‘Não se sabe mais em quem acreditar’
AMANDA GUERRA
|
A
ética
brasileira
precisa de
um
choque de
moral e de
pensamento. O
País necessita
desconstruir o
famoso ‘‘jeitinho’’,
adquirir
um
novo
conjunto de
valores
que possibilitem uma
sociedade
mais
justa. A
tese vem sendo defendida
pelo professor-doutor e filósofo Roberto
Romano, uma das
mentes inquietas do
cenário
intelectual do
País.
‘‘A
única
via de
solução
para a
situação
que vivemos no Brasil,
para
escapar dessa
ética
que temos, é a
educação
pública
para o
convívio,
para o
exercício do
pensamento’’.
Pós-Graduado
pela
Universidade de
São Paulo (USP),
Romano doutorou-se
pela
Sociedade de
Altos
Estudos de Paris
em 1978.
Antes disso, participou de
movimentos estudantis,
católicos, foi
frei dominicano
por 12
anos.
No
convento, diz
ele, entrou
somente
para
fazer
estudos
teológicos. ‘‘Apenas
para a
ordenação e
não
para a
vida confessional
porque
eu queria
fazer
filosofia
mesmo’’.
Foi também
perseguido pela ditadura. Preso em 1969 junto com Leonardo Boff — um dos
pais da Teologia da Libertação, movimento que sacudiu a Igreja Católica — ,
passou um ano na cadeia.
Desde então,
publicou nove livros, alguns deles traduzidos para outras línguas, atuou
como colaborador em inúmeras obras, escreveu artigos e participou de mais de
uma centena de palestras no Brasil e no exterior.
Ardoroso
defensor dos
direitos
humanos, do
ensino
público, da
democracia e
estudioso da
ética,
Romano
hoje dedica-se à
academia. É
livre-docente
adjunto e
professor
titular da Unicamp nas
áreas de
graduação e
pós-graduação.
Apesar dos
predicados, prefere furtar-se do
adjetivo de
ser
um dos
grandes
pensadores
brasileiros da
atualidade; preza a
modéstia.
‘‘Quando
alguém é
dito
grande, o
padrão é
extremamente
abstrato. Procuro
somente
fazer
um
trabalho
crítico, de
colaboração
com a
cidadania, e
pesquisa’’.
Numa
entrevista
exclusiva a A
Tribuna, concedida
durante
sua
breve
passagem
pela
Cidade na
última
sexta-feira —
onde participou do
projeto
Público &
Notório,
um
espaço de
intercâmbio de
idéias, promovido
pelo Sesc —
Romano falou
sobre
ética e
moral no Brasil,
política,
intelectualidade,
entre
outros
temas. Confira a
seguir os
principais
trechos.
A
Tribuna — O sr. tem sido considerado
um dos
grandes
pensadores
brasileiros da
atualidade.
Como se sente
com
esse
título?
Roberto
Romano —
Um dos
problemas
mais difíceis da
vida
intelectual é o da
medida.
Quando a
pessoa diz ‘‘é
grande’’
ou ‘‘é
pequeno’’,
normalmente
me traz
muita
antipatia.
Um
intelectual
que é
muito
produtivo,
inteligente,
sensível, pode o
ser num
determinado
campo.
Por
outro
lado, acho
que
pequenos
trabalhos realizados
por
pessoas
conscientes, modestas,
não
raro têm
mais
importância
que
muita
presença na
mídia.
AT —
Mas o sr. é
muito requisitado
para
palestras,
seminários,
entrevistas
sobre os
mais variados
temas
que inquietam a
sociedade
brasileira...
Romano — A
minha
palavra é
importante
não
tanto
pela
minha
pessoa,
mas
porque
determinado
assunto é
importante. Às
vezes, as
pessoas
não têm
muita
coragem de
tocar nesses
assuntos. E,
normalmente,
esses
assuntos
são polêmicos.
Aí vem a
idéia de
que a
pessoa
que entra nisso é
importante.
Não é
verdade.
AT — Na sua
opinião, quem poderia ser considerado um grande intelectual ou teórico
brasileiro?
Romano —
Um
grande
teórico
que conheci
era
um velhinho
que
era
teólogo, filósofo,
lógico e
que
ninguém conhecia,
salvo as
pessoas do
convento.
Ele se chamava
frei Guilherme Néri
Pinto. Na
época, o chamava de
meu
guru.
Ele conversava
sobre
tudo,
tinha uma
profundidade de
pensamento
que
era assustadora.
Para se
ter uma
idéia,
quando saiu o
Catecismo
Católico,
ele escreveu
um
artigo abrindo a possibilidade da
pena de
morte na
Igreja.
Ele
tinha 72
anos de
idade e escreveu o
artigo mostrando
que o
Catecismo estava errado.
AT — É
aí
que entra a
questão da
coragem do
intelectual
que o sr.
tanto defende?
Romano — É.
Para
você
ver o
que é o
peso de uma
coragem.
Porque
todo
mundo sabe
que o
papa João Paulo II é
muito centralizador,
não admite
controvérsias.
Então,
esse velhinho vai e diz
que a
Igreja
Católica pode
ser
favorável à
pena de
morte, pode
não
ser,
que
não há uma
única
saída
doutrinária. Pedi
para
ele
um
artigo,
que iria
levar
para
um
jornal (de
grande
circulação
nacional).
AT — E o
que ocorreu? O
artigo foi publicado?
Romano — No
jornal, a
pessoa
que estava
lá
me perguntou
imediatamente: —
Ele é
importante? Falei
que
era
um dos
mais
importantes
que conhecia (rindo).
Aí
ele
me perguntou de
novo: —
Mas
ele é
conhecido, é
um
professor da
universidade? Respondi
que
ele
tinha
dado
aula na
Universidade
Católica de
Belo
Horizonte
em 1954.
Não publicou o
artigo.
A
Tribuna —
Então, podemos
abstrair daí
que o sr. acredita
que, no Brasil, o
saber e o
conhecimento
por
si
sós
não
são
suficientes?
Romano —
Para
você
ver
como a
visão pode
ser distorcida.
Eu e todas as
pessoas
que trabalham nessa
área de
Filosofia e
Teologia consideramos aquela
pessoa
importante. No
entanto,
como
ela
não tem o
trato
universitário,
com as
agências de
pesquisas,
com o
Governo,
só tem o
trato
com o
saber,
ela é considerada
menos
importante.
AT — O sr.
tem afirmado
que no Brasil existe uma
grande
confusão
entre o
campo
ético e o
moral e
que há
um
abuso do
uso da
palavra
ética.
Qual a
diferença
entre
um e
outro?
Romano —
Você pode
dizer,
em
termos resumidos,
que a
ética é o
conjunto de
hábitos,
atitudes e
comportamentos
que foram adquiridos
em
anos,
em
séculos de
existência de uma
sociedade. É
um
conjunto de
atitudes, de
valores
que
são
automáticos
para uma
pessoa.
AT — É
possível
dar
um
exemplo?
Romano — O
indivíduo nasce numa sociedade como a brasileira. Faz parte da ética a
língua que ele aprende. Nessa língua estão incrustados valores. Quando você
diz, por exemplo, que a situação está negra, isto é um juízo ético. Esses
atos e esses valores são assumidos pelas pessoas sem pensar.
Etimologicamente, ética significa postura. E a ética é muito conservadora. O
ético você não pode tirar de você facilmente porque aquilo está na sua alma.
AT — E o
moral?
Romano — O
moral é
justamente
quando o
indivíduo
que vive nesse
campo
ético,
quase
que
automático,
encontra
um
problema
que aquela
ética
não responde.
Então,
ele aprendeu,
por
exemplo,
que os
negros,
que as
mulheres,
são
inferiores,
burros, e
isso foi ensinado
durante
muitos
séculos. E, de
repente, no
trabalho, na
universidade, na
rua,
ele
encontra
um
negro
ou uma
mulher
inteligente,
brilhante,
com
capacidade de
liderança.
Aquilo é
um
choque e o
choque faz
refletir.
AT — E como
se dá essa reflexão?
Romano —
A primeira reação seria procurar alguma resposta na ética. Mas chega um
momento que ele percebe que aquela pessoa concreta tem valores e que aqueles
valores desafiam a sua ética. Aí entra o terreno moral. O sujeito não
encontra mais as respostas para o seu comportamento na família, na igreja,
no partido político, na sociedade. Ele tem que escavar dentro de si para
encontrar uma resposta.
AT — Podemos
concluir
então
que a
ética de
um
país, de uma
sociedade pode
ser
negativa?
Romano
—
Um
costume
que foi aprendido há
milênios e reiterado pode
ser
muito
bom,
mas pode
ser
também
péssimo. E
poucos
grupos
ou
indivíduos percebem
quando
ele é
péssimo. Sócrates,
por
exemplo, foi
obrigado a
tomar
cicuta
porque
tinha uma
moral
que se chocava
com a
ética da
cidade de Atenas. E Atenas
não suportava
que
ele dissesse as
coisas
que
ele pensava das
pessoas.
AT —
Quais seriam os
traços
mais
negativos da
ética
brasileira?
Romano — O
trânsito
brasileiro,
por
exemplo.
Desde o
começo da
industrialização, e
sobretudo
depois de Juscelino Kubitschek, o
carro virou
sinônimo de
status
social, o
que é uma
tolice. A
partir do
momento
que temos essa
cultura,
mesmo
pessoas
pobres, se estão
nos
seus
carros, julgam-se
superiores aos
que estão
simplesmente andando. O
ético, o
verdadeiro, é
você
não
respeitar nenhuma
regra de
trânsito. É
você
subir na
calçada,
fazer
rachas.
Isso faz
parte da
nossa
ética,
mas é
imoral.
AT —
Por
esse
motivo é
que o sr. defende
que a
ética
brasileira
precisa de
um
choque de
moral?
Romano — É. Tem uma
tese de
um
padre sociólogo
que
trabalha
com
populações escravizadas no
Norte do
País
que levanta os
motivos
que levam
muitos
trabalhadores a se
deixar
escravizar.
Muitos deles acreditam
em
valores
éticos
que
são
profundamente
imorais.
Por
exemplo, as
vendas nas
fazendas comercializam
produtos
para
eles
que custam vinte
vezes
mais
que o
valor
real. E
eles ficam devendo e
não saem da
fazenda
porque acreditam
que é
um
dever
ético
ficar
para
pagar a
dívida.
AT — O sr.
acredita
que existe uma
ética de
violência no
País?
Romano —
Desde a época do Império, criaram do povo brasileiro uma imagem de povo
pacífico, de quebrador de galhos, etc. Nós esquecemos este lado extremamente
violento de nossa sociedade. Aqui, você tem dois homens em um balcão de bar,
um deles pede uma pinga e depois chega a hora do pagamento. Aí os dois
começam a discutir quem é que vai pagar e isso acaba em matança.
AT — O sr.
teria alguma
tese
para
explicar o
que
nos
leva a
situações
como essas?
Romano —
Você tem
aqui
toda uma
ética da masculinidade e da
contraprestação de
serviço na
sociedade
que
leva a essa
situação. Se,
por
exemplo,
você
deixa
que o
outro pague,
você é
inferior, é
um
pau-mandado. Essa
ética da
violência é a
que foi ensinada
pelos
grandes
fazendeiros e
pelo
próprio
Estado
brasileiro. É a
ética da
violência e do
favor.
AT — Essa
ética
também nortearia a
política
nacional?
Romano —
Como você capta votos no Brasil? Distribuindo favores e empregando a
violência aos subordinados. Em termos éticos, tínhamos esse sistema
perfeitamente regulado. Havia o fazendeiro, com seus capangas que eram pagos
para impor a vontade do grupo político ou econômico ao qual pertenciam. Com
o narcotráfico, o padrão está mudando. Escapa da sociedade o controle dessa
violência.
AT— Nesse
contexto,
até
que
ponto o
Estado
democrático é
responsável
pela
ética de
um
país?
Romano — O
Estado
brasileiro é
um
estado
antidemocrático
desde a
sua
origem. Sendo
assim, a
educação
popular foi
muito negligenciada. O
que sobrou de
tentativa de
educação
pública no Brasil foram os
positivistas no
final do
Império,
que asseguraram uma
rede de
educação
popular
que
até
hoje é a
única
que
nós temos,
que é o Sesc, Senac, Senai etc.
Como é
possível uma
pessoa
votar, se
ela
não tem adestramento? É uma
situação
muito complicada. Há uma
massa
imensa da
população
que
não tem
condições de
acesso ao
pensamento
científico e
tecnológico.
AT— O sr.
foi
um
grande
crítico do
Governo FHC.
Certa
vez,
em uma
entrevista, afirmou
que
ele abraçou a
via do
possível.
Romano — Na
história
política
moderna, e é
isso
que desacreditou
muito o
discurso
político
enquanto
causador de mudanças,
desde a
Revolução Francesa, a
esquerda assume o
poder e faz o
programa
conservador.
Isso se tornou
muito
mais
grave
desde a
segunda
revolução
tecnológica,
que deu ao
capital
financeiro uma
capacidade de alocação e de
desestabilização
tremenda. No
caso do FHC,
era
um
grupo
que
tinha uma
história de
resistência à
ditadura
militar e
que aderiu aos
padrões da
globalização, atingindo
direitos
tremendos da
cidadania.
AT —
Quais?
Romano —
Quando houve o
apagão,
por
exemplo. A
pressão
que ocorreu do
Governo
Federal
para
que o
Supremo
Tribunal
Federal desse
razão às
medidas de supertaxação do
contribuinte e a
decisão
que foi
feita
pelo
Supremo foi de uma
tristeza
enorme. Alegaram
que se o
Governo
não taxasse, a
cidadania
não iria
colaborar e
economizar. A
cidadania
não
era culpada
pela
falta de
investimento, de
recursos e estava sendo culpada e
caluniada
pelos juízes
que deveriam
respeitar a
cidadania.
Isso foi
um
retrocesso
político
enorme.
AT — E
quanto ao
Governo
Lula?
Romano — No
caso do
Governo FHC foi
menos
chocante
porque
nunca no
período
militar
eles haviam assumido uma
atitude de
democracia
radical.
Mas o PT assumiu. Daí,
durante 20
anos de
sua
existência a
banda de
música do PT
era de
democracia
já,
transparência
já, CPI
já,
Fora FHC. Foi vendida
para a
população a
imagem de
um
partido
celeste, de uma
virtude
absoluta, e
todos os
demais eram
farinha do
mesmo
saco. O
problema é
que
eles assumiram,
mas
não tinham
maioria
parlamentar...
AT — E
tiveram
que
fazer
concessões
para
conseguir o
apoio...
Romano —
Como
sempre, o
recurso
era a negociação. É dando
que se recebe. E
eles fizeram a
troca de
favor.
Mas
isso foi o
menos
chocante.
Isso
era esperado,
qualquer
analista
político sabia disso. O
mais
chocante foi o PT
aplicar
medidas
que
ele denunciava há
dois
anos
como
absolutamente nocivas
para a
população,
como a reforma da
Previdência.
Entre o
que se esperava e o
que aconteceu, o
choque foi
maior do
que o do
Governo FHC.
AT —
Que
reflexos
esse
tipo de
atitude pode
ocasionar?
Romano —
Atitudes
como essa deixam a
população
sem
norte,
sem
rumo.
Não se sabe
mais
em
quem
acreditar. Nesse
momento,
eu fico
com
muito
medo de uma
reação de
multidão.
Claro
que
você
não vai
ter uma
revolução. Podemos
ter
um
aumento da
violência
já tradicional e
soluções de
ordem
imediata
que
vão
levar a
destruição da
confiança no
Estado.Seria a devoração da
população
por
ela
mesma.
AT — Existe
uma
saída
para
esse
cenário
caótico?
Romano — A
saída é a cidadania se organizar e exigir a existência de um Estado
controlado democraticamente. É preciso que seja feita a reforma política.
Não podemos mais continuar elegendo um presidente da República
plebiscitariamente, colocando uma esperança enorme a cada quatro anos, e
esse sujeito toma posse e tem um parlamento representando oligarquias e
interesses que nada têm a ver com a nacionalidade. Mas essa dificuldade de
mudar, aí voltamos ao começo da conversa, é justamente porque esse tipo de
comportamento ético não se confrontou ainda com toda a dimensão moral do que
está ocorrendo no País.
Publicado no Jornal A Tribuna de Segunda-Feira, 26 de Julho de 2004, 07:08
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