LUIZ FLÁVIO GOMES
Jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no professorLFG.com.br
01. Um grande mestre espanhol da arte de furtar
dizia: “Con arte y con engaño, vivo la mitad del año; y con engaño y
arte, vivo la otra parte” (veja Padre Manuel da Costa – 1601-1667 -,
suposto autor do livro clássico A arte de furtar). A arte de furtar, na verdade, para esse autor, é mais que uma arte, é uma ciência
(capítulo I); não existe arte apenas nas coisas boas (na arquitetura,
na pintura etc.); também nas coisas más há arte; “não perde a arte seu
ser por fazer o mal, sobretudo quando se tira dele algum bem, ainda que
seja ilícito”; “tal é a arte de furtar, que toda se ocupa em despir uns
para vestir outros”; “não é menos admirável a arte do ladrão que das
entranhas de um escritório – que, fechado a sete chaves, se resguarda
com mil artifícios – desencova com outros maiores o tesouro com que
melhora sua fortuna”.
02. A todos os que estupefatos estão
acompanhando os detalhes dos estratagemas e dos enganos empregados nos
escândalos da Petrobra$ e do metrô$P ou nos mensalões do PT e do PSDB
(que se assemelham a tantas outras falcatruas e conluios licitatórios
espalhados por todo país, reconhecidamente um dos paraísos mundiais da
cleptocracia, ou seja, dos ladrões), vale a pena recordar outras lições
do autor acima citado (ainda no Capítulo I): “Se os ladrões não tiverem
arte, busquem outro ofício; por mais que a este os leve e ajude a
natureza, se não alentarem esta [a habilidade para a ladroagem] com os
conhecimentos da arte, terão mais perdas que ganhos”. Em síntese: sem
competências e habilidades específicas o melhor é não se dedicar à arte
de furtar. Por quê? Porque são infinitas as contrariedades que perseguem
os ladrões. Por isso, “quando os vemos continuar [por anos a fio] no
ofício ilesos, não podemos deixar de o atribuir à destreza de sua arte,
que os livra até da justiça mais vigilante, deslumbrando-a por mil modos
ou obrigando-a que os largue e tolere, porque até para isso têm os
ladrões arte”.
03. Como conseguiu uma troyka maligna
(composta de políticos, partidos e outros agentes públicos + operadores
intermediários + agentes econômicos e financeiros) surrupiar bilhões do
bolso do povo nos casos Petrobra$, do metrô$P etc.? Como é sustentada há
anos a P6 (Parceria Público/Privada para a Pilhagem do Patrimônio
Público)? Não há como deixar de reconhecer em tudo isso a presença da arte de furtar.
De que maneira furtaram, especificamente no caso Petrobra$? Diante de
tudo que foi apurado (e divulgado) até aqui (nas investigações e provas
colhidas pela PF, pelo MP e pela Justiça, assim como nas delações
premiadas, que são apenas fontes de prova), as empreiteiras (e
outras empresas coligadas), reunidas em um cartel (em um “clube”, em uma
organização criminosa de colarinho branco), combinavam previamente os
preços das obras (superfaturadas) contratadas pela Petrobra$. Os
contratos eram superfaturados; parte do dinheiro ilícito ficava com as
empreiteiras ou coligadas (enriquecimento ilícito em razão do
superfaturamento); outra parte elas distribuíam como propinas para os
diretores da empresa petrolífera, operadores financeiros
(intermediários), políticos e partidos políticos. O dinheiro recebido
pelos políticos ilicitamente era para “o fundo de campanha”. As provas
irão demonstrar quais políticos, além de financiados de forma ilícita,
se apoderaram indevidamente do dinheiro, enriquecendo seu patrimônio
privado.
04. Os políticos (muitos nomes já
foram noticiados: Humberto Costa, Sérgio Guerra, Eduardo Campos, Gleisi
Hoffmann, Janene etc. – alguns já mortos) assim como os partidos políticos
(PT, PP, PMDB, PSDB etc.) recebiam dinheiro de propina dos operadores
(intermediários, como Youssef), em diferentes porcentagens (1% para o
PP, 3% para o PT, R$ 10 milhões para Sérgio Guerra, R$ 20 milhões para
Eduardo Campos, milhões e milhões para Janene do PP, etc.). De acordo
com as provas colhidas e as delações (que são apenas fontes de prova) a
propina para os partidos políticos eram fatiadas de acordo com a
diretoria da Petrobras envolvida e o partido que a controlava. Vários
partidos partilharam as diretorias da Petrobras para promoverem a
pilhagem do patrimônio público. Em princípio o dinheiro sujo (decorrente
de contratos superfaturados) seria para as campanhas eleitorais. É
dessa maneira que o mundo empresarial corrupto “compra” os parlamentares
(para cuidarem dos seus interesses, como se fossem meros despachantes
do mundo empresarial). Nossa democracia, desse modo, se tornou uma das
mais corruptas do mundo. Sua legitimidade está, evidentemente, abalada
(pela cleptocracia).
05. Os operadores (Youssef e
outros), como correias de transmissão, faziam a intermediação entre as
empreiteiras, os diretores da Petrobras e o mundo político. Ganhavam
comissões para realizar esse serviço sujo. Essas comissões eram pagas
por meio de empresas reais ou fictícias. Do dinheiro surrupiado os
intermediários ficavam com suas comissões e distribuíam o restante para
os executivos da Petrobras assim como para os políticos e partidos. Para
que se entenda bem o papel dos intermediários (conhecidos como
operadores do esquema), basta recordar o fez Marco Valério (condenado a
mais de 37 anos de prisão) nos escândalos dos mensalões do PT e do PSDB:
por meio das suas agências de publicidade ele fazia o repasse dos
recursos desviados do patrimônio público aos parlamentares corruptos que
aceitavam o dinheiro mensal em troca de apoio à governabilidade de
Lula. Marcos Valério era o broker (o intermediário).
06. Os ex-diretores (ou diretores) da Petrobra$
(como Paulo Roberto Costa e outros), ganhando “comissões” (propinas),
facilitavam o funcionamento do esquema organizado ilegal, atuando junto
com os operadores para promoverem os contratos superfaturados em
benefício das próprias empreiteiras (e coligadas), cartelizadas, assim
como dos políticos e seus partidos. Todo mundo ganhava com o
superfaturamento: as empreiteiras e coligadas (as contratantes), os
operadores (intermediários), os diretores da Petrobra$, os partidos
políticos e, ao que tudo indica, alguns políticos (pessoalmente). E quem
perdeu? Evidentemente o patrimônio público, leia-se, o bolso do povo,
que agora tem a tarefa de exigir: (1) tolerância zero contra os
políticos comprovadamente corruptos (cassação imediata); (2) severas
punições (dentro do Estado de Direito) contra todos os corruptores de
colarinho branco; (3) ressarcimento ao erário público do que foi
desviado.
Saiba mais
07. Para Roberto Romano (Estadão 10/11/14)
a máquina de moer princípios éticos (ou seja: a troyka maligna que
criou uma poderosa organização criminosa) opera em dois registros
temporais: é sincrônica (“no momento em que uma quadrilha assalta certa
repartição ou instituto outra age de modo igual em parte distante ou
próxima do poder”) e diacrônica (“toda manhã os jornais trazem os
malfeitos”). As ocorrências protagonizadas pelo crime organizado
político-empresarial acontecem ao longo do tempo (há muito tempo, em todos os tempos) e ao mesmo tempo
(são incontáveis as pilhagens contemporâneas). Por isso que são
diacrônicas (diariamente, ao longo do tempo) e sincrônicas (ao mesmo
tempo). Essa arte de furtar é impossível ser levada a cabo de forma
isolada. Daí a reunião de pessoas e de esforços, donde resulta a
formação de uma organização criminosa. A corrupção nunca é um ato de uma
única pessoa. Em torno dela sempre estão favores recíprocos, amizades,
apadrinhamentos, conluios, “negócios” empresariais e políticos etc.
08. Em todos os crimes organizados
centrados na corrupção (ou seja: na arte de furtar), como agrega Roberto
Romano (citado), há uma estrutura triática: “existem os clientes,
postos nos dois lados do balcão, e os agenciadores [corretores,
operadores, os brokers] que distribuem cargos e recursos,
garantem fidelidade aos pactos”. No escândalo da Petrobra$ essa troyka
maligna está mais do que evidenciada: de um lado estão os agentes
públicos (partidos, políticos, diretores da Petrobra$ e outros
funcionários públicos) e, de outro, estão os agentes econômicos e
financeiros (empreiteiras e coligadas). A função de enlace, de conexão
entre as pontas é feita pelos operadores (brokers, como Alberto
Youssef), que asseguram o sucesso da P6, ou seja, da Parceria
Público/Privada para a Pilhagem do Patrimônio Público. Há um polo
público e outro privado, ligados pelos brokers. Juntos, colocam em ação a arte de furtar o dinheiro público.
09. Todos devemos agora atuar como
fiscais dos cofres públicos. Mais do que indignação, temos que nos
mobilizar para exigir punições, prevenções e ressarcimentos. Devemos
acordar, sair da hipnose e do esquecimento. Esquecer o esquecimento é
nossa obrigação. Temos que ver além da superfície. Por detrás do Estado
de Direito há quem o utiliza de forma indevida (para se acobertar). Nem
tudo que o Estado faz é lícito. Ele é usado de forma ilícita várias
vezes. No mundo em que vivemos há coisas insuportáveis (dizia Stéphane
Hessel, o autor do Indignai-vos!). Para vê-las “é preciso olhar
bastante, procurar. Digo aos jovens: procurem um pouco, vocês vão
encontrar. A pior das atitudes é a indiferença, é dizer não posso fazer
nada, estou me virando. Quando assim se comportam, vocês estão perdendo
um dos componentes indispensáveis: a capacidade de se indignar e o
engajamento, que é consequência desta capacidade”.
10. A situação atual da sociedade
brasileira não surpreende mais ninguém, porém, isso não pode significar
indiferença ou apatia. A sociedade civil tem que resistir, tem que
acordar. Quando é para fazer mudanças progressivas, a sociedade
conservadora sabe muito bem resistir. A resistência também deve ocorrer
quando não queremos que as coisas fiquem como estão. Mas resistência é
algo que vai além de um protesto ou de uma indignação, ainda que
coletiva. Resistência verdadeira significa protesto (emoção) e, ao mesmo
tempo, razão, organização, estratégias de negociação, ação, reação e
participação cidadã na vida do país. Os mais comprometidos podem
liderar, mas todos devemos participar. O exercício do poder injusto e
corrupto (ou seja: da arte de furtar) requer de todos nós ação,
participação, irresignação (único caminho para se forjar uma genuína
democracia). Não podemos mais ficar na posição de espectadores. Chegou o
momento de nos transformarmos em atores, de movimentos não violentos em
favor dos interesses da nação. Isso se chama cidadania (ou ação
cívica), que conta com potencial transformador e construtivo. Mudanças
reais só acontecem quando a sociedade se auto-organiza em torno de
princípios e valores inclusivos. Fora disso, morremos nos horizontes da
utopia.
P.S. Participe do nosso movimento fim da reeleição (veja fimdopoliticoprofissional.com.br). Baixe o formulário e colete assinaturas. Avante!