Sobre estadistas e poderosos
Roberto Romano - O Estado de S. Paulo
31 Agosto 2014 | 08h 19
A falência da fé pública e do Estado,
no mundo e no Brasil, gera a falta de políticos dignos do respeito
cívico. Raras pessoas podem ser vistas como lideranças fidedignas,
capazes de orientar as massas que pagam impostos e quase nada recebem em
troca. John J. Mearsheimer afirma algo que deveria ser óbvio: “As
democracias operam melhor quando incluem um mercado razoavelmente eficaz
de ideias, que só funciona quando os cidadãos têm informações seguras e
existem altos níveis de transparência e honestidade” (Why Leaders Lie:
the Truth about Lying in International Politics). A prova de que a
legitimidade sofre um abalo em nossos dias a temos no fato de que a
maior parte dos políticos e partidos, quando apanhados com a mão no
pote, prefere atacar... a moral pública, aplicando-lhe um sufixo comum
na boca dos sofistas. Falar contra o roubo do erário seria apenas...
Moralismo!
E segue a degradação da República com os maquiavéis nanicos
que procuram não apenas sujar os próprios dedos, mas impor a bandalheira
como algo positivo, tendo em vista miragens sublimes como a melhoria
econômica, a governabilidade, etc. A hegemonia do Poder Executivo, em
todos os Estados democráticos modernos, tem corroído a língua e os
costumes políticos. No Brasil o problema é ainda mais grave.
Em nossa terra, com os resquícios das prerrogativas imperiais,
o Executivo federal prejudica a Justiça e adquire votos no Parlamento
com 30 dinheiros. Ele gera e gere a traição do mandato popular em troca
de recursos orçamentários. Na balança dos Poderes, o peso maior pertence
à Presidência da República. O Supremo Tribunal Federal (STF), cuja
missão seria a de preservar a Carta Magna, não raro agiu como ator numa
Realpolitik que tolerou abusos ditatoriais, de Vargas a 1968.
Nossos presidentes, caso pudessem, repetiriam a fala de Tiago
1: o governante “tem poder de vida e morte; julga acima dos súditos em
todos os casos e só deve prestar contas a Deus”. Francis Bacon diz que
os juízes devem ser leões sob o trono. Infâmias foram cometidas pela
Justiça no Estado moderno. Uma coleta de julgamentos tirânicos é trazida
por H. Fernandez-Lacôte (Les Procès du Cardinal de Richelieu, 2010).
John Campbell traz uma outra amostra de capachos togados (Atrocious
Judges. Lives of Judges Infamous as Tools of Tyrants and Instruments of
Oppression, 1856). Magistrados em demasia agiram como escabelo do trono.
Mas nem todos.
Evandro Lins e Silva foi juiz e nunca se calou diante dos
poderosos. Ao contrário dos supostos democratas que odeiam a imprensa,
ele defendeu jornalistas de 1934 até o seu último alento. Ao lado de
Sobral Pinto, penetrou a alma brasileira ao acolher oposicionistas,
desde 1932. No Supremo, Evandro julgou presos políticos relevantes:
Mauro Borges, Plínio Coelho, Seixas Dória, Miguel Arraes, Vieira Neto,
Sérgio Rezende, Caio Prado Júnior, Niomar Muniz Sodré, Ênio Silveira. Os
ditadores deram-lhe alto prêmio ao arrancá-lo do STF. O poder
brasileiro sempre procurou domesticar juízes, no Império e na República.
Fui à missa de sétimo dia, quando um grupo pequeno rezou pela
alma de Evandro. A solenidade seguiu o decoro ritual. Mas o sacerdote,
no sermão que deveria honrar o morto, incensou o governo. O padre falou
muito tempo das qualidades excelsas do ministro da Justiça, de corpo
presente, e pouco se referiu a Evandro. Meus sentimentos passaram de
indignação à vergonha alheia, à tristeza de constatar uma atitude comum
na Igreja anterior ao Concílio Vaticano II, o elo indissolúvel entre
trono e altar. Consolei-me com a lembrança do espetáculo celeste:
Evandro sendo recebido por Pedro, o primeiro papa, com a simplicidade
dos justos que ignoram cortes e cortesanias. A lisonja é ignorada no
céu. Ela domina o inferno.
A missa seguiu adiante e chegou a hora em que todos se
ajoelham. No banco em frente ao meu estava Plínio de Arruda Sampaio.
Espanto fulminante: ainda existia gente ética na vida política nacional!
A prova? As solas dos sapatos de Plínio eram não apenas gastas, mas com
evidente furo. Um homem que esteve nos mais elevados postos do governo,
cuja presença foi estratégica na construção da ordem civil, vivia na
humildade franciscana! Comparados aos arrivistas de nossas instituições,
os hábitos modestos de Plínio ressaltavam uma personalidade alegre,
combativa, altaneira. Ele gastou as solas dos sapatos porque seguia
ereto, sem rastejar como os realistas que infestaram os partidos por ele
fundados e que depois abandonou, à cata de sonhos e realidades mais
dignas.
Plínio não era um sectário das agremiações. Integrou partidos
que prometiam a melhoria dos padrões políticos vigentes, mas os deixou
quando eles se tornaram caricaturas de si mesmos. Sem intolerâncias ou
alergia ao diálogo, ele soube manter a coerência, essencial no político
prudente. Sua honestidade era um desafio perene aos companheiros que
sucumbiram ao poder imediato. Assim, jamais caiu nas malhas do mercado
político nem vendeu ideais como produtos de pacotilha.
Ele praticou, ao longo da vida, o que ensina Norberto Bobbio:
“Num Estado democrático, a moralidade pública não é apenas obrigação
moral ou jurídica, mas também uma obrigação política por excelência
imposta pelo princípio que regula a vida do governo democrático, e que o
distingue de toda outra forma de governo até hoje existente, o
princípio do ‘poder público’” (L’Utopia Capovolta).
A crise dos Estados atuais manifesta-se sobretudo na falta de
lideranças democráticas com sentido moral. Podem ser contados nos dedos
os políticos, magistrados, parlamentares que merecem o título de
estadista. Escasseiam pessoas como Evandro Lins e Silva e Plínio de
Arruda Sampaio. A leniência diante da “privatização do público” (a
expressão é de Bobbio) ainda causará muitos estragos nas instituições
brasileiras. Quem viver verá.
ROBERTO ROMANO É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, É AUTOR DE ‘O CALDEIRÃO DE MEDEIA’ (PERSPECTIVA)