Mais depressa aprendeu o Ocidente a justificar a barbárie dos que o Oriente a apreciar a democracia
Há outro vídeo chocante, que a VEJA Online botou no ar já ontem à noite, com Muamar Kadafi. Ele está ferido, derrotado, mas se nota que está lúcido. Ainda passa a mão na cabeça e certifica-se do sangue que escorre. Foi executado logo depois. Se quiserem ver, está aqui.
Já escrevi quão constrangedor e degradante para a condição humana é o conjunto da obra. Alguns idiotas estão dizendo que eu, que costumo ser tão implacável, fiquei de coração mole e que lastimo esses eventos porque, afinal, sou um crítico de Barack Obama etc. e tal. Eu defendi a guerra do Iraque, por exemplo (não vou reabrir esse capítulo; ver arquivo do blog), e igualmente censurei o triunfalismo homicida quando Saddam Hussein foi executado, em dezembro de 2006, há quase cinco anos, e o presidente dos EUA era George W. Bush.
Meus valores não mudam com o vento nem estão atrelados a um partido, a uma causa, a uma “luta”. O que mais deploro nas esquerdas, já escrevi aqui centenas de vezes, é justamente o relativismo moral. Não seria eu um relativista. Eu não gosto de relativistas. Não confiaria a eles a minha vida, a minha carteira ou aquele último bombom que deixei para comer na madrugada. Se preciso, um relativista rouba o meu dinheiro, entrega-me aos cães e come o meu doce. Ele só precisa se convencer de que o “povo” precisa da minha carteira, da minha vida e do meu bombom. Por isso não sou também amigo deles. Se julgarem necessário, não hesitarão em trair a minha confiança.
Sim, senhores! Posso compreender, sem jamais justificar, as circunstâncias em que as coisas se deram, os ódios acumulados, os ressentimentos no front da batalha… Mas não compreendo nem justifico a asquerosa reação dos ditos líderes mundiais, especialmente deste patético Barack Obama — hoje o perigo nº 1 a ameaçar o Ocidente —, diante de uma execução extrajudicial. As armas da Otan ajudaram o jihadismo a chegar à cúpula do poder líbio.
Se alguém quer saber qual é o perfil do novo poder na Líbia, basta prestar atenção às palavras de Mahmoud Jibril, chefe do governo de transição. Mesmo depois de as imagens terem corrido o mundo, evidenciando a execução, ele insistiu na versão oficial, segundo a qual Kadafi morreu numa troca de tiros. As imagens diziam uma coisa, e ele, com um ar muito sério e compenetrado, dizia outra.
Há pessoas que preferem afastar de si dilemas éticos e morais transferindo para terceiros a responsabilidade das escolhas que não conseguem fazer: “Eu tenho pena é das vítimas dele, isto sim!”, dizem. Eu também! Sempre o tratei aos pontapés aqui — quem o chamava de “amigo e irmão” era o Apedeuta. Sou contra, sim, a pena de morte, mas não é o destino dele em particular que me mobiliza e constrange. Eu insisto: a Líbia fez uma guerra civil — com a ajuda de EUA, França, Reino Unido e Otan — para pôr um fim ao arbítrio, às execuções extrajudiciais, aos massacres. Quem matou Kadafi, na melhor das hipóteses, foi a Lei de Talião. Um dado adicional: foram os franceses que atacaram o comboio em que ele tentava fugir, reiterando o desrespeito à resolução da ONU.
Oponho-me à pena capital — é um desses valores, como é a minha rejeição ao aborto, que estão na raiz de muitas outras escolhas que faço. Mas não ignoro que estados democráticos, com vigência plena do estado de direito, a apliquem. A única escolha ética aceitável dos rebeldes, JÁ QUE ATUAVAM EM PARCERIA COM A OTAN, QUE ESTAVA ALI COM MANDADO E MANDATO DAS NAÇÕES UNIDAS, era garantir a Kadafi o que ele jamais garantiu a seus inimigos: um julgamento justo. Teria sido certamente condenado, talvez à morte. É diferente de matar um adversário como se mata um porco.
Não são os muitos crimes cometidos pelo algoz de antes e eventual vítima de agora que vão determinar se faço esta ou aquela opção. EU NÃO PERMITO QUE BANDIDOS COMO KADAFI DECIDAM O QUE PENSO OU NÃO.
Encerro notando que certa herança marxista, presente mesmo em algumas cabeças no geral lúcidas, pretende que a história esteja sempre numa espécie de marcha para a frente, rumo ao progresso. Assim, a dita Primavera Árabe, de que aquele evento de ontem deve ser, então, o espinho, representaria a chegada dos árabes à Ágora inevitável da democracia. Lamento, meus caros! A democracia ainda não chegou aos árabes, mas, com certeza cristalina, a barbárie foi celebrada ontem pelas democracias. Com a execução extrajudicial de Kadafi, quem venceu foi o método Kadafi.
Mais depressa o Ocidente se tornou justificador do arbítrio do que os vários Orientes aprendizes da democracia. Kadafi está morto, mas vive naqueles que o mataram. Mais cinco anos de mandato, Obama levará o mundo à beira do caos. Se Deus e o eleitorado americano quiserem, seremos poupados deste arrogante diluidor de instituições e valores. Vamos ver.