quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Jornal da Unicamp

Campinas, 21 de novembro de 2014 a 30 de novembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 615

A arte de retratar durante o Renascimento




O pintor, arquiteto e escritor português Francisco de Holanda termina a redação do pequeno tratado Do tirar pelo natural, como ele mesmo informa ao final do texto, no dia 3 de janeiro de 1549. De acordo com diversos estudiosos, esse é o primeiro texto da literatura artística ocidental dedicado exclusivamente à arte de retratar. A expressão “tirar pelo natural”, de fato, embora inexistente no português contemporâneo, foi relativamente frequente durante o Renascimento, aparecendo, igualmente, em italiano. Geralmente compreendida como “retratar”, a expressão original, carregada de energia cinética, implica o esforço ativo, por parte do artista, de extrair do retratado sua forma natural.

O tratado é organizado na forma de um diálogo entre Brás Pereira, renomado iluminador português, e Fernando, espécie de alter ego do próprio Francisco. Este último relata que, acompanhando o infante Dom Luís e sua esposa em uma viagem à Galícia, passou pelo Porto, onde se hospedou na casa de Brás Pereira. Durante os oito dias que passou com ele, na volta da romaria, Francisco/Fernando travou diversas conversas com o iluminador, as quais, segundo conta, serviram de base para o tratado. O texto se abre com um pequeno parágrafo que recorda o célebre episódio, relatado por Plínio, o Velho, de como Alexandre Magno cede a bela Campaspe a Apeles, que tão perfeitamente a havia retratado. Em seguida, Fernando e Brás Pereira passam a dialogar sobre distintos preceitos da arte de tirar pelo natural, começando pelo pintar “muito poucas pessoas, e estas muito singularmente escolhidas, pondo mais a perfeição e o cuidado no primor da pouca obra, que no número da muita” (p. 74). Como não escapa ao organizador do volume, Holanda dirige, aqui, uma crítica certeira à tradição pictórica flamenga que se impunha em Portugal e que o português procurava fervorosamente suplantar pelo “modo de Itália”. Em uma passagem de seu tratado Da pintura antigua, Francisco põe na boca do próprio Michelangelo o seguinte comentário sobre a pintura flamenga: “(...) O seu pintar é trapos, maçonarias, verduras de campos, sombras de árvores, e rios e pontes, a que chamam paisagens, e muitas figuras para cá e muitas para acolá. E tudo isto, ainda que pareça bem a alguns olhos, na verdade é feito sem razão nem arte, sem simetria nem proporção, sem advertência do escolher nem despejo, e finalmente sem nenhuma substância nem nervo (...)”. Holanda prega, portanto, a redução à essencialidade e a concentração na figura, que, em seus tratados, associa-se à pintura italiana. 

Do tirar pelo natural prossegue abordando questões como a devida escolha dos personagens retratados; de que modo o artista se deve posicionar, em relação ao retratado; os distintos suportes do retrato e as três formas de enquadrar o retratado (de frente, perfil e três quartos). Na segunda parte do tratado, Holanda passa a tecer considerações sobre a forma adequada de retratar as distintas partes do rosto – olhos, sobrancelhas, nariz, boca, orelhas – e o resto do corpo, incluindo as vestes. 

John Bury, que realizou uma primeira edição crítica do texto holandiano, bem percebeu que o mesmo é repleto de referências à literatura artística italiana contemporânea; o próprio Holanda, de fato, finaliza seu tratado apontando que havia sido escrito em Portugal ao mesmo tempo em que o Da pintura de Alberti era impresso na Itália (p. 117). Porém, nessa passagem, Francisco insiste que não havia lido o texto albertiano, e que as semelhanças entre um e outro – por exemplo, no tocante ao uso do espelho – são coincidências que não caracterizam uma relação de dependência. Nessa mesma passagem, Holanda declara que, embora tenha aprendido de eminentes artistas italianos – entre os quais o próprio Michelangelo –, em sua produção literária não foi precedido por nenhum estrangeiro: “(...) me contento com não ver ir diante de mim algumas outras pegadas de Espanhol, Castelhano, nem Português e porventura nem doutros estrangeiros ou Latinos” (p. 119). Percebe-se, portanto, uma das preocupações centrais do pensador português: destacar a originalidade de seus escritos, sinalizando, ao mesmo tempo, sua opção pelos valores artísticos italianos. 

A presente edição do tratado holandiano foi organizada por Raphael Fonseca e constitui o resultado de sua dissertação de mestrado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Unicamp. O trabalho aponta para um caminho pouco trilhado no âmbito da produção acadêmica brasileira, que é o da edição crítica de textos fundamentais da literatura artística. A nova edição do tratado Do tirar pelo natural disponibiliza, colocando-o à luz de pesquisas recentes, um texto cuja importância, se inexistente do ponto de vista de seu impacto (o livro só seria publicado no século XX), revela muito sobre a circulação de ideias relativas ao conceito de retrato na primeira metade do século XVI europeu.

Maria Berbara é professora do Departamento de Teoria e História da Arte, no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).





SERVIÇO
Título: Do tirar pelo natural
Autor: Francisco de HolandaOrganização, apresentação e comentário: Raphael FonsecaEditora da UnicampÁrea de interesse: História da artePáginas: 168  /  Preço: R$ 32,00

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