A arte de retratar durante o Renascimento
O
pintor, arquiteto e escritor português Francisco de Holanda termina a
redação do pequeno tratado Do tirar pelo natural, como ele mesmo informa
ao final do texto, no dia 3 de janeiro de 1549. De acordo com diversos
estudiosos, esse é o primeiro texto da literatura artística ocidental
dedicado exclusivamente à arte de retratar. A expressão “tirar pelo
natural”, de fato, embora inexistente no português contemporâneo, foi
relativamente frequente durante o Renascimento, aparecendo, igualmente,
em italiano. Geralmente compreendida como “retratar”, a expressão
original, carregada de energia cinética, implica o esforço ativo, por
parte do artista, de extrair do retratado sua forma natural.
O
tratado é organizado na forma de um diálogo entre Brás Pereira,
renomado iluminador português, e Fernando, espécie de alter ego do
próprio Francisco. Este último relata que, acompanhando o infante Dom
Luís e sua esposa em uma viagem à Galícia, passou pelo Porto, onde se
hospedou na casa de Brás Pereira. Durante os oito dias que passou com
ele, na volta da romaria, Francisco/Fernando travou diversas conversas
com o iluminador, as quais, segundo conta, serviram de base para o
tratado. O texto se abre com um pequeno parágrafo que recorda o célebre
episódio, relatado por Plínio, o Velho, de como Alexandre Magno cede a
bela Campaspe a Apeles, que tão perfeitamente a havia retratado. Em
seguida, Fernando e Brás Pereira passam a dialogar sobre distintos
preceitos da arte de tirar pelo natural, começando pelo pintar “muito
poucas pessoas, e estas muito singularmente escolhidas, pondo mais a
perfeição e o cuidado no primor da pouca obra, que no número da muita”
(p. 74). Como não escapa ao organizador do volume, Holanda dirige, aqui,
uma crítica certeira à tradição pictórica flamenga que se impunha em
Portugal e que o português procurava fervorosamente suplantar pelo “modo
de Itália”. Em uma passagem de seu tratado Da pintura antigua,
Francisco põe na boca do próprio Michelangelo o seguinte comentário
sobre a pintura flamenga: “(...) O seu pintar é trapos, maçonarias,
verduras de campos, sombras de árvores, e rios e pontes, a que chamam
paisagens, e muitas figuras para cá e muitas para acolá. E tudo isto,
ainda que pareça bem a alguns olhos, na verdade é feito sem razão nem
arte, sem simetria nem proporção, sem advertência do escolher nem
despejo, e finalmente sem nenhuma substância nem nervo (...)”. Holanda
prega, portanto, a redução à essencialidade e a concentração na figura,
que, em seus tratados, associa-se à pintura italiana.
Do
tirar pelo natural prossegue abordando questões como a devida escolha
dos personagens retratados; de que modo o artista se deve posicionar, em
relação ao retratado; os distintos suportes do retrato e as três formas
de enquadrar o retratado (de frente, perfil e três quartos). Na segunda
parte do tratado, Holanda passa a tecer considerações sobre a forma
adequada de retratar as distintas partes do rosto – olhos, sobrancelhas,
nariz, boca, orelhas – e o resto do corpo, incluindo as vestes.
John
Bury, que realizou uma primeira edição crítica do texto holandiano, bem
percebeu que o mesmo é repleto de referências à literatura artística
italiana contemporânea; o próprio Holanda, de fato, finaliza seu tratado
apontando que havia sido escrito em Portugal ao mesmo tempo em que o Da
pintura de Alberti era impresso na Itália (p. 117). Porém, nessa
passagem, Francisco insiste que não havia lido o texto albertiano, e que
as semelhanças entre um e outro – por exemplo, no tocante ao uso do
espelho – são coincidências que não caracterizam uma relação de
dependência. Nessa mesma passagem, Holanda declara que, embora tenha
aprendido de eminentes artistas italianos – entre os quais o próprio
Michelangelo –, em sua produção literária não foi precedido por nenhum
estrangeiro: “(...) me contento com não ver ir diante de mim algumas
outras pegadas de Espanhol, Castelhano, nem Português e porventura nem
doutros estrangeiros ou Latinos” (p. 119). Percebe-se, portanto, uma das
preocupações centrais do pensador português: destacar a originalidade
de seus escritos, sinalizando, ao mesmo tempo, sua opção pelos valores
artísticos italianos.
A presente edição do tratado
holandiano foi organizada por Raphael Fonseca e constitui o resultado de
sua dissertação de mestrado no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH), da Unicamp. O trabalho aponta para um caminho pouco
trilhado no âmbito da produção acadêmica brasileira, que é o da edição
crítica de textos fundamentais da literatura artística. A nova edição do
tratado Do tirar pelo natural disponibiliza, colocando-o à luz de
pesquisas recentes, um texto cuja importância, se inexistente do ponto
de vista de seu impacto (o livro só seria publicado no século XX),
revela muito sobre a circulação de ideias relativas ao conceito de
retrato na primeira metade do século XVI europeu.
Maria Berbara
é professora do Departamento de Teoria e História da Arte, no Instituto
de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
SERVIÇO
Título: Do tirar pelo natural
Autor: Francisco de HolandaOrganização, apresentação e comentário: Raphael FonsecaEditora da UnicampÁrea de interesse: História da artePáginas: 168 / Preço: R$ 32,00