Silêncio e Ruído, a Sátira em Denis Diderot
Roberto Romano/Unicamp
Roberto Romano/Unicamp
Introdução
As páginas seguintes discutem a sátira e o desencontro na comunicação
entre os homens, a partir do Sobrinho de
Rameau. Analiso traços da escrita diderotiana que apresentam homologia
evidente com textos fundamentais da cultura, como é o caso das Moralia de Plutarco e dos diálogos
lucianescos.Esta busca é original. Se o leitor consultar uma bibliografia exaustiva de Diderot, como a
de F. Spear, ele notará que dentre os milhares de livros ao seu dispôr, poucos
destinam-se à refletir sobre o nexo entre Diderot e a tradição satírica do
ocidente . Só um volume expõe com detalhes os vínculos entre Diderot e Luciano
de Samosata. Alguns autores chegam a mencionar Luciano, unindo seu nome e o de
certos filósofos das Luzes. Mas um trabalho mais amplo, como o que apresento,
ainda não foi realizado. E, no entanto, a presença deste último é importante
nos trabalhos do enciclopedista. Raras vezes os diálogos de Luciano têm
referência explícita nos textos de Diderot. Só a comparação paciente pode atingir o encontro entre o sírio e o
francês moderno. Espero deixar clara a concordância entre Luciano e as Luzes,
sobretudo no terreno da garrulice e da lisonja. Estes dois pontos também supõem
o contributo de Plutarco, não tanto o das Vidas
paralelas, mas o dos tratados morais.
“Era a
noite com suas trevas; era a sombra e o silêncio, pois o próprio silêncio é
colorido pelos sons”. 1 A frase, central no Sobrinho , joga o leitor para dois lados da fala que recolhe a
cultura moderna. A adulação, naquele
texto onde a música é o núcleo, ocorre através da harmonia entre ruído e
silêncio: “Mas não se deve sempre aprovar da mesma maneira; seria monótono,
falso, e se acabaria insípido. Disto não se escapa senão pelo raciocínio, pela
fecundidade; cumpre saber preparar e colocar esses tons maiores e peremptórios,
aproveitar a ocasião e o momento. Quando, por exemplo, há uma divisão de
sentimentos, quando a disputa elevou-se ao último grau de violência, ninguém
mais se entende e todos falam ao mesmo tempo, devemos nos colocar de lado, no
ângulo do apartamento mais afastado do campo de batalha, preparar a explosão
com um longo silêncio e cair súbitamente como uma bomba no meio dos
contendores”. 2 Na algaravia da linguagem, o bajulador oportunista sabe dosar
sua aparência. Ele entra na roda no instante certo, utilizando “esses tons
maiores e peremptórios”. Mais do que preceito retórico e musical, a técnica
louvada por Jean-François recomenda que a nulidade lisonjeadora salte sobre os
gárrulos a partir do seu “lugar”, o Nada silencioso. Numa reunião onde ninguém
se entende, quem faz barulho maior, no instante apropriado, vence.
Enquanto o
bajulador prepara seu bote, o falatório reina sob a forma da música, da poesia,
do teatro, das argumentações filosóficas. Quem produz poemas neste clima,
apresenta a mesma aparência dos convulsionários, energúmenos em sentido
estrito. É o que se passa com o “amigo Robbé”: “Todos gritam ao redor dele
:’Eis o que se chama um poeta!’. Aqui entre nós, essa poesia não passa de um charivari de toda sorte de ruídos
confusos, e vozerio bárbaro dos habitantes da Torre de Babel”. 3 O silêncio,
neste caso, serve como arma para vencer os palradores, sempre dispostos, como o
corvo, a abrir o bico para entoar seu canto, a convite das raposas. Eles
acreditam, mesmo, que os barulhos reunidos em estrofes (ou linhas musicais, ou
silogismos) têm significado. Esta forma de combate à garrulice, quando
revela-se ineficaz, exige a mudança no ataque. O personagem “Ele” passa a
manipular não apenas o silêncio, mas a própria linguagem reduzida ao barulho
simples. Neste instante, Jean-François usa as onomatopéias, indicando a
inanidade da lógica dogmática em qualquer domínio do espírito. É importante que
seja a música o elemento privilegiado nesta operação dissolutora dos falsos
sentidos : o tio e compositor Rameau, com sua idéia de harmonia, é ícone de uma
racionalidade que não mais encontra acordes no mundo efetivo.
O músico e
teórico Rameau, diz Jean-François no contexto da reflexão sobre a mimesis, só
pensa em si mesmo, sua universalidade é pura fachada.Como enfrentar o que
parece mas não é? A pergunta, feita pela tradição filosófica do Ocidente, teve
múltiplas respostas. A de Jean-François apresenta-se no intervalo
entre a linguagem e a pura força das paixões. O tio Rameau poderia fazer o que
desejasse: “mas não adianta ele se esforçar, na oitava, na sétima , hon, hon; hin; tu, tu, tu; turelututu,
com um charivari dos diabos ; os que
começam a entender e que não aceitam mais algazarra por música, jamais se
conformarão”.4 Estes ruídos, quando
aplicados à poesia e à música que se deseja destruir, deixam entrever o
silêncio enquanto arma crítica que faz a vítima, pela adulação, cair nos braços de quem vai enterrar crenças e
deuses, sistemas artísticos e filosóficos. Se a antiga afonia cética não
funciona, chegou a hora do barulho
onomatopaico : “Eu te respondo, tarare
ponpon”.5 Esta última “frase” abre,
como sabemos o caminho para a tarefa de por abaixo o ídolo antigo do país...
com o famoso “patatras” 6 citado admirativamente por Hegel. Num
escritor que domina com perfeição a escrita, como Diderot, o recurso fônico e
visual das onomatopéias significa muito. É preciso ouvir e ver atentamente.
Os nexos
entre as artes e os pensamentos filosóficos são indicados ao longo do Sobrinho, sintetizando reflexões
dispostas em outros escritos diderotianos. Assim, o problema da “tradução” de
um sentido ao outro, tema privilegiado na Carta
sobre os Cegos e na Carta sobre os
Surdos e os Mudos, amplia-se
desmesuradamente quando, por exemplo, em certa altura o sobrinho diz ter
querido impôr música às Máximas de
La Rochefoucaut e aos Pensamentos de
Pascal. Poucos notam que este desejo de transfigurar a prosa filosófica está
expresso imediatamente antes da frase famosa sobre a arte : “grito da paixão
animal”. Entre os dois extremos, o sublime ressoar da música enleada nas
razões —mesmo que, no caso pascalino, as
do “coração”— e a gritaria —sempre que há barulhos estrondosos, no Sobrinho, há supremo ridículo dos personagens em jogo—
temos o fraseado onde se misturam astúcia animal e tolice. A passagem da
mais alta especulação erudita, seguida pelo cume da arte, para a pior vulgaridade animalesca, dá-se
através do próprio Jean-François Rameau, o qual
“filtra” os campos opostos mas complementares : “Se eu soubesse me
expressar como o senhor! Mas tenho o diabo de uma linguagem extravagante,
metade de gente de sociedade e pessoas letradas, metade de gente do mercado”. 7
A afirmação de Roger Kempf é sempre válida
: em Diderot, a linguagem do romance
(e a do filosofema...) evidencia uma
“presença turbulenta que sacrifica para a sua mobilidade as figuras do tempo.
Presença significada onde as fisionomias, os gestos e jogos de mão, os ruídos e
os silêncios se substituem ao discurso comum”. 8 E mais : “Diderot desorganisa
o discurso e o humilha, porque tudo, doravante, pode aceder à dignidade de uma
linguagem: os silêncios, o esquecimento, a distração, a disposição dos objetos,
o menor batimento de cílios, a desordem do corpo e da roupa”. 9 O Sobrinho de Rameau é oportunidade para
a retomada dos questionamentos sobre a linguagem e seus equívocos,
a retórica, a lisonja com seus
alvos secretos.Nele, a dúvida cética encontra uma acolhida à altura, como
também é o caso do pensamento cínico.
Uma análise
especial dos nexos entre linguagem e matemáticas ajudaria a definir o
pensamento diderotiano. Nosso autor desconfia da retórica, desaconselhando seu
ensino aos jovens, antes de outras disciplinas. Sem outros estudos
preliminares, “a retórica é arte de falar antes de pensar” (“Plano de
Universidade para o governo da Rússia”). Enquanto isto, a geometria é “a melhor
e a mais simples de todas as lógicas, a mais própria para fornecer
inflexibilidade ao juízo e à razão”. Os malentendidos da linguagem comum são
reparados pela matemática : “se nossos dicionários fossem bem feitos ou, o que
é o mesmo, se as palavras usuais fossem tão bem definidas quanto as palavras
‘ângulos’ e ‘quadrados’, sobrariam
poucos erros e disputas entre os homens. É a este ponto de perfeição que todo
trabalho sobre a lingua deve tender”. (“Plano de Universidade...”). Como
veremos num dos capítulos deste livro, Diderot também apresenta cautelas para o
matematismo universal, desconfiando mesmo da lingua dos geômetras. Mas pode-se arriscar
um pouco, dizendo que seu entusiasmo pelas ciências certamente o fazia confiar
um pouco mais (ou desconfiar um pouco menos) dos caracteres algébricos. Resta o
modo de afastar os preconceitos que habitam a lingua comum e a escrita dos
teóricos. “Um povo é ignorante e supersticioso ? Ensinai às crianças a
geometria e vereis com o tempo o efeito desta ciência”. (“Plano de
universidade...”). Enquanto corre o tempo, e a matemática não produz seus
efeitos, vale a sátira. Esta é a tese subjacente à análise que o leitor
examinará adiante.
Longe de
“esclarecer” todos esses pontos, o texto
que apresento indica situações e limites da vida humana —íntima e social— com ajuda das Luzes, sobretudo as emitidas
pelo enciclopedista maior.Espero, assim,
trazer ao público uma reflexão
sobre os nexos entre a filosofia diderotiana e a sátira , tendo como pano de
fundo o silêncio. Dizendo ainda com R. Kempf : “Não falar, não é apenas calar.
O silêncio do constrangimento marca uma sujeição seja à voz do outro, seja às
forças do corpo emocionado. Tiago falaria se ele não estivesse amordaçado, o
sobrinho falaria se...Bem na margem do silêncio, a gagueira, o murmúrio, o
decepar das frases, a voz forte dos moribundos atestam uma vitória, tanto
quanto uma derrota”.10
Fala e
música encontram-se em feliz aliança, sobretudo na lisonja. “Quem já ouviu um
miserável pedir esmola na rua (...) um amante desesperado, um adulador, sim, um
adulador adoçando o tom, arrastando as sílabas com voz melosa, em uma palavra,
uma paixão, não importa qual, desde que sua energia merecesse servir de modêlo
ao músico, deveria perceber duas coisas: uma, que as sílabas, longas ou breves,
não têm duração fixa, nem mesmo relação determinada entre suas durações, que a
paixão dispõe da prosódia quase à sua vontade...”. Tudo isto, no contexto da
briga contra o canto italiano...11 Hoje,
a propaganda une música e lisonja, aproveitando perfeitamente as lições do
parasita genial.
Em nosso
tempo, a falta de sentido assume novas forças, com a retomada dos
exorcismos sentimentais contra a razão.
Os programas televisivos, com seus “pastores eletrônicos”, abrem espaço para o
curandeirismo, a astrologia e demais crendices (“eu acredito em duendes”)
populares, dando muito dinheiro aos
charlatães que se apresentam, não por acaso, como praticantes de uma
pseudo-psicolinguística.Este irracionalismo atingiu há muito tempo a política.
Ele torna-se temível devido ao recrudescimento dos partidos “neo” fascistas na
Europa e no Brasil. Massas desprovidas de pensamento, respondendo aos estímulos
da propaganda, são vítimas fáceis do embuste, causando sofrimento e morte em
milhões de pessoas. As experiências do nazismo e do maccarthismo deveriam ter
ensinado algo aos intelectuais dispostos a bajular os poderosos da hora.Mas se
existe lição a ser extraída, é que os intelectuais não aprendem com
experiências onde a sua pele não está imediatamente em causa.
Deste modo,
“difficile est satiram non scribere!”. Nas próprias igrejas, a teologia tradicional
perde terreno para o culto das paixões e dos sentidos exaltados. “Sinn”, dizia Hegel, é palavra
maravilhosa que designa ao mesmo tempo o
lógico, o somático, o
anímico.Estamos chegando ao máximo, neste final de século 20, da carência de
sentido, nestas acepções. E não temos, como no século 18, intelectos satíricos
que possam, a partir de uma gargalhada,devolver -como num eco- aos energúmenos
da midia e das universidades o silêncio ou os
ruídos que eles produzem para ganhar dinheiro ou adeptos. Ou dinheiro e
adeptos, como é o caso dos “evangélicos” de agora.
Sob outra
forma, este livro continua minhas buscas, iniciadas em Brasil:Igreja contra Estado, Conservadorismo Romântico, e outros.
Trata-se de, mais uma vez, defender a racionalidade sem, no entanto, sacrificar
os sentidos. As dúvidas e críticas que o leitor tiver, e que julgar de meu
interesse, são bem vindas. O texto é resultado de uma pesquisa em
desenvolvimento sob o patrocínio do CNPq
(Conselho Nacional da Pesquisa Científica e Tecnológica), ao qual agradeço
a importante ajuda. Para coletar as fontes necessárias, na Biblioteca Nacional
de Paris, fui auxiliado pelo FAEP
(Fundo de Apoio à Pesquisa) da Unicamp. Agradeço a confiança. Os autores
brasileiros são mencionados apenas quando entram no tema escolhido para este
livro. Deste modo, não foi-me possível citar os trabalhos pioneiros e
esclarecedores do Professor J. Guinsburg, notável e fino tradutor dos textos
diderotianos . O mesmo ocorre com outros teóricos, os quais serão devidamente
referidos em livros posteriores, quando sua exposição —coincidente com os meus
pareceres, ou a eles opostos— apontar terrenos semelhantes ao trilhado por mim.
Notas
1) Cf. Le Neveu de Rameau, Ed. Jean Fabre,
Genève, Droz1977, página 273. Cf. a importante nota de Fabre sobre a passagem,
página 223-224.
2) Le
Neveu ..., ed. Fabre, páginas 49-50. Utilizarei a tradução brasileira de A.
Bulhões e M. Tati, São Paulo, DIFEL, l962. páginas 237-238.
3) Idem,página 59 ; página 247 da ed. Difel.
4) Le
Neveu...ed. Fabre, página 79 ;ed.
Difel, página 266.
5) Ed. Fabre, página 81
; ed. Difel, página
268.
6) Ed. Fabre, página 82 Ed. Difel, página 269, que “traduz” a
onomatopéia como “catrapus”... Hegel também dará o “termo” em som alemão.
7) Ed. Fabre, página 94 ed. Difel, página 280.
8) Cf. Diderot
et le Roman. Paris, Seuil, 1976. página 11.
9) Idem, página 107.
10) Idem, página 115.
11) O
Sobrinho ...ed. Difel, página 274.
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Capítulo
Primeiro
Diderot e a Sátira
“Há
dois tipos de pessoas sujeitas à lisonja...os príncipes, entre os quais os
bandidos ganham
crédito por este meio, e as mulheres”. (Charron).
“A
sátira é uma espécie de espelho onde, habitualmente, cada um reconhece o rosto
de todos,
menos o seu”. (Jonathan Swift)
Analisando o Sobrinho de Rameau e discutindo várias hipóteses sobre a duplicidade, no diálogo, entre os personagens “Eu” e “Ele” ,1
Milton F. Seiden retoma o debate sobre Diderot e o gênero satírico. Os
comentadores rodeiam aquele texto, encontram mil entradas e saídas, mas acabam caindo nas malhas da subjetividade
: a “explicação” do Sobrinho encontrar-se-ia no escritor Denis Diderot, no seu corpo e alma. Exemplos
de remanejamentos desse vínculo são conhecidos pelos interessados no assunto.2 A formula básica foi enunciada por Daniel
Mornet : “O Sobrinho ... é um Diderot
que luta, duramente, contra um outro Diderot”. Ou então, ainda com Mornet: “O
escrito é uma conversa de Diderot consigo mesmo”. Espécie de Janus filosófico,
Diderot teria gerado uma obra prima nos
limites do seu próprio intimo.
Na
trilha hegeliana, Marx já havia tentado dissociar as duas máscaras opostas
no texto. Para ele, Diderot seria “a boa consciência”, enquanto o sobrinho
encarnaria a “consciência dilacerada”.3
Tentando assegurar uma possível identidade entre os dois personagens do
diálogo, muitas operações de salvamento, utilizando as mais diferentes
retóricas filosóficas foram empreendidas.
O problema torna-se angustiante
quando se aplica o modo “científico” para enfrentar esse texto. Lionel Trilling chegou, como era de se esperar, à
psicanalise. Comentário paciente de Seiden: “Seria ir demasiado longe dizer que
Rameau representa o Id de Diderot, enquanto a pessoa do “filósofo” seria o
freudiano Ego diderotiano”. De qualquer
modo, afastando-se as tentativas que partem e retornam ao sujeito, dando-lhe
uma “consciência dilacerada” ou um “Id” de empréstimo, não se resolve o
problema das fontes usadas pelo escritor na composição de seu texto. Tenho,
parcialmente a mesma opinião Seiden:
“Afirmar que um escritor criativo mostra menor talento quando ele não inventa
seu assunto, poderia ser uma pura falta de sentido. Diderot era capaz de colher
um personagem do mundo ao seu redor e fazê-lo viver e respirar. Mas ele não era
um retratista e viu em Jean-François não apenas o indivíduo, mas o tipo, não só
o caso isolado mas suas implicações universais”. Diderot não apanha somente o “real”, a sociedade da sua época. Ele arranca seus personagens das amarras de tempo
e espaço. Foi trabalho de gênio fazer um diálogo brilhante com o
Jean-François histórico “uma sátira mordente dos grupos e crenças da
sociedade que seu interlocutor tão bem
representa ”. 4
Por
que concordar só em parte com a tese de Seiden? A razão encontra-se nos
limites do material utilizado pelo filósofo para encenar o seu “tipo”. Autor que se notabilizou pela busca
de saberes os mais diversos e contraditórios, Diderot absorve a cultura antiga, dela extraindo formas e
motivos para pensar a vida humana no plano mais eminente. Seria estranho
reduzir o desenho do Sobrinho ao
campo social de seu tempo. Jean-François recolhe inúmeras figuras humanas, forjadas nas mais diferentes
paletas filosóficas, éticas, políticas, desde a Grécia clássica, passando por
Roma e atingindo o Renascimento. Pode-se
aceitar a tese de que os motivos
desta fabricação dialógica sejam os costumes e as gentes com quem
Diderot lidava. Mas as técnicas daquela
sátira têm origem em leituras muito mais recuadas .
Autores
clássicos na interpretação do Sobrinho, entre eles E.Curtius, enxergam no texto
uma dívida absoluta para com Horácio. Outros analistas, como O’Gorman, notam
proximidades entre o diálogo diderotiano e a ironia platônica. Chegou-se , com
Ruth Groh, à tese do nexo entre o
escrito de Diderot e a sátira menipéia . Procurarei expôr alguns
nexos entre o enciclopedista e os
antigos. Parece-me que uni-lo ao poeta Horácio, deixando na sombra seus
vínculos com outros autores, é pouco se
queremos compreender a obra em debate. O mesmo diga-se para o elo entre Platão
e Diderot.No caso da sátira menipéia, torna-se importante acrescentar Luciano de Samosata, com o ecletismo crítico
dirigido contra as escolas filosóficas de obediência única. Para bem
entender traços relevantes de
Jean-François e de sua fala, devemos abordar certos comportamentos discutidos
por Plutarco, não o das Vidas,
estratégico também no século dezoito, mas o das Moralia.
Desde
Curtius, unir a sátira em Diderot e
Horácio tem sido a regra. 5 O livro de
Curtius é demasiado conhecido para que o
leitor seja obrigado a encontrar, aqui, um resumo de seus arrazoados. Vou
direto ao núcleo que define a sua interpretação no plano filosófico: “A idéia
central (do Sobrinho e da Sétima Sátira no livro II de Horácio) é
o paradoxo estoico: só o sábio é livre e todos os insensatos são escravos”.
6 Consequência icônica: “Podemos notar a
analogia entre o escravo Davus, que aproveita a liberdade louca das Saturnalia,
e o pobre Rameau, cuja inaequalitas é
sublinhada como seu traço principal de caráter”.
Como
adequar o fortíssimo apelo à filosofia estoica, que na tese de Curtius é o
núcleo significativo do texto inteiro de Diderot, na tese de Curtius, com o que
vem dito a seguir, pelo mesmo autor, sobre o personagem “Eu” ? Este seria
“Denis o filósofo, que gosta muito de ser chamado Diógenes e cita gostosamente
este nome: ’Diógenes ria das necessidades’ . O sábio cínico só precisa da
natureza (...)”. Estoico ou cínico? A diferença não é irrelevante. Como é conhecido, Diderot , para utilizar as
palavras de Fabre, hesitava entre assumir para si a máscara de Sócrates ou a de
Diógenes. Mas no diálogo, se o cínico
aparece enquanto “Eu”, ele é imediatamente contraditado por “Ele”: a liberdade supostamente vivida pelo sábio
não titubeia diante da “opção” onanista
para manter sua autonomia. Uma sátira radical não deixa sequer o cínico
intocado. Como veremos no caso de Luciano de Samosata, o cínico também é mordido pelo crítico. A
doutrina estoica, pois, dada por Curtius para explicar a forma e o fundo do
Sobrinho , deixa sem bases este apelo essencial ao cinismo, no mesmo texto. Isto, com uma agravante : enquanto a citação
de Diógenes é direta, a do “sábio estoico” só aparece mesmo... no texto de
Curtius, como consequência de sua escolha de Horácio enquanto fonte única para o diálogo diderotiano.
As
dificuldades na indicação de uma fonte exclusiva para fundamentar a sátira em Diderot tornam-se evidentes em
outra intérprete do seu pensamento. Michèle Mat-Harquin, num instigante artigo
publicado nos Diderot Studies 7 , cujo título retrata nosso problema (“Diderot
e Horacio”) procura extraír do pensamento estoico não a condenação dos ignaros,
e o dogmatismo, mas justo uma atitude cética a nortear o pensamento
diderotiano. Embora o texto indicado seja, justamente, O Passeio do Cético , e
não o Sobrinho , vale a pena citar este deslizamento do plano estoico para o
cético, via Horácio. O trecho das Sátiras horacianas posto como epígrafe
do “Passeio...” (Sat. II, 3, 48-52) fala
em desgarramento de todos os que estão perdidos na selva, a natural e a da
sociedade: “ Quando se caminha ao acaso na mata, a distração faz perder a
trilha ; um viandante ruma para a esquerda, outro segue para a direita. O erro
é idêntico para ambos, mas os perde em direção diversa”. A epígrafe, afirma
nossa autora, é “uma lição de relativismo”. Indo mais além, ela encontra na
mesma Sátira horaciana (II, 3, 8l) um “ceticismo diante dos diversos sistemas
filosóficos” 8 .
A
atitude cética e o pensamento eclético, uma de suas variantes, une-se muito
frouxamente à canônica epistemológica e
moral estoica. Deixando este ponto na sombra, Mat-Harquin universaliza
indevidamente uma afirmação de Horácio, posta na mesma Sátira. A
universalização em foco seria perfeita, caso a base filosófica horaciana fosse
cética ou cínica. Vejamos a frase de Horácio: “Convido a me escutar, arrumando
a toga, os que sofrem por desmesurada ambição, ou por desejo de dinheiro, os
ardentes de luxuria, ou cegamente supersticiosos, todos os acometidos por uma
doença da alma. Vinde e eu lhes mostrarei, em ordem, que todos ensandeceram ” (Sat.,
II, 3, 77-8l). Está claro que o alvo de Horácio, aqui, são determinados homens
(ambiciosos, avaros, luxurientos, supersticiosos, ou “acometidos de outra
doença da alma”). Claro, pode-se dizer que nenhum ente humano, a rigor, escaparia desta
enumeração. Mas o sábio permanece indene, ensinando os demais. Logo, a tradução
mesma do trecho, proposta pela autora, apresenta dificuldades: “todos os homens
são insensatos” 9 . Todos, menos o sábio. Tem razão Curtius, apesar do sumiço
do ceticismo que ele opera no texto de Diderot. O Passeio do Cético ,para dizer
o mínimo, empalidece diante do radicalismo constatável no Sobrinho . Neste
último, mesmo Diógenes dança a pantomima,
e a sátira assume um tom cético inaudito.
Tais
indicações mostram as dificuldades que
surgem quando se define uma só
origem para o texto diderotiano. Procedendo desta maneira,
ou faz-se violência ao escrito, ou se distorce desnessariamente as fontes
filosóficas . Este procedimento hermenêutico é claro num autor cujo trabalho
ajudou a refinar a leitura do Sobrinho.
Refiro-me ao escritor O’Gorman com suas
análises sobre os nexos entre Diderot e Platão. O’Gorman 10 diz que a sátira diderotiana em pauta é o
diálogo entre um idealista moral e um nihilista. A partir desta bipartição, o autor
pergunta onde, nos textos platônicos, encontra-se um choque semelhante. Como
tudo pode ser encontrado em Platão, ou em qualquer outro filósofo, O’Gorman acha duas passagens que, no seu
entender, colocam frente a frente um “idealista moral” e um “nihilista”. Como o
leitor já prevê, os trechos encontram-se no Górgias (48l b e ss) e na República
(336 b e ss). Imitando o Platão artista, cujo virtuosismo produziu personagens
vigorosos para enfrentar Sócrates, Diderot teria operado uma síntese de Calicles
e de Trasímaco, “individualistas e utilitaristas”, 11 da qual resulta...o personagem “Ele”.
O’Gorman, para ampliar o cenário, acrescenta, enquanto possível material usado
por Diderot, o trecho da República (II, 357c-367e) onde Glaucon fala sobre a
injustiça.
O
autor , gradativamente, estabelece
similaridades entre os trechos platônicos e o diálogo diderotiano. No plano da
fala descontrolada , “bavardage” no francês e “parrhesia” no grego, O’Gorman
indica o tom irônico de Sócrates ao referir-se `a “franqueza de lingua” exibida
por Cálicles (Gorgias 487ab-492d). Sócrates ironiza os falastrões que o
enfrentam.Também o personagem “Ele” gosta de mostrar os próprios filósofos como
ridículos. Sócrates, diz Jean-François, é “um sujeito audacioso e estranho” 12
. Os filósofos são risíveis, a filosofia
aborrecida: “Imagine o universo sábio e filosofante ; é preciso concordar que
ele seria demasiado triste”. A frase poderia, antes, sair diretamente do Elogio
da Loucura e das teses médicas do Renascimento sobre a melancolia que submete
poderosos e pensadores. 13
Por
mais eloquente que seja “Ele” contra a filosofia, afirma O’Gorman, não se atinge, em sua fala, a radicalidade
oferecida no Górgias. Segundo Cálicles o filósofo seria ridículo na política, nos
negócios, inábil para falar como um homem. O auto-contrôle recomendado pela
filosofia é próprio dos “simplórios”(491d). “Sensualidade, licença, liberdade
sem reserva (...) eis a virtude e a felicidade!”, arremata Cálicles. Trasímaco,
no plano da injustiça, atinge paroxismos semelhantes. Os dois personagens
platônicos forneceriam o modelo para o elogio do sublime bandido : “cuspimos
num malandrinho ...mas não podemos recusar certa consideração para com o grande
criminoso”.
O
problema da desigualdade de Rameau face a si mesmo é acompanhado por O’Gorman
em Platão. No Gorgias , Sócrates louva a filosofia por dar consistência ao
pensamento. Sem ela, o indivíduo é lira frouxa e fora do tom, possuindo
“discordância interna e contradição no meu próprio eu singular” (é o modo pelo
qual O’Gorman lê a página 482c). Do mesmo jeito, a refutação de Trasímaco
implica em demonstrar que o injusto é dividido, inimigo de si mesmo. Conclui
O’Gorman: “Está claro que nestas passagens encontramos o duplo ideal de virtude
e controle racional que, no Sobrinho, é a medida do malogro de Jean-François,
como homem e artista”.14
O’Gorman
salienta a complexidade do texto diderotiano. Este último “não pode, certamente, ser reduzido a um
debate sobre justiça e felicidade, similar ao encontrado em Platão; também não
devemos presumir que a intenção de Diderot, na sua obra satírica, seria de
algum modo comparável à do filósofo antigo”.15
Esta declaração de princípios não
impede o comentador de continuar propondo similaridades entre as duas
produções.Na República o tema principal é a justiça.Mas nela também se trata da
música, da educação, do gênio, da pantomima, da hipocrisia. Estes mesmos ítens
encontram-se no Sobrinho. Estas similaridades não seriam acaso. “O Sobrinho,
por sua originalidade chocante, é uma das grandes obras primas da mimesis
literária; em cada uma de suas linhas Platão está suposto e só podemos
compreendê-lo sob luz de sua doutrina” 16 .
O’Gorman
não exagera quando aponta semelhante influência sobre Diderot. Em “Diderot
leitor de Platão” , R. Trousson 17
mostra que “seduzido por alguns aspectos da estética e da filosofia de
Platão, Diderot não foi insensível ao seu modo de expressão. Como o autor do
Sobrinho de Rameau poderia negligenciar a técnica platônica do diálogo, da qual
ele sublinha os méritos e a função: ‘quem não é sensível aos encantos de seus diálogos não possui bom
gosto. Ninguém soube, com maior verdade, estabelecer o lugar da cena, nem
melhor sustentar seus personagens...Ele viu que a dúvida é a base da ciência
verdadeira ; e seus diálogos também respiram ceticismo. Eles se parecem muito à
conversa’ (OC, VIII, 114-115)”.
Semelhanças,
diz Trousson, mas também diferenças. O
diálogo, em Diderot não coincide com o dos antigos.Ele não possui a forma
ciceroniana, “uma longa exposição cortada por algumas objeções”, nem a de
Luciano , “muito mais nervoso, mas sobretudo satírico e destruidor, próximo da
comédia, da qual Voltaire é um representante mais ilustre”. Trousson pensa os textos platônicos
com o modêlo fornecido por Victor Goldschmidt, para quem o diálogo é “fechado”
no plano epistemológico e educacional: “Socrates pretende desviar seus
interlocutores de seus erros e conduzi-los à verdade através um ensino
distilado minuciosamente”. Nada disto em Diderot : nele, “a luta da tese e da
antítese não conduz à síntese triunfante, mas desemboca, pelo contrário
—estamos longe de Platão— no inacabado e na abertura indefinida, no reinício
ilimitado das questões. Uma lógica e uma retórica do descontínuo consagram uma
estética da assimetria, a qual eleva a digressão à dignidade de uma arte”18 .
Em
outro artigo estratégico, Pierre Chartier aponta semelhanças e diferenças entre Platão e
Diderot. “Enquanto o Platão antigo se empenha, apesar de sua dívida confessada,
em banir da Cidade o poeta-Proteu, autor de mil confusões, ou em arrancar de
seu esconderijo, no termo de uma caçada discriminante impiedosa, o Sofista
instalado no antro obscuro onde manipula seus simulacros, o Platão moderno,
também Filósofo da Luz, não podendo mostrar-se totalmente ‘nu’, deseja ser o senhor, ao mesmo tempo, da
mistificação e da desmistificação, da ilusão e da verdade”. (“Irmão
Platão”). 19 O nexo entre os dois pensadores é complexo e
tanto O’Gorman quanto Chartier possuem plena consciência deste traço. Em ambos
os filósofos há motivos para pensar o diálogo enquanto ironia e sátira. Diderot conheceu o espírito e
a letra platônica. Suas obras mimetizam, através de empréstimos ou
citações, o escritor da República. Jean
Seznec provou o quanto Diderot era íntimo do texto platônico. Mesmo o encontro entre Diderot e Rousseau em
Vincennes, o uso não confessado por
Rousseau da tradução da Apologia de Sócrates, mostra a sua íntimidade com os
diálogos platônicos. Rousseau, Seznec mostra com os textos, erra exatamente
onde erra Diderot na sua tradução, nos lugares onde Ficino, suposta fonte de
Rousseau, acerta....20
O’Gorman
enxerga um Diderot desanimado ao ler a República . Como Atenas, a civilização
moderna morria. Só isto explicava o
sucesso de Palissot, castigado no Sobrinho devido à peça Os Filósofos; o
fracasso relativo do Pai de Família; a hostilidade contra a Enciclopédia. Deste
modo, Diderot “sente a necessidade de fornecer expressão satírica ao seu
desapontamento ; e a expressão compreensiva do homem e da sociedade, na
República, fez daquela obra a moldura ideal onde estabelecer uma verdadeira
sátira filosófica.” 21 Tais analogias,
apresentadas por O’Gorman entre passagens platônicas e diderotianas, fazem-nos
pensar. Elas recordam o dito italiano:
“se não for verdadeiro, é bem achado!”. O final da história é dito por nosso
autor quando afirma que Diderot deseja provar o elemento central da República:
o homem justo é feliz. Platão olha o
filósofo com humor. Ele gozaria “729 vezes mais um prazer real do que o
tirano”. De modo idêntico, Diderot emprega ironia e caçoada com o personagem
“Eu”, auto-caçoada da qual Horácio foi mestre. “Falo mal. Sei apenas dizer a
verdade”.Esta frase do filósofo, no Sobrinho, segundo O’ Gorman, é apenas um
eco do enunciado socrático no Ion: “Eu sou um homem comum, que só fala a
verdade”.
Diderot, segundo O’Gorman, termina repousando no
elemento apolíneo. Este seria, num paradoxo,
o alvo do muito dionisíaco
Sobrinho de Rameau .22 A lisonja,
estratégica na sátira antiga e mesmo em Platão, esquecida por O’Gorman, a
análise muito rápida da garrulice, indicam: apesar de melhor justificada do que
a camisa de força horaciana, posta em Diderot por Curtius e demais intérpretes,
o revestimento do texto de Diderot pela escrita platônica não basta para traçar
uma conexão de sentido entre o Sobrinho e a sátira antiga.Em outros temas e
escritos, o nexo torna-se menos impreciso, como demonstra Jacques Chouillet no
artigo “A Caverna, seus habitantes et seus sonhos: de Platão até Prévost e
além” 23.
Sobre
os vínculos de Diderot com Platão, muita coisa já foi dita. Roland Mortier, no excelente Diderot na
Alemanha 24 cita a reação sem bom humor de Baumgarten
diante da sapiência antiga diderotiana: “Quando
Diderot atribui ao verbo ‘geometrisar’ uma origem inglêsa, Baumgarten
caçoa de sua ignorânica: ‘nosso escritor ... estudou a filosofia uma pouco
rápido demais, pois o termo já está em Platão’; é verdade, acrescenta, que
Diderot ignora Platão e pediu que lhe trouxessem suas obras para a cadeia só
para exibir-se”. (Mortier, página 341). Até nossos dias Diderot é acusado de
ignorar Platão e desconhecer a matemática.
Mas esta é uma outra facêta da história filosófica. Autores como Jean
Mayer mostraram que o escritor conhecia
bem mais do que supunham os seus críticos. Importa notar que o nexo
Diderot-Platão era claro desde as primeiras produções do primeiro.
O
interesse de Diderot pelos textos platônicos tem um sentido mais profundo do
que a crítica sócio-política. A
sátira desce às bases da existência natural, não se limita
ao mundo humano e às suas convenções.
Para atingir esta altura especulativa, a passagem de Diderot por Platão supõe a
recusa do instrumento ótico, e de um cosmos cuja ordem garantiria certa
regularidade física e humana. Em Diderot, a sátira é lancinante e não remete,
como na estoica, à uma Lei diante da
qual se dobra o sábio mas que destrói o estulto. Com Diderot, diz J. Chouillet,
começa uma aventura do espírito, “da qual o Ocidente, herdeiro da Europa das
Luzes, talvez ainda não saiu”. Qual aventura? A desconfiança no olhar, físico
ou mental, com a coerente dissolução de
toda metafísica. A Carta sobre os cegos abre a via para o mundo físico e humano
sem a tranquilizante espacialidade fornecida pela vista. Obrigados a pensar sem
este instrumento traiçoeiro, fomos empurrados para os demais sentidos 25 ,
percebendo o tempo como finitude,
explodindo as noções de perfeição e de eternidade. A sátira deixa de ser
corretivo teórico para indicar
os nossos limites.
Nunca
será dito em demasia, afirma Chouillet,
o que representa a Carta sobre os Cegos de 1749, sobretudo no campo estético.
“Com as palavras do cego Saunderson em seu leito de morte desaparece para
sempre a crença na realidade de um cosmos, isto é, de uma totalidade
ordenada”. A partir da Carta, “não mais
existe uma ‘ordem admirável’. Esta é uma invenção dos poetas e dos teólogos,
boas para os que enxergam, nula para os condenados a tocar apenas o pequeno
lote de objetos que os envolve”. Beleza, simetria, ordem, todas estas são
apenas palavras desprovidas de substância.A ordem não reside nas coisas, mas em
nós. Se existe beleza, ela é nosso produto: “o céu das Idéias está no homem”.
Diderot, a partir desta crise de 1749, continua fiel aos ensinamentos
platônicos, ou neo-platônicos, mas inverte sua perspectiva.
No Salão de 1767, analisando as condições do
fazer artístico, Diderot concorda com Platão : a idéia geral da beleza não
existe no mundo , os seres particulares
são fantasmas. “Os retratos que fazemos segundo a natureza”
, o termo é característico, constituem “cópias de cópias”. Chouillet nos poupa
a lembrança, mas é preciso mencionar: neste ano, nos Salões, encontram -se os
pensamentos de Diderot sobre seu próprio retrato, pintado por Van Loo. “Mas o
que dirão meus netos ao comparar minhas tristes obras com este risonho...
efeminado, velho coquete ?Meus filhos, eu
previno: este não sou eu”. Vem a seguir a celebérrima e batida frase sobre
si mesmo, enunciada pelo filósofo: “numa jornada eu tinha cem fisionomias
diversas, segundo a coisa que me afetava. Eu era sereno, triste,
sonhador,terno, violento, apaixonado, entusiasta ; mas nunca fui do jeito que
vocês estão vendo”. 26
Tristes
trabalhos, face risonha: desta antítese brotam as notas sobre um ser
proteiforme que poderiam ser aplicadas perfeitamente ao personagem “Ele” do
Sobrinho, definindo-se que o modelo não se encontra na suposta ordem da
natureza ou no desenho artístico, mas no “eu” que se projeta na face
polifacetada e no cérebro inquieto do pensador. Diderot situa a idéia geral no espírito
humano. A idéia é produzida por um “
longo trabalho de gerações de pintores e escultores para chegar ao arquétipo sem o qual não existe verdade
artística. Em Platão, o arquétipo está no começo do processo criador, em
Diderot, ele está no fim” (Chouillet).
O
que vale para a prática artística em geral, vale para a sátira. O “longo trabalho de gerações”
para chegar ao arquétipo, supõe o trato com as sátiras antigas. Acentuar uma
fonte, privilegiando-a, como o faz Curtius e O’Gorman, pode obnubilar a presença de formas diversas no
texto satírico. Repetir em demasia os motivos pessoais ou sócio-políticos do
escritor (seu ressentimento, a realidade tirânica do Antigo Regime, etc.)
retira a sátira de sua amplitude universal, interessando todos os seres
pensantes. Não é possível negar os vínculos de Diderot com Horácio, Platão,
Seneca. Tolice recusar sua imitação de
Bacon, Montaigne, Locke, Shaftsbury, Richardson, etc. Também é falta de sentido
negar, no Sobrinho de Rameau, ressentimentos e querelas entre intelectuais .
Mas para entender o todo da sátira com seus prismas, não podemos aceitar a
limitação das fontes e dos eventos, ou “explicar” este gênero literário e
filosófico por certo “inconsciente” projetado sobre máscaras que recolhem
milênios de técnicas na escrita e na crítica ética.
Num estudo
surgido na Revista de Metafísica e de Moral 27 , H.R.Jauss mostra a abertura dialógica dos textos
diderotianos, especialmente do escrito que estamos discutindo, passando pelo
problema platônico. Jauss descarta, como o fiz acima, o vínculo exclusivista de
Diderot com Horácio: ”Buscando uma forma literária correspondente ao seu objeto —o diálogo aberto, não dogmático— Diderot recorre a um genero que, na minha
opinião,foi desconhecido. Perdidos pelo sub-título (Sátira segunda), os
interpretes tentavam reconhecer, nela, o modelo de Horácio; mas de fato Diderot
retoma a sátira menipéia”. Jauss , como
H. Dieckmann, afasta o nexo exclusivo Horácio-Diderot. Dieckmann, para
ilustrar a pantomima diderotiana com exemplos passados, menciona rapidamente
Luciano, Terencio, Petronio. A partir destas vias, Jauss afirma que “estes
nomem traçam um caminho que conduz à sátira menipéia”.
Apesar
dessa indicação enfática, não existe, no artigo de Jauss, uma análise das
relações entre os textos apontados e o Sobrinho.O autor afirma que a escrita
platônica seria uma trilha oposta à
socrática, porque no diálogo a anamnese impediria uma abertura efetiva,
impossibilitando a independência dos personagens. Jauss repete o dito comum sobre o
dogmatismo de Platão, travestido pela forma
dialética. Por outro lado, insiste no dialogismo socrático , tal como visto por
Diderot 28 . Segundo Jauss, o Sobrinho “ultrapassa a forma de um diálogo
renovado. Ele chega à polifonia da sátira menipéia e carrega a história moderna
desse gênero literário ao seu cume. A sua função, agora, é restituir a cada
homem um pedaço de sua individualidade
natural, descobrindo na realidade social o jogo dos papéis e das dependências
inconfessadas. Diderot acentua a inversão irônica da metafísica platônica,
assunto principal do diálogo, dando ao personagem amoral a tarefa que era
tradicionalmente o apanágio do filósofo e do moralista”.29 Jauss lê Diderot com
as lentes hegelianas da Fenomenologia do Espírito (deixando de lado as Lições sobre a Estética)
sem discutir de fato a sátira menipéia no Sobrinho. Ele indica
os trabalhos de M. Bakhtine, mas não aponta nenhuma passagem do próprio
Menipo e Luciano, ou da tradição irreverente que atravessou a cultura
ocidental, até às Luzes. Sem isto, como falar em “sátira menipéia” em Diderot?
Falta
semelhante ocorre no artigo de Ruth Groh cujo título é tentador: “Diderot- um
Menipo das Luzes”30. A sua preocupação é com a atitude filosófica de Diderot,
enfatizando sua particular reserva metodológica de ordem cética : “Em Diderot o ceticismo significa o caminho
—crítico— para a verdade.” 31 Diderot é pensador e literato que utiliza a ironia e a
sátira de modo sério-cômico . O riso temível,
para Groh, começa com Menipo de
Gadara, encontrando em Luciano seu primeiro exemplo notável. Depois teríamos
Seneca, Petronio, Rabelais —há um esquecimento grave de Erasmo e Morus— Cervantes, Voltaire, E.T. Hoffmann, Jean
Paul. Em nossos dias, James Joyce e G. Grass continuariam esta linhagem
temida.O artigo discute a sátira em Diderot de forma geral, sem descer às
análises particulares de textos. Seria importante que algo ao modo de O’Gorman fosse empreendido,
ligando Diderot à sátira menipéia. O
que se diz sobre o Sobrinho ? “A força subversiva do discurso do Sobrinho
funda-se na sua revolta contra a perversão, a negatividade de todas as
relações...”32 É pouco, mas ajuda a situar o campo a ser investigado.
Notas
1) Algo que atormenta os
intérpretes, desde Goethe.
2) Entre muitos, lembremos o
texto de Michel Launay, “Sur les
Intentions de Diderot dans le Neveu de Rameau”.Diderot Studies VIIII, Genève, Droz, l966.
3) Cf. Werke, Berlin, Dietz Verlag, l972-l974. 32, páginas 302-304.
4) Cf. Seiden, Milton F.: “Jean-François
Rameau and Diderot’s Neveu” in Diderot Studies XVI, l973, páginas l43-l83.
5) Cf. Maurer, Karl: “Die Satire in der Weise des Horaz als
Kunstform von Diderots Neveu de Rameau”.Romanische Forschungen, nº 64,
l952, páginas 365-404.
6) “Diderot et Horace” in La Littérature Européenne et Le moyen-âge
Latin, trad. Brejoux, Paris, PUF, 1956, páginas 694-705)
7) XIX, l978, páginas 103 e
seguintes.
8) ”Velut silvis, ubi
passim/Palantes error certo de tramite pellit,/ Ille sinistrorsum, hic
dextrorsum abit, unus utrique/ Error”. Cf.Mat-Harquin, obra citada, página l23.
9) ”Audire, atque togam
jubeo componere, quisquis /Ambitione mala aut argenti pallet amore,/ Quisquis
luxuria tristive superstitione/Aut alio mentis morbo calet; huc proprius
me,/Dum doceo insanire omnes, vos ordine adite”. Cf. Mat-Harquin, Obra citada,
página l23.
10) Diderot the Satirist ,página 93.
11) O’Gorman,página 94.
12) Ed. Fabre, página 11.
13) Cf. Burton, Robert
(1577-1640). The Anatomy of Melancholy.
New York, Vintage Books, 1977. Burton é o autor moderno que mais ampla e
sistemáticamente tratou a passagem do exercício intelectual solitário para a
loucura melancólica. Para um comentário recente, Cf. Kuhn, Reinhard : The Demon of Nootide. Ennui in Western
Literature. New Jersey, Princeton University Press, 1976.
14) Página 98.
15) Página 98.
16) Página 99.Outros autores
discutiram o traço cômico de Platão: “no século l9, lord Macaulay o reconhece.
Platão, ele notava, foi um dos maiores escritores humorísticos. Também o admite
um dos mais intuitivos expoentes do platonismo, Walter Pater, citando como um
dos maiores exemplos da tradição platônica na literatura grega tardia os
diálogos cômicos do satirista Luciano”. H. Trevor -Roper, Il Rinascimento, Bari, Laterza, 1985, página 44.A referência a
Macaulay está em G.O. Trevelyan, Life
and Letters of lord Macaulay, World’s Classics, V.II, página 434. O texto
de Pater é Plato and platonism,
Caravan Library, l934, página 173.
17) Revue Internationale de Philosophie l48-l49, l984, 79-90.
18) Trousson,pagina 87.
19) Revue des Sciences Humaines, 182, 1981-2, páginas
55-64.
20) Essais sur Diderot et l’Antiquité, Oxford, Clarendon
Press, l957.
21) Página 100.
22) Note-se que O’Gorman
aceita a bipartição entre o elemento apolíneo e o dionisíaco, ainda na trilha
da leitura nietzcheana de juventude. Como estou mencionando sua análise, não
posso deixar de lado este ítem, nela estratégico. Mas não é possível esquecer
seu aspecto problemático e, mesmo, anacrônico. Um leitura como a de G. Colli é
mais adequada e convincente. “O que escapou a Nietzsche é a duplicidade da
natureza de Apolo, sugerida ...pela violência protelada, do deus que golpeia à
distância...A sabedoria grega é uma exegese da ação hostil de Apolo... o
símbolo do Apolo é o simbolo da vida. A vida é interpretada como violência,
como instrumento destrutivo: o arco de Apolo produz a morte”. Colli, G. O Nascimento da Filosofia, Campinas,
Ed. da Unicamp, l992, páginas 32-33.
23) Cahiers Prévost d’Exiles, l984, nº 1, especialmente páginas 59-72.
24) Paris, PUF, 1954.
25) “A Carta sobre os Cegos revelou a Herder a importância do tato, este
‘sentido interno’ de que falava Diderot, o qual nos fornece os conceitos de
corpo, de espaço, de esfericidade : descoberta importante, e que Herder sempre
guardará no espírito. Já em 1769, ele se fundamenta no exemplo do cego de
nascença, descrito por Diderot, para negar toda a estética de Menselssohn,
fundada apenas sobre a visão e o ouvido”. Roland Mortier, Diderot
en Allemagne, Paris, PUF, l954,
páginas 342-343.
26) Oeuvres Esthétiques, Garnier, Ed. Vernière, página 510.
27) nº 2, l984.
28) página l55 e ss.
29) Jauss, página 159.
30) In : Denis Diderot oder die
Ambivalenz der Aufklärung ,
Heidelberger Vortragsreihe zum
Internationalen Diderot Jahr 1984, Konigshausen -Neumann, 1987, Harth,
D. e Raether, M. Ed
31) página 47.
32) página 61.
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-->
Um filósofo satírico
“Um
jovem com muito espírito, mas bem perigoso”1
“O
verdadeiro autor satírico permanece terrível ao longo dos séculos. Aristófanes,
Juvenal, Quevedo, Swift, sua função é designar os limites humanos
ultrapassando-os impiedosamente. Ele joga os homens num tal medo que isto os
empurra para adiante de seus limites” (Elias Canetti) 2 Ao contrário de Aristóteles, de Joseph De
Maistre, de Nietzsche, Diderot não integra o número dos satíricos apesar de si
mesmos, a que se refere E.Canetti.3
Aristóteles defendendo a escravidão, Nietzsche no delírio do
super-homem, De Maistre com suas “guerras divinas”, nenhum deles se aparenta
com Diderot, pois a sátira deste último retoma o riso, desmanchando as teses
“sérias” dos apologetas.
Diderot foi
acusado de tudo. Nos “Annonces, Affiches
et Avis Divers”, jornal literário de seu tempo, um resenhista de maus
bofes —marca notória do gênero— produziu a crítica de sua Vida de Sêneca, na edição de 20 de janeiro de 1779. Diderot não
saberia escrever, a prova estava neste livro. “A única regra à qual o autor
parece ter querido obedecer, é o cuidado
com a divisão dos parágrafos, como para recuperar o fôlego”. Semelhante
escrita seria um caos onde Diderot “esgota-se em reflexões filosóficas, em
injúrias, em declamações; e depois os oh! os ah! apóstrofes a um e a
outro; um tom amargo e insultuoso, alusões indecentes... estilo incorreto, barbaro,
cheio de neologismos ; verdadeiro galimatias...insustentável; alguns
pensamentos expostos, é verdade, com interesse, com força e calor, mas perdidos
no dilúvio dos outros, obscuros, ininteligíveis; numa palavra, trata-se do tom de um
entusiasta que não mais conhece limites”.4 Compare-se estas invectivas com o
crítico de nossos dias : “Enquanto Voltaire torna a frase aguerrida,
elegantemente, Diderot a tortura : cortando-a com expressões ‘naturais’
(interrogações, exclamações, interrupções, repetições, pontos de suspensão),
multiplinado os gritos, as palavras inarticuladas... os monosílabos”.5
Freron e os
seus são castigados no Sobrinho.O
debate foi ácido de parte a parte, como se comprova pelas resenhas dos textos
diderotianos saídas no Année Littéraire. Acusações de plágios contra Diderot (de
Goldoni, Shaftesbury e de Bacon, “até as Jóias Indiscretas são extraídas, no que tange à idéia principal,
que resume toda sua invenção, de um livro latino muito raro.”) . A virulência
não escapou do próprio necrológio de Diderot, saído no volume 6 (l784) do periódico citado. Diderot, diz o
piedoso articulista, é um destes escritores “que gostaríamos de considerar um
espírito filosófico e que, ao contrário, tem sua fonte na carência de
filosofia”. O papel do enciclopedista, na sociedade, seria apenas o
de”charlatão”.
Após
alguns mimos do mesmo jaez , o comentário fúnebre arremata: “hoje que ele tem
como recomendação apenas as suas obras, nosso homem foi posto em seu lugar, já
está quase esquecido. O Pai de Família
é a sua única produção que sobreviveu. A este drama o grande chefe do partido
filosófico deve ainda um resto de existência”. 6 Em outro periódico, o elogio de Diderot é
mesclado às críticas conhecidas:
“imaginação ardente”, “juízo pouco sadio”, “egoísmo, aparência de sensibilidade
que engana a juventude” 7 . A nota compara Diderot aos demais filósofos de seu
tempo: “Ele não escreve tão bem quanto Rousseau, mas raciocina melhor ; ele
conduz seus leitores a um fim ; depois de ler Jean-Jacques, não sabemos o que
ele pensou. Diderot é menos eloquente do que Buffon, mas também é menos
hipotético. No que se refere a
d’Alembert, seu rival, mais que seu amigo, Diderot o supera em tudo o que não
seja geometria (...) Uma homenagem precisa ser prestada a Diderot : ele jamais
acariciou os grandes e a fama”. Um juízo assim “equilibrado” e “justo”,
sobretudo se o compararmos ao “elogio” posto no Année Littéraire, marcou a figura diderotiana até hoje. Imaginação
fogosa, pouco juízo (tê-lo mais do que Rousseau não é muita lisonja, na pena do
jornalista....), parca geometria, amor ao empírico, independência diante dos
poderosos.
É
importante passar em revista os textos sobre Diderot surgidos por ocasião de
sua morte, escritos por seus críticos e inimigos. Sem eles, fica nebulosa a parte da sátira que
arrasta a pena do filósofo para a vida pessoal e para a cortina de ridículo que
ele joga, no Sobrinho, sobre seus adversários. Com este prisma bem definido,
fica evidente que o diálogo de Diderot
não se limita à conjuntura. Ele encontra materiais para sua sátira do gênero
humano em autores bem conhecidos na idade moderna, mas pouco notados em sua
escrita.É o caso de Luciano e de Plutarco. Após adiantar outros exemplos dessa
polêmica dirigida contra Diderot, entraremos no problema das fontes
técnicas —na sátira— que , além de Horácio, Platão, etc. serviram ao nosso escritor para construir de
Freron, de Palissot, e de outros, uma imagem execrável, mas sobretudo exemplar
da anti-moral, em plano normativo e político.
A luta
entre os “filósofos” e seus adversários, Freron em especial, mostra ao leitor
de hoje aspectos nada agradáveis dos primeiros, ao confirmar as emboscadas
dirigidas contra eles pelos segundos. Voltaire fala de tolerância? Freron
aponta a enorme intolerância da seita filosófica, ou mesmo “o espírito de
vingança” da capela.8 O apelido
“cacouacs” 9 , aplicado aos filósofos, tinha por alvo estigmatizar ao mesmo
tempo seu marketing e sua escrita : “quando nosso jornalista (Palissot)
lançava flechas contra o comportamento
pretencioso dos supostos filósofos, ele não fazia isto apenas porque semelhante
exibicionismo o irritava. Como a obscuridade de sua linguagem só acobertaria o
vazio de seu pensamento, sua exaltação da grandeza do homem servia apenas para
mascarar seu nada”. 10
Para exemplificar o riso dirigido contra Diderot,
citemos o próprio Palissot. Tomo as suas Obras
Completas 11. Separo o volume II com
as venenosas “Cartinhas sobre os Grandes Filósofos”. 12. Desde o início aparece a ponta ácida : “Todos estes senhores se
dizem filósofos, e alguns atingem este estado”. Depois, vem a rude acusação de
fanatismo moral, sobretudo na linguagem : ”Este tom de inspiração em uns, de
ênfase nos outros, tão distante do tom empregado pela razão que duvida, ou da
verdade que persuade, revoltou algumas pessoas sensatas”. Estas “pessoas
sensatas” descobriram os plágios cometidos
por Diderot.
Segue-se a
crítica da auto-propaganda, ou do marketing operado por Diderot e seus amigos. Eles teriam erigido um “trono literário” para impor suas idéias. “A
convenção surda que transpirava de sua sociedade para o mundo e que desejava
dizer : ninguém terá espírito, salvo nós e nossos amigos”. 13. O tema da “cabala” grupal para impor o próprio nome e idéias não é desprovido de razões, sobretudo no caso
dos enciclopedistas. Também hoje ocorre semelhante técnica de auto-promoção gerando personagens centrais da cultura. Antes, Erasmo e Morus foram acusados deste
manejo para vender livros, impor
doutrinas, desacreditar adversários. Consulte-se, sobre o problema, o trabalho
um tanto monotemático escrito por Lisa
Jardine: Erasmus, Man of Letters 14.
O subtítulo é eloquente: “The Construction of Charisma in Print”.
Comentando
Erasmo, diz a autora: “Por ‘maior’ que tenha sido o homem na realidade, por
melhores os seus talentos e feitos, é chocante observá-lo, através de suas
páginas e de outros, fabricando sua própria grandeza”. Se Lisa Jardine lesse,
em jornais brasileiros, artigos onde bajuladores das confrarias não hesitam
escrever que fulano “é o maior filósofo” do país, e outras frases do mesmo
naipe, teria farto material para trazer sua pesquisa do Renascimento para os
trópicos. A diferença entre os artífices de sua própria fama, no século 16 e
hoje, no Brasil, é a do modêlo para o mais hilariante simulacro.Quando
intelectuais usam meios publicitários para
promover seu nome e impor
valores, o que aumentou muito com a imprensa, os resultados são
previsíveis. Certamente os sócios menores da empresa abusam do logotipo para
vender mercadoria de segunda.É o que ocorreu com os “filósofos” cujos trabalhos
foram vulgarizados. Nosso crítico afirma que Diderot adulterava seus produtos,
pilhando Bacon e outros. Ficou apenas a tese, explorada ao máximo pelo Padre
Barruel, de uma seita filosófica contrária à sociedade cristã. De Maistre, mais
tarde, usou técnica idêntica à de
Palissot para desacreditar o próprio Bacon. Sátira contra sátira....
Diderot
sentiu o golpe, revidando-o na célebre passagem do Sobrinho sobre os bajuladores de Bertin, “animais tristes,
frenéticos, malfazejos e enfurecidos. Só se ouvem os nomes de Buffon,
Montesquieu, Rousseau, Voltaire e...de Diderot ; e Deus sabe de que epítetos
acompanhados. Nenhum terá espírito se não fôr tão tolo quanto nós. Assim é que
foi concebido o plano da comédia dos Philosophes”. O dito, utilizado por
Palissot, e invertido com destreza por Diderot, encontra-se, como o indica
Fabre, em Molière, nas Femmes Savantes:
“Ninguém será espirituoso, salvo nós e nossos amigos”. 15 Todo infeliz que
tenha caído nos círculos ou capelas formadas
—como quistos— dentro ou fora da
universidade, conhece semelhante técnica da auto-promoção com as bajulações
recíprocas, as citações estratégicas, as rupturas frequentes, as acusações de
felonia, etc. O neófito, encantado com a rede da aranha —os elogios sequiosos
de reciprocidade, se possível hiperbólica— em pouco tempo se desencanta e foge dos “amigos”, caindo em outro e outro circulo, até à
solidão absoluta .Neste reino animal do espírito segue-se a regra
seguinte: “eu te cito e tu me citas”, o
resto é silêncio. O reino dos intelectuais, disse um dia A. Kojève, é o domínio
dos ladrões roubados.
Palissot
mesmo descreve esse modus operandi das capelas, atribuindo-o aos
enciclopedistas: “Era preciso louvar para obter elogios...é a este refrão de
louvaminhas cansativas que estes Senhores distribuiam, uns para os outros,
certificados de celebridade... a quantos papéis singulares não expõe este
pretenso desprezo pela glória, o qual, entretanto, é preciso conciliar com os
interesses do amor próprio!”16.
Em nossos
dias são discutidas as afirmações de Diderot sobre seus críticos, no Sobrinho,
menos negando a realidade dos fatos e
dos atos, e mais definindo a reciprocidade do tratamento entre os
adversários. Nem se assume a hagiografia
de um Diderot “perseguido injustamente”, nem se desculpa seus inimigos, como se
estes fossem automáticos defensores do Antigo Regime, da Igreja, etc. Neste plano, é nuclear o trabalho de Jean
Balcou, Le Dossier Fréron,
Correspondance et Documents. 17 Alí
se discutem as ações de parte a parte, com documentos de
valor inegável.
“Os turcos
nunca falaram de seu Corão com exagero mais ridículo”, esta é uma das
pontas certeiras de Palissot contra os
encômios dos enciclopedistas à...Enciclopédia.18 Pode-se acusar de reacionarismo o arrazoado
do crítico, mas quem se preocupa com a vida moderna e contemporânea encontra
matéria para pensar —e não apenas ao
modo de Rousseau— na seguinte diatribe partindo de um “eu” que se recusa a
assumir o tom laudatório exigido pelo “negócio das Luzes” 19 . Vejamos: “...eu, para quem esta mania de
tratar abreviadamente todas as ciências parece coisa de sábios pela metade, que
dispensam a leitura das fontes; eu...enfim, que estou fortemente convencido de
que, num século onde muito se pensaria,
trabalhar-se-ia menos a partir do que os outros pensaram ... peço perdão
a estes Senhores...”. 20 A atitude de Palissot é bem conforme à tese de que o
mal seria um bem e vice versa. “Eis, Senhor, minha profissão de fé bem
imparcial sobre a Enciclopédia.
Podemos aplicar-lhe o que Pope disse do homem; ele o chama vergonha e honra da
natureza : creio que em muitos aspectos, a Enciclopédia é também a vergonha e a
honra de nosso tempo”.21
Em seu
estudo sobre as leituras de Pierre Bayle, feitas no século 18, Pierre Rétat
apresenta um retrato matizado de
Palissot. Se foi contrário ao “charlatanismo filosófico”, ele também julgou-se
inimigo dos “charlatans de religion”, como Fréron, Chaumeix, e outros. Citando
D. Delafarge, em seu trabalho sobre La
Vie et l’Oeuvre de Palissot (1730-1814), Rétat afirma que “este homem
cultivado, desejoso de seguir o movimento intelectual de seu tempo, voltaireano
por gosto e pelas idéias, tornou-se de algum modo um ‘anti-filósofo a despeito
de si mesmo’”. 22 Isto não o impediu de “salvar” Bayle para a religião
protestante. Palissot denuncia a obsessão daquilo que os alemães chamaram, por
estarem muito contentes com seu luteranismo, a “raciocinação” dos franceses.
Assim, para ele, Bayle teria fustigado a
razão presunçosa, estando longe de aprovar “esta mania audaciosa do raciocínio,
esta filosofia temerária da qual muito se abusou neste século para destruir
todos os fundamentos da moral”. Este trecho, inserido no livro Mémoires Pour Servir à l’Histoire de Notre
Littérature, acaba conduzindo, como nota Rétat, para uma sátira: “a virtude
exemplar de Bayle serve apenas para ironizar Diderot, o inimigo mortal de
Palissot”. Nas palavras do próprio: “Ele (Bayle) mereceu verdadeiramente o nome
de sábio. Não se ouviu Bayle, embora perseguido de fato, gritar
‘perseguição!’...Ele não teve a fatuidade de se comparar a Sócrates. Ele não
prodigalizou grandes termos como humanidade e virtude, repetidos com tamanha
frequência, e com um entusiasmo tão falso, pelos charlatães de nossa época”. 23
Palissot,
por seu comportamento oportunista durante o Terror, parece ter merecido as flechas envenenadas do
Sobrinho. Mas seu alvo, enquanto
voltaireano desejoso de manter alguma coisa da religião, era estabelecer uma
luta em duas frentes. “Contra a Enciclopédia,
contra Diderot e o materialismo ateu, ele queria elevar uma frente comum da
filosofia razoável. Um Voltaire asseptizado, um Bayle confiável, todos os
excessos esquecidos (...), são recuperados a qualquer preço : opostos ao mesmo
tempo aos filósofos e aos anti-filósofos fanáticos, eles servem como caução à
via média que Palissot tenta assumir”.
Palissot procura elogiar o pirronismo, conciliando esta atitude à
religião “raisonnable”. “Entre todas as seitas filosóficas”, escreve, o
pirronismo é a que “mais naturalmente nos dispõe a abraçá-lo”. Enquanto
isto, a metafísica mostra-se apenas como
“un campo tenebroso” onde o espírito se perde.24
As críticas
de Palissot teriam boa acolhida mesmo em escritores muito próximos a Diderot.
Em artigo denso de consequências, Roland
Mortier apresenta o dilema de toda filosofia “democrática”. A Enciclopédia, e tal é a
crítica de Palissot, deseja ser uma obra aberta. Diderot não tem a ingenuidade
de acreditar que todo discurso possa endereçar-se ao público na sua inteireza.
O artigo “Encyclopédie” lembra “que sempre existirão obras acima da capacidade
dos homens comuns”. Mas, para Diderot, continua Mortier, “a verdadeira questão
é a de saber se importa fornecer à filosofia (que ele entende também como
filosofia moral e a teoria das ciências), uma linguagem, uma forma, uma
expressão que a torne acessível a todos, ou pelos menos a todos os que se
interessam ativamente por ela. O problema não é apenas de ordem moral ou
pragmática; ele atinge a possibilidade de comunicação e de recepção de um
pensamento novo e abstrato... dificilmente integrado no vocabulário usual. De
fato, Diderot instaura um debate sobre aidéia de vulgarização. ele tem
consciência das concessões que isto implica, dos seus limites também, mas
deseja alargar a audiência da filosofia sem prejuízo para a sua dignidade”.25
Diderot fracassou, conclui Mortier, por muitas
causas. Entre elas, o afastamento dos ‘idéologues’, pretensos herdeiros das
Luzes, da metafísica, “à qual Diderot concedia ainda em 1753 um plano
privilegiado: eles têm pouco gosto pela especulação abstrata e irão impôr à
filosofia objetivos utilitários e sociais. Mas, mais profundamente, ele não
acreditaram na conciliação entre ‘filosofia’ e povo, na possibilidade aproximar —como dizia Diderot— ‘o povo do ponto onde
estão os filósofos’. No século 19, o
crescente especialização da filosofia, o apelo inflamado de Diderot perderá
seus últimos ecos.Ele parecerá, com o recuo dos tempos, como uma das quimeras
mais significativas e mais sedutoras da idades das Luzes”. 26 Com os “idéologues”, pessoas como Palissot
estavam “vingadas”...
Se
relativisarmos a “culpa” dos inimigos , atenuando o ressentimento pessoal na
composição do Sobrinho e se
acrescentarmos o traço da filosofia popular,
teremos uma outra análise da
sátira naquela obra. Colocando entre parêntesis o plano empírico e histórico
imediatos, podemos discutir os seus participantes enquanto “cópias de cópias”,
imagens que figuram sensivelmente os tipos ideais de comportamento humano. Se o
fim visado é conduzir as verdades éticas e científicas ao maior número possível
de leitores, nada mais eficaz do que uma escrita onde as personagens encenam virtudes e vícios
humanos universais.
Um escritor
satírico. A afirmação precisa receber aval do próprio Diderot. Poderíamos
evocar muitos textos de nosso homem para provar este ponto 27 . Inicio com um trabalho que levantou celeuma
no século dezenove, ajudando a fama do
enciclopedista enquanto homem “pouco sério”. Refiro-me ao misto satírico de
prosa e poesia contra o poder e os
costumes, intitulado Les Éleuthéromanes,
ou Abdication d’un roi de la Fève (l772). 28
O’Gorman finaliza sua análise em Diderot,
the Satirist, colocando nosso escritor sob o signo de Apolo, para exorcizar
o dionisismo que o empolgava. O comércio
com Platão, moderado autor satírico,
inspiraria nosso moderno Sócrates. O Sobrinho
, obra de catarse, terminaria com a vitória da paz estabelecida pelo autor
consigo mesmo. Não é esta a imagem que o
leitor retira de Diderot nos Éleuthéromanes.
O texto
começa com uma apologia do ditirambo que os antigos dedicaram a “Baco,o deus da
embiaguez e do furor”. Isto corresponde à liberdade na composição, indicando a
audácia poética na escolha do assunto.
Presa do entusiasmo, o poeta “seguia sem
se sujeitar a nenhuma medida, amontoando versos de toda espécie, como lhe eram inspirados pela variedade do ritmo ou
desta harmonia cuja fonte reside no fundo do coração”. O tempo e o ritmo aceleram,
tornam mais lento, temperam os movimentos dos versos, “segundo a natureza da
idéia, dos sentimentos e das imagens”. Estas
características notabilizam o estilo do Sobrinho, procedimento a que Leo Spitzer chama de “ritmo
fisiológico”29 . Em outro ensaio, Spitzer cita um trecho do Paradoxo sobre o Comediante que define a importância do ritmo na
arte de escrever e de encenar: “Os acentos podem ser imitados melhor do que os
movimentos, mas os movimentos ferem com maior violência”. 30 Georges Daniel, em seu Le Style de Diderot, Légende et Structure 31 lembra tal “ritmo fisiológico”: como aproveitar a religião para outros fins?
Basta fazer com que, nos templos, homens dancem com homens, mulheres com
mulheres, e homens com mulheres. Assim,
“Eu faria tanto por meus imames que a dança religiosa passaria dos
templos para as casas, das casas para as ruas, e que pouco a pouco o espírito
religioso seria esquecido e a dança tornar-se-ia uma diversão pública e geral”.
(Memoires pour Catherine II) 32 .
O ritmo
ensandecido orienta a pena do filósofo : “semelhante ao personagem que ela
caracterisa, a loucura de Rameau, atestada pelo epíteto que se prega em seu
nome, se decompõe em duas loucuras contraditórias : uma é fisiológica,
tumultuosa, alienante, delírio do gesto e desvio da palavra; a outra é
burlesca, palhaça, em busca de aplausos, feita para captar a benevolência de um
público. Folia desencadeada, folia raciocinada : Rameu é louco e ‘faz-se de
louco’; como na pantomima dos ‘aduladores, dos cortesãos, dos criados e dos
vadios’”.33 No poema Eleutheromanes,
Diderot desce no tempo até Píndaro, para gerar uma concepção da estrofe, da
antistrofe, e do epodo, como se fossem três personagens “que perseguem, unidos,
o mesmo elogio ou a mesma sátira. A estrofe tange o assunto; às vezes a
antístrofe interrompe a estrofe, se apossa de sua idéia, e abre um novo campo
para o epodo, o qual possibilita um repouso ou fornece um outro rumo à
estrofe”. O ritmo, a dança, a pantomima estão presentes neste “elogio” ou
“sátira”, dando-lhe o tom poético de uma conversa viva, esperta.
Nos Eleutheromanes, diz o próprio Diderot
na introdução do poema, “vemos um interlocutor feroz, ferido vivamente pelo
pensamento de um primeiro interlocutor, cortar-lhe a palavra e se apoderar de
um raciocínio que ele promete expôr com mais fogo e força, ou se precipitar num
vazio brilhante”. 34 Não é apenas neste trabalho que o
filósofo desdobra a unidade, mostrando ser
possível pensar o múltiplo transformando o Um
em “pessoas” imaginárias. Aqui, trata-se dos elementos do verso ditirâmbico.
Na Carta sobre os Surdos e Mudos,
Diderot autonomiza, de modo plástico, os
cinco sentidos em “pessoas” que formam uma “sociedade”.
Vejamos a
homologia entre verso e sentidos: “Minha idéia seria...decompor, por assim
dizer, um homem, e considerar como ele depende de cada um dos seus
sentidos.Lembro-me de ter-me ocupado algumas vezes desta espécie de anatomia
metafísica; e achava que, de todos os sentidos, o olho era o mais superficial;
o ouvido, o mais orgulhoso; o olfato, o mais voluptuoso; o gosto, o mais
supersticioso e o mais inconstante; o tato, o mais profundo e mais filosófico.
Seria, no meu entender, uma sociedade engraçada, a composta por cinco pessoas
na qual cada uma delas teria apenas um sentido; não há dúvida de que estas
pessoas se considerariam recíprocamente
insensatas; e deixo que vocês pensem com tal fundamento.Está é, no
entanto, uma imagem do que se passa a todo momento no mundo : só temos um
sentido, e julgamos sobre tudo. De resto, há uma observação singular a ser
feita sobre esta sociedade de cinco pessoas da qual cada uma delas teria apenas
um sentido; é que, pela faculdade que ela teriam de abstrair, poderiam todas
serem geômetras, entendendo-se às mil maravilhas, e só entender-se em
geometria”. 35
As duas
“sociedades”, a dos versos e a dos cinco sentidos, são regidas pelo ritmo frenético e
ensandecido.Cada um dos elementos “fala”, buscando supremacia sobre os demais.
Para quem não é filósofo, verso e sentidos definem uma unidade na superfície.
Mas o real, o efetivo, é o caos revelado na “anatomia”, pelo despedaçamento do
todo. Para fugir do elemento caótico originário, o único recurso seria a
geometria. Mas a compreensão entre as pessoas, adquirida por esta linguagem,
limitaria as possíveis falas com sentido apenas...à geometria. Esta é uma
refutação violenta do ideal clássico da mathesis universalis. A geometrização
do saber, posta como paradigma de conhecimento físico, ético, moral, estético,
religioso, mostra aqui os seus limites. Com sentido diverso ao de Vico, Diderot
evidencia a falta de razão da imagem puramente geométrica do mundo. Não
produzimos este último, nem o nosso corpo e mente. Para captar a nós mesmos, precisamos perceber
nossa origem caótica, seguindo as infinitas tentativas da natureza e nossas
para atingir o sentido racional, um resultado transitório e nunca pressuposto.
Poderíamos penetrar por este atalho, a crítica à mathesis universalis, descendo
até Francis Bacon e a recusa da hegemonia absoluta da matemática. Este ponto, válido
para o Chanceler inglês e para seu imitador Diderot, impingiu-lhes não poucas
acusações de “primitivismo” no plano da
ciência moderna. Conhecemos os enunciados
sobre este ponto polêmico da filosofia de Bacon. Th. Kuhn parece ter
apresentado razões graves para não aceitarmos as caricaturas de Francis Bacon,
alardeadas por autores como A. Koyré. 36
Seguidor de Bacon, Diderot não poderia, neste ítem, deixar de
receber caçoadas de escritores pouco
afeitos às dificuldades expostas por um pensador aberto ao plural, e que fugiu
do espírito de geometria, com seu dogmatismo matematizante. Até hoje o leitor
incauto pode encontrar, como verificamos recentemente em artigo jornalístico de
famoso economista brasileiro, anedotas inverídicas sobre Diderot fugindo da
corte russa, envergonhado, por não poder refutar um “argumento” —posto em forma de teorema— sobre a existência divina... Tais lendas são
refutadas, com precisão, no livro de Jean Mayer.37 Importa notar que a
atenuação do papel das matemáticas no conhecimento da física e da cultura, em
Diderot, corresponde ao que ele chamou de “anatomia metafísica” : análise de
elementos costumeiramente unidos, o que nos dirige ao caos primitivo. A
harmonia é só um dos casos possíveis dentro do mundo, das idéias, dos valores.
Ceticismo, de um lado, e sátira, de outro, indicam, sob a camada “harmônica”,
um turbilhão cujo ritmo é estonteante. O repouso mostra-se aparente.
Nesse ponto, acentua-se um nexo entre a recusa da matematização absoluta
e o mundo da experiência física ou moral. E o vínculo passa, justamente, pela
figura do músico Rameau, o tio do personagem diderotiano. “O sentido da vista é
o mais superficial” lemos na Carta sobre os surdos e os mudos. Se tomássemos a Carta sobre os Cegos , revisitando a
definição dos olhos, por Saunderson, chegaríamos às mesmas teses sobre o tato,
“o mais profundo e filosófico dos sentidos”. O que é a vista? “É um orgão...sobre o qual o ar faz o efeito
de um cajado sobre minha mão”. E
recomenda Diderot: “abram a Diotriptica de Descartes, e vocês observarão os
fenômenos da vista ligados aos do tato, e as pranchas de optica cheias de
figuras humanas ocupadas em ver com bastões. Descartes, e todos os que vieram
depois dele, não puderam nos fornecer idéias mais nítidas da visão; e este
grande filósofo não teve a este respeito mais vantagem sobre nosso cego do que
o povo que possui olhos”. 38
Se a vista é o sentido mais superficial, e se o tato é o mais profundo e
filosófico, a audição constitui o sentido mais orgulhoso. Se à soberba associarmos a ordem matemática e o dogma da
harmonia natural primitiva , continuando na cultura, chegamos à descrição exata
das idéias de Jean-Philippe Rameau. O compositor-filósofo teria o mérito de encontrar,
segundo D’Alembert, “no baixo fundamental o princípio da harmonia e da melodia
; de ter conduzido por este meio, a leis mais certas e simples, uma ciência
jogada antes dele às regras arbitrárias ou ditadas pela cega experiência”. Como sabemos, Rameau não se contentou com este
momento teórico, unindo música e matemática. O passo seguinte foi dado por ele:
a matemática, ela própria, seria um produto musical. Nas frases de C. Kintzler:
“Doravante as matemáticas deverão submeter-se a um modelo musical : o
princípio de geometria é apenas o corpo sonoro...quem conhece a teoria do corpo
sonoro detem uma espécie de saber absoluto. O reino de Rameau teórico não
conhece mais barreiras. A música lhe aparece como a chave de inteligibilidade
do universo inteiro, ela dá seu fundamento a toda luz, a toda demonstração, a
toda cientificidade” Kintzler cita
Rameau passando um pito no geômetra: “ Quaisquer que sejam as razões com que o
geômetra se vista para autorizar suas descobertas, elas sempre parecerão o
trabalho de um instinto do qual a natureza nos apresenta o germe no corpo
sonoro: ela só poderia se explicar ao ouvido”.39 Não por acaso, pois, Diderot
pode enunciar que, de todos os sentidos, o que se localiza na orelha é o mais
orgulhoso...
“Há uma ordem primitiva e invariável na natureza, sobre a qual tudo deve
ser estabelecido, e da qual é preciso partir necessariamente”. 40 Colocando-se lado a lado esta tese
cartesiana, assumida por Rameau, e a concepção
caótica que marca o pensamento de
Diderot, veremos que este último, na sátira que discutimos, o Sobrinho, atinge os mores de sua gente, os da humanidade,
e a atitude dogmática ramista, que
preocupou mesmo D’Alembert, para quem a matematização, em física e na música,
possui limites. “Não devemos procurar... esta evidência espantosa, própria dos
trabalhos geométricos, e que se encontra tão raramente nos da física. Entrará
sempre na teoria dos fenômenos musicais uma espécie de metafísica, que estes
fenômenos supõem implicitamente, e que alí colocam sua obscuridade natural; não
devemos esperar, nesta matéria, o que chamamos demonstração, já é muito ter
conduzido os principais fatos a um sistema bem ligado e consequente, e tê-los
deduzido de uma só experiência”.41 Se D’Alembert, admirador de Rameau e das
matemáticas, contrário à “experiência cega”, apresenta reservas diante da
universalização e do pretenso método demonstrativo ramista, imagine-se o que de
tudo isto pensava Diderot, para quem, dentro da natureza profunda não vigora o
domínio da matemática, em termos absolutos, e que faz o elogio do tato, contra
a visão e o ouvido. J. Chouillet tem amplas razões para indicar, na Carta sobre os Cegos, o processo
moderno contra a metafísica.
“O ceticismo é o primeiro passo rumo à verdade”. 42 . Este lema, indica
R. Niklaus, permanecerá até nas últimas obras diderotianas.43 Neste ponto, poder-se-ia dizer, não há
novidade em Diderot. Descartes, com a dúvida metódica, Pascal acolhendo as
suspeitas dos libertinos contra a razão, Hegel, fazendo a marcha do Conceito
digerir o momento cético, integrando-o no sistema 44 , todos eles fizeram o ceticismo assegurar
o papel da mão do gato, para atingir uma certeza primeira, situada na razão ou
na fé. Mas de algum modo nosso autor escapa desta linhagem dogmática. Para ele,
“a dúvida é necessária”, enquanto, ao mesmo tempo, paradoxalmente, “existe a
verdade, mesmo se a encontrada por nós é relativa”. 45 Este pêndulo entre
suspeita e verdade produz uma oposição permanente nos textos diderotianos, impedindo-o de seguir qualquer via fixa e
única. “Meus pensamentos são minhas rameiras” : a frase corresponde à
“libertinagem do espírito”, a qual serve para constituir “um trampolim para
exprimir paradoxos que fazem sobressair a verdade”. 46
Desses paradoxos, o menor não é a criação de personagens que os encarnam.
Como vimos, os sentidos são transformados em “pessoas”, os versos também
recebem personalidade. Não espanta se o diálogo é recurso permanente na pena
diderotiana. Dela brotam Dorval, Jen-François, Saunderson, D’Alembert, Jacques,
e uma infinidade de máscaras, que afirmam e negam conceitos, apalpam as dobras
dos fenômenos, declaram verdades e as negam na página seguinte. Liberdade e
determinismo, conhecimento e ignorância, a cadeia dos oxímoros que movimentam a
escrita de Diderot lembra sempre, ao leitor, “a anarquia que reside no coração
do homem” e que é “um fator que ele reconhece e deve aceitar”.
Nos Eleutheromanes conferimos a justeza das observações
avançadas por J. Chouillet sobre a linguagem enérgica de Diderot. Este último,
no Salão de l767 fala sobre a “cruel
energia que existe no fundo do coração humano”. Todo homem sofre de um excesso
de energia. Segundo Diderot, é loucura tentar extrair paixões. Entre delas liberar o ser humano ou
liberá-las, o filósofo escolhe a segunda alternativa. Para atingir este fim,
deve-se atentar para a força da conversa. Nenhuma lingua é possível sem a
percepção instantânea do objeto. “Quanto mais a expressão se aproxima desta
unidade original, mais energia ela tem”. Por não poder falar tudo ao mesmo
tempo, “unimos muitas idéias numa só
expressão”. (Carta sobre os Surdos e Mudos). É isto que Diderot chama o
“hieroglifo” ou “emblema”.47
Chouillet
apresenta consequências paradoxais sobre essa teoria diderotiana da linguagem.
Em primeiro plano, há uma relação entre a energia da fala e a quantidade de
discurso. Se, além disto, a energia da
linguagem é inversamente proporcional à quantidade de discurso, podemos supor
que este se reduziria à uma palavra, um gesto, silêncio total, sendo assim o
“mais enérgico”. Chouillet não lembra, mas é possível estabelecermos uma
correlação entre o aforismo diderotiano sobre a pintura, “Pintar, como se fala
em Esparta” e um outro, presente no Sobrinho
de Rameau: “Era a Noite com suas
trevas; era a Sombra e o Silêncio, pois o próprio Silêncio é colorido por
sons”.Chouillet considera “uma estranheza” diderotiana o elogio do silêncio,
pois “o silêncio absoluto em literatura não existe. Ele só pode significar
quando está empenhado num sistema de signos”. O terceiro traço notável dessa
atitude diante da linguagem é que um discurso, para sua beleza, depende de seu
gráu de energia. É o que se pode ler em “Eu e Dorval” : “O que nos afeta no
espetáculo do homem de alguma grande paixão ? Seus discursos ? Às vezes. Mas o
que sempre emociona são os gritos, as palavras inarticuladas, as vozes que se
quebram, alguns monosílabos que escapam por intervalos, não sei bem qual
murmúrio na garganta, entre os dentes”. Entre estas afirmações e a marcha
entusiástica dos Eleutheromanes há
mais do que simples concordância.
Essa perspectiva sobre a energia da lingua conduz Diderot a não apreciar
tanto Eurípides na tragédia grega, pois este último seria “muito civilizado”.
Também Sófocles não o atrai com entusiasmo sublime, porque seria “muito
raciocinador”. Ésquilo o apaixona, com as Eumênides infernizando Orestes: “... momento de terror e piedade,
quando ouvimos a súplica ... do infeliz atingir, através de gritos e movimentos, os seres cruéis que o
perseguem!”.48 Termina Chouillet : as
palavras inarticuladas têm, segundo Diderot, mais energia do que os discursos.
E cita o próprio Diderot num arroubo entusiástico pelo estraçalhamento da fala
contra a rigidez fria dos modernos: “Filoteto na caverna vale muito mais do que
os personagens de Racine em seus palácios : ‘A verdade! A natureza! Os Antigos!
Sófocles! Filoteto!”. 49
A mesma
força corrosiva definida na linguagem enérgica, encontra-se nas considerações
diderotianas sobre a tragédia e a sátira. Em ambas, o alvo é limpar a fala de
suas escórias intelectuais, ou pedantes, para atingir as experiências mais
próximas da infância ou do original humano. Nesta tarefa dionisíaca, trata-se
de primeiro destruir as certezas e as formas de expressão
(pintura-teatro-poesia-música) que se tornaram canônicas. No drama, Diderot
avançou para a produção dos elementos burgueses, desligados dos aristocratas
sem alma e sem corpo do teatro “clássico” . Seu intento fracassou
conjunturalmente, mas abriu o atalho para o teatro moderno, onde as dores e
alegrias da vida não passam
hegemonicamente por aquelas máscaras . Na sátira, o poderoso acicate
para seu trabalho foi o ceticismo filosófico, de um lado, e, de outro, seu
conhecimento da cultura greco-latina,
com a tradição de, rindo, castigar os costumes .
Muitas
leituras consideram ”relativista” o
pensamento filosófico de Diderot . Como nota L. Crocker, a natureza, na
concepção do pensador, é o caos
misterioso. A ordem que nela vemos é só aparente, porque existe apenas em
relação aos nossos processos mentais. O homem atenua a desordem que se
apresenta no íntimo da natura. Ordem e desordem cósmicas são intercambiáveis ,
pois são, ambas, simultâneas 50 . A diferença entre a atitude diderotiana e o
ceticismo, pode ser sugerida na leitura do artigo “Ecletismo” 51 . Primeiro, o ponto de união: “Céticos e
ecléticos poderiam assumir como divisa comum
: nullius addictus jurare in verba magistri”. A seguir, a diferença: os
ecléticos, menos difíceis do que os céticos, aproveitavam muitas idéias que
estes últimos desdenhavam. Deste modo, “sendo o ceticismo a pedra de toque do
ecletismo, o ecletico deveria sempre seguir ao lado do cético, para recolher
tudo o que seu colega não reduzisse ao pó inútil, pela severidade de seus
ensaios”. Dissolução, desmembramento, pulverização: caminhos que mostram um todo fragmentado como
base para se entender o mundo e o homem enquanto sínteses provisórias. Isto
exige que o filósofo materialista e eclético ouça o cético, antes de avançar
algo sobre o pensamento e os fenômenos.
Se não está
preso às certezas dogmáticas, o eclético
assume teses das mais variadas origens. Enquanto os outros filósofos
vivem em sociedade civil, com suas propriedades intelectuais e títulos, o
eclético vive no estado de natureza , “onde tudo pertence a todos” 52 . Na
verdade, o eclético é como o rei que devora os bens de súditos e de inimigos.
Discutirei esta imagem mais adiante. Pitágoras, Zenão, e outros, pilharam os
sistemas de seus amigos ou adversários. É grande a tentação do leitor, diante
destas frases, de lembrar a corda na casa do enforcado. Diderot, em quem se
reconheceu o pilhador de Bacon, de Goldoni, de Locke, e de outros, é um “rei da
fava” ou um “rei filósofo”...eclético? Qualquer resposta é possível. Importa
assinalar que a pilhagem não deixa intocado o larápio. “é muito difícil para um
homem de juízo, que frequente muitas escolas filosóficas, apegar-se
exclusivamente a um partido qualquer, e não cair no ecletismo, ou no
ceticismo”. 53
Vale
escutar uma caracterizaçao da atitude cética, comparando-a com a de Diderot: “O
cético se revela particularmente sensível à questão da diaphonia, chama
continuamente nossa atenção sobre ela, sem permitir que a esqueçamos ou
percamos de vista, como é habitual na maioria dos filósofos, que não consentem
em sobre ela demorar-se. Ele nos convida com insistência a que consideremos com
cuidado e meditemos profundamente sobre o conflito permanente das posições
filosóficas, por assim dizer condenadas a desse mesmo conflito se alimentarem e
viverem. A que examinemos mais de perto a curiosa natureza desse empreendimento
que nos leva a sustentar teses e pontos de vista como eminentemente racionais e
verdadeiros, mas que os outros filósofos sempre rejeitam, nunca aceitam nem
podem, parece, aceitar. O cético propõe-se a fazer-nos conscientes do inegável
desafio que a perpetuação inevitável desse estado de coisas representa para
nossos desígnios filosóficos costumeiros. E se esmera em denunciar a estranha
obstinação dos filósofos dogmáticos em dai não tirarem as necessárias
consequências, nem extraírem a lição que se impõe. O cético a extrai e suspende
o juízo” .54
Enquanto o
cético aponta as certezas que se entrechocam,
transformando-se em amontoado de fragmentos, sem solidez alguma, o
eclético também retira consequências das guerras filosóficas: “A leitura dos
filósofos também produziu seu gênero de emulação; argumentou-se, sistemas foram
edificados, dos quais a disputa revelou bem depressa o forte e o fraco: então
sentiu-se a impossibilidade tanto de admitir quanto de rejeitar cada um deles
por inteiro”.55 Céticos e ecléticos
dizem que os sistemas são instáveis na sua base. Mas, enquanto os primeiros
deixam os materiais de uma construção do universo “sobre a terra”, os segundos
buscam edificar algo sólido, sabendo que isto é impossível com o modêlo do
universo que tinham diante dos olhos. “Pois tais homens não se propõem nada
menos do que encontrar a pasta do grande Arquiteto e os planos perdidos deste
universo; mas o número dessas combinações é infinito.Eles já tentaram um grande
número, com pouquíssimo sucesso; mas eles continuam sempre a combinar: podemos
chamá-los ecléticos sistemáticos”.56
Ao ecletismo sistemático, soma-se um outro, o experimental, que consiste
em reunir verdades conhecidas e fatos dados, aumentando o seu número pelo
estudo da natureza. “O ecletismo experimental é partilhado pelos homens
laboriosos; o ecletismo sistemático é o dos homens de gênio; quem reuní-los
terá seu nome colocado entre os de Democrito, de Aristóteles e de Bacon”.
Desde o século l9 a
crítica acompanha, na obra de Diderot, o
caminho que vai do deísmo ao franco materialismo, passando pela trilha cetica.
Esta é a leitura de Erdmann, Rosenkranz, e outros. Haveria, no dizer de Erdmann,
uma “evolução” ou, pelo menos, uma “oscilação” do pensamento diderotiano, do
deísmo ao ceticismo e, deste último, ao materialismo ateu. 57 . Mais apropriada
para descrever a atitude filosófica diderotiana, parece, é a manutenção, em
todos os seus passos, do choque entre desejo de verdade e certeza de sua
impossível obtenção absoluta.
Se o
filósofo busca o saber, partilhando com o dogmático a vontade de conseguir
alguma via segura para o conceito, ele também reconhece que todo conhecimento é
provisório, aberto às mudanças mais radicais, tanto no plano físico quanto no
da cultura espiritual. Poderíamos, ousando um pouco, comparar esta atitude de
Diderot ao que ele mesmo diz sobre a paixão dos jovens amantes quando, à beira
de uma árvore, juram amor eterno. Eles não mentem, mas desconhecem que o céu,
com suas nuvens, muda. E com o firmamento, ambos também se transformam. Sua
“eternidade” é real, mas transitória. 58
Mente, com dolo, o religioso que decreta o vínculo inquebrantável de
indivíduos mutáveis. Também no plano do saber, temos a impressão de possuir
conhecimentos sólidos. Isto não é um erro ou mentira. Esta última começa, no
dogmatismo, quando são eludidos os novos elementos, descartando-os por
colocarem em risco sistemas bem ajustados, mas que se revelam falsos. O
filósofo eclético partilha, com o cético, “o antidogmatismo, a recusa das
idéias prontas, a rejeição da autoridade, a liberdade de pensamento....Fazendo
assim, Diderot passou pelo crivo de seu próprio ‘ecletismo’ a imensa logomaquia
das seitas filosóficas, como juiz esclarecido e menos como historiador”. 59
O exercício poético
unido ao ceticismo que impulsiona de modo permanente a atitude eclética,
apresentam-nos uma filosofia que precisa destruir as certezas físicas e morais,
os sistemas científicos e políticos, colhendo o ser humano na sua face ao mesmo
tempo séria e cômica, trágica e gaiata. A sátira não é sermão que usa o
ridículo para ensinar verdades éticas estabelecidas e permanentes. O filósofo
mergulha na humanidade, partilhando com ela alguma certeza, mas abrindo-se ao
inesperado. À fixidez aparente do mundo e das consciências, ele retruca com o
riso e os versos entusiastas, ao modo pindárico. Ceticismo e sátira constituem
um mesmo recurso analítico. Ao contrário do uso que Descartes fez da dúvida cética (ou Pascal, ou
Hegel...), Diderot não a expulsa 60 ,
como não joga fora o riso, para ficar com a seriedade dogmática e bem pensante,
com suas asserções ex hypothéseos. Na
epistemologia, na ética, na estética, na política, com o ceticismo e a sátira,
“ri melhor quem ri por último”
Os
versos de Diderot , nos Eleutheromanes,
parecem o pastiche de Rousseau. “O filho
da natureza odeia a escravidão...Costumes ou caretas do uso, podem bem servir
como veu à ferocidade; uma urbanidade hipócrita, as agilidades de um tigre
preso em sua jaula, não enganam o olho do sábio; e, nos muros da cidade, ele
reconhece o homem selvagem, agitando-se sob os ferros que o garroteiam”. O
traço político desta sátira foi notado pelos seus editores em pleno século 19.
Eles conectam o grito de liberdade do
“homem natural” à recusa da tirania monárquica. Ressalta, na “notícia
histórica” dos Eleutheromanes, o
tema dos reis devoradores de homens. “Naigeon o desenvolveu em 1790, em seu
discurso à Assembléia Nacional : ‘Homero dá aos reis...um título notável ; ele
os chama comedores de povos, populi
vorator rex... e depois cita
Plutarco :’Eu sei que um rei, por natureza, é um animal que se nutre de carne
humana, zôon, ô
basileus, sarcophagon estin “. Nós devoramos como lobos esfaimados, diz o Sobrinho . Neste ponto,os
particulares não diferem dos governantes. O tom hobbesiano da sátira, em Diderot, já foi notado pelos comentadores.
Não irei desenvolver este ítem.O alvo da sua escrita, tanto no Sobrinho quanto em outras críticas dos
costumes, elevam-se ao gênero humano,
colhendo os indivíduos nas mais amplas determinações.Estas ultimas definem
particularidades que vincam um número definido dentro da espécie. A isto o Jean-François chama “idiotismo” de
comportamento e linguagem.
Tecendo
considerações sobre Swift, discípulo de Luciano no século dezoito,Basil Willey
indica um ponto crucial das técnicas satíricas. Nelas, o alvo maior é “nos
enganar fazendo-nos ver coisas efetivas e familiares como se fôsse pela
primeira vez, ou como se fôssemos visitantes de um planeta utópico, ou da
China, da Persia, ou de qualquer outro quartel da razão”. Além disto, trata-se,
para o satirista, de “arrancar o objeto satirizado da sequência familiar que
normalmente o reconcilia conosco,
fazendo-nos vê-lo como ele é realmente em si mesmo, como a criança viu o
imperador despido no conto de Hans Andersen”.
61
Há uma
condição para que o satirista seja bem sucedido: seu texto deve reformular
nossa relação com as coisas. Para isto,
ele as retira da sequência e ordem “naturais”. O inesperado no habitual: dominando esta técnica o escritor nos
espanta, trazendo o caos para o aparente cosmos a que nos habituamos. Willey
une esta força plástica à energia da razão, capaz de colher a incongruência
entre o que parece “normal” e o que de
fato ocorre . A sátira declina quando a
razão perde a hegemonia do pensamento 62 , abrindo o campo para a sensibilidade
apaziguada com o existente. “Shaftesbury, Hutcheson e Hume prepararam a via proclamando
que nossos juízos morais, como os estéticos, não brotam totalmente da Razão”. A
sátira oscila entre aceitar uma situação ou revolucioná-la. Já esta
sensibilidade, sobretudo ao situar-se no íntimo, anuncia a sujeição do homem às
“condições existentes”, mote da política conservadora. “Burke proclamou que ‘a
política deve adaptar-se, não à razão humana, mas à natureza humana, da qual a
razão é uma parte, e não a maior”. 63
Essa
dialética do “sentimento” foi bem colhida por E.Auerbach, referindo-se aos
herdeiros de Rousseau na Contra-Revolução. O que seria “natural” para a gente
educada do Ancien Régime, para Rousseau
era pura falta de sentido. Dele, diz Auerbach, os discípulos que viveram sob a
política romântica “guardaram apenas a
cisão interna, a tendência para a fuga da sociedade, o desejo de se isolar e
permanecer sozinhos; o outro lado da natureza de Rousseau, o lado
revolucionário e combatente, êste eles perderam”. 64 Diderot caminha entre a razão e o sentimento.
A razão dá-lhe a certeza do gênero, com seu modo próprio de ser, o sentimento
abre-lhe perspectivas de crítica aos indivíduos.É difícil estabelecer um balanço de sua real
atitude política. Mas ela é dirigida para a mudança das instituições. Claro,
não se trata de uma revolução nos moldes jacobinos. A sátira diderotiana inclui
o elemento racional e mergulha no caos das paixões. L. Crocker tentou dizer
isto em seu trabalho sobre Diderot. 65 .
Alguns
fenômenos naturais, afirma Crocker, “são manifestamente naturais, especialmente
os mecânicos”.Mas a própria vida não pode ser explicada deste modo. Para
Diderot, “Uma explicação dos fenômenos em termos racionais, como a mecânica
celeste, substancia um universo num processo ordenado. Mas a introdução do
tempo e do devir, do processo de mudança, injeta elementos desordenados —a
evolução dos mundos, a produção de animais e monstros, conduz à conclusão
central de uma ordem da desordem”. 66 A
existência humana foge ao controle de uma explicação totalmente racional. É por
este motivo, segundo Crocker, recusada a utopia. O Sobrinho exemplifica isto. As ações dos outros também estão fora de
nosso império. Frequentemente elas são irracionais e imprevisíveis. Não
dominamos a maioria de nossos atos. Não
subjugamos nosso destino. O escritor não captura seus pensamentos, “suas
rameiras”. Diderot, como Sartre, entendeu que o mundo ordenado esconde
desordens intoleráveis. “O mundo das explicações e razões não é o mundo da
existência”.67 Para o filósofo , “Ordem
e desordem são qualidades complementares da mesma realidade. Esta verdade ele
entendeu, explorou, e aplicou”.68
Eleutheromanes
: poema satírico e báquico. Na política,
para entender a atitude diderotiana, a lembrança dionisíaca é fundamental..
Leitor dos antigos e dos modernos, Diderot captou a doutrina hobbesiana sobre o homem. No De cive, justo no fim do capítulo l2,
há o símile entre o povo que deseja
mudar o governo e as filhas do rei da Tessalia. Aconselhadas por Medéia, elas
cozinharam Eson, após tê-lo decepado, esperando
rejuvenesce-lo. 69 Em carta a
Sophie Voland, lemos que a passagem correspondente à citada por Hobbes é o
único trecho de Ovídio apreciado por Diderot. Nele, Medéia aparece como
“bacante”. 70 Gianluigi Goggi,
discutindo as metáforas de Hobbes e de Diderot sobre Medéia, mostra que se no
primeiro a operação de rejuvenescimento fracassa, no segundo ela é bem
sucedida, no relativo à reforma do Estado.71 .Em Hobbes, a saúde do corpo social e político exclui o conflito. Para
Diderot, ocorre o oposto. Hobbes condena a eloquência. Diderot a exalta. Ela
deslancha a resistência ao poder arbitrário, e liga-se aos movimentos de
revolta e rebelião, recurso dos povos contra os soberanos que romperam o
contrato social “e separam seus
interesses dos interesses da sociedade”.72
As
primeiras linhas da “Epístola Dedicatória”, no
De Cive, mostram os homens do
povo romano como lobos devoradores, que destroem os demais, vivendo, como os
reis, de rapina. Diderot inverteu a imagem, acompanhando o juízo de Catão
repetido em Plutarco: Zôon ô basileus,
sarcophagon estin.A referência ao delírio báquico para descrever o povo, o
elogio da eloquência, a violenta face dos reis, devoradores de povos, tudo isto
faz lembrar que Diderot, leitor das tragédias antigas, soube apanhar a
essencia da invectiva hobbesiana. Ele inverteu o nome do verdadeiro dissolutor da república. Se os reis são como
deuses, como queria Jaime I, e se o deus invocado é Baco, a sátira mostra o despedaçamento da república,
estilhaçando os poderosos que agem ao modo dos tiranos. Dionisio, sublinhe-se,
não é reconhecido imediatamente como poderoso.Sua força explode nas mãos das
mulheres que despedaçam e devoram seus próprios filhos.73 A dilaceração, no Sobrinho, é preparada por outros escritos diderotianos,
especialmente os políticos, na confluência de sua leitura dos antigos e
modernos.74
Elisabeth
de Fontenay indica, no Sobrinho de
Rameau,uma forte crise da razão. A
autora aproxima o elemento báquico e diderotiano do pensamento nietzcheano juvenil , O Nascimento da Tragédia.
O deus, afirma Nietzsche, parece um
indivíduo que erra e sofre.”Ele se parece” avança Fontenay, “ao Sobrinho,este Dionisos sofredor dos
Mistérios, este deus que faz sobre si mesmo a prova dos sofrimentos da
individuação e cujos mitos admiráveis relatam que, menino, ele foi estraçalhado
pelos Titans, e que se venera assim, mutilado e disperso, sob o nome de
Zagreus”.O que mais dá a pensar, analisa Fontenay seguindo Nietzsche, é que o
mito dionisíaco não tardou a perecer.
Logo chegaram os “ Lucianos sarcásticos”. No trabalho de Diderot, os dois momentos, a morte do mito e o
sarcasmo lucianesco, são contemporâneos, “o que autoriza talvez, na leitura do Sobrinho, pensá-lo como um ditirambo gemente oferecido
a esse Dionisos desmembrado que também é um filósofo ‘à venda’”. 75
Encontram-se, nesta citação de Fontenay , os elementos que reuní ao longo dessas primeiras
páginas, sobretudo a passagem do ditirambo, dos Eleutheromanes ao Sobrinho
de Rameau, pela evocação de Luciano de Samosata, autor cujo tratamento do mito
modelou as grandes obras satíricas do mundo ocidental.
1)Relatório da Polícia sobre Diderot, Bibliothèque Nationale, n.a.f., l078l, f.l46.
2) Le
Territoire de l’Homme,Paris,
Albin-Michel, 1978, página 298.
3) páginas 277-278.
4) Texto publicado em Rodgers, G. B. Diderot and the Eighteenth Century French
Press- Studies on Voltaire and the Eighteenth
Century. Editor: Fheodore Besterman. V. CVII, The Voltaire Foundation,
Banbury, Oxford Shine, l973, página 57.
5) Cf. Kempf, Roger, Diderot et le Roman, páginas 106-107.
6) Rodgers, página 76.
7) “Notice sur M. Diderot”. Journal des Gens du Monde, Rodgers, página 236 e ss.
8) Cf. Balcou, Jean, Fréron contre les Philosophes. Genève, Droz, l975, página l36.
9) Do grego “kakos” (malvado) e a sílaba
humorística “couac”. Onomatopéia que busca retratar a pretensa algaravia
filosófica. Carnap não chegou a tanto, na crítica a Heidegger.
10) Balcou, op.cit. página l52.
11) Nouvelle Edition, Revue, Corrigée
& Considerablement Augmentée, A Londres -et Paris- Jean-François Bastien, l779.
12) páginas l05 e ss.
13) página ll2.
14) Princeton, University Press, l993.
15) III,2.
16) Palissot, páginas ll4-ll6.
17) Genève, Droz, l975.
18) Palissot, Oeuvres, ed. cit. T.6, páginas 386-388.
19) têrmo de R. Darton.
20) Palissot páginas l26-l27.
21) Palissot, Oeuvres, ed. cit. T. 6, página 388.
22) Cf.Rétat, P. Le Dictionnaire de Bayle et la lutte philosophique au XVIIIe. Siècle.
Paris, Les Belles Lettres, 1971, páginas 343-344, nota 16.
23) Citado por Rétat, página 345. Note-se
a insistência no tema do palavrório. Retornarei a este ponto.
24) Dissertation sur les Progrès des connaissances
humaines (1755). Rétat, página 346.
25) R. Mortier, “Diderot et le Projet d’une ‘Philosophie
Populaire’ in Revue Internationale
de Philosophie, Diderot et l’Encyclopédie, nº l48, fasc. l-2, páginas l82 e
ss.
26) Mortier, página l95.
27) Testemunhos explícitos de admiração
por autores satíricos, como Swift, são encontrados nos escritos diderotianos,
como por exemplo no artigo “Humor” da Enciclopédia.
Diderot cita o lugar comum, sempre que se trata de Swift: este, “pelo torneio que sabia dar às suas
brincadeiras, produziu às vezes, entre seus compatriotas, efeitos que jamais se
poderia esperar de obras mais sérias e melhor raciocinadas, ridiculum acri,
etc. É assim que ele aconselhou os inglêses a comer com repolhos os filhos dos
irlandeses, fazendo o governo inglês a mudar de atitude, quando este estava
prestes a arrancar os últimos recursos de comércio que restavam aos
irlandeses”. Admiração que vai até a
paródia, ou, mesmo, cópia. O capítulo XL dos Bijoux Indiscrets, “Rêve de Mirzoza” foi tirado da Battle of the Books (l697), publicado
em l704, de Swift. Cf. Dedeyan, Charles. Diderot
et la Pensée Anglaise. Firenzi, Leo S, Olschki Ed. l987, páginas 94-95.
28) Uso a edição A.Ghio, l884 (Édition du
Centenaire).
29) “The
Style of Diderot” in Linguistics and Literary History,Princeton University
Press, l948, páginas l35-l9l
30)
Critica Stilistica e Semantica Storica, Bari, Laterza, l966, página 307.
31) Gèneve, Droz, l986.
32) cit. por Daniel, página 7l.
33) Daniel, página 337.
34) É de muito interesse, neste plano,
ler o artigo “Pindarico” (AT, l6,
páginas 293-294). “O nome de Píndaro não é apenas o nome de um poeta, mas do
próprio entusiasmo. Ele traz em si mesmo a idéia de transportes, separações,
desordem, digressões líricas; entretanto, ele sai muito menos de seus assuntos
do que se acredita normalmente; seus pensamentos são nobres, sentenciosos, seu
estilo é vivo e impetuoso, suas ações são ousadas; mas embora ele pareça, às
vezes, abandonar seu assunto, ele nunca acaba sem a ele retornar... As ousadias
que reinam em suas odes, e sobretudo a irregularidade de sua cadência e de sua
harmonia, fizeram alguns poetas imaginar
que eles tinham feito odes pindaricas, porque seus versos apresentavam o mesmo
delírio”.
35) AT. página 532-533.
36) Rossi, Paolo: Os Sinais do Tempo, São Paulo, Cia. das Letras, l992, páginas
l4-l5.
37) Diderot Homme de Science.
38) Lettre sur les Aveugles, Pleiade,
páginas 8l4-8l5. “A história da filosofia ocidental é a história da vista, da
ideologia dos videntes, a história do geral que se considerou universal,
esquecido de seu solo sensorial e de sua essencial relatividade”.Eric-Emmanuel
Schmitt, “La Question du Sensualisme” in Revue
Philosophique,3/l984, página 373.
39) Rameau, “Lettre au Père Martini”, l759, cit. por Kintzler, página 4l.
40) Rameau, cit. por Kintzler, página 37.
41)
Discours Préliminaire aux Élements de musique. cit por Kintzler, página
207.
42)
Pensées sur l’interpretation de la Nature, xxx.
43) .“Réfléxions sur la Philosophie de
Diderot”, Revue Internationale de
Philosophie, Diderot et l’Encyclopédie, l48-l49, l984, fasc. l-2, páginas
24 e ss
44) N. Merker, “Hegel e lo scetticismo”,
in Le Origine della logica hegeliana.
Cf. Marcelo Gigante, Scetticismo e
Epicureismo,Napoli, Bibliopolis, l98l, página l5.Cf. também Dumont,
Jean-Paul, Le Scepticisme et le Phénomène, Paris, Vrin, l985, páginas 75-79.
45) Niklaus, página 28.
46) Niklaus.
47) Chouillet, J. Diderot poète de l’Energie. , página 30.
48) cit. por Chouillet, página 36.
49) cit. por Chouillet, página 36.
Escreve Diderot: ‘os gritos de Filoteto rasgam as entranhas do espectador’ .
Dando crédito à selvageria, à desmesura do efeito produzido pelas cenas —tanto no fundo quanto na forma— Diderot opõe-se à norma da tragédia clássica
de seus contemporâneos (...) Diderot
fornece igualmente indicações sobre a nova escrita dramática que deve
predominar depois do classicismo”. Szondi,Peter: “Denis Diderot, Theorie et
Pratique Dramatique” in Diderot,Paris,
Comédie Française, l984, página40.
50) Niklaus, página 34.
51) AT, l4, páginas 304 e ss.O artigo
ecletismo, “contem o esboço de um auto-retrato e uma chave de leitura que se
aplica às outras compliações da história da filosofia redigidas por Diderot”.
P. Casini, “Diderot et le Portrait du Philosophe Écletique”.Revue Internationale de Philosophie,
“Diderot et l’Encyclopedie”, l48-l49, l984, fasc. l-2, página 36.
52) AT, l4, 305.
53) Página 306.
54) Porchat Pereira, “Ceticismo e
Argumentação”. Analytica, V.l, l, l993,
página 32.
55) .Diderot, op. cit.
56) Diderot, op. cit.
57) Cf. Mortier, R. Diderot en Allemagne, página 385.
58) Há um comentário importante deste
ponto em R. Niklaus (op.cit. páginas 3l-32) : para Diderot, “O universo, desde
toda eternidade toma formas diferentes num devir incessante sem começo nem fim,
enquanto nosso mundo finito segue lenta mas inelutavelmente rumo ao seu fim
próprio nesta ‘depuração geral’ de que Buffon tinha consciência. O presente, o
passado, o futuro nada mais são do que a soma do mundo que se torna um com a
eternidade.Mesmo para nós, há uma espécie de eternidade. Como ele diz em outro
lugar: ‘Vivo, ajo e reajo em massa...morto, ajo e reajo em moléculas”. (Lettre
a d’Alembert)”. “Que sequencia prodigiosa de gerações de efêmeros atesta nossa
eternidade! Que imensa tradição! Mas nós todos passaremos, sem que se possa
assinalar nem a extensão real que ocupamos, nem o tempo preciso que tivermos
durado. O tempo, a matéria e o espaço talvez sejam um só ponto”. Lettre sur les Aveugles, Oeuvres
Philosophiques, ed. Vernière, página l24.
59) P. Casini, “Portrait d’un Philosophe
Écletique”, página 45.
60) Cf. Schwarts. Jerome. Diderot and
Montaigne. Genève, Droz, l966.
61) ‘Nature’
in Satire’, in The Eighteenth
Century Background, Studies on the Idea of Nature in the Tought of the Period.Boston,
Beacon Press, 1961, páginas 95-109
62) Páginas 108-109
63) página 109.
64) Mimesis,The representation of reality in Western Literature, trad.
Trask,W.,N.Y., Doubleday l957, página 412.
65)
Diderot ‘s chaotic Order.
66) páginas l5l-l52 .
67) página l68.
68) página 169.
69) Hobbes, Opera Philosophica, Vol. II, Scientia Verlag, Second Reprint, l966, página 296.
70)
Metamorfoses, Livro VII.258.
71) ”Diderot
et Medée dépeçant le viel Éson” in Colloque
International Diderot l7l3-l784,Chouillet, AnneMarie, Paris, Aux Amateurs
de Livres, l985, páginas l73 ess.
72) Goggi, página l80.
73) Otto, W. “A Tenebrosa Demência”, in Dionysos,Paris, Mercure de France,
l969; Jeanmaire,H. Dionysos, Paris,
Payot, l985; Daraki. M. , Dionysos,
Paris, Arthaud,l985.
74) Do lado doutrinário, há homologia
entre esta atitude diderotiana face ao despedaçamento dionisíaco e a sua
percepção, marcada por um forte sentido epicurista redimensionado para as
ciências modernas, da existência humana.
“O homem enquanto organização efêmera, não escapa à lei geral da dissolução,
algo nele sempre subsistirá : as moléculas de que é formado”.Chouillet,
Jacques, Diderot, Poète de l’Energie,página
24l. Como a bacante Medéia, a natureza
nos corta e recorta, sempre rejuvenescendo.
75) Fontenay, Diderot ou le Materialisme enchanté.
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Luciano
e Diderot: algumas aproximações
O nexo entre Diderot e Luciano tem sido
afirmado por vários autores, embora a maior parte deles insista no peso maior
do relacionamento entre o sírio e Voltaire. Tal é o caso de Ernest Renan : “Luciano foi a primeira aparição desta forma
do gênio humano, encarnada
completamente por Voltaire, e que, em muitos aspectos, é a verdade (...).
Luciano nos aparece como uma sábio perdido num mundo de loucos. Ele nada odeia
e ri de tudo, menos da virtude séria”. 1 C. Robinson fala sobre a recepção de
Luciano na Europa sem aprofundar as relações entre ele e Diderot. Suas análises
sobre as influências lucianescas nos séculos dezessete e dezoito, entretanto,
deixam claro que o solo estava preparado para o trabalho do enciclopedista. 2 Em dissertação mais
extensa, dedicada à presença de Luciano na literatura das Luzes, Ludwig Schenk
atribui todo um capítulo aos vínculos entre os dois. Schenk não analisa o Sobrinho, mas apresenta alguns prismas
estratégicos dos textos diderotianos, e da própria figura de Diderot, que
auxiliam bastante a reflexão sobre o diálogo entre “Eu” e “Ele”. 3
Comparando
os escritores, o homem das Luzes e o sírio, Schenk indica pressupostos
comuns que fazem de Diderot “um
Luciano moderno”. A semelhança principal
entre ambos é de ordem estilística e psicológica : Diderot pensa e escreve
como Luciano, usa com agilidade a forma
dialógica, reúne a prodigiosa e turbulenta diversidade de suas idéias e
sentimentos, domina a técnica do improviso.Todos estes traços, já vimos,
encontram-se nos Eleutheromanes :
fluidez, idéias e sentimentos personificados em figuras que se sucedem numa
turbulência dionisíaca, onde a fala sugere a improvisação dialógica.
Outra
semelhança, aponta Schenk, é a tentativa livresca de recolher todos os
conhecimentos de seu tempo e da cultura humana. Em Diderot e Luciano
encontramos filosofia, literatura, arte, política, história, ciência, tudo o
que seu temperamento e engenho pudesse adquirir. Os dois escritores possuem o
talento do grande jornalista, divulgador e crítico.O seu racionalismo comum
conduz à uma afinidade interna na produção de textos como o Asinus, ou a Verae Historiae lucianescos e Tiago,
o Fatalista. Notável também, nos dois letrados, a presença simultânea dos
sentidos, implicando a música,a pintura,
a dança.
Apesar
desses “belos paralelismos”, afirma Schenk, “Diderot não é um lucianista, como
também não o é Voltaire”. Na obra inteira de Diderot não encontraríamos nenhum diálogo cuja forma, motivo, estilo,
tivesse o modêlo estrito de Luciano. Os exemplos mimetizados por Diderot seriam
os diálogos inglêses, especialmente os de Shaftesbury e Berkeley. Diderot,
entretanto, partilharia do lucianesco sarcasmo contra os mitos, conforme a fala
de Nietzsche : passado o dionisismo, “o mito fenece, suas folhas caem, e logo
chega a vez dos Lucianos sarcásticos da antiguidade, correndo atrás das folhas
descoloridas e mortas que voam pelos quatro ventos”. 4 O trecho que Schenke
indica, em 1931, é o mesmo que E. Fontanay cita. A virulenta dessacralização aproxima Diderot de Luciano. Para o primeiro, à maneira do segundo, todos os deuses tornam-se risíveis,
disto resultando o ateísmo das Luzes e a
anarquia espiritual, como seu último extremo.5
Se
não identifica um diálogo de Diderot
cujo modelo seja de Luciano, Schenke aponta a ordem e a qualidade das citações
lucianescas, notáveis em vários trabalhos do enciclopedista.Nelas, ressalta a
temática do cinismo e do estranhamento
entre scitas e gregos. Em Luciano, como veremos, o scita aparece como alheio ao
ethos da cidade grega, formulando perguntas que embaraçam um filho de Atenas,
indicando o quanto a paideia ,
julgada “natural” pelos helenos, era muito questionável. Discutirei isto mais
abaixo. Sigamos as citações de
Luciano em Diderot.
No dicionário
de filosofia recolhido nas Obras de
Diderot, editadas por Assezat 6 , na
voz “Cínicos”, Luciano é unido a Menipo
de Gadara, modelo literário e seu
“herói em moral”. Diderot também refere-se aos
cínicos Demonax e Peregrinus e resume,
com economia de palavras, as suas vidas : “Demonax viveu sob Adriano,
e serviu enquanto modelo para todos os
filósofos ...ele praticou a virtude sem ostentação ... e recriminou o vício sem
acidez ; ele foi ouvido, respeitado, e acarinhado durante sua vida, e preconizado
pelo próprio Luciano após sua morte”. Notemos, no retrato de Demonax feito por
Luciano, alguns traços que integram, sem
dúvida, os escritos satíricos e “sérios” de Diderot.
A primeira
marca de nosso Demonax é sua liberdade e fala sem peias. Demonax não se prende a uma ou outra escola
filosófica, mas “combina muitas delas,
nunca revelando qual é a sua favorita”. O termo para esta atitude,
no século dezoito francês, é “ecletismo”. ”Um homem perguntou-lhe qual escola
filosófica ele preferia, Demonax replicou: ‘ quem disse que eu sou filósofo?’ Quando o homem se
foi, Demonax caiu na gargalhada.
Favorinus perguntou-lhe do que estava rindo, respondeu: ‘parece-me
ridículo pensar que um filósofo possa
ser valorizado por sua barba, se você mesmo não tem uma”.7 .Acentua-se o
caráter moral, a livre maneira de ser e falar, o riso e o ecletismo deste
filósofo cínico —que espantava as
pessoas ironizando sua condição de filósofo sem dogmas. Finalmente, nota Luciano, Demonax
“ tinha ... muito em comum com Sócrates, embora não partilhasse sua ironia :
sua fala era cheia de encanto ático”. 8
A esse
pensador risonho, severo para com os
costumes mas benevolente face aos que erravam, Diderot compara outra figura biografada por Luciano, o desregrado Peregrinus, o qual “iniciou
cometendo adultério, depois foi pederasta e parricida, terminou como ‘cínico’,
cristão, apóstata, e louco. O seu ato mais louvável, durante toda a sua vida, é
se ter queimado vivo ; julguemos, por ele, as demais”. Sem avançar aproximações
difíceis, seria interessante discutir o dualismo dos personagens. O
primeiro é tido por Diderot como eclético, aberto mas sempre idêntico a si
mesmo. O segundo nunca é igual a si
mesmo, assumindo todos os papéis éticos e morais condenáveis. Ambos podem fornecer materiais para se construir um “Ele ” e um “Eu”, no Sobrinho de Rameau. O moralista Demonax
se identifica com Sócrates, ícone preferido de Diderot na filosofia grega, ao
contrário de seu ex-colaborador na Enciclopédia, Rousseau, cuja preferência vai
para o autor da República. Quanto a
Menipo, Diderot, no texto citado, diz que ele “tornou-se mais recomendável pelo
gênero de escrita ao qual ligou seu nome, do que por seus costumes e sua
filosofia”. A referência admirativa ao
gênero e à técnica literária mostra a
afinidade entre Diderot e Menipo.
Outro
aspecto importante o tema scita em Diderot, a partir de Luciano. O “motivo
scita” surge em Luciano em três textos estratégicos: no Anacharsis seu de Gymnasiis, no Toraxis sive Amiticia, e no Scytha
seu Hospes. Diderot discute as figuras de Anacharsis e de Toraxis no Dicionário Enciclopédico, no artigo
“Gregos”, ao discutir Solon.9 O tema também aparece no artigo “Scitas”.10
Este povo, egresso da natureza, sem leis, sem padres, sem monarcas, sente-se
tão feliz quanto o grego, desenvolvido
culturalmente. Diz por exemplo Schenk: Diderot, de um modo caçoísta faz o pastiche de Rousseau: “Ora! a
ignorância dos vícios seria preferível ao conhecimento da virtude, e os homens
tornar-se-iam malvados e infelizes na medida em que seu espírito se aperfeiçoa
e que os simulacros da Divindade diminuem entre eles?”.
Tal fio
condutor acompanha a produção do Sobrinho
de Rameau. Neste ponto vou adiante das análises apresentadas por Schenk. O
personagem “Ele”, Jean François, é
lídimo fruto da cultura, sua natureza, por assim dizer, é cultural. Este
personagem conhece as noções de vício e virtude, até mesmo as estuda nos
autores morais para aperfeiçoar sua prática cínica e cética.”Digo corrupto, é
para falar a sua linguagem ; porque se nos chegássemos a explicar, poderia ser
que o senhor chamasse vício o que eu chamo virtude, e virtude aquilo que chamo
vício”.11 No mundo refinado onde a lei é feita
para ser eludida, onde se fala em virtude para melhor praticar vícios
(as Ligações Perigosas exemplificam tal modo de ser ) surge a estranheza que fez
brotar o elogio do “homem natural”.Deste último, entre muitos personagens, o
scita é representante. Uma desordem escondida é pior, para Diderot, do que o
caos explícito. Somando os benefícios e
os malefícios do confronto entre os civilizados gregos e os “bárbaros” scitas,
Diderot arremata: “prefiro um crime
atroz e monentâneo do que uma corrupção policiada e permanente ; um violento
acesso de febre, do que as manchas da grangrena”.12
Retomemos o
nosso problema, a partir do que dissemos sobre os Eleutheromanes e a devoração dos súditos pelo rei. Dissemos
que os indivíduos fazem uns contra os
outros o que os soberanos realizam contra os povos.Passamos para o tema do
envelhecimento do corpo republicano, com o remédio encontrado por Diderot na
figura de Medéia despedaçando o sogro, tentando rejuvenescê-lo. O modo ideal
para renovar a política é o despedaçamento, cruel mas necessário, para deter a
morte do Estado. Esta atitude conecta-se ao dionisismo dos Eleutheromanes, à sua concepção de conversa e verso, no
ditirambo. Com o tema scita, Diderot
prefere um estado de inculta violência ao de refinada selvageria . Esta última
é “grangrena” que anuncia morte. A força que faz o “bárbaro” despedaçar a si
mesmo e ao seu próximo, num furor repentino, traz vida.O tema scita ocasiona
uma análise da cultura “superior” européia, nos moldes das interpretações
vigentes também na filosofia de Rousseau, mas com sentido oposto.
O ícone
scita ocasiona uma análise da cultura
“superior”. A sociedade letrada e polida é criminosa como outra qualquer, mas
sabe usar a fala e a máscara para inverter os nexos reais. Onde reina a
violência pura, ela se mostra
“espiritual”. No artigo “Sociedade”, Diderot afirma que as aglomerações
humanas “ sutilizaram os vícios, refinaram a arte do crime; daí vem o fato de que enxergamos
frequentemente, em nações policiadas, atentados dos quais não encontramos
similar entre os selvagens. Os gregos, com toda a sua polidez, com toda a sua
erudição, e com toda a sua jurisprudência, não adquiriram a probidade que a
natureza, sozinha, fazia reluzir entre os scitas”. Schenk aponta para um influxo real dos problemas
discutidos no Discurso sobre as Ciências
e as Artes nestas linhas, e não só para riso ou caçoada do indivíduo “Eu”. No Sobrinho , é preciso ir adiante de
Schenk, temos a figuração da cultura que
traz em si mesma um lado “bom” —a
superfície que parece até meio óbvia— na fala do “homem honesto”, enquanto “Ele” é
o refinamento no exercício da canalhice, insuportável para as relações
“normais” entre os homens. Há uma regra jurídica universal que diz não ser
permitido a ninguém alegar a própria torpeza. E se Jean-François Rameau fosse
um expediente, utilizado pelo “moralista”, para atingir seus alvos reais? O
homem da natureza, o desigual, o que não pode ser livre, ou seja, “Ele”, como
os scitas, brota diante da consciência honesta, desarrumando esquemas e
desculpas.
“Pintar
como se falava em Esparta”. A frase, lida nas Pensamentos Dispersos sobre a Pintura 13
contrasta com a catadupa de
palavras, frases kilométricas, períodos enormes de Diderot, no Sobrinho. Alí, enunciados curtos
interrompem longas digressões, quase todas na boca do artista sem obras.Como
analisa Schenk, um estilo deste tipo encontra-se em Luciano, nos seus exames de quadros e nos seus
relatos, breves e completos. Este ponto
une a escrita decorosa e a forma
escritural de Luciano. Comentando o trabalho de Poussin, “O testamento de
Eudamidas”, Diderot usa a técnica por ele apreciada em Luciano e no pintor
francês. Nas poucas linhas dedicadas ao quadro, Diderot apanha o motivo em sua essencia, a estrutura artística
que tem diante de si. A pintura evoca um
homem digno e pobre que lega sua mãe e irmã a dois amigos ricos e poderosos.
Nesta cena da morte, retratada por Poussin, pergunta Diderot, “quais são os
acessórios? Nenhum , só a espada e o escudo do personagem principal, pendurados
no fundo”.
Luciano
emprega o mesmo número de linhas para
contar a história exemplar de Eudamidas sobre a amizade. Há, em seu texto, um
elemento silenciado por Diderot, e não visível imediatamente em Poussin. A
história de Eudamidas possui dois lados, um sério, quase sublime, e outro ridículo,
dependendendo de quem a escuta. O legado pareceu ridículo aos que desconheciam
a amizade entre Eudamidas, Charixenus e
Areteus, os dois últimos sendo os
“herdeiros” inusitados. Muitos consideraram a história uma brincadeira risível.14 . Este traço da história não
foi pintado por Poussin, mas Diderot nota ser ele o contraste que produz, no quadro, o choque
gerador de sua força sublime. Luciano enuncia a inversão real na história dos amigos : o que para eles é
serio, parece risível para os não iniciados nos segredos da sua amizade.
Diderot traduz genialmente este antagonismo para a pintura de Poussin,
enunciando o problema ético em termos estéticos: “O silêncio, a majestade, a
dignidade da cena são coisas poucos sentidas pelos observadores comuns”.
Voltarei a este prisma da sátira, que usa o duplo efeito causado no choque
entre o que é ridículo na existência, e o seu lado sério, e vice-versa.
O último
ponto levantado por Schenk na afinidade
entre Luciano e Diderot, situa-se num prisma fundamental do Sobrinho : a pantomima. Diderot
escreveu coisas fundamentais sobre esta arte nos Conversas sobre o Filho Natural, em Eu e Dorval , na segunda “Conversa”.Um elemento importante, é ter
ele feito a citação de Luciano sem indicá-lo diretamente. “Nós perdemos uma
arte, cujos recursos os antigos conheciam bem. A pantamomima desempenhava
outrora todas as condições, os reis, os heróis, os tiranos, os ricos, os
pobres, os habitantes das cidades, os do campo, escolhendo em cada estado o que
é mais próprio; em cada ação, o que é
mais notável. O filósofo Timócrates que assistia certa vez este espetáculo, do
qual a severidade de seu caráter sempre o havia afastado, dizia : ‘Fui privado
deste espetáculo pelo meu pudor!’.Timócrates tinha uma vergonha prejudicial ; ela privou o filósofo de um grande
prazer”.15 A passagem de Luciano, não
citada explícitamente por Diderot, nem discutida por Schenk, encontra-se em De Saltatione.16
O trecho
diderotiano que vem logo a seguir, na “Conversa”, também foi extraído de Luciano, ainda no De Saltatione.O cínico Demetrius, que atribuía todo o efeito da
representação aos instrumentos, às vozes, à decoração, mudou de juízo quando
ficou diante de um pantomímico que lhe disse “Só me olhe desempenhar ; e diga,
depois, de minha arte, o que você quiser”. Arremata Diderot: “As flautas se
calam. A pantomima inicia.Grita o
filósofo num transporte : ‘Eu não te vejo apenas; eu te ouço. Tu falas com as mãos’”.
17 No texto de Luciano, também desta
vez, aparecem elementos poupados por Diderot em seu escrito, mas que podem ser
preciosos numa aproximação entre o escrito lucianesco e o Sobrinho. No trecho correspondente ao citado, o pantomimico não
apenas “fala com as mãos” mas, após o silêncio das flautas e do coro, “ele
dançou os amores de Afrodite e Ares (...) Hefaístos agarrando-os na armadilha,
os deuses que chegaram até eles retratados individualmente, Afrodite
envergonhada, Ares buscando cobertura e implorando piedade, e tudo o que
pertence à história (Odisséia, VIII,
266-320)”.18 Só após esta passagem pelos gestos proteicos do artista chega
Luciano à sua garrulice manual .
É possível
ser eloquente sem a lingua falada. O
ator realiza este feito 19 . Diderot,
na Carta sobre os Surdos e os
Mudos foi mais longe, buscando no próprio exercício comunicativo dos surdos
e mudos os elementos para a compreensão da estrutura e da gênese da fala, com
sua retórica e sua poética. O método proposto segue a via do ceticismo
fundamental. Um mudo ou surdo não tem preconceitos sobre a lingua falada. Ele
está próximo à natureza, sendo uma imagem dos homens fictícios, empregados
bastante, de Montaigne até o século l8, sob o título de “selvagens”.20
Trata-se
de propor uma tradução da lingua gestual para a oralidade 21 , não salvar
apenas o sentido e o pensamento, mas
fazer a ordem dos signos da
tradução corresponder fielmente aos
gestos do original. Com este recurso, poder-se-ia substituir os gestos pelo seu
equivalente em palavras. Isto, “porque
existem gestos sublimes que jamais a eloquência oratória poderá traduzir” . A
senhora Macbeth, na peça de mesmo nome, caminha silenciosamente com os olhos
fechados, imita a ação de uma pessoa que lava as mãos, como se elas estivessem
ainda manchadas pelo sangue do rei degolado por ela há mais de vinte anos. “Não
conheço nada mais patético do que o silêncio e o movimento das mãos desta
mulher”. O mímico descrito por Luciano, e assumido como exemplo por Diderot,
parolava com as mãos. A senhora Macbeth
fala com estes instrumentos corporais. O gesto vence o discurso. O
elogio da energia gestual encontra-se também no Discurso sobre a Origem da Linguas. Rousseau, entretanto, dá a
entender que tal força desapareceu gradativamente da comunicação humana.22 Diderot, amigo do teatro e da técnica,
considera que esta capacidade, eminentemente cultural, pode ainda ser aprendida
e reproduzida, como toda e qualquer modificação do espírito.
A passagem
pelo outro —o cego, o surdo, o mudo— ajuda o homem de bom gôsto a ampliar,
refinando-os, os seus dotes estéticos. Diderot
costumava assistir peças de teatro com os ouvidos tapados, para que a
linguagem dos gestos lhe mostrasse, no desempenho dos artistas, todos os seus
acertos e defeitos. Também a crítica da pintura
aproveita este artifício. Quem passeia por uma galeria de quadros, diz
ele na Carta sobre os Surdos e Mudos,
realiza, sem pensar nisto, o papel de um surdo que se divertiria ao examinar
mudos que se entretêm sobre assuntos que lhes são conhecidos. É com esta
técnica, confessa Diderot, que foram vistos por ele os quadros dos Salões.
“Considerei que se tratava de um meio seguro para reconhecer as ações
anfibológicas e os movimentos equívocos”.
“Pintar
como se falava em Esparta”. A linguagem
dos gestos, a mímica e a pantomima, ajudam a encontrar o decôro próprio ao
laconismo, a eloquência exata para persuadir e encantar sem garrulice e
indiscreção.”Como um pintor mostra-me suas figuras na tela...é preciso silêncio
no quadro”, escreve Diderot a Madame Riccoboni.23 O decôro integra a metodologia que exige o
ceticismo, contra as afirmações dogmáticas que não examinam os seus próprios
erros. A análise da linguagem, via gestos, ajuda a diminuir as
anfibologias e demais equívocos de comunicação.24 Na escrita
depositamos nosso modo de pensar : “não sei se podemos ajuizar de modo
sadio sobre os sentimentos e os costumes de um homem através de seus escritos;
mas creio que não correríamos o risco de nos enganar sobre a justeza de seu
espírito, se o julgássemos pelo seu estilo ou melhor, pela sua construção... Vi
que todo homem, do qual só se poderia corrigir as frases refazendo-as
completamente, era uma pessoa da qual só poderíamos reformar a cabeça dando-lhe
uma outra”.
A alma pode
ser comparada à música: o juízo é a formação dos acordes e o discurso constitui
a sua sucessão. O som que une um juízo ao outro, seria o traço dedutivo
.25 Mas ela também pode se aproximar de “um quadro movente, segundo o qual pintamos
sem cessar : empregamos bom tempo para traduzi-lo com fidelidade: mas ele
existe, íntegro e totalmente simultâneo:
o espírito não caminha passo a passo como a expressão. O pincel só executa, em
longo prazo, o que o olho do pintor abarca num só golpe. A formação das linguas
exigia a decomposição; mas ver um objeto, julgá-lo belo, experimentar uma
sensação agradável, desejar a sua posse, é o estado da alma num mesmo
instante”.
Notamos
dois momentos no método filosófico mencionado acima : o primeiro desfaz
analiticamente o todo anterior. O segundo mostra a sincronia conquistada pelos
homens. Esta sincronia é precária e por isto a alma está sempre pintando e
sempre tendo a ilusão do repouso. A música e os versos dão o ritmo desta
mudança perpétua. A pantomima passa da pintura à música, e vice-versa,
mimetizando o silêncio da primeira e sugerindo todos os sons e harmonias da
segunda. Nestas passagens, que implicam ao mesmo tempo dados estéticos, morais, políticos e psicológicos,
Diderot elabora a famosa arte das relações, base no seu entender para a teoria
do belo. Não há exagero em se afirmar que muitas doutrinas sobre a beleza, como
a de I. Kant, dependem, pelo menos em plano inicial, deste arranjo diderotiano
entre os sentidos. 26
Segundo
Béatrice Didier, a solução mais inovadora de Diderot no Sobrinho é a de “mimetizar a linguagem musical por um personagem,
para que ela seja ouvida através do texto. É preciso, ainda, que a linguagem
literária se torne capaz de traduzir a linguagem do mimetizador, o qual serve,
então, de ligação.Todo o problema da
representação no interior da obra literária
encontra-se posto deste modo.Parece mais fácil dar conta das imagens
plásticas do que da própria música”. Não se trata, adianta Didier, de mimetizar
um instrumentista. O gesto do Sobrinho
pode sugerir o caráter do trecho e mesmo sua estrutura musical:”Sua voz se
expandia como o vento e seus dedos voltejavam sôbre as teclas, ora deixando o
alto para tocar no baixo, ora deixando a parte de acompanhamento para voltar ao
alto”. Isto, para a estrutura. No que
tange ao caráter,”as paixões se lhe sucediam no rosto; distinguia-se a ternura,
a cólera, o prazer, a dor ; sentiam-se os piano, os forte, e estou certo que
alguém mais hábil do que eu reconheceria o trecho pela vivacidade, pelo
caráter, pelas expressões e por algumas frases de canto que lhe escapavam de
vez em quando”. A música, comenta
Didier, não pode ser expressa totalmente no texto, a não ser pela teatralização do gesto. Com isto,
Diderot faz ver e faz ouvir música. E, em contrapartida, o texto literário
também colabora na descrição do gesto.
“Em toda esta pantomima existe uma sonorização do gesto pelas palavras, do
gesto que, por sua vez, só tende a exprimir o som cujo misterioso complemento é
o silêncio”.27
Se passarmos
ao Sobre a Poesia Dramática, no
capítulo 21 (“Sobre a Pantomima ”), veremos que Diderot “pinta” a morte de
Sócrates com esta técnica artística: “Mas agora tenho vontade de esboçar os
ultimos momentos da vida de Sócrates. É uma sequência de quadros que
testemunharão a favor da pantomima mais do que tudo que eu pudesse
acrescentar”. 28. Após estas as cenas, onde Diderot exibe os últimos momentos do moralista, lemos no mesmo escrito: “Eis as
circunstâncias a serem empregadas.Podeis
dispô-las como vos aprouver, mas conservai-as. Tudo o que colocásseis em
lugar delas seria falso e de nenhum efeito”.29
Temos aí as exigências de decoro
apresentadas na análise sobre Poussin no testamento de Eudaminas. Não por
acaso, Diderot menciona, logo a seguir,
o mesmo patético que rege o fim de Sócrates, por ele imaginado, e a pintura de
Poussin.Poucas palavras, gestos expressivos, “pintar como se falava em
Esparta”.
O
pantomímico, na expressão de Luciano, “parola com as mãos”, expressando individualidades divinas e suas
paixões. O mesmo tipo de artista expõe cenas patéticas, trágicas, sublimes, no
entender de Diderot. Sátira, pois, de fio duplo, sério e risível, recolhendo
elementos que se condensam no Sobrinho.30 Este último “fala” com o corpo inteiro, compondo
quadros expressivos que deixam a linguagem oral em desvantagem.31 Ele não só expõe figuras individualizadas com
sua pantomima, como sugere a própria
música, mimetizando instrumentos, sons, etc. Bavard em todos os sentidos, Jean-François resume na sua face traços
dispersos em vários trechos da escrita diderotiana e lucianesca. O elemento da
fala gestual, e do palavrório unido à lisonja, permite-nos entrever, na sua
fatura, não apenas Luciano, mas também Plutarco.
Poderíamos
lembrar, desde já, a força de Luciano na formação de Jean -François enquanto
figura, pelas passagens onde o mímico exibe toda sua eloquência na arte da
música.”...ele põe-se na posição de um violinista...o braço direito imita o
movimento do arco... se tira uma nota falsa, pára e ajusta ou afrouxa
acorda...Estava convencido de que os acordes ressoavam aos seus ouvidos e aos
meus”. No cravo,”as paixões se lhe sucediam no rosto; distinguia-se a ternura,
a cólera, o prazer, a dor”. 32 Antes de entrar numa discussão mais direta sobre
a estrutura da sátira lucianesca, para depois acrescentar o que, nos textos de
Plutarco, teria sido extraído para compor a face do Sobrinho,vejamos como dá-se o juízo de Diderot sobre o próprio
Luciano. Este julgamento é importante na mesma busca de elementos que formam o
personagem “Ele”.
Schenk, na
obra que venho acompanhando, e da qual retiro férteis aproximações sem
concordar com suas teses básicas, afirma categoricamente que não há influência
direta de Luciano sobre Diderot, e que o abalo inicial para qualquer uma de
suas obras não vem do satírico de Samosata. Além disto, diz ele, Diderot não
conhecia Luciano nos textos originais, mas só
a partir de traduções . Certo desconhecimento é patente, como prova Schenk,
em Diderot, sobre os fundamentos doutrinais assumidos por Luciano . Mas é difícil extrair a consequência de que
Diderot não recebeu nenhuma inspiração dos textos e das técnicas plásticas de
Luciano, sobremodo no campo da sátira. Em quase todos os casos citados por
Schenk, onde há paralelismo entre um texto de Luciano e outro de Diderot, o
mesmo Schenk deixou na sombra a essência do trecho. Como vimos ao comentar a
pantomima, se Diderot aproveitou o De
Saltatione, o fez justamente nas passagens onde Luciano coloca o
pantomímico “pintando” as paixões...dos deuses. A “influência” não está apenas
na arte da pantomima, mas no uso refinado que dela fez Diderot, tanto na sua
estética da pintura, no comentário sobre
Poussin, no desenho de Jean-François, com sua força plástica para exprimir, na
música mimetizada, as paixões humanas.
O juízo
sobre Luciano é eloquente, quando pensamos nos motivos do Sobrinho, texto onde se embaralham com
maestria insuperável moral e imoralismo, razão e loucura, decoro e pouca
vergonha . No Plano para uma universidade, Diderot afirma que Luciano seria um
autor ideal para a juventude.”Mas ele é ímpio, mas ele é sujo, devemos escolher
entre seus diálogos”. No encarregado de escrever a ratio sudiorum de
uma universidade em país cristão —e
como!— seria surpreendente encontrar o
elogio de Luciano. Mas no autor das Jóias
Indiscretas e do Sobrinho, o vício lucianesco torna-se
virtude. Alí, o elogio ruma para o “Luciano elegante, o engenhoso e agradável
Luciano”.33 Por que não valeria para o juízo de nosso autor sobre Luciano, o
mesmo elogio que ele endereça a Epicuro? “Todos os filósofos de seu tempo
parecem ter conspirado contra os prazeres dos sentidos e contra a volúpia :
Epicuro assumiu sua defesa, e a juventude ateniense, enganada pela palavra
volúpia, correu para ouví-lo...”34
Luciano
sujo? Luciano ímpio? Seria preciso pouquíssimo conhecimento de Diderot e do
século 18, para aceitar estas afirmações com seriedade. Pelo menos, elas não
concordam com a própria biografia do escritor que, em companhia de D’Alembert,
entrava nos cafés para escandalizar as pessoas, tendo antes combinado com seu
amigo quem representaria o crente a ser esmagado pelo racionalista...até que a
polícia os ameaçou com uma segunda
estadia em Vincennes...Sobretudo, ela não concorda com o escritor que escreve,
em l76l, a Sophie Volland, unindo os temas da sublime amizade—num tom
seríssimo— e o elogio do libertino. Citarei os dois trechos da missiva, já
conhecidos fartamente pelo leitor, para deles deduzir algumas consequências no
que tange aos nexos entre Diderot, Luciano , Plutarco.
Como obter
um amigo? Como discernir o amigo? Há dois modos:”alguns devem-se à nossa
escolha; é a estima, a virtude, a conformidade de caráter, tudo o que inspira o
respeito, a confiança, a veneração, tudo o que constitui a simpatia entre
pessoas honestas, que nos liga a eles. São dois instrumentos que a natureza
afinou em uníssono.Eles encontraram-se um junto ao outro; as cordas do primeiro
foram dedilhadas, e as cordas do segundo fremiram.Eles sentiram ao mesmo tempo
a doçura intima e deliciosa deste frêmito; eles
aproximaram-se, tocaram-se, uniram-se: isto ocorreu num instante.
Existem amigos que nos são dados pelo acaso”.
Neste plano, toda a moral define-se enquanto harmonia e música perfeita.
Entre os dois amigos, poderíamos dizer, ou na sua aproximação, temos o baixo
fundamental, princípio matemático e necessário, cuja racionalidade é mais do
que evidente.
Mas existe
o amigo produzido pelo acaso. Vemos, nesta fresta, os temas nucleares dos Dois amigos de Bourbonne e de Tiago, o Fatalista. Morais ou bandidos,
os homens experimentam amizade uns pelos outros, a razão responde apenas em
parte por este vínculo.O acaso preenche o intervalo.”Voce cai no fundo de um
rio, um celerado põe-se a nadar e conserva a sua vida, arriscando a dele. Eis,
senão um amigo, pelo menos um benfeitor que a circunstância lhe oferece. O que
você faria deste homem ? Seu caráter
será um obstáculo para você ; mas isto lhe eximirá do reconhecimento ?
Mesmo supondo que, aborrecido com a vida, você tivesse se jogado no rio. Ele
não sabe que você queria morrer, e, porque o ignorava, permaneceria como
observador vadio e tranquilo do seu risco? O que fez o seu pai por você ?
Compare com o que fez este celerado. Seu feito está bem acima do necessário.
Acrescente o resto...”.
Com essas
linhas, Diderot discute uma longa tradição filosófica no tratamento da amizade.
Desde Platão até Plutarco, chegando a Erasmo e Montaigne, o assunto foi sempre
estratégico na análise dos nexos entre as coisas e os homens. Só isto bastaria
para olhar de outro modo a dialética entre
o “Ele” e o “Eu” do Sobrinho.Mas
há mais na carta de Diderot. O passo seguinte, a indistinção absoluta entre o
ser moral e o imoral, lança sobre o tratamento das virtudes, em Diderot, uma
luz que, reconheçamos, é muito própria de seu tempo, a era das Ligações Perigosas e de Sade.Novamente
cito o trecho muito conhecido do leitor, mas estratégico para indicarmos o
quanto as leituras sobre o Sobrinho,
as que dividem os personagens em “bom” e “máu”,
violentam o pensamento e a técnica expositiva de Diderot. Entre a base
matemática e musical, harmônicas, e o acaso caótico, surgem seres que ao mesmo
tempo possuem para sua existência uma explicação perfeitamente racional, e uma
outra, alheia ao “bom senso”.
O trecho
adiante traz um forte sabor de Mandeville, com seus paradoxos entre os vícios
privados e as virtudes públicas e vice-versa. O choque entre ordem coletiva e
desordem pessoal, entre fins conflitantes
definindo vantagens “loucas” no
entender do raciocínio “sadio”, tudo isto
surge na Carta a Volland :”Os
libertinos são bemvindos ao mundo porque eles são inadvertidos, alegres,
prazenteiros, dissipadores, doces, complacentes, amigos de todos os prazeres”.
Note-se a forma da frase: o “porque”, uma fórmula que “normalmente” anuncia sequência “racional”, traz uma série de afirmações com estrutura
idêntica ao auto-elogio da loucura, na pena de Erasmo.
Essa última
aproximação é mais do que casual. Há um trabalho recente de Apostolos Kouidis
sobre as relações entre Erasmo e
Diderot, especialmente ao redor do Sobrinho.Kouidis
levanta as vezes em que “louco” e “tolo” aparecem no texto diderotiano: 46
vezes. “Loucura” e “tolice” surgem l8 vezes. Soma-se a esta lista a ocorrência
de “bufão”, “original”, “singular”, “estranho”, etc. A tese de Kouaidis
aproxima-se da que venho perseguindo: a
“realidade”dos personagens teria afastado a crítica dos modêlos literários, da
grande corrente satírica à qual deve muito tanto o autor do Sobrinho quanto o artífice do Elogio
da Loucura.
Kouidis analisa o artigo
da Enciclopédia, onde é dito
que existe”loucura em tudo condenar, como em tudo aprovar”.(“Loucura”). Diderot leu Erasmo, pelo menos é o que se
depreende do Salão de l767, quando
se analisa o trabalho de Renou:”Todas estas coisas representam mímicas
grotescas reunidas no Elogio da Loucura
de Erasmo e nas figuras de Holbein”. As primeiras páginas de ambas as obras, a
de Erasmo e a de Diderot, partem do que é louco para mostrar coisas sérias.
Mesmo a discussão sobre as profissões, no Sobrinho,
assemelha-se às várias formas de loucura, dispostas no Elogio,
onde também são satirizadas as mais diversas atividades profissionais .Trata-se
do conhecido enunciado sobre “os idiotismos dos ofícios”.35
E um
“ofício” como o de “libertino” ? Este produz racionalmente o bem público
através de meios “irracionais”: ”é impossível que um homem se arruine sem
enriquecer outros”. Além disto,”Nós preferimos os vícios que nos servem e
divertem, do que as virtudes que nos rebaixam e entristecem”.Todos conhecem a
mesma tese, na boca de Jean-François, com seu corolário : “é preciso ter os pés
quentes”. Gostamos dos libertinos porque “eles nos falam daquilo que não
ousamos dizer ou efetivar”. A partir deste ponto mostra-se a radicalidade diderotiana, na auto-posição crítica que
apenas a sátira ocasiona : amamos os
libertinos porque “somos sempre um pouco viciosos...um libertino assegura a
libertinagem que nos proibimos: e além disto eles são tão comuns que, se fosse
preciso baní-los da sociedade, a maioria dos homens e das mulheres seriam
obrigados a viver na solidão...quase todos os libertinos são galantes,
desavergonhados, et coetera”. 36 Mais
Luciano, o elegante Luciano, o agradável Luciano....é sujo...
Se todos os
homens e mulheres são um pouco libertinos, se a razão e o bom senso isolam e
impedem a sociedade, se os virtuosos cansam e os loucos distraem os pobres
humanos, a sátira , misturando atitudes e motivos, mas escondendo o que é racional no que parece
ensandecido, e vice-versa, torna-se meio para uma desmistificação impiedosa de
todos os personagens sociais, mesmo e sobremodo do personagem “Eu”. O libertino
é alegre, enquanto os virtuosos se pretendem sérios. Ora, lemos nos artigos
“grave” e “gravidade” da Enciclopédia
: o Quixote é grave, porque medita e
raciocina gravemente”seus doidos empreendimentos e suas aventuras
perigosas”. Do mesmo modo, os fanáticos
realizam extravagâncias “muito seriamente”. Um pregador que anuncia verdades
terríveis sob imagens ridículas, “é apenas um bufão sério”. Um ministro, um
general que prodigalizam seus segredos, ou que aplicam sua confiança de maneira
inconsiderada, são homens frívolos. A gravidade é ridícula nas crianças, nos
tolos, e “nas pessoas envilecidas por ofícios infames...a verdadeira devoção perde
muito com o ridículo que se espalha sobre os falsos devotos”.37
1)
Marc-Aurèle et la fin du monde antique, Paris, Calman Levy ed., l883, páginas
376-377.
2) Robinson, C. Lucian and his Influence in Europe, London, Duckworth, l979.
3) 4.Schenk, Ludwig, Lukian und die französische Literatur im Zeittalter der Aufklärung.
München, UniversitätsBruchdruckerei, l93l
4) La Naissance de la Tragédie. Ed. franc. Colli , G. e Montinari, M. Paris,
Gallimard, 1977, página 86.
5) Schenk,
páginas l26-l27.
6) AT.l4.páginas 265-266.
7) Demonax,
Loeb, V. I, páginas l42-l73
8) Loeb, páginas l46-l47.
9) Ed.Assezat, V. l5, página 60.
10) Ed. cit. v. l7, páginas llo-ll3.O
contraste entre o “natural” e “primitivo” scita e o moderno habitante das
grandes cidades modernas, com suas cortes dissolutas, surge de modo diverso em
Voltaire. De algum modo, lemos no Prefácio da peça “Os Scitas” (uma tragédia...) que trata-se do estado de natureza
“oposto ao estado do homem artificial, como ele existe em nossas grandes
cidades. Podemos, nas cabanas, encontrar sentimentos tão emocionantes quanto os
que se encontram nos palácios”. A moderação voltaireana, ao contrário de
Rousseau e de Diderot, não permite uma ruptura entre o “natural” e o
“civilizado”. No palácio cortesão das cidades modernas e nas cabanas primitivas
ocorrem “sentimentos” que atingem os sentidos. Esta continuidade retira o
choque e a estranheza entre alteridades, as quais agudizam a sátira e a tragédia. Cf. Voltaire,
Obras Completas, Paris, Garnier,
l877. Kraus Reprint
11) Ed. Fabre, página 62; tradução Difel, página 249
12) Cit. por Schenk, página l30.
13) Oeuvres Esthetiques, Garnier, P.Vernière ed., página 794.
14) Luciano, Toraxis, Loeb, t.V, página l4l
15) Ed. Assezat, V. 7, páginas l04-l05;
Pleiade, Oeuvres, página l2l9.
16) Loeb, Volume V, 69, página 273.
17) Pleiade, página l2l9.
18) Loeb, 63, página 267.
19) As recomendações de Hamlet (Ato III, cena
II) indicam o ideal de adequação entre palavra e gesto como lugar comum: “suit the action to the
word, the word to the action”. Na tradução de Andre Gide: “Mettez accord entre
geste et parole”. A mímica decorosa importa muito: “Nor do not saw the air too
much with your hand, thus, but use all gently, etc”. “Et puis ne fauchez donc
pas trop l’air avec la main, comme ceci.Allez-y doucement” (Gide).Cf. Hamlet, Ed. H. Jenkins, The Arden Shakespeare, páginas 287-288.
Trad. Gide, Pleiade, Obras Completas de
Shakespeare, V.II. página 654.
20) Em Diderot, “não é mais a natureza humana
que, por sua corrupção, torna necessário instaurar um aparelho coercitivo, o
exato é o contrário. O caráter do homem civilizado, que sempre se havia tomado
como natural, na realidade é uma criação da cultura; ele não é causa, mas produto desta corrupção
originária que é a irrupção do poder.Para nos convencermos disto, basta
observar outra vez o selvagem : ele, que soube fugir desta nova versão da Queda
não parece afetado pelos traços de caráter que se tornaram ‘naturais’ para a
civilização. Isto porque ele permaneceu fiel —é o que termina conlcuindo, pelo
menos, após toda a corrente primitivista da idade clássica, o Diderot da História das Duas Índias— ao que é
original na verdadeira natureza do homem. “ Marouby, Christian, Utopie et Primitivisme.Essai sur
l’imaginaire anthropologique à l’âge classique. Paris, Seuil, l990,
página 158.
21) ara uma análise das dificuldades de
composição gráfica do Sobrinho, e
das soluções encontradas por Diderot, cf. Proust, Jacques, “De L’Encyclopédie au Neveu de Rameau:
l’objet et le texte”. Recherches
Nouvelles...página 332.
22) J.-J. Rousseau. Oeuvres Complètes. Pléiade, V, página 376 e nota de J. Starobinski,
página 1540.
23) Cit. por R. Kempf, op. cit. página 77.
24) Há homologia entre o modo pelo qual
Diderot entende a pintura e a música. “No seu entender, que outra coisa é um
rouxinol, um músico, um homem? E qual outra diferença você encontra entre o
canarinho(Serin) e o pequeno órgão(Serinette) para ensinar o canto aos pássaros
?...Se você confessa que entre o animal e você a única diferença é a
organização, você mostrará bom senso e razão” . Conversa entre D’Alembert et Diderot, texto recolhido por Béatrice
Durand-Sendrail : Diderot. Ecrits sur la
Musique (Paris, Jean-Claude Lattès Ed., l987) página l38. Os “gritos da
paixão” anunciados para a música pelo Sobrinho,
tem esta base animal comum como pressuposto. No plano da pintura, vale a pena
mencionar que Le Brun, um dos autores que Diderot tinha na mesa de trabalho, ao
lado de L. da Vinci, para ajudar na descrição dos quadros examinados nos
Salões, aproxima as fisionomias de homem e animal. Levi-Strauss, em O Pensamento Selvagem, mostra o quanto
esta atitude foi arraigada na cultura européia.Jean-Jacques Courtine,
entretanto, afirma, contra toda esta perspectiva, que Le Brun realizou apenas
uma ilustração das cartesianas Paixões
da Alma. Mais econômico é ter Le Brun utilizado o saber renascentista
enquanto Diderot, êmulo de Montaigne e de Bacon , o viu neste prisma passionnal.
25) Diderot compara “as fibras de nosos
órgãos às cordas vibrantes sensíveis. A corda vibrante, sensível, oscila,
ressoa longamente após ter sido tocada. É esta oscilação, esta espécie de
ressonância necessária que mantem o objeto presente, enquanto o entendimento
ocupa-se da qualidade que lhe convem. As cordas vibrantes tem outra
propriedade,elas fazem as outras fremir. É assim que uma primeira idéia apela
uma segunda... ”. Conversa entre Diderot
et d’Alembert, Durand-Sendrail, B. op.cit. página 23.
26) Carta
sobre os Surdos e os Mudos,
AT, página 368-369.Para uma consideração pouco equânime de Diderot, na reflexão
sobre as artes e a linguagem, veja-se o livro recente de Claude Lévi-strauss: Regarder, Écouter, Lire (Paris,
Plon,l993). Após indicar “uma interessante teoria” diderotiana que passa pela
teoria dos
números, Lévi-Strauss termina reduzindo a
elaboração de Diderot sobre a pintura a um “côté western avant la lettre”
(página 76). O parti-pris em filosofia ou na crítica é sempre algo complicado.
Admirar Rousseau, como o faz Lévi-Strauss, não garante análises mais justas de
seus ex-amigos, os enciclopedistas, sobretudo de Diderot.
27) “ses doigts voltigeaient sur les touches
; tantôt laissant le dessus, pour prendre la basse;
tantôt quittant la partie d’accompagnement pour revenir au-dessus”.O Sobrinho de Rameau, Ed. Fabre, página 28,Trad. Difel,
páginas 214-215..“On y distinguait la tendresse,
la colère, le plaisir, la douleur. On sentait les piano, les forte. Et je suis
sur qu’un plus habile que moi auoroit reconnu le morceau, au mouvement, au
caractere, a ses mines et a quelques traits de chant qui lui echappoient par
intervalle”.Idem. Didier, op.cit. páginas 34l-344
28) Oeuvres
Esthétiques, Ed.
Vernière, página 272. Tradução L.F. Franklin de Matos, São Paulo,
Brasiliense,1986, página 120.
29) op.cit. Vernière, página 276. Trad. L.F.
Matos, página 123.
30) Não só nesta obra, claro. Anthony
Strugnell indica que a técnica da escrita que passa pela pantomima, pela
pintura e demais artes, é uma característica estilística, filosófica e política
de Diderot. Na História das Duas Indias,
nos trechos pertencentes à pena diderotiana, e nos romances, como na Religiosa, “as cenas de quadro e de
pantomima são perfeitamente integradas na estrutura narativa e psicológica” .
Cf. “La voix du Sage dans l’Histoire des Deux
Indes. In Colloque du Bicentenaire
2-5 septembre l984, a Edimbourg. Textes réunis et présentés par Peter
France et Anthony Strugnell, Edimburgh University Press l985, página 36.
31) Todo o esforço de Diderot será no sentido
“não de acreditar o discurso, mas de neutralisar ou disjuntar para afirmar a
expressividade dos valores corporais : gestos e movimentos, olhar, inflexiões
da voz”. R. Kempf, op. cit. página 106.Ou melhor : “Diderot trata o corpo como
um texto que deve ser decifrado”. Idem, página 12.
32) “...il se met dans l’attitude d’un joueur
de violon...son bras droit imite le mouvement de l’archet...s’il fait un ton
faux, il s’arrete, il remonte ou baisse la corde...il est sûr que les accords
résonnaient dans ses oreilles et dans les miennes”.Pleiade, páginas 4l2-4l3. Trad. Difel, páginas 213-214.“Les
passions se succedaient sur son visage. On y distinguait la tendresse, la
colère, le plaisir, la douleur...” .Idem.
33) Plan
d’une université...Ed.
Assezat, V. III, página 480.
34) “Épicureísme”, Assezat, v. XIV, página
524.
35) Kouidis, Apostolos: “Le Neveu de Rameau” and
“The Praise of Folly”: Literary Cognates. Salzburg, Institut fur
Anglistikund Amerikanistik, Universitat Salzburg, Salzburg Studies in English
Literature, Elizabethan & Renaissance Studies, J.Hogg ed., l98l.
36) Lettres
a Sophie Volland, Paris,
Gallimard,l938, A.Babelon ed., V.I, páginas 224-225.
37)
Assezat,
V. XV, páginas 43-44.