segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Luiz Flávio Gomes, sobre a corrupção brasileira.



LUIZ FLÁVIO GOMES
LUIZ FLÁVIO GOMES
Jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no professorLFG.com.br
 
01. Um grande mestre espanhol da arte de furtar dizia: “Con arte y con engaño, vivo la mitad del año; y con engaño y arte, vivo la otra parte” (veja Padre Manuel da Costa – 1601-1667 -, suposto autor do livro clássico A arte de furtar). A arte de furtar, na verdade, para esse autor, é mais que uma arte, é uma ciência (capítulo I); não existe arte apenas nas coisas boas (na arquitetura, na pintura etc.); também nas coisas más há arte; “não perde a arte seu ser por fazer o mal, sobretudo quando se tira dele algum bem, ainda que seja ilícito”; “tal é a arte de furtar, que toda se ocupa em despir uns para vestir outros”; “não é menos admirável a arte do ladrão que das entranhas de um escritório – que, fechado a sete chaves, se resguarda com mil artifícios – desencova com outros maiores o tesouro com que melhora sua fortuna”.

02. A todos os que estupefatos estão acompanhando os detalhes dos estratagemas e dos enganos empregados nos escândalos da Petrobra$ e do metrô$P ou nos mensalões do PT e do PSDB (que se assemelham a tantas outras falcatruas e conluios licitatórios espalhados por todo país, reconhecidamente um dos paraísos mundiais da cleptocracia, ou seja, dos ladrões), vale a pena recordar outras lições do autor acima citado (ainda no Capítulo I): “Se os ladrões não tiverem arte, busquem outro ofício; por mais que a este os leve e ajude a natureza, se não alentarem esta [a habilidade para a ladroagem] com os conhecimentos da arte, terão mais perdas que ganhos”. Em síntese: sem competências e habilidades específicas o melhor é não se dedicar à arte de furtar. Por quê? Porque são infinitas as contrariedades que perseguem os ladrões. Por isso, “quando os vemos continuar [por anos a fio] no ofício ilesos, não podemos deixar de o atribuir à destreza de sua arte, que os livra até da justiça mais vigilante, deslumbrando-a por mil modos ou obrigando-a que os largue e tolere, porque até para isso têm os ladrões arte”.

03. Como conseguiu uma troyka maligna (composta de políticos, partidos e outros agentes públicos + operadores intermediários + agentes econômicos e financeiros) surrupiar bilhões do bolso do povo nos casos Petrobra$, do metrô$P etc.? Como é sustentada há anos a P6 (Parceria Público/Privada para a Pilhagem do Patrimônio Público)? Não há como deixar de reconhecer em tudo isso a presença da arte de furtar. De que maneira furtaram, especificamente no caso Petrobra$? Diante de tudo que foi apurado (e divulgado) até aqui (nas investigações e provas colhidas pela PF, pelo MP e pela Justiça, assim como nas delações premiadas, que são apenas fontes de prova), as empreiteiras (e outras empresas coligadas), reunidas em um cartel (em um “clube”, em uma organização criminosa de colarinho branco), combinavam previamente os preços das obras (superfaturadas) contratadas pela Petrobra$. Os contratos eram superfaturados; parte do dinheiro ilícito ficava com as empreiteiras ou coligadas (enriquecimento ilícito em razão do superfaturamento); outra parte elas distribuíam como propinas para os diretores da empresa petrolífera, operadores financeiros (intermediários), políticos e partidos políticos. O dinheiro recebido pelos políticos ilicitamente era para “o fundo de campanha”. As provas irão demonstrar quais políticos, além de financiados de forma ilícita, se apoderaram indevidamente do dinheiro, enriquecendo seu patrimônio privado.

04. Os políticos (muitos nomes já foram noticiados: Humberto Costa, Sérgio Guerra, Eduardo Campos, Gleisi Hoffmann, Janene etc. – alguns já mortos) assim como os partidos políticos (PT, PP, PMDB, PSDB etc.) recebiam dinheiro de propina dos operadores (intermediários, como Youssef), em diferentes porcentagens (1% para o PP, 3% para o PT, R$ 10 milhões para Sérgio Guerra, R$ 20 milhões para Eduardo Campos, milhões e milhões para Janene do PP, etc.). De acordo com as provas colhidas e as delações (que são apenas fontes de prova) a propina para os partidos políticos eram fatiadas de acordo com a diretoria da Petrobras envolvida e o partido que a controlava. Vários partidos partilharam as diretorias da Petrobras para promoverem a pilhagem do patrimônio público. Em princípio o dinheiro sujo (decorrente de contratos superfaturados) seria para as campanhas eleitorais. É dessa maneira que o mundo empresarial corrupto “compra” os parlamentares (para cuidarem dos seus interesses, como se fossem meros despachantes do mundo empresarial). Nossa democracia, desse modo, se tornou uma das mais corruptas do mundo. Sua legitimidade está, evidentemente, abalada (pela cleptocracia).

05. Os operadores (Youssef e outros), como correias de transmissão, faziam a intermediação entre as empreiteiras, os diretores da Petrobras e o mundo político. Ganhavam comissões para realizar esse serviço sujo. Essas comissões eram pagas por meio de empresas reais ou fictícias. Do dinheiro surrupiado os intermediários ficavam com suas comissões e distribuíam o restante para os executivos da Petrobras assim como para os políticos e partidos. Para que se entenda bem o papel dos intermediários (conhecidos como operadores do esquema), basta recordar o fez Marco Valério (condenado a mais de 37 anos de prisão) nos escândalos dos mensalões do PT e do PSDB: por meio das suas agências de publicidade ele fazia o repasse dos recursos desviados do patrimônio público aos parlamentares corruptos que aceitavam o dinheiro mensal em troca de apoio à governabilidade de Lula. Marcos Valério era o broker (o intermediário).

06. Os ex-diretores (ou diretores) da Petrobra$ (como Paulo Roberto Costa e outros), ganhando “comissões” (propinas), facilitavam o funcionamento do esquema organizado ilegal, atuando junto com os operadores para promoverem os contratos superfaturados em benefício das próprias empreiteiras (e coligadas), cartelizadas, assim como dos políticos e seus partidos. Todo mundo ganhava com o superfaturamento: as empreiteiras e coligadas (as contratantes), os operadores (intermediários), os diretores da Petrobra$, os partidos políticos e, ao que tudo indica, alguns políticos (pessoalmente). E quem perdeu? Evidentemente o patrimônio público, leia-se, o bolso do povo, que agora tem a tarefa de exigir: (1) tolerância zero contra os políticos comprovadamente corruptos (cassação imediata); (2) severas punições (dentro do Estado de Direito) contra todos os corruptores de colarinho branco; (3) ressarcimento ao erário público do que foi desviado.

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07. Para Roberto Romano (Estadão 10/11/14) a máquina de moer princípios éticos (ou seja: a troyka maligna que criou uma poderosa organização criminosa) opera em dois registros temporais: é sincrônica (“no momento em que uma quadrilha assalta certa repartição ou instituto outra age de modo igual em parte distante ou próxima do poder”) e diacrônica (“toda manhã os jornais trazem os malfeitos”). As ocorrências protagonizadas pelo crime organizado político-empresarial acontecem ao longo do tempo (há muito tempo, em todos os tempos) e ao mesmo tempo (são incontáveis as pilhagens contemporâneas). Por isso que são diacrônicas (diariamente, ao longo do tempo) e sincrônicas (ao mesmo tempo). Essa arte de furtar é impossível ser levada a cabo de forma isolada. Daí a reunião de pessoas e de esforços, donde resulta a formação de uma organização criminosa. A corrupção nunca é um ato de uma única pessoa. Em torno dela sempre estão favores recíprocos, amizades, apadrinhamentos, conluios, “negócios” empresariais e políticos etc.

08. Em todos os crimes organizados centrados na corrupção (ou seja: na arte de furtar), como agrega Roberto Romano (citado), há uma estrutura triática: “existem os clientes, postos nos dois lados do balcão, e os agenciadores [corretores, operadores, os brokers] que distribuem cargos e recursos, garantem fidelidade aos pactos”. No escândalo da Petrobra$ essa troyka maligna está mais do que evidenciada: de um lado estão os agentes públicos (partidos, políticos, diretores da Petrobra$ e outros funcionários públicos) e, de outro, estão os agentes econômicos e financeiros (empreiteiras e coligadas). A função de enlace, de conexão entre as pontas é feita pelos operadores (brokers, como Alberto Youssef), que asseguram o sucesso da P6, ou seja, da Parceria Público/Privada para a Pilhagem do Patrimônio Público. Há um polo público e outro privado, ligados pelos brokers. Juntos, colocam em ação a arte de furtar o dinheiro público.

09. Todos devemos agora atuar como fiscais dos cofres públicos. Mais do que indignação, temos que nos mobilizar para exigir punições, prevenções e ressarcimentos. Devemos acordar, sair da hipnose e do esquecimento. Esquecer o esquecimento é nossa obrigação. Temos que ver além da superfície. Por detrás do Estado de Direito há quem o utiliza de forma indevida (para se acobertar). Nem tudo que o Estado faz é lícito. Ele é usado de forma ilícita várias vezes. No mundo em que vivemos há coisas insuportáveis (dizia Stéphane Hessel, o autor do Indignai-vos!). Para vê-las “é preciso olhar bastante, procurar. Digo aos jovens: procurem um pouco, vocês vão encontrar. A pior das atitudes é a indiferença, é dizer não posso fazer nada, estou me virando. Quando assim se comportam, vocês estão perdendo um dos componentes indispensáveis: a capacidade de se indignar e o engajamento, que é consequência desta capacidade”.

10. A situação atual da sociedade brasileira não surpreende mais ninguém, porém, isso não pode significar indiferença ou apatia. A sociedade civil tem que resistir, tem que acordar. Quando é para fazer mudanças progressivas, a sociedade conservadora sabe muito bem resistir. A resistência também deve ocorrer quando não queremos que as coisas fiquem como estão. Mas resistência é algo que vai além de um protesto ou de uma indignação, ainda que coletiva. Resistência verdadeira significa protesto (emoção) e, ao mesmo tempo, razão, organização, estratégias de negociação, ação, reação e participação cidadã na vida do país. Os mais comprometidos podem liderar, mas todos devemos participar. O exercício do poder injusto e corrupto (ou seja: da arte de furtar) requer de todos nós ação, participação, irresignação (único caminho para se forjar uma genuína democracia). Não podemos mais ficar na posição de espectadores. Chegou o momento de nos transformarmos em atores, de movimentos não violentos em favor dos interesses da nação. Isso se chama cidadania (ou ação cívica), que conta com potencial transformador e construtivo. Mudanças reais só acontecem quando a sociedade se auto-organiza em torno de princípios e valores inclusivos. Fora disso, morremos nos horizontes da utopia.

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