Remédios, medicalização ....
Estes
textos são do médico Paulo Roberto Donadio, professor do Departamento de
Medicina da Universidade Estadual de maringá. Vale a pena ler!
Para
quê tanto congresso?
Paulo Roberto Donadio*
“No meu tempo...
Parenteses: sempre que algum cronista
começa
a crônica com “no meu tempo” significa
que está
sentimentalizando a sua velhice para não
precisar
lamentá-la, o que não interessaria a
ninguém”.
Luiz Fernando
Veríssimo (31-03-2013)
Nenhum
receio de ser rotulado como saudosista, mas . . . no meu tempo . . . quando ainda fazia o curso de medicina na UFPR,
concluído em 1976, e nos três anos seguintes, durante a Residência em Medicina
Interna e a Especialização em Reumatologia, era uma verdadeira epopéia fazer
uma revisão de qualquer assunto científico. Caso alguém quisesse levantar os
artigos publicados no último ano, teria que consultar um a um os volumes
mensais do Index Medicus, livros pesados com letrinhas miúdas. Neles estavam
apontados na ordem alfabética todos os artigos das revistas indexadas. As referências
escolhidas eram anotadas em pequenos papéis, as revistas que existiam na
biblioteca eram separadas para fazer a fotocópia destas referências, e, as que
não estavam ali disponíveis, eram solicitadas através do COMUT (Comutação
bibliográfica). Por vezes, dependendo do assunto, todo este processo poderia
demorar mais de um mês.
Naquela
época os congressos médicos eram o ponto alto na atualização dos assuntos de
qualquer especialidade. Grandes conferências traziam o que de mais novo
existia. Mesas redondas com experts
nos diversos assuntos atraiam a atenção de todos os participantes. Obviamente
também eram momentos de grandes confraternizações entre colegas que passavam
muito tempo sem se encontrarem.
Eis
que surge a internet. Inicialmente utilizada para fins militares nas décadas de
1970-80, expandiu-se vertiginosamente nos anos 90, tornando-se uma poderosa
ferramenta de comunicação no meio acadêmico.
Hoje,
aqueles levantamentos bibliográficos que poderiam levar meses para serem
finalizados, podem estar a nossa disposição em frações de segundos. Filtros
possibilitam tantas opções de seleção, tais como de períodos, faixa etária,
sexo, tipo de publicações, etc., que não deixam mais nenhuma margem para
desculpas de qualquer profissional no que diz respeito a sua possibilidade de
manter-se atualizado. Os mais velhos às vezes alegam que não sabem nem ligar o
computador. Não se acanhem, peçam ajuda aos seus filhos ou até netos, que eles,
ao contrário de vocês, que costumam naufragar, navegam como bons timoneiros.
Além
disso, essa rede fantástica permite a comunicação simultânea entre vários
profissionais de uma mesma área ou de áreas correlatas através de
teleconferências, para troca de experiências, teleconsultorias e outras tantas
opções.
Os
assuntos que hoje são levados aos congressos médicos já estão na rede, ou
estarão nas próximas horas ou dias, e podem ser consultados por qualquer pessoa
com mínimo conhecimento de como manusear um computador.
A
maioria das, senão todas, revistas científicas lançam as suas edições na versão
online muito antes da impressa. Muitas das mais importantes revistas
científicas têm acesso livre, ou podem ser acessadas através de sites
institucionais, como por exemplo, Periódicos CAPES, PubMed, emedicine.com,
entre outras.
Cabe
aqui um alerta: não basta acessar o que de mais atualizado está a disposição na
rede virtual, mas saber filtrar o que pode ser considerado confiável é
fundamental. Isto porque a indústria também influencia, e muito, na qualidade
do que é publicado. Denúncias sobre esta prática também são freqüentes na
literatura1.
Mesmo
assim, embora com alto custo, o número de congressos aumentou. Esta realidade
traz implícita uma contradição: ao mesmo tempo em que temos uma poderosa
ferramenta facilitadora de transmissão de conhecimentos, e a um custo muito
baixo, cresce a opção de difusão de conhecimento mais cara, ou seja, os
congressos, simpósios, ou jornadas, que mobilizam um sem número de pessoas,
incluídos aí os próprios médicos, boa parte deles à custa da indústria
farmacêutica e de equipamentos.
Essa
contradição é apenas aparente. O interesse pelos congressos apenas mudou de
grupo. Dos prescritores de medicamentos e equipamentos médico- hospitalares,
passou para os produtores.
O
que assistimos hoje nos congressos médicos é uma verdadeira feira para vender
estes produtos. Esta situação já vem sendo discutida há muito tempo tanto nas
revistas científicas quanto na imprensa leiga.
Ashley
Wazana publicou no JAMA de 19 de janeiro de 2000, artigo de revisão detalhando
e ao mesmo tempo denunciando o gritante conflito de interesses que existe na
relação entre médicos e indústria farmacêutica. Vale conferir2.
Em
reportagem publicada na Folha de São Paulo intitulada “Com brinde e
massagem, congresso médico parece parque de diversões”, a jornalista
Cláudia Collucci fez um relato do que viu em um congresso da Associação Americana de Oncologia Clínica. Finaliza
afirmando que “Os brindes oferecidos nos
estandes são apenas uma pequena parte dos mimos dados pelos laboratórios aos
médicos. A maioria deles participa do congresso (o maior da área e o que define
novas condutas médicas em oncologia) a convite da indústria farmacêutica, com,
ao menos, passagens aéreas e hospedagem gratuitas. O mesmo acontece com grande
parte dos quase 600 jornalistas de todo o mundo que fazem a cobertura do
evento. Só a Merck, produtora do remédio "estrela" do congresso
(Erbitux), trouxe para Chicago 850 pessoas entre médicos e jornalistas de todo
o mundo” 3.
Diante
desta breve exposição cabe o questionamento: “Para quê tanto congresso”?, ou, a
quem interessa o crescimento do número de congressos médicos?
1.
Miguelote VRS, Camargo Jr. KR.
Indústria do conhecimento: uma poderosa
engrenagem. Rev Saúde Pública 2010;44(1):190-6.
2. Wasana A. Physicians and the Pharmaceutical Industry: is a Gift Ever
Just a
Gift? JAMA, 2000,
283(3):373-380.
*Médico Reumatologista. Prof. de
Reumatologia do Departamento de Medicina da UEM.
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A perversidade dos preços dos medicamentos.
Paulo
Roberto Donadio*
“Se você entrar na farmácia tossindo, paga 34%
de imposto; se entrar latindo, paga só 14%”.
(Joelmir Beting -1936-2012)
Frases de efeito como esta, sempre carregadas de
bom humor, eram a tônica nas crônicas diárias do jornalista Joelmir Beting. Em
que pese o humor explícito, esta frase encerra uma perversidade a qual é
submetida a população brasileira.
A indústria farmacêutica, isoladamente ou através
das suas entidades representativas, aproveitando-se desta discrepância
tributária, sempre vem a público justificar o porquê dos altos preços dos
medicamentos. Não deixa de ter razão: a alta tributação é sem dúvida um dos
fatores que mantém o preço dos medicamentos nas alturas.
No entanto, os altos preços dos medicamentos, principalmente
os novos, escondem outra perversidade. Os preços apresentados (sugeridos) pelos
produtores dos medicamentos são aprovados pela ANVISA, órgão de regulação
ligado ao Ministério da Saúde. Ocorre que, quase
como uma regra, estes preços são altos, muito altos, por vezes até extorsivos,
e são mantidos elevados até o vencimento das suas patentes, 10 anos em média, após o seu lançamento. E digo isso sem nenhum receio
de cometer alguma injustiça ou agressão gratuita. Uma das justificativas da
indústria é que necessita recuperar o investimento feito na pesquisa de um novo
medicamento. Nada mais justo, mas “... Empresas farmacêuticas americanas investem muito mais na promoção dos
remédios do que em seu desenvolvimento”. (Lown, Bernard. A Crise das Drogas
III: Corrupção da ciência. Diag. & trat. 9(4), 2004.)
Resolução
1939/2010-CFM
Art.
1º. É vedado ao médico participar, direta ou indiretamente, de qualquer espécie
de promoção relacionada com o fornecimento de cupons ou cartões de descontos
aos pacientes, para a aquisição de medicamentos. Parágrafo único. Inclui-se
nessa vedação o preenchimento de qualquer espécie de cadastro, formulário,
ficha, cartão de informações ou documentos assemelhados, em função das promoções
mencionadas no /caput/ deste artigo.
Durante este período,
da reserva de mercado permitido pela lei de patentes,
a indústria farmacêutica lança mão de estratégias de marketing que, no mínimo,
deveriam ser questionadas pelas autoridades responsáveis pela regulação do
setor.
O Conselho Federal de Medicina, através da
Resolução 1939/2010, proibiu os médicos de divulgarem junto aos pacientes os
chamados cartões de desconto, entendendo que através desta prática, além de deixar explícito um conflito de
interesse, viola o necessário sigilo do paciente (Box). A indústria, também
conhecida como BigPharma, rapidamente eliminou o cartão de descontos e lançou
um número para chamadas telefônicas gratuitas, através das quais o próprio
paciente faz o seu cadastro e é “presenteado” com um desconto. Quem fornece
este número ao paciente? Obviamente o médico, alvo direto da propaganda de
medicamentos, uma vez que a legislação, salvo algumas exceções, proíbe a
propaganda dirigida diretamente ao consumidor final.
Editorial do
periódico Folha de São Paulo abordou o assunto por ocasião da publicação da
resolução do CFM.
“... o estratagema de
solicitar a médicos o preenchimento de formulários com dados acerca de seus
pacientes e da prescrição fere o sigilo que protege a relação entre
profissional e cliente. Com tal expediente, terceiros -as empresas- ganham
acesso a informações clínicas que não deveriam sair do consultório.
Além disso, o médico se torna cúmplice de um processo de
"fidelização" que só interessa aos laboratórios. O procedimento pode
induzir o uso continuado do remédio sem controle periódico, ou dificultar a
troca do medicamento em promoção por outro princípio ativo ou fabricante. Ainda
que o profissional não obtenha vantagens pessoais, sempre haverá suspeitas. Se
o laboratório tem condições de oferecer descontos significativos para alguns
clientes, deveria fazê-lo no mercado propriamente dito. Concorrência direta
ainda constitui a forma mais eficiente e transparente de conquistar clientes;
transformar médicos em atravessadores é na realidade uma forma de burlá-la.”
Fonte: Folha
de São Paulo, Editorial, 14.02.2010
Ao entrar em
contato com o 0800 o paciente tem que fornecer todos os seus dados pessoais,
assim como informações sobre quem receitou o medicamento e, por vezes, todas as suas condições econômicas, para que possa definir
qual o percentual de desconto ao qual terá direito. Para qualquer pessoa fica
claro que tudo que motivou a publicação da Resolução 1939/2010 está sendo
perpetrado através desta prática de fidelização de clientela (médicos e
pacientes).
Vários medicamentos
alcançam com esta prática, e somente através dela, descontos que chegam a
ultrapassar 60%. Apenas dois exemplos práticos: 1. Duloxetina (Cymbalta®),
antidepressivo que tem ação sobre dores crônicas. Preço máximo ao consumidor
oferecido no balcão da farmácia R$ 300,09 (trezentos reais e nove centavos) por
uma caixa com 28 cápsulas de 60 miligramas. Ligando para o 0800 e mentindo
muito, ou seja, reduzindo o número de cômodos da sua casa e dizendo que não tem
nenhum eletrodoméstico que possa ser considerado supérfluo, o desconto pode
chegar até a 66%. 2. Nexium (Esomeprazol®), medicamento para problemas
gástricos. Preço máximo ao consumidor R$ 213,59 (duzentos e treze reais e
cinqüenta nove centavos) por uma caixa com 28 comprimidos de 40 miligramas.
Ligando para o 0800 o preço é reduzido em 50%. Muitos outros exemplos poderiam
ser citados.
Ora,
se é possível dar descontos desta ordem, qual a razão da ANVISA aprovar o preço
extorsivo apresentado pela indústria no processo de registro?
Até quando médicos e
população ficarão reféns destas armadilhas que movem a economia e tratam
medicamentos como se fossem um produto de consumo como outro qualquer e não um
bem da saúde pública?
*Médico Reumatologista. Prof. de Reumatologia do
Departamento de Medicina da UEM.