assembleiano Silas Daniel e deputados como Arolde de Oliveira (DEM/RJ) tem de várias formas feito a mais impressionante apologia do período, procurando reescrever a História pelo viés dos que a enlamearam e dando a entender – sem provas contundentes e reais ou mesmo sérias – que o período do Regime Militar foi conseqüência de uma teoria da conspiração comunista e, portanto, que tinha legitimidade em suas ações, e que só houve endurecimento porque esses grupos – que eles mesmos definem como minoritários – partiram para a ação armada financiada com dinheiro cubano, e esquecendo-se da proporção infinitamente maior de subvenção norte-americana que aqui foi despejada para financiar a contrarevolução, seja pela Aliança para o Progresso – e que como se viu, não passava de um movimento meramente assistencialista de distribuição de latas de comida para o Norte-Nordeste e favelas cariocas – seja pela atividade de instituições congregadas com Igrejas, como a Fundação Rockfeller. Aliás, significativo de que os evangélicos – pelo menos algumas lideranças – estão envergando mesmo posições cada vez mais retrógradas sob esse aspecto é o fato de o deputado Arolde de Oliveira, batista e ele mesmo ligado ao ancien regime, primeiro como engenheiro na EMBRATEL (1966 – 1973), depois como secretário do Ministério das Comunicações (1973 – 1974) e assessor desse mesmo ministério (1974), ter sido um dos únicos que criticaram a aprovação da referida comissão. – o outro foi o deputado e capitão da Reserva do Exército Jair Bolsonaro (DEM/RJ) por razões óbvias.
Para entendermos um pouco as razões da importância dessa comissão para colocar mais luz sobre período tão nefasto – vamos historiar um pouco os acontecimentos, não, porém, de 1964 como Silas Daniel fez em seu blog no ano passado, mas desde o primeiro momento em que se articulou o pensamento golpista nos meios militares brasileiros, ou seja, desde a década de 20.
Como se sabe, os militares que ocupavam posições proeminentes em 1964 eram oriundos do movimento tenentista que, ainda na década de 20 se dividiria em duas vertentes, ambas autoritárias, a comunista (com Luiz Carlos Prestes) e a autoritária com tendências filofascistas (Juarez Távora). Esse último grupo apresentado como democrático pelos revisionistas, tinha já idéias bem delineadas de seu projeto político desde esse período remoto, como o próprio Juarez confessa: é uma leviandade afirmar que, em tal hipótese, cabe ao povo e não à Força Armada derrubar o governo que o tiraniza. A massa imbele da nação dificilmente poderá vencer sozinha, a guarda pretoriana que defende déspotas. (FAORO Raimundo. Os Donos do Poder, 2000, p. 292). Embora o discurso seja da década de 20 (mais precisamente, de 1927) ele era atualíssimo no momento azado para o golpe, pois foi pretextando representar o povo brasileiro que o golpe foi dado e toda a legitimidade em torno do mesmo construída doravante. E mesmo pesquisadores mais recentes confirmam essa vinculação pelo próprio testemunho dos protagonistas do Regime: Os depoentes [os militares entrevistados] concordam que não havia um projeto de governo entre os vencedores: o movimento foi contra, e não a favor de algo. A questão imediata, segundo a maioria dos relatos, era tirar Jango e fazer uma “limpeza” nas instituições. A maneira de fazê-lo seria pensada e estruturada a posteriori. Só depois de vitorioso o movimento é que foi elaborado um “ideário”, vinculado ao tenentismo da década de 20 e tributário da índole democrática (leia-se anticomunista) da sociedade brasileira (D’ARAUJO Maria Celina, SOARES Ary Dillon, CASTRO Celso, Visões do Golpe, 2004, p. 18). O povo não precisa ser ouvido, mas apenas tutelado, e a força armada é quem responde pela sua representação. É curioso – e bastante revelador também – que Arolde de Oliveira retome esse discurso na sua fala contrária à Comissão da Verdade na semana passada. O Exército recebeu mandato do povo para restabelecer a ordem, nada mais juarista, nem menos tenentista.
Maria Lúcia Petit, desaparecida desde 1972
Os militares participaram do movimento conhecido como Revolução de 30, da qual resultou a queda da Velha República, e sustentaram Getúlio Vargas no poder, primeiro contra os paulistas que se levantaram em armas para tentarem depô-lo em 1932; depois contra os comunistas que numa conjura ridícula cometeram erros incríveis legitimando o Estado de Sítio e depois o de Guerra, isto é, estados de exceção, apenas para que Getúlio fechasse o Congresso e impusesse uma Constituição tão autoritária quanto o próprio Estado Novo que ele criou (1937). Esse regime de exceção foi apoiado pelos grupos pró Juarez até que a vitória aliada na Segunda Guerra tornou impossível sua permanência. Getúlio comete então um crasso erro de cálculo, aproximando-se das massas e fazendo concessões aos comunistas, anátema para essa gente, o que abre caminho para sua deposição em outubro de 1945. Porém, como nas eleições desse mesmo ano o ditador é eleito senador pelo Rio Grande do Sul e deputado federal por mais seis estados, fica a sombra do getulismo levedando como um fantasma ameaçando irromper a qualquer momento. E de fato, em 1950 ele volta como candidato à presidência, apoiado por ampla coalizão contra o candidato da União Democrática Nacional (UDN), o brigadeiro Eduardo Gomes, tenente como Juarez e que já tinha sido derrotado cinco anos antes quando da eleição do Marechal Eurico Dutra, candidato do Partido Social Democrático (PSD) apoiado pelo ditador, e Cristiano Machado, político de Minas Gerais, candidato do PSD, mas sem ressonância. Getúlio foi eleito, e é nesse momento de sua eleição que começou a se articular a corrente golpista que conseguiria a vitória quatorze anos mais tarde com o mesmo pool de jornais (Estadão, Correio da Manhã, O Globo e toda a rede dos Diários Associados), o mesmo partido golpista (UDN) e os mesmos grupos militares que orbitavam em torno de Juarez. O tom é dado já nos primeiros dias daquela campanha por um jornalista carioca: O senhor Getúlio Vargas não deve ser candidato. Candidato não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar. Seu nome? Carlos Lacerda.
Segue-se o segundo Vargas, tão trágico de tensões que não precisamos repetir aqui, nem temos tempo e espaço para isso. Basta só lembrarmos que a propaganda pró golpe já se manifestava nos jornais onde diariamente se pedia a derrubada do governo e uma ação dos quartéis para – como em 64 – acabar com a corrupção endêmica no país. O manifesto dos coronéis é por si só um momento significativo dessas tensões. É um ato de indisciplina tão grave quanto o da revolta dos marinheiros, por envolver clara conotação política e que pedia abertamente a saída de Vargas do governo. Finalmente, a crise aberta pelo assassinato de um oficial da Aeronáutica precipita a fase final daquele tumultuado governo, aquela da qual resulta o suicídio de Getúlio e o adiamento, por dez anos, do golpe. Isso porque as oposições que esperavam tomar o poder com a queda de Getúlio se vêem frustrados, permanecendo a sombra do getulismo representada pelo governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitscheck, hoje herói nacional, mas naqueles dias anatematizado e bombardeado tanto pela imprensa antigetulista (que tanto se assemelha em virulência verbal e inconstância ideológica à tucana) quanto pelos militares pró-golpe, e também porque nas eleições daquele ano a UDN foi a grande derrotada do pleito. Na verdade, as manobras golpistas continuaram em 1955, primeiro, por meio da tese do adiamento das eleições; depois, discretamente, com a apresentação de um candidato de união nacional (Etelvino Lins, governador de Pernambuco), cuja candidatura gorou antes da hora. Depois, com a resignação para o embate com o próprio Juarez Távora saindo candidato pela coligação UDN/Imprensa. E finalmente, ante a derrota de Juarez, com as manobras para o impedimento da posse de Juscelino, primeiro com a tese da maioria absoluta, que o STF não aceitou como já não tinha aceitado quando da eleição de Getúlio cinco anos antes. E por fim, por meio da própria tentativa de golpe sinalizada pela “doença” do presidente Café Filho e a posse de Carlos Luz, presidente da Câmara e simpático aos golpistas, o afastamento do marechal Lott, ministro da Guerra e único legalista entre os militares que compunham aquele governo títere. A Novembrada foi o contragolpe, a reação ao golpe em andamento e que pretendia impedir a posse do governo legitimado pelas urnas.
O ex deputado Rubens Paiva (1963/64, ao centro, com a família) desaparecido desde 1971.
E de fato, como que para confirmar a disposição de ânimo da corrente golpista em apelar para o recurso da violência, em fevereiro de 1956 parte da Aeronáutica se levanta contra o governo legalmente constituído nas selvas do Pará. E mais uma vez se levantaria no interior do Rio de Janeiro quando Jânio Quadros renunciou à candidatura presidencial, deixando esse grupo no mais completo desespero. Em nenhum momento se falou de comunista até aqui, nem o próprio coronel Bizarria Mamede, no funeral do marechal Canrobert da Costa que precipitou a crise da qual resultou na Novembrada, faz alusão a perigo comunista. O perigo real e imediato é o futuro governo eleito, continuação do outro, e que não se aceitava – pelo menos para esses – em hipótese alguma. Aliás, vale lembrar que nos anos dourados do governo Kubitscheck o Partido Comunista esteve em franca atividade, as greves eram contínuas, mas a movimentação militar golpista girava em torno do governo e não do Partidão. Nos jornais, tal como no discurso do coronel Mamede, o governo era o governo da minoria, tese também muito semelhante à que foi levantada depois das últimas eleições presidenciais quando se insinuou que esse governo não tinha autoridade porque fora eleito apenas pelo Norte-Nordeste, esquecendo, naturalmente, de mineiros, cariocas e paulistas que nele confiaram seus votos. Um governo sem legitimidade porque não era a expressão da vontade absoluta das urnas, embora, pelo fato de ser eleito, também negasse essa mesma legitimidade ao marechal Juarez, que não o fora.
Segue-se então a eleição de Jânio que – como José Serra ano passado – contou com verdadeiro pool de jornais para apoiar sua candidatura, de O Estado de S.Paulo à Tribuna da Imprensa. E de fato, o homem da vassoura, com seu discurso moralista e contraditório, foi eleito presidente com votação consagradora. Contudo, os destemperos do presidente culminando com sua inesperada renuncia, colocam de novo os meios militares na polvorosa, especialmente os golpistas que vêem a vitória sobre o getulismo fugir-lhes pelas mãos como em 1954 e 1955. Contudo, mesmo ventilando pela primeira vez o discurso anticomunista, os militares que pretendiam depô-lo – os ministros da Guerra, da Marinha e Aeronáutica, respectivamente, o marechal Odílio Denis, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Grum Moss – também se apresentam como portadores da vontade do povo brasileiro que lhes teria delegado – pelo artigo 176 da Constituição de 1946 – a responsabilidade pela defesa da pátria. Contudo, embora seja certo de que o discurso anticomunista fosse uma tônica do pensamento dos militares golpistas que já ligavam Jango ao comunismo, também não é menos certo que na década de 50, quando a paranóia antigetulista virou delírio na UDN e círculos adjacentes, procurou-se vincular Jango ao sindicalismo peronista por meio da apócrifa Carta Brandi (1955). Desse modo, o discurso golpista, mesmo contra Jango não apresentava unidade, nem consistência, sendo o vice-presidente identificado ora como comunista, ora como peronista.
Bergson Gurjão Farias, desaparecido no Araguaia (1972) e identificado apenas recentemente.
Não sou especialista em História do Brasil para examinar in loco aspectos do governo João Goulart, nem tampouco é essa a proposta desse blog, assim, vou deixar aos especialistas – os verdadeiros especialistas – que apresentem seus pareceres sobre o assunto. Contudo, acho que pelo menos um erro – e de capital importância – posso assinalar no seu tumultuado triênio. O desejo de fazer Reformas de Base sem coordenar suas ações com as do Congresso, agregando seu apoio aos sindicatos e às Ligas Camponesas que, embora atuantes, não tinham força política para contrabalançar a reação, foi um perigoso erro de cálculo na qual a superestimação de alguns grupos e a subestimação de outros, levou à crise que deflagrou a Rebordosa. Além do mais, o fato de só contar com praticamente um partido no Parlamento, o PTB, e não conseguir articular-se com outros setores da sociedade, fez com que o seu governo se isolasse rapidamente, fato que, com seu radicalismo, precipitasse também sua própria desintegração. Acima de tudo, Jango subestimou a reação dos quartéis ante a desintegração da disciplina decorrente da revolta dos marinheiros, imaginando que o evento seria absorvido pelo alto comando, o que, considerando a natureza da própria instituição militar, era totalmente inadmissível. Foi um erro político de tal magnitude que, a exemplo da renuncia, nos custaria duas décadas de retrocesso.
Como não pretendemos nos aprofundar na discussão historiográfica, deixo ao juízo do leitor que se posicione por si em face dos partidos representados na discussão, isto é, o de René Dreyfuss e Luiz Carlos Bresser Pereira, de que o golpe de 64 foi um movimento mobilizador das classes mais altas, ou a de Celina d Araujo que entende que o golpe foi decorrente do discurso anticomunista presente nos meios militares nos anos 50 e 60. Contudo, no exame dos próprios documentos institucionais, desde o Ato Institucional 2 (dezembro de 1965) percebe-se claramente a continuidade do projeto político-militar sempre pelo mesmo motivo, embora nunca claramente delineado: o perigo comunista. Sob essa razão se adiam as eleições presidenciais e passa-se a delinear a sucessão nos estados como sendo por meio de eleição indireta. Típica diligência institucional do regime: à paranóia anticomunista não claramente delineada, se responde com a supressão das liberdades institucionais, e ao discurso “democrata” de generais como Sylvio Frota, ao endurecimento do Regime que culminará com o AI-5 (dezembro de 1968). Enquanto no Machartismo norte-americano, a paranóia resulta em perseguições e em processos dentro das regras legais, embora emolduradas pelo pânico anticomunista, no Regime Militar a resposta resulta no eclipse das liberdades civis onde quem é primeiro afetado não são os grupos comunistas que já estão fora e alijados do processo político e da lei, mas as oposições legalmente – se é que é possível usar aqui esse termo – constituídas, e a sociedade civil totalmente expulsa do direito de participar do processo político. Na verdade, se houve um grupo que foi perseguido e manietado no exercício das prerrogativas estabelecidas pelo próprio Regime, esse grupo foi o MDB, (Movimento Democrático Brasileiro) o partido criado pela estranha configuração político-partidária do AI-2, para ser a oposição consentida ao partido do governo, a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) que na frase do então governador de S.Paulo Ademar de Barros, só tinha leões de chácara, e que foi dizimado com cassações de mandatos e prisões de parlamentares.
A legislação casuística do Regime apenas confirma esse princípio da tutela sob a pecha do discurso do mandato concedido pelo povo para a representação formal dos seus interesses, representação essa que passava, forçosamente, pela exclusão desse mesmo povo de quem se recebia semelhante mandato e em nome de quem se governava, conforme consagrado no art. 76 da Constituição de 1967. O presidente será eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral, em sessão única, mediante votação nominal. Ora, parágrafo 2 do art. 13 da mesma constituição que determinava a eleição direta para os governadores seria suspensa pelo art. 7 do AI-6 (fevereiro de 1969) e de novo pelo art. 189 das Disposições Gerais e Transitórias da Emenda Constitucional 1 (outubro de 1969), que na prática revogou a Constituição de 1967, e que estabeleceu eleição indireta para esses cargos, sendo repetida essa forma de pleito mesmo quando a luta armada já tinha sido debelada, em 1974 e 1978, fato que prova que o problema do Regime Militar não era a luta armada, mas a sua inadequação natural com as formas mais elementares da representação democrática. Na democracia do Regime Militar, o povo apenas inspirava, mas não participava do processo político.
O deputado federal Arolde de Oliveira (DEM/RJ) um dos poucos que se posicionaram contra a criação da Comissão da Verdade no Congresso
Em suma, O Regime Militar foi a total negação do discurso democrático do começo (AI-1, abril de 1964) ao fim (isto é, até a EC 1 de outubro de 1969). O discurso “democrático” não coaduna com a prática institucional que a foi a da negação do direito de representação sob a pecha de combate ao comunismo, embora, com isso, na verdade se combatendo muito mais a oposição civil e legalmente constituída do Regime, cassando mandatos parlamentares, demitindo professores de suas cátedras, exilando ou simplesmente sumindo com eles como Rubens Paiva. Seria muito mais decente e honesto que os advogados do Regime Militar reconhecessem que o projeto deles era tão antidemocrático por formação ideológica, quanto o dos próprios comunistas (o que é verdade como já vimos pelo legado de Juarez Távora e o reconhecimento, pelos próprios militares, da influência tenentista no golpe). Na verdade, se pensarmos em projeto político, o Regime Militar só ocorreu por uma razão: renegar e destruir o regime político populista inaugurado em 1945 e contra o qual a parcela golpista das forças armadas se insurgiu desde o primeiro momento, e criar uma nova liderança política, inteiramente desvinculada daquela. O anticomunismo era só pano de fundo para o enfrentamento muito mais amplo do regime populista que agora, pelas armas, decidiram por erradicar, já que pelo voto popular isso se tornou uma possibilidade totalmente remota. Também o combate à corrupção era só discurso para sustentar a permanência e continuidade do Regime, e a substituição das antigas lideranças pelas novas, pois, como reconhece a Veja, comentando os 20 anos do Regime Militar (abril de 1984), ainda havia tanta corrupção no final da ditadura quanto antes dela, não obstante cinco generais presidentes, duas constituições e 16 atos institucionais, sendo onze deles apenas no período compreendido entre dezembro de 1968 e outubro de 1969.
Agora sim podemos entrar na discussão que dá mote a esse artigo. A natureza e as atribuições dessa comissão, pois entre suas prerrogativas está a busca pela verdade, isto é, o destino de dezenas de desaparecidos políticos e mesmo episódios nebulosos como a morte de presos políticos nas dependências de órgãos de repressão, conforme o farto material da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de S.Paulo. Aqui se vai dizer com todas as letras que as pessoas desaparecidas, entre as quais essas que aparecem nas fotos que colocamos nesse blog, que essas pessoas, em suma, defendiam um modelo autoritário de estado, pelo menos tão tirânico quanto o do Regime que eles pretendiam derrubar. Já vimos, porém, logo no começo desse artigo, que o projeto ditatorial tanto de direita quanto de esquerda no Brasil foi desenhado na década de 20, e o que se viu nos anos seguintes foi o enfrentamento de ambos os grupos, ora pela lei, ora pelas armas. Contudo, é preciso esclarecer que, não obstante o fato inegável de que essas pessoas morreram lutando por um regime que em si não tinha nada de democrático, ainda assim permanecem as suas famílias com o direito – consagrado, inclusive, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos do qual o Brasil é signatário – de lhes serem assegurados todos os direitos e garantias individuais inclusive, nesse caso, o de saberem como morreram seus parentes e onde estão sepultados seus corpos. Não se trata de discussão ideológica, mas sim de uma discussão ética, pois o que quer que essas pessoas tenham feito no passado não dá ao governo (ainda mais um governo que não recebeu prerrogativa para isso, mas a autoreivindicou para si mesmo) o direito de se apoderar dos corpos desses mortos e desaparecer com eles, sepultando-os como indigentes, como os de Perus, ou os atirando em valas como os do Araguaia.
Haverá quem diga: mas eles mataram soldados e civis. Realmente. Mas os soldados Mário Kozel e Garibaldi Queiroz, o jornalista Edson Régis, e mesmo Charles Chandler e Harald Boilesen estão sepultados em terra consagrada. São vítimas do Regime (de todas as formas) a quem não se negou sepultura. Então, por que negar o mesmo descanso consagrado a Stuart Angel, a Pedro Ignácio de Araujo, a Edgar Aquino Duarte e aos demais? Por que negar ainda às suas famílias o direito de saber o que se passou com seus entes? Não é possível negar esse direito de mais nenhuma forma, na verdade, chega a ser indecente que se faça tanto.
Além do mais, não podemos nos esquecer que o Regime não só perseguiu militantes comunistas cá e acolá como se estivesse fazendo uma limpeza, uma faxina moral. O general Argemiro de Assis Brasil, por exemplo, teve sua divisa, suas condecorações e seu posto no Exército cassados no primeiro ato institucional, e ainda perdeu sua aposentadoria de general da reserva, vivendo de 1964 a 1981 (quando fora ressarcido de seus direitos) de uma aposentadoria indecente do INPS e de aulas de matemática já que o regime da moralidade lhe confiscou até mesmo o direito de trabalhar, proibindo qualquer empresa pública ou privada de lhe dar emprego. Seu crime? Ser chefe da Casa Militar do governo João Goulart. O capitão aviador Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, igualmente militar de carreira, era oficial do Para Sar, um serviço da Aeronáutica destinado a operações de socorro e atendimento de populações indígenas, quando recebeu uma ordem infame do brigadeiro Bournier para explodir o Gasômetro do Rio para que, desse ato de terrorismo de Estado, se pudesse legitimar uma campanha de terror ainda mais violenta que a que se realizava naquele momento (meados de 1968). Por se recusar a praticar essa sandice, foi expulso da Aeronáutica, teve cassados os seus direitos políticos e, como o general Assis Brasil, foi submetido a um ostracismo infame nos anos seguintes, sendo ainda processado na Justiça Militar, embora terminasse “absolvido” ao final desse processo. Anistiado, continuou impossibilitado de voltar à Aeronáutica até que, no final de 1992, o Supremo Tribunal Federal lhe concedeu a reintegração ao oficialato, decisão essa que não só a Aeronáutica, mas o recentemente falecido ex presidente Itamar Franco se recusaram a cumprir, até que, em conseqüência do falecimento desse oficial, em 1993, foram suas condecorações e patentes devolvidas num dos atos mais sórdidos da recente crônica institucional brasileira. O caso do capitão Sérgio prova ipsis litris que a Anistia não foi um movimento para todos, e que de fato não pretendia ser.
Em suma, como escreve o professor da Faculdade de Filosofia da UNICAMP Roberto Romano (O Estado de S.Paulo, 01/10/11 p.A 2), a ditadura restaurou a guerra de todos contra todos. Em tais batalhas vence quem ostenta mais força física, econômica, propaganda. E é de lamentar que vejamos numa seara que se proclama democrática e progressista, posturas cada vez mais ineptas e retrógradas movidas por nenhuma outra razão senão a simples negação ideológica do atual governo que passa, forçosamente, pela exaltação de um Regime que, segundo eles, também é a negação do atual governo, embora também fosse, conforme vimos pelos seus textos legais, a negação do próprio povo. Uma Comissão da Verdade deve, como diz Romano, clarear absolutamente tudo, pois ela não deve apenas aclarar os crimes da direita, mas também o da esquerda, mas deve dar respostas à todas as perguntas, sanar todas as dúvidas. A Comissão da Verdade não é um projeto revanchista, mas um projeto que pretende de uma vez por todas apagar essa nódoa de um período terrível de nossa história, e que para muita gente ainda não terminou. Enquanto Rubens Paiva não estiver sepultado, enquanto a família de Vladimir Herzog não saber o que se passou no quartel do II Exército quando da sua prisão, e posteriormente o seu reaparecimento morto dentro de uma cela, e mais tarde enterrado num caixão lacrado e sob guarda militar, enquanto militares exonerados e cassados como o capitão Sérgio não forem plenamente reintegrados em suas dignidades e funções por causa de um regime revanchista e vingativo, a dúvida continua. Os documentos precisam ser abertos para que se ponha um ponto final nesse período, e para que, enfim, todas as vítimas possam reencontrar o descanso merecido. Lamentavelmente, a posição de certos setores da comunidade evangélica de fazer apologia proselitista desse regime mostra que seu discurso democrático é mentiroso e incoerente e que no fundo estão, para se dizer o mínimo, tão longe da democracia do que aqueles que a pisotearam há quase meio século.
Edson Douglas de Oliveira
UNICASTELO História 6 semestre