terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Seguem abaixo a Introdução, o primeiro, o segundo e o terceiro capítulos de meu livro Silêncio e Ruído a Sátira em Denis Diderot. Irei publicar aqui, ocasionalmente, outros capítulos para que o leitor possa seguir um escrito que, parece, está esgotado nas livrarias.

Silêncio e Ruído, a Sátira em Denis Diderot
Roberto Romano/Unicamp





                                                Introdução



                       


                        As páginas seguintes discutem a sátira e o desencontro na comunicação entre os homens, a partir do Sobrinho de Rameau. Analiso traços da escrita diderotiana que apresentam homologia evidente com textos fundamentais da cultura, como é o caso das Moralia de Plutarco e dos diálogos lucianescos.Esta busca é original. Se o leitor consultar  uma bibliografia exaustiva de Diderot, como a de F. Spear, ele notará que dentre os milhares de livros ao seu dispôr, poucos destinam-se à refletir sobre o nexo entre Diderot e a tradição satírica do ocidente . Só um volume expõe com detalhes os vínculos entre Diderot e Luciano de Samosata. Alguns autores chegam a mencionar Luciano, unindo seu nome e o de certos filósofos das Luzes. Mas um trabalho mais amplo, como o que apresento, ainda não foi realizado. E, no entanto, a presença deste último é importante nos trabalhos do enciclopedista. Raras vezes os diálogos de Luciano têm referência explícita nos textos de Diderot. Só a comparação paciente  pode atingir o encontro entre o sírio e o francês moderno. Espero deixar clara a concordância entre Luciano e as Luzes, sobretudo no terreno da garrulice e da lisonja. Estes dois pontos também supõem o contributo de Plutarco, não tanto o das Vidas paralelas, mas o dos tratados morais.

                        “Era a noite com suas trevas; era a sombra e o silêncio, pois o próprio silêncio é colorido pelos sons”. 1 A frase, central no Sobrinho , joga o leitor para dois lados da fala que recolhe a cultura moderna.  A adulação, naquele texto onde a música é o núcleo, ocorre através da harmonia entre ruído e silêncio: “Mas não se deve sempre aprovar da mesma maneira; seria monótono, falso, e se acabaria insípido. Disto não se escapa senão pelo raciocínio, pela fecundidade; cumpre saber preparar e colocar esses tons maiores e peremptórios, aproveitar a ocasião e o momento. Quando, por exemplo, há uma divisão de sentimentos, quando a disputa elevou-se ao último grau de violência, ninguém mais se entende e todos falam ao mesmo tempo, devemos nos colocar de lado, no ângulo do apartamento mais afastado do campo de batalha, preparar a explosão com um longo silêncio e cair súbitamente como uma bomba no meio dos contendores”. 2 Na algaravia da linguagem, o bajulador oportunista sabe dosar sua aparência. Ele entra na roda no instante certo, utilizando “esses tons maiores e peremptórios”. Mais do que preceito retórico e musical, a técnica louvada por Jean-François recomenda que a nulidade lisonjeadora salte sobre os gárrulos a partir do seu “lugar”, o Nada silencioso. Numa reunião onde ninguém se entende, quem faz barulho maior, no instante apropriado, vence.

                        Enquanto o bajulador prepara seu bote, o falatório reina sob a forma da música, da poesia, do teatro, das argumentações filosóficas. Quem produz poemas neste clima, apresenta a mesma aparência dos convulsionários, energúmenos em sentido estrito. É o que se passa com o “amigo Robbé”: “Todos gritam ao redor dele :’Eis o que se chama um poeta!’. Aqui entre nós, essa poesia não passa de um charivari de toda sorte de ruídos confusos, e vozerio bárbaro dos habitantes da Torre de Babel”. 3 O silêncio, neste caso, serve como arma para vencer os palradores, sempre dispostos, como o corvo, a abrir o bico para entoar seu canto, a convite das raposas. Eles acreditam, mesmo, que os barulhos reunidos em estrofes (ou linhas musicais, ou silogismos) têm significado. Esta forma de combate à garrulice, quando revela-se ineficaz, exige a mudança no ataque. O personagem “Ele” passa a manipular não apenas o silêncio, mas a própria linguagem reduzida ao barulho simples. Neste instante, Jean-François usa as onomatopéias, indicando a inanidade da lógica dogmática em qualquer domínio do espírito. É importante que seja a música o elemento privilegiado nesta operação dissolutora dos falsos sentidos : o tio e compositor Rameau, com sua idéia de harmonia, é ícone de uma racionalidade que não mais encontra acordes no mundo efetivo.

                        O músico e teórico Rameau, diz Jean-François no contexto da reflexão sobre a mimesis, só pensa em si mesmo, sua universalidade é pura fachada.Como enfrentar o que parece mas não é? A pergunta, feita pela tradição filosófica do Ocidente, teve múltiplas respostas.   A  de Jean-François apresenta-se no intervalo entre a linguagem e a pura força das paixões. O tio Rameau poderia fazer o que desejasse: “mas não adianta ele se esforçar, na oitava, na sétima , hon, hon; hin; tu, tu, tu; turelututu, com um charivari dos diabos ; os que começam a entender e que não aceitam mais algazarra por música, jamais se conformarão”.4  Estes ruídos, quando aplicados à poesia e à música que se deseja destruir, deixam entrever o silêncio enquanto arma crítica que faz a vítima, pela adulação, cair  nos braços de quem vai enterrar crenças e deuses, sistemas artísticos e filosóficos. Se a antiga afonia cética não funciona,  chegou a hora do barulho onomatopaico : “Eu te respondo, tarare ponpon”.5  Esta última “frase” abre, como sabemos o caminho para a tarefa de por abaixo o ídolo antigo do país... com o famoso “patatras” 6  citado admirativamente por Hegel. Num escritor que domina com perfeição a escrita, como Diderot, o recurso fônico e visual das onomatopéias significa muito. É preciso ouvir e ver atentamente.

                        Os nexos entre as artes e os pensamentos filosóficos são indicados ao longo do Sobrinho, sintetizando reflexões dispostas em outros escritos diderotianos. Assim, o problema da “tradução” de um sentido ao outro, tema privilegiado na Carta sobre os Cegos e na Carta sobre os Surdos e os Mudos, amplia-se desmesuradamente quando, por exemplo, em certa altura o sobrinho diz ter querido impôr música às Máximas de La Rochefoucaut e aos Pensamentos de Pascal. Poucos notam que este desejo de transfigurar a prosa filosófica está expresso imediatamente antes da frase famosa sobre a arte : “grito da paixão animal”. Entre os dois extremos, o sublime ressoar da música enleada nas razões  —mesmo que, no caso pascalino, as do “coração”—    e a gritaria   —sempre que há barulhos estrondosos, no Sobrinho, há supremo ridículo dos personagens  em jogo—  temos o fraseado onde se misturam astúcia animal e tolice. A passagem da mais alta especulação erudita, seguida pelo cume da arte,  para a pior vulgaridade animalesca, dá-se através do próprio Jean-François Rameau, o qual  “filtra” os campos opostos mas complementares : “Se eu soubesse me expressar como o senhor! Mas tenho o diabo de uma linguagem extravagante, metade de gente de sociedade e pessoas letradas, metade de gente do mercado”. 7

                        A afirmação de Roger Kempf é sempre válida :  em Diderot, a linguagem do romance (e  a do filosofema...) evidencia uma “presença turbulenta que sacrifica para a sua mobilidade as figuras do tempo. Presença significada onde as fisionomias, os gestos e jogos de mão, os ruídos e os silêncios se substituem ao discurso comum”. 8 E mais : “Diderot desorganisa o discurso e o humilha, porque tudo, doravante, pode aceder à dignidade de uma linguagem: os silêncios, o esquecimento, a distração, a disposição dos objetos, o menor batimento de cílios, a desordem do corpo e da roupa”. 9 O Sobrinho de Rameau é oportunidade para a retomada dos questionamentos sobre a linguagem e seus  equívocos,  a retórica,  a lisonja com seus alvos secretos.Nele, a dúvida cética encontra uma acolhida à altura, como também é o caso do pensamento cínico.

                        Uma análise especial dos nexos entre linguagem e matemáticas ajudaria a definir o pensamento diderotiano. Nosso autor desconfia da retórica, desaconselhando seu ensino aos jovens, antes de outras disciplinas. Sem outros estudos preliminares, “a retórica é arte de falar antes de pensar” (“Plano de Universidade para o governo da Rússia”). Enquanto isto, a geometria é “a melhor e a mais simples de todas as lógicas, a mais própria para fornecer inflexibilidade ao juízo e à razão”. Os malentendidos da linguagem comum são reparados pela matemática : “se nossos dicionários fossem bem feitos ou, o que é o mesmo, se as palavras usuais fossem tão bem definidas quanto as palavras ‘ângulos’  e ‘quadrados’, sobrariam poucos erros e disputas entre os homens. É a este ponto de perfeição que todo trabalho sobre a lingua deve tender”. (“Plano de Universidade...”). Como veremos num dos capítulos deste livro, Diderot também apresenta cautelas para o matematismo universal, desconfiando mesmo da lingua dos geômetras. Mas pode-se arriscar um pouco, dizendo que seu entusiasmo pelas ciências certamente o fazia confiar um pouco mais (ou desconfiar um pouco menos) dos caracteres algébricos. Resta o modo de afastar os preconceitos que habitam a lingua comum e a escrita dos teóricos. “Um povo é ignorante e supersticioso ? Ensinai às crianças a geometria e vereis com o tempo o efeito desta ciência”. (“Plano de universidade...”). Enquanto corre o tempo, e a matemática não produz seus efeitos, vale a sátira. Esta é a tese subjacente à análise que o leitor examinará adiante.

                        Longe de “esclarecer”  todos esses pontos, o texto que apresento  indica  situações e limites da vida humana  —íntima e social—  com ajuda das Luzes, sobretudo as emitidas pelo enciclopedista maior.Espero, assim,  trazer  ao público uma reflexão sobre os nexos entre a filosofia diderotiana e a sátira , tendo como pano de fundo o silêncio. Dizendo ainda com R. Kempf : “Não falar, não é apenas calar. O silêncio do constrangimento marca uma sujeição seja à voz do outro, seja às forças do corpo emocionado. Tiago falaria se ele não estivesse amordaçado, o sobrinho falaria se...Bem na margem do silêncio, a gagueira, o murmúrio, o decepar das frases, a voz forte dos moribundos atestam uma vitória, tanto quanto uma derrota”.10

                        Fala e música encontram-se em feliz aliança, sobretudo na lisonja. “Quem já ouviu um miserável pedir esmola na rua (...) um amante desesperado, um adulador, sim, um adulador adoçando o tom, arrastando as sílabas com voz melosa, em uma palavra, uma paixão, não importa qual, desde que sua energia merecesse servir de modêlo ao músico, deveria perceber duas coisas: uma, que as sílabas, longas ou breves, não têm duração fixa, nem mesmo relação determinada entre suas durações, que a paixão dispõe da prosódia quase à sua vontade...”. Tudo isto, no contexto da briga contra o canto italiano...11  Hoje, a propaganda une música e lisonja, aproveitando perfeitamente as lições do parasita genial.      

                        Em nosso tempo, a falta de sentido assume novas forças, com a retomada dos exorcismos  sentimentais contra a razão. Os programas televisivos, com seus “pastores eletrônicos”, abrem espaço para o curandeirismo, a astrologia e demais crendices (“eu acredito em duendes”) populares, dando muito dinheiro aos  charlatães que se apresentam, não por acaso, como praticantes de uma pseudo-psicolinguística.Este irracionalismo atingiu há muito tempo a política. Ele torna-se temível devido ao recrudescimento dos partidos “neo” fascistas na Europa e no Brasil. Massas desprovidas de pensamento, respondendo aos estímulos da propaganda, são vítimas fáceis do embuste, causando sofrimento e morte em milhões de pessoas. As experiências do nazismo e do maccarthismo deveriam ter ensinado algo aos intelectuais dispostos a bajular os poderosos da hora.Mas se existe lição a ser extraída, é que os intelectuais não aprendem com experiências onde a sua pele não está imediatamente em causa.

                        Deste modo, “difficile est satiram non scribere!”.  Nas próprias igrejas, a teologia tradicional perde terreno para o culto das paixões e dos sentidos exaltados. “Sinn”, dizia Hegel, é palavra maravilhosa que designa ao mesmo tempo o  lógico,  o somático, o anímico.Estamos chegando ao máximo, neste final de século 20, da carência de sentido, nestas acepções. E não temos, como no século 18, intelectos satíricos que possam, a partir de uma gargalhada,devolver -como num eco- aos energúmenos da midia e das universidades o silêncio ou os  ruídos que eles produzem para ganhar dinheiro ou adeptos. Ou dinheiro e adeptos, como é o caso dos “evangélicos” de agora.

                        Sob outra forma, este livro continua minhas buscas, iniciadas em Brasil:Igreja contra Estado, Conservadorismo Romântico, e outros. Trata-se de, mais uma vez, defender a racionalidade sem, no entanto, sacrificar os sentidos. As dúvidas e críticas que o leitor tiver, e que julgar de meu interesse, são bem vindas. O texto é resultado de uma pesquisa em desenvolvimento sob o patrocínio do CNPq (Conselho Nacional da Pesquisa Científica e Tecnológica), ao qual agradeço a importante ajuda. Para coletar as fontes necessárias, na Biblioteca Nacional de Paris, fui auxiliado pelo FAEP (Fundo de Apoio à Pesquisa) da Unicamp. Agradeço a confiança. Os autores brasileiros são mencionados apenas quando entram no tema escolhido para este livro. Deste modo, não foi-me possível citar os trabalhos pioneiros e esclarecedores do Professor J. Guinsburg, notável e fino tradutor dos textos diderotianos . O mesmo ocorre com outros teóricos, os quais serão devidamente referidos em livros posteriores, quando sua exposição —coincidente com os meus pareceres, ou a eles opostos— apontar terrenos semelhantes ao trilhado por mim.

Notas

                                                           



1) Cf. Le Neveu de Rameau, Ed. Jean Fabre, Genève, Droz1977, página 273. Cf. a importante nota de Fabre sobre a passagem, página 223-224.
2)  Le Neveu ..., ed. Fabre, páginas 49-50. Utilizarei a tradução brasileira de A. Bulhões e M. Tati, São Paulo, DIFEL, l962. páginas 237-238.
3)   Idem,página 59 ; página 247 da ed. Difel.
4)  Le Neveu...ed. Fabre, página  79 ;ed. Difel, página 266.
5)  Ed. Fabre, página 81  ; ed. Difel, página 268.
6)   Ed. Fabre, página 82  Ed. Difel, página 269, que “traduz” a onomatopéia como “catrapus”... Hegel também dará o “termo” em som alemão.
7)  Ed. Fabre, página 94  ed. Difel, página 280.
8)  Cf. Diderot et le Roman. Paris, Seuil, 1976. página 11.
9)   Idem, página 107.
10)  Idem, página 115.
11)   O Sobrinho ...ed. Difel, página 274.

                                        






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 Capítulo Primeiro



                  Diderot  e a Sátira                                                                                                                                                                                                                     

                                                “Há dois tipos de pessoas sujeitas à lisonja...os príncipes, entre os quais os bandidos                                                                                ganham crédito por este meio, e as mulheres”. (Charron).                                                                                                            
                                                                        “A sátira é uma espécie de espelho onde, habitualmente, cada um reconhece o rosto de                                                                                           todos, menos o seu”. (Jonathan Swift)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              



                        Analisando  o Sobrinho de Rameau  e discutindo várias    hipóteses sobre a  duplicidade, no diálogo,  entre os personagens “Eu” e  “Ele” ,1  Milton F. Seiden  retoma o  debate sobre Diderot e o gênero satírico.  Os  comentadores rodeiam aquele texto, encontram mil entradas e saídas,  mas acabam caindo nas malhas da subjetividade : a “explicação” do Sobrinho encontrar-se-ia no escritor  Denis Diderot, no seu corpo e alma. Exemplos de remanejamentos  desse vínculo são  conhecidos pelos interessados no assunto.2  A formula básica foi enunciada por Daniel Mornet :  “O Sobrinho ... é um Diderot que luta, duramente, contra um outro Diderot”. Ou então, ainda com Mornet: “O escrito é uma conversa de Diderot consigo mesmo”. Espécie de Janus filosófico, Diderot teria gerado uma obra prima  nos limites do seu próprio intimo.
                       
                        Na trilha hegeliana, Marx já havia tentado dissociar as duas máscaras opostas no  texto. Para ele, Diderot seria  “a boa consciência”, enquanto o sobrinho encarnaria  a “consciência dilacerada”.3 Tentando assegurar uma possível identidade entre os dois personagens do diálogo, muitas operações de salvamento, utilizando as mais diferentes retóricas filosóficas foram empreendidas.  O problema torna-se  angustiante quando se aplica o modo “científico” para enfrentar esse texto. Lionel  Trilling chegou, como era de se esperar, à psicanalise. Comentário paciente de Seiden: “Seria ir demasiado longe dizer que Rameau representa o Id de Diderot, enquanto a pessoa do “filósofo” seria o freudiano Ego diderotiano”.   De qualquer modo, afastando-se as tentativas que partem e retornam ao sujeito, dando-lhe uma “consciência dilacerada” ou um “Id” de empréstimo, não se resolve o problema das fontes usadas pelo escritor na composição de seu texto. Tenho, parcialmente a mesma opinião  Seiden: “Afirmar que um escritor criativo mostra menor talento quando ele não inventa seu assunto, poderia ser uma pura falta de sentido. Diderot era capaz de colher um personagem do mundo ao seu redor e fazê-lo viver e respirar. Mas ele não era um retratista e viu em Jean-François não apenas o indivíduo, mas o tipo, não só o caso isolado mas suas implicações universais”. Diderot  não apanha somente o “real”, a sociedade  da sua época. Ele  arranca seus personagens das amarras de tempo e espaço. Foi  trabalho de gênio  fazer um diálogo brilhante com o Jean-François histórico “uma sátira mordente dos grupos e crenças da sociedade  que seu interlocutor tão bem representa ”. 4 


                        Por que concordar  só em parte  com a tese de Seiden? A razão encontra-se nos limites do material utilizado pelo filósofo para encenar  o seu “tipo”. Autor que se notabilizou pela busca de saberes os mais diversos e contraditórios, Diderot absorve a  cultura antiga, dela extraindo formas e motivos para pensar a vida humana no plano mais eminente. Seria  estranho  reduzir o desenho do  Sobrinho ao campo social de seu tempo. Jean-François recolhe inúmeras  figuras humanas, forjadas nas mais diferentes paletas filosóficas, éticas, políticas, desde a Grécia clássica, passando por Roma e atingindo o Renascimento. Pode-se  aceitar a tese de que os motivos  desta fabricação dialógica sejam os costumes e as gentes com quem Diderot  lidava. Mas as técnicas daquela sátira têm origem em  leituras  muito mais recuadas .

                        Autores clássicos na interpretação do Sobrinho, entre eles E.Curtius, enxergam no texto uma dívida absoluta para com Horácio. Outros analistas, como O’Gorman, notam proximidades entre o diálogo diderotiano e a ironia platônica. Chegou-se , com Ruth Groh, à  tese do nexo entre o escrito de Diderot e a sátira menipéia . Procurarei expôr  alguns  nexos  entre o enciclopedista e os antigos. Parece-me que uni-lo ao poeta Horácio, deixando na sombra seus vínculos com outros autores, é pouco  se queremos compreender a obra em debate. O mesmo diga-se para o elo entre Platão e Diderot.No caso da sátira menipéia, torna-se importante acrescentar  Luciano de Samosata, com o ecletismo crítico dirigido contra as escolas filosóficas de obediência única. Para bem entender  traços relevantes de Jean-François e de sua fala, devemos abordar certos comportamentos discutidos por  Plutarco, não o das Vidas, estratégico também no século dezoito, mas o das Moralia.

                        Desde Curtius,  unir a sátira em Diderot e Horácio tem sido a regra. 5  O livro de Curtius é demasiado conhecido para  que o leitor seja obrigado a encontrar, aqui, um resumo de seus arrazoados. Vou direto ao núcleo que define a sua interpretação no plano filosófico: “A idéia central  (do Sobrinho  e da Sétima Sátira no livro II de Horácio) é o paradoxo estoico: só o sábio é livre e todos os insensatos são escravos”. 6  Consequência icônica: “Podemos notar a analogia entre o escravo Davus, que aproveita a liberdade louca das Saturnalia, e o pobre Rameau, cuja inaequalitas  é sublinhada como seu traço principal de caráter”.

                        Como adequar o fortíssimo apelo à filosofia estoica, que na tese de Curtius é o núcleo significativo do texto inteiro de Diderot, na tese de Curtius, com o que vem dito a seguir, pelo mesmo autor, sobre o personagem “Eu” ? Este seria “Denis o filósofo, que gosta muito de ser chamado Diógenes e cita gostosamente este nome: ’Diógenes ria das necessidades’ . O sábio cínico só precisa da natureza (...)”. Estoico ou cínico? A diferença não é irrelevante. Como é  conhecido, Diderot , para utilizar as palavras de Fabre, hesitava entre assumir para si a máscara de Sócrates ou a de Diógenes.  Mas no diálogo, se o cínico aparece enquanto “Eu”, ele é imediatamente contraditado por “Ele”:  a liberdade supostamente vivida pelo sábio não titubeia  diante da “opção” onanista para manter sua autonomia. Uma sátira radical não deixa sequer o cínico intocado. Como veremos no caso de Luciano de Samosata,  o cínico também é mordido pelo crítico. A doutrina estoica, pois, dada por Curtius para explicar a forma e o fundo do Sobrinho , deixa sem bases este apelo essencial ao cinismo, no mesmo texto.  Isto, com uma agravante : enquanto a citação de Diógenes é direta, a do “sábio estoico” só aparece mesmo... no texto de Curtius, como consequência de sua escolha de Horácio enquanto  fonte única para o diálogo diderotiano.

                        As dificuldades na indicação de uma fonte exclusiva para fundamentar  a sátira em Diderot tornam-se evidentes em outra intérprete do seu pensamento. Michèle Mat-Harquin, num instigante artigo publicado nos Diderot Studies 7 , cujo título retrata nosso problema (“Diderot e Horacio”) procura extraír do pensamento estoico não a condenação dos ignaros, e o dogmatismo, mas justo uma atitude cética a nortear o pensamento diderotiano. Embora o texto indicado seja, justamente, O Passeio do Cético , e não o Sobrinho , vale a pena citar este deslizamento do plano estoico para o cético, via Horácio. O trecho das Sátiras horacianas posto como epígrafe do  “Passeio...” (Sat. II, 3, 48-52) fala em desgarramento de todos os que estão perdidos na selva, a natural e a da sociedade: “ Quando se caminha ao acaso na mata, a distração faz perder a trilha ; um viandante ruma para a esquerda, outro segue para a direita. O erro é idêntico para ambos, mas os perde em direção diversa”. A epígrafe, afirma nossa autora, é “uma lição de relativismo”. Indo mais além, ela encontra na mesma Sátira horaciana (II, 3, 8l) um “ceticismo diante dos diversos sistemas filosóficos” 8 .

                        A atitude cética e o pensamento eclético, uma de suas variantes, une-se muito frouxamente  à canônica epistemológica e moral estoica. Deixando este ponto na sombra, Mat-Harquin universaliza indevidamente uma afirmação de Horácio, posta na mesma Sátira. A universalização em foco seria perfeita, caso a base filosófica horaciana fosse cética ou cínica. Vejamos a frase de Horácio: “Convido a me escutar, arrumando a toga, os que sofrem por desmesurada ambição, ou por desejo de dinheiro, os ardentes de luxuria, ou cegamente supersticiosos, todos os acometidos por uma doença da alma. Vinde e eu lhes mostrarei, em ordem, que todos ensandeceram ” (Sat., II, 3, 77-8l). Está claro que o alvo de Horácio, aqui, são determinados homens (ambiciosos, avaros, luxurientos, supersticiosos, ou “acometidos de outra doença da alma”). Claro, pode-se dizer que nenhum  ente humano, a rigor, escaparia desta enumeração. Mas o sábio permanece indene, ensinando os demais. Logo, a tradução mesma do trecho, proposta pela autora, apresenta dificuldades: “todos os homens são insensatos” 9 . Todos, menos o sábio. Tem razão Curtius, apesar do sumiço do ceticismo que ele opera no texto de Diderot. O Passeio do Cético ,para dizer o mínimo, empalidece diante do radicalismo constatável no Sobrinho . Neste último, mesmo Diógenes dança a pantomima,  e a sátira assume um tom cético inaudito.

                        Tais indicações  mostram as dificuldades que surgem quando se define  uma só origem  para o  texto diderotiano. Procedendo desta maneira, ou faz-se violência ao escrito, ou se distorce desnessariamente as fontes filosóficas . Este procedimento hermenêutico é claro num autor cujo trabalho ajudou a refinar a leitura do Sobrinho.  Refiro-me ao escritor O’Gorman com suas  análises sobre os nexos entre Diderot e Platão. O’Gorman 10  diz que a sátira diderotiana em pauta é o diálogo entre um idealista moral e um nihilista. A partir desta bipartição, o autor pergunta onde, nos textos platônicos, encontra-se um choque semelhante. Como tudo pode ser encontrado em Platão, ou em qualquer  outro filósofo,   O’Gorman acha duas passagens que, no seu entender, colocam frente a frente um “idealista moral” e um “nihilista”. Como o leitor já prevê, os trechos encontram-se no Górgias (48l b e ss) e na República (336 b e ss). Imitando o Platão artista, cujo virtuosismo produziu personagens vigorosos para enfrentar Sócrates, Diderot teria operado uma síntese de Calicles e de Trasímaco, “individualistas e utilitaristas”, 11  da qual resulta...o personagem “Ele”. O’Gorman, para ampliar o cenário, acrescenta, enquanto possível material usado por Diderot, o trecho da República (II, 357c-367e) onde Glaucon fala sobre a injustiça.

                       O autor , gradativamente,  estabelece similaridades entre os trechos platônicos e o diálogo diderotiano. No plano da fala descontrolada , “bavardage” no francês e “parrhesia” no grego, O’Gorman indica o tom irônico de Sócrates ao referir-se `a “franqueza de lingua” exibida por Cálicles (Gorgias  487ab-492d).  Sócrates ironiza os falastrões que o enfrentam.Também o personagem “Ele” gosta de mostrar os próprios filósofos como ridículos. Sócrates, diz Jean-François, é “um sujeito audacioso e estranho” 12 . Os filósofos são risíveis,  a filosofia aborrecida: “Imagine o universo sábio e filosofante ; é preciso concordar que ele seria demasiado triste”. A frase poderia, antes, sair diretamente do Elogio da Loucura e das teses médicas do Renascimento sobre a melancolia que submete poderosos e pensadores. 13
                       
            Por mais eloquente que seja “Ele” contra a filosofia, afirma O’Gorman,  não se atinge, em sua fala, a radicalidade oferecida  no Górgias. Segundo Cálicles  o filósofo seria ridículo na política, nos negócios, inábil para falar como um homem. O auto-contrôle recomendado pela filosofia é próprio dos “simplórios”(491d). “Sensualidade, licença, liberdade sem reserva (...) eis a virtude e a felicidade!”, arremata Cálicles. Trasímaco, no plano da injustiça, atinge paroxismos semelhantes. Os dois personagens platônicos forneceriam o modelo para o elogio do sublime bandido : “cuspimos num malandrinho ...mas não podemos recusar certa consideração para com o grande criminoso”.

                        O problema da desigualdade de Rameau face a si mesmo é acompanhado por O’Gorman em Platão. No Gorgias , Sócrates louva a filosofia por dar consistência ao pensamento. Sem ela, o indivíduo é lira frouxa e fora do tom, possuindo “discordância interna e contradição no meu próprio eu singular” (é o modo pelo qual O’Gorman lê a página 482c). Do mesmo jeito, a refutação de Trasímaco implica em demonstrar que o injusto é dividido, inimigo de si mesmo. Conclui O’Gorman: “Está claro que nestas passagens encontramos o duplo ideal de virtude e controle racional que, no Sobrinho, é a medida do malogro de Jean-François, como homem e artista”.14

                         O’Gorman  salienta a complexidade do texto diderotiano. Este último  “não pode, certamente, ser reduzido a um debate sobre justiça e felicidade, similar ao encontrado em Platão; também não devemos presumir que a intenção de Diderot, na sua obra satírica, seria de algum modo comparável à do filósofo antigo”.15  Esta declaração de princípios não  impede o comentador de continuar propondo similaridades entre as duas produções.Na República o tema principal é a justiça.Mas nela também se trata da música, da educação, do gênio, da pantomima, da hipocrisia. Estes mesmos ítens encontram-se no Sobrinho. Estas similaridades não seriam acaso. “O Sobrinho, por sua originalidade chocante, é uma das grandes obras primas da mimesis literária; em cada uma de suas linhas Platão está suposto e só podemos compreendê-lo sob luz de sua doutrina” 16 .

                        O’Gorman não exagera quando aponta semelhante influência sobre Diderot. Em “Diderot leitor de Platão” , R. Trousson 17  mostra que “seduzido por alguns aspectos da estética e da filosofia de Platão, Diderot não foi insensível ao seu modo de expressão. Como o autor do Sobrinho de Rameau poderia negligenciar a técnica platônica do diálogo, da qual ele sublinha os méritos e a função: ‘quem não é sensível aos  encantos de seus diálogos não possui bom gosto. Ninguém soube, com maior verdade, estabelecer o lugar da cena, nem melhor sustentar seus personagens...Ele viu que a dúvida é a base da ciência verdadeira ; e seus diálogos também respiram ceticismo. Eles se parecem muito à conversa’ (OC, VIII, 114-115)”.

                        Semelhanças, diz Trousson, mas também  diferenças. O diálogo, em Diderot não coincide com o dos antigos.Ele não possui a forma ciceroniana, “uma longa exposição cortada por algumas objeções”, nem a de Luciano , “muito mais nervoso, mas sobretudo satírico e destruidor, próximo da comédia, da qual Voltaire é um representante mais  ilustre”. Trousson pensa os textos platônicos com o modêlo fornecido por Victor Goldschmidt, para quem o diálogo é “fechado” no plano epistemológico e educacional: “Socrates pretende desviar seus interlocutores de seus erros e conduzi-los à verdade através um ensino distilado minuciosamente”. Nada disto em Diderot : nele, “a luta da tese e da antítese não conduz à síntese triunfante, mas desemboca, pelo contrário —estamos longe de Platão— no inacabado e na abertura indefinida, no reinício ilimitado das questões. Uma lógica e uma retórica do descontínuo consagram uma estética da assimetria, a qual eleva a digressão à dignidade de uma arte”18 .

                        Em outro artigo estratégico, Pierre Chartier aponta  semelhanças e diferenças entre Platão e Diderot. “Enquanto o Platão antigo se empenha, apesar de sua dívida confessada, em banir da Cidade o poeta-Proteu, autor de mil confusões, ou em arrancar de seu esconderijo, no termo de uma caçada discriminante impiedosa, o Sofista instalado no antro obscuro onde manipula seus simulacros, o Platão moderno, também Filósofo da Luz, não podendo mostrar-se totalmente ‘nu’,  deseja ser o senhor, ao mesmo tempo, da mistificação e da desmistificação, da ilusão e da verdade”. (“Irmão Platão”).  19  O nexo entre os dois pensadores é complexo e tanto O’Gorman quanto Chartier possuem plena consciência deste traço. Em ambos os filósofos  há motivos  para pensar o diálogo enquanto  ironia e sátira. Diderot conheceu o espírito e a letra platônica. Suas obras mimetizam, através de empréstimos ou citações,  o escritor da República. Jean Seznec provou o quanto Diderot era íntimo do texto platônico. Mesmo o  encontro entre Diderot e Rousseau em Vincennes,  o uso não confessado por Rousseau da tradução da Apologia de Sócrates, mostra a sua íntimidade com os diálogos platônicos. Rousseau, Seznec mostra com os textos, erra exatamente onde erra Diderot na sua tradução, nos lugares onde Ficino, suposta fonte de Rousseau, acerta....20

                        O’Gorman enxerga um Diderot desanimado ao ler a República . Como Atenas, a civilização moderna morria. Só  isto explicava o sucesso de Palissot, castigado no Sobrinho devido à peça Os Filósofos; o fracasso relativo do Pai de Família; a hostilidade contra a Enciclopédia. Deste modo, Diderot “sente a necessidade de fornecer expressão satírica ao seu desapontamento ; e a expressão compreensiva do homem e da sociedade, na República, fez daquela obra a moldura ideal onde estabelecer uma verdadeira sátira filosófica.” 21   Tais analogias, apresentadas por O’Gorman entre passagens platônicas e diderotianas, fazem-nos pensar. Elas  recordam o dito italiano: “se não for verdadeiro, é bem achado!”. O final da história é dito por nosso autor quando afirma que Diderot deseja provar o elemento central da República: o homem justo é feliz. Platão  olha o filósofo com humor. Ele gozaria “729 vezes mais um prazer real do que o tirano”. De modo idêntico, Diderot emprega ironia e caçoada com o personagem “Eu”, auto-caçoada da qual Horácio foi mestre. “Falo mal. Sei apenas dizer a verdade”.Esta frase do filósofo, no Sobrinho, segundo O’ Gorman, é apenas um eco do enunciado socrático no Ion: “Eu sou um homem comum, que só fala a verdade”.

                        Diderot,  segundo O’Gorman, termina repousando no elemento apolíneo. Este seria, num paradoxo,  o alvo do muito dionisíaco  Sobrinho de Rameau .22 A   lisonja, estratégica na sátira antiga e mesmo em Platão, esquecida por O’Gorman, a análise muito rápida da garrulice, indicam: apesar de melhor justificada do que a camisa de força horaciana, posta em Diderot por Curtius e demais intérpretes, o revestimento do texto de Diderot pela escrita platônica não basta para traçar uma conexão de sentido entre o Sobrinho e a sátira antiga.Em outros temas e escritos, o nexo torna-se menos impreciso, como demonstra Jacques Chouillet no artigo “A Caverna, seus habitantes et seus sonhos: de Platão até Prévost e além” 23.

                        Sobre os vínculos de Diderot com Platão, muita coisa já foi dita.  Roland Mortier, no excelente Diderot na Alemanha  24  cita a reação sem bom humor de Baumgarten diante da sapiência antiga diderotiana: “Quando  Diderot atribui ao verbo ‘geometrisar’ uma origem inglêsa, Baumgarten caçoa de sua ignorânica: ‘nosso escritor ... estudou a filosofia uma pouco rápido demais, pois o termo já está em Platão’; é verdade, acrescenta, que Diderot ignora Platão e pediu que lhe trouxessem suas obras para a cadeia só para exibir-se”. (Mortier, página 341). Até nossos dias Diderot é acusado de ignorar Platão e desconhecer a matemática.  Mas esta é uma outra facêta da história filosófica. Autores como Jean Mayer   mostraram que o escritor conhecia bem mais do que supunham os seus críticos. Importa notar que o nexo Diderot-Platão era claro desde as primeiras produções do primeiro.

                        O interesse de Diderot pelos textos platônicos tem um sentido mais profundo do que a crítica sócio-política.  A sátira  desce  às bases da existência natural, não se limita ao mundo humano e às  suas convenções. Para atingir esta altura especulativa, a passagem de Diderot por Platão supõe a recusa do instrumento ótico, e de um cosmos cuja ordem garantiria certa regularidade física e humana. Em Diderot, a sátira é lancinante e não remete, como na  estoica, à uma Lei diante da qual se dobra o sábio mas que destrói o estulto. Com Diderot, diz J. Chouillet, começa uma aventura do espírito, “da qual o Ocidente, herdeiro da Europa das Luzes, talvez ainda não saiu”. Qual aventura? A desconfiança no olhar, físico ou mental,  com a coerente dissolução de toda metafísica. A Carta sobre os cegos abre a via para o mundo físico e humano sem a tranquilizante espacialidade fornecida pela vista. Obrigados a pensar sem este instrumento traiçoeiro, fomos empurrados para os demais sentidos 25 , percebendo o tempo como finitude,  explodindo as noções de perfeição e de eternidade. A sátira deixa de ser corretivo  teórico para  indicar  os nossos limites.

                        Nunca será dito em demasia, afirma   Chouillet, o que representa a Carta sobre os Cegos de 1749, sobretudo no campo estético. “Com as palavras do cego Saunderson em seu leito de morte desaparece para sempre a crença na realidade de um cosmos, isto é, de uma totalidade ordenada”.  A partir da Carta, “não mais existe uma ‘ordem admirável’. Esta é uma invenção dos poetas e dos teólogos, boas para os que enxergam, nula para os condenados a tocar apenas o pequeno lote de objetos que os envolve”. Beleza, simetria, ordem, todas estas são apenas palavras desprovidas de substância.A ordem não reside nas coisas, mas em nós. Se existe beleza, ela é nosso produto: “o céu das Idéias está no homem”. Diderot, a partir desta crise de 1749, continua fiel aos ensinamentos platônicos, ou neo-platônicos, mas inverte sua perspectiva.

                        No   Salão de 1767, analisando as condições do fazer artístico, Diderot concorda com Platão : a idéia geral da beleza não existe no mundo ,  os seres particulares são  fantasmas.  “Os retratos que fazemos segundo a natureza” , o termo é característico, constituem “cópias de cópias”. Chouillet nos poupa a lembrança, mas é preciso mencionar: neste ano, nos Salões, encontram -se os pensamentos de Diderot sobre seu próprio retrato, pintado por Van Loo. “Mas o que dirão meus netos ao comparar minhas tristes obras com este risonho... efeminado, velho coquete ?Meus filhos, eu  previno: este não sou eu”. Vem a seguir a celebérrima e batida frase sobre si mesmo, enunciada pelo filósofo: “numa jornada eu tinha cem fisionomias diversas, segundo a coisa que me afetava. Eu era sereno, triste, sonhador,terno, violento, apaixonado, entusiasta ; mas nunca fui do jeito que vocês estão vendo”. 26

                        Tristes trabalhos, face risonha: desta antítese brotam as notas sobre um ser proteiforme que poderiam ser aplicadas perfeitamente ao personagem “Ele” do Sobrinho, definindo-se que o modelo não se encontra na suposta ordem da natureza ou no desenho artístico, mas no “eu” que se projeta na face polifacetada e no cérebro inquieto do pensador.   Diderot situa a idéia geral no espírito humano. A idéia é  produzida por um “ longo trabalho de gerações de pintores e escultores para chegar  ao arquétipo sem o qual não existe verdade artística. Em Platão, o arquétipo está no começo do processo criador, em Diderot, ele está no fim” (Chouillet).

                        O que vale para a prática artística em geral, vale  para a sátira. O “longo trabalho de gerações” para chegar ao arquétipo, supõe o trato com as sátiras antigas. Acentuar uma fonte, privilegiando-a, como o faz Curtius e O’Gorman, pode  obnubilar a presença de formas diversas no texto satírico. Repetir em demasia os motivos pessoais ou sócio-políticos do escritor (seu ressentimento, a realidade tirânica do Antigo Regime, etc.) retira a sátira de sua amplitude universal, interessando todos os seres pensantes. Não é possível negar os vínculos de Diderot com Horácio, Platão, Seneca. Tolice recusar  sua imitação de Bacon, Montaigne, Locke, Shaftsbury, Richardson, etc. Também é falta de sentido negar, no Sobrinho de Rameau, ressentimentos e querelas entre intelectuais . Mas para entender o todo da sátira com seus prismas, não podemos aceitar a limitação das fontes e dos eventos, ou “explicar” este gênero literário e filosófico por certo “inconsciente” projetado sobre máscaras que recolhem milênios de técnicas na escrita e na crítica ética.

                         Num estudo  surgido na Revista de Metafísica e de Moral 27 , H.R.Jauss  mostra a abertura dialógica dos textos diderotianos, especialmente do escrito que estamos discutindo, passando pelo problema platônico. Jauss descarta, como o fiz acima, o vínculo exclusivista de Diderot com Horácio: ”Buscando uma forma literária correspondente ao seu objeto  —o diálogo aberto, não dogmático—  Diderot recorre a um genero que, na minha opinião,foi desconhecido. Perdidos pelo sub-título (Sátira segunda), os interpretes tentavam reconhecer, nela, o modelo de Horácio; mas de fato Diderot retoma a sátira menipéia”. Jauss , como  H. Dieckmann, afasta o nexo exclusivo Horácio-Diderot. Dieckmann, para ilustrar a pantomima diderotiana com exemplos passados, menciona rapidamente Luciano, Terencio, Petronio. A partir destas vias, Jauss afirma que “estes nomem traçam um caminho que conduz à sátira menipéia”.
                       
                        Apesar dessa indicação enfática, não existe, no artigo de Jauss, uma análise das relações entre os textos apontados e o Sobrinho.O autor afirma que a escrita platônica  seria uma trilha oposta à socrática, porque no diálogo a anamnese impediria uma abertura efetiva, impossibilitando a independência dos personagens.  Jauss repete o dito comum sobre o dogmatismo  de Platão, travestido pela forma dialética. Por outro lado, insiste no dialogismo socrático , tal como visto por Diderot 28 . Segundo Jauss, o Sobrinho “ultrapassa a forma de um diálogo renovado. Ele chega à polifonia da sátira menipéia e carrega a história moderna desse gênero literário ao seu cume. A sua função, agora, é restituir a cada homem um pedaço  de sua individualidade natural, descobrindo na realidade social o jogo dos papéis e das dependências inconfessadas. Diderot acentua a inversão irônica da metafísica platônica, assunto principal do diálogo, dando ao personagem amoral a tarefa que era tradicionalmente o apanágio do filósofo e do moralista”.29 Jauss lê Diderot com as lentes hegelianas da Fenomenologia do Espírito  (deixando de lado as Lições sobre a Estética) sem discutir de fato a sátira menipéia no Sobrinho.  Ele indica  os trabalhos de M. Bakhtine, mas não aponta nenhuma passagem do próprio Menipo e Luciano, ou da tradição irreverente que atravessou a cultura ocidental, até às Luzes. Sem isto, como falar em “sátira menipéia” em Diderot?

                        Falta semelhante ocorre no artigo de Ruth Groh cujo título é tentador: “Diderot- um Menipo das Luzes”30. A sua preocupação é com a atitude filosófica de Diderot, enfatizando sua particular reserva metodológica de ordem cética :  “Em Diderot o ceticismo significa o caminho —crítico— para a verdade.” 31  Diderot é  pensador e literato que utiliza a ironia e a sátira de modo sério-cômico . O riso temível,  para Groh, começa com  Menipo de Gadara, encontrando em Luciano seu primeiro exemplo notável. Depois teríamos Seneca, Petronio, Rabelais —há um esquecimento grave de Erasmo e Morus—  Cervantes, Voltaire, E.T. Hoffmann, Jean Paul. Em nossos dias, James Joyce e G. Grass continuariam esta linhagem temida.O artigo discute a sátira em Diderot de forma geral, sem descer às análises particulares de textos. Seria importante que algo  ao modo de O’Gorman fosse empreendido, ligando Diderot à sátira menipéia.    O que se diz sobre o Sobrinho ? “A força subversiva do discurso do Sobrinho funda-se na sua revolta contra a perversão, a negatividade de todas as relações...”32  É pouco, mas ajuda  a situar o campo a ser investigado.

Notas

1)     Algo que atormenta os intérpretes, desde Goethe.
2)     Entre muitos, lembremos o texto de Michel Launay, “Sur  les Intentions de Diderot dans le Neveu de Rameau”.Diderot Studies VIIII, Genève, Droz, l966.
3)     Cf. Werke, Berlin, Dietz Verlag, l972-l974. 32, páginas 302-304.
4)     Cf. Seiden, Milton  F.: “Jean-François Rameau and Diderot’s Neveu” in  Diderot  Studies XVI, l973, páginas l43-l83.
5)     Cf. Maurer, Karl: “Die Satire in der Weise des Horaz als Kunstform von Diderots Neveu de Rameau”.Romanische Forschungen, nº 64, l952, páginas 365-404.
6)     “Diderot et Horace” in La Littérature Européenne et Le moyen-âge Latin, trad. Brejoux, Paris, PUF, 1956, páginas 694-705)
7)     XIX, l978, páginas 103 e seguintes.
8)     Velut silvis, ubi passim/Palantes error certo de tramite pellit,/ Ille sinistrorsum, hic dextrorsum abit, unus utrique/ Error”. Cf.Mat-Harquin, obra citada, página l23.
9)     ”Audire, atque togam jubeo componere, quisquis /Ambitione mala aut argenti pallet amore,/ Quisquis luxuria tristive superstitione/Aut alio mentis morbo calet; huc proprius me,/Dum doceo insanire omnes, vos ordine adite”. Cf. Mat-Harquin, Obra citada, página l23.
10)   Diderot the Satirist ,página 93.
11)   O’Gorman,página 94.
12)   Ed. Fabre, página 11.
13)   Cf. Burton, Robert (1577-1640). The Anatomy of Melancholy. New York, Vintage Books, 1977. Burton é o autor moderno que mais ampla e sistemáticamente tratou a passagem do exercício intelectual solitário para a loucura melancólica. Para um comentário recente, Cf. Kuhn, Reinhard : The Demon of Nootide. Ennui in Western Literature. New Jersey, Princeton University Press, 1976.
14)   Página 98.
15)   Página 98.
16)   Página 99.Outros autores discutiram o traço cômico de Platão: “no século l9, lord Macaulay o reconhece. Platão, ele notava, foi um dos maiores escritores humorísticos. Também o admite um dos mais intuitivos expoentes do platonismo, Walter Pater, citando como um dos maiores exemplos da tradição platônica na literatura grega tardia os diálogos cômicos do satirista Luciano”. H. Trevor -Roper, Il Rinascimento, Bari, Laterza, 1985, página 44.A referência a Macaulay está em G.O. Trevelyan, Life and Letters of lord Macaulay, World’s Classics, V.II, página 434. O texto de Pater é Plato and platonism, Caravan Library, l934, página 173.
17)   Revue Internationale de Philosophie  l48-l49, l984, 79-90.
18)   Trousson,pagina 87.
19)   Revue des Sciences Humaines, 182, 1981-2, páginas 55-64.
20)   Essais sur Diderot et l’Antiquité, Oxford, Clarendon Press, l957.
21)   Página 100.
22)   Note-se que O’Gorman aceita a bipartição entre o elemento apolíneo e o dionisíaco, ainda na trilha da leitura nietzcheana de juventude. Como estou mencionando sua análise, não posso deixar de lado este ítem, nela estratégico. Mas não é possível esquecer seu aspecto problemático e, mesmo, anacrônico. Um leitura como a de G. Colli é mais adequada e convincente. “O que escapou a Nietzsche é a duplicidade da natureza de Apolo, sugerida ...pela violência protelada, do deus que golpeia à distância...A sabedoria grega é uma exegese da ação hostil de Apolo... o símbolo do Apolo é o simbolo da vida. A vida é interpretada como violência, como instrumento destrutivo: o arco de Apolo produz a morte”. Colli, G. O Nascimento da Filosofia, Campinas, Ed. da Unicamp, l992, páginas  32-33.
23)   Cahiers Prévost d’Exiles, l984, nº 1, especialmente páginas 59-72.
24)   Paris, PUF, 1954.
25)   “A Carta sobre os Cegos revelou a Herder a importância do tato, este ‘sentido interno’ de que falava Diderot, o qual nos fornece os conceitos de corpo, de espaço, de esfericidade : descoberta importante, e que Herder sempre guardará no espírito. Já em 1769, ele se fundamenta no exemplo do cego de nascença, descrito por Diderot, para negar toda a estética de Menselssohn, fundada apenas sobre a visão e o ouvido”. Roland  Mortier, Diderot en Allemagne, Paris, PUF, l954, páginas 342-343.
26)   Oeuvres Esthétiques, Garnier, Ed. Vernière, página 510.
27)   nº 2, l984.
28)   página l55 e ss.
29)   Jauss, página 159.
30)   In : Denis Diderot oder die Ambivalenz der Aufklärung  , Heidelberger Vortragsreihe zum    Internationalen Diderot Jahr 1984, Konigshausen -Neumann, 1987, Harth, D. e Raether, M. Ed
31)   página 47.
32)   página 61.
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                                                                                                                                                                                                                        Um  filósofo satírico




                                    “Um jovem com muito espírito, mas bem perigoso”1
                                     


                        “O verdadeiro autor satírico permanece terrível ao longo dos séculos. Aristófanes, Juvenal, Quevedo, Swift, sua função é designar os limites humanos ultrapassando-os impiedosamente. Ele joga os homens num tal medo que isto os empurra para adiante de seus limites” (Elias Canetti) 2  Ao contrário de Aristóteles, de Joseph De Maistre, de Nietzsche, Diderot não integra o número dos satíricos apesar de si mesmos, a que se refere E.Canetti.3  Aristóteles defendendo a escravidão, Nietzsche no delírio do super-homem, De Maistre com suas “guerras divinas”, nenhum deles se aparenta com Diderot, pois a sátira deste último retoma o riso, desmanchando as teses “sérias” dos apologetas.

                        Diderot foi acusado de tudo. Nos “Annonces, Affiches et Avis Divers”, jornal literário de seu tempo, um resenhista de maus bofes  —marca notória do gênero—  produziu a crítica de sua Vida de Sêneca, na edição de 20 de janeiro de 1779. Diderot não saberia escrever, a prova estava neste livro. “A única regra à qual o autor parece ter querido obedecer, é o cuidado  com a divisão dos parágrafos, como para recuperar o fôlego”. Semelhante escrita seria um caos onde Diderot “esgota-se em reflexões filosóficas, em injúrias, em declamações; e depois os oh! os ah! apóstrofes a um e a outro;  um tom amargo e insultuoso,  alusões indecentes... estilo incorreto, barbaro, cheio de neologismos ; verdadeiro galimatias...insustentável; alguns pensamentos expostos, é verdade, com interesse, com força e calor, mas perdidos no dilúvio dos outros, obscuros, ininteligíveis;  numa palavra, trata-se do tom de um entusiasta que não mais conhece limites”.4 Compare-se estas invectivas com o crítico de nossos dias : “Enquanto Voltaire torna a frase aguerrida, elegantemente, Diderot a tortura : cortando-a com expressões ‘naturais’ (interrogações, exclamações, interrupções, repetições, pontos de suspensão), multiplinado os gritos, as palavras inarticuladas... os monosílabos”.5

                        Freron e os seus são castigados no Sobrinho.O debate foi ácido de parte a parte, como se comprova pelas resenhas dos textos diderotianos saídas no Année Littéraire.  Acusações de plágios contra Diderot (de Goldoni, Shaftesbury  e de  Bacon, “até as Jóias Indiscretas são extraídas, no que tange à idéia principal, que resume toda sua invenção, de um livro latino muito raro.”) . A virulência não escapou do próprio necrológio de Diderot, saído no volume 6  (l784) do periódico citado. Diderot, diz o piedoso articulista, é um destes escritores “que gostaríamos de considerar um espírito filosófico e que, ao contrário, tem sua fonte na carência de filosofia”. O papel do enciclopedista, na sociedade, seria apenas o de”charlatão”.

                        Após alguns mimos do mesmo jaez , o comentário fúnebre arremata: “hoje que ele tem como recomendação apenas as suas obras, nosso homem foi posto em seu lugar, já está quase esquecido. O Pai de Família é a sua única produção que sobreviveu. A este drama o grande chefe do partido filosófico deve ainda um resto de existência”. 6  Em outro periódico, o elogio de Diderot é mesclado às críticas  conhecidas: “imaginação ardente”, “juízo pouco sadio”, “egoísmo, aparência de sensibilidade que engana a juventude” 7 . A nota compara Diderot aos demais filósofos de seu tempo: “Ele não escreve tão bem quanto Rousseau, mas raciocina melhor ; ele conduz seus leitores a um fim ; depois de ler Jean-Jacques, não sabemos o que ele pensou. Diderot é menos eloquente do que Buffon, mas também é menos hipotético. No que se refere  a d’Alembert, seu rival, mais que seu amigo, Diderot o supera em tudo o que não seja geometria (...) Uma homenagem precisa ser prestada a Diderot : ele jamais acariciou os grandes e a fama”. Um juízo assim “equilibrado” e “justo”, sobretudo se o compararmos ao “elogio” posto no Année Littéraire, marcou a figura diderotiana até hoje. Imaginação fogosa, pouco juízo (tê-lo mais do que Rousseau não é muita lisonja, na pena do jornalista....), parca geometria, amor ao empírico, independência diante dos poderosos.

                        É importante passar em revista os textos sobre Diderot surgidos por ocasião de sua morte,  escritos por  seus críticos e inimigos.  Sem eles, fica nebulosa a parte da sátira que arrasta a pena do filósofo para a vida pessoal e para a cortina de ridículo que ele joga,  no Sobrinho, sobre seus adversários. Com este prisma bem definido, fica  evidente que o diálogo de Diderot não se limita à conjuntura. Ele encontra materiais para sua sátira do gênero humano em autores bem conhecidos na idade moderna, mas pouco notados em sua escrita.É o caso de Luciano e de Plutarco. Após adiantar outros exemplos dessa polêmica dirigida contra Diderot, entraremos no problema das fontes técnicas  —na sátira—  que , além de Horácio, Platão, etc.  serviram ao nosso escritor para construir de Freron, de Palissot, e de outros, uma imagem execrável, mas sobretudo exemplar da anti-moral, em plano normativo e político.

                        A luta entre os “filósofos” e seus adversários, Freron em especial, mostra ao leitor de hoje aspectos nada agradáveis dos primeiros, ao confirmar as emboscadas dirigidas contra eles pelos segundos. Voltaire fala de tolerância? Freron aponta a enorme intolerância da seita filosófica, ou mesmo “o espírito de vingança” da capela.8  O apelido “cacouacs” 9 , aplicado aos filósofos, tinha por alvo estigmatizar ao mesmo tempo seu marketing e sua escrita : “quando nosso jornalista (Palissot) lançava  flechas contra o comportamento pretencioso dos supostos filósofos, ele não fazia isto apenas porque semelhante exibicionismo o irritava. Como a obscuridade de sua linguagem só acobertaria o vazio de seu pensamento, sua exaltação da grandeza do homem servia apenas para mascarar seu nada”. 10

                        Para  exemplificar o riso dirigido contra Diderot, citemos o próprio Palissot. Tomo as suas Obras Completas 11.  Separo o volume II com as venenosas “Cartinhas sobre os Grandes Filósofos”. 12.  Desde o início aparece  a ponta ácida : “Todos estes senhores se dizem filósofos, e alguns atingem este estado”. Depois, vem a rude acusação de fanatismo moral, sobretudo na linguagem : ”Este tom de inspiração em uns, de ênfase nos outros, tão distante do tom empregado pela razão que duvida, ou da verdade que persuade, revoltou algumas pessoas sensatas”. Estas “pessoas sensatas” descobriram os plágios cometidos  por Diderot.

                        Segue-se a crítica da auto-propaganda, ou do marketing operado por Diderot  e seus amigos. Eles teriam erigido um  “trono literário” para impor suas idéias. “A convenção surda que transpirava de sua sociedade para o mundo e que desejava dizer : ninguém terá espírito, salvo nós e nossos amigos”. 13.  O tema da “cabala” grupal  para impor o próprio nome e idéias  não é desprovido de razões, sobretudo no caso dos enciclopedistas. Também hoje ocorre semelhante  técnica de auto-promoção gerando  personagens centrais da cultura. Antes,  Erasmo e Morus foram acusados deste manejo  para vender livros, impor doutrinas, desacreditar adversários. Consulte-se, sobre o problema, o trabalho um tanto monotemático  escrito por Lisa Jardine: Erasmus, Man of Letters 14. O subtítulo é eloquente: “The Construction of Charisma in Print”.

                        Comentando Erasmo, diz a autora: “Por ‘maior’ que tenha sido o homem na realidade, por melhores os seus talentos e feitos, é chocante observá-lo, através de suas páginas e de outros, fabricando sua própria grandeza”. Se Lisa Jardine lesse, em jornais brasileiros, artigos onde bajuladores das confrarias não hesitam escrever que fulano “é o maior filósofo” do país, e outras frases do mesmo naipe, teria farto material para trazer sua pesquisa do Renascimento para os trópicos. A diferença entre os artífices de sua própria fama, no século 16 e hoje, no Brasil, é a do modêlo para o mais hilariante simulacro.Quando intelectuais usam meios publicitários para  promover seu nome e impor  valores, o que aumentou muito com a imprensa, os resultados são previsíveis. Certamente os sócios menores da empresa abusam do logotipo para vender mercadoria de segunda.É o que ocorreu com os “filósofos” cujos trabalhos foram vulgarizados. Nosso crítico afirma que Diderot adulterava seus produtos, pilhando Bacon e outros. Ficou apenas a tese, explorada ao máximo pelo Padre Barruel, de uma seita filosófica contrária à sociedade cristã. De Maistre, mais tarde,  usou técnica idêntica à de Palissot para desacreditar o próprio Bacon. Sátira contra sátira....

                        Diderot sentiu o golpe, revidando-o na célebre passagem do Sobrinho sobre os bajuladores de Bertin, “animais tristes, frenéticos, malfazejos e enfurecidos. Só se ouvem os nomes de Buffon, Montesquieu, Rousseau, Voltaire e...de Diderot ; e Deus sabe de que epítetos acompanhados. Nenhum terá espírito se não fôr tão tolo quanto nós. Assim é que foi concebido o plano da comédia dos Philosophes”. O dito, utilizado por Palissot, e invertido com destreza por Diderot, encontra-se, como o indica Fabre, em Molière, nas Femmes Savantes: “Ninguém será espirituoso, salvo nós e nossos amigos”. 15 Todo infeliz que tenha caído nos círculos ou capelas formadas  —como quistos—  dentro ou fora da universidade, conhece semelhante técnica da auto-promoção com as bajulações recíprocas, as citações estratégicas, as rupturas frequentes, as acusações de felonia, etc. O neófito, encantado com a rede da aranha —os elogios sequiosos de reciprocidade, se possível hiperbólica— em pouco tempo  se desencanta e foge dos “amigos”,  caindo em outro e outro circulo, até à solidão absoluta .Neste reino animal do espírito segue-se a regra seguinte:  “eu te cito e tu me citas”, o resto é silêncio. O reino dos intelectuais, disse um dia A. Kojève, é o domínio dos ladrões roubados.

                        Palissot mesmo descreve esse modus operandi das capelas, atribuindo-o aos enciclopedistas: “Era preciso louvar para obter elogios...é a este refrão de louvaminhas cansativas que estes Senhores distribuiam, uns para os outros, certificados de celebridade... a quantos papéis singulares não expõe este pretenso desprezo pela glória, o qual, entretanto, é preciso conciliar com os interesses do amor próprio!”16. 

                        Em nossos dias são discutidas as afirmações de Diderot sobre seus críticos, no  Sobrinho, menos  negando a realidade dos fatos e dos atos,  e mais definindo  a reciprocidade do tratamento entre os adversários.  Nem se assume a hagiografia de um Diderot “perseguido injustamente”, nem se desculpa seus inimigos, como se estes fossem automáticos defensores do Antigo Regime, da Igreja, etc.  Neste plano, é nuclear o trabalho de Jean Balcou, Le Dossier Fréron, Correspondance et Documents. 17  Alí se  discutem  as ações de parte a parte, com documentos de valor inegável.


                        “Os turcos nunca falaram de seu Corão com exagero mais ridículo”, esta é uma das pontas  certeiras de Palissot contra os encômios dos enciclopedistas à...Enciclopédia.18  Pode-se acusar de reacionarismo o arrazoado do crítico, mas quem se preocupa com a vida moderna e contemporânea encontra matéria para pensar  —e não apenas ao modo de Rousseau— na seguinte diatribe partindo de um “eu” que se recusa a assumir o tom laudatório exigido pelo “negócio das Luzes” 19 .  Vejamos: “...eu, para quem esta mania de tratar abreviadamente todas as ciências parece coisa de sábios pela metade, que dispensam a leitura das fontes; eu...enfim, que estou fortemente convencido de que, num século onde muito se pensaria,  trabalhar-se-ia menos a partir do que os outros pensaram ... peço perdão a estes Senhores...”. 20 A atitude de Palissot é bem conforme à tese de que o mal seria um bem e vice versa. “Eis, Senhor, minha profissão de fé bem imparcial sobre a Enciclopédia. Podemos aplicar-lhe o que Pope disse do homem; ele o chama vergonha e honra da natureza : creio que em muitos aspectos, a Enciclopédia é também a vergonha e a honra de nosso tempo”.21

                        Em seu estudo sobre as leituras de Pierre Bayle, feitas no século 18, Pierre Rétat apresenta um retrato  matizado de Palissot. Se foi contrário ao “charlatanismo filosófico”, ele também julgou-se inimigo dos “charlatans de religion”, como Fréron, Chaumeix, e outros. Citando D. Delafarge, em seu trabalho sobre La Vie et l’Oeuvre de Palissot (1730-1814), Rétat afirma que “este homem cultivado, desejoso de seguir o movimento intelectual de seu tempo, voltaireano por gosto e pelas idéias, tornou-se de algum modo um ‘anti-filósofo a despeito de si mesmo’”. 22 Isto não o impediu de “salvar” Bayle para a religião protestante. Palissot denuncia a obsessão daquilo que os alemães chamaram, por estarem muito contentes com seu luteranismo, a “raciocinação” dos franceses. Assim, para ele, Bayle teria fustigado  a razão presunçosa, estando longe de aprovar “esta mania audaciosa do raciocínio, esta filosofia temerária da qual muito se abusou neste século para destruir todos os fundamentos da moral”. Este trecho, inserido no livro Mémoires Pour Servir à l’Histoire de Notre Littérature, acaba conduzindo, como nota Rétat, para uma sátira: “a virtude exemplar de Bayle serve apenas para ironizar Diderot, o inimigo mortal de Palissot”. Nas palavras do próprio: “Ele (Bayle) mereceu verdadeiramente o nome de sábio. Não se ouviu Bayle, embora perseguido de fato, gritar ‘perseguição!’...Ele não teve a fatuidade de se comparar a Sócrates. Ele não prodigalizou grandes termos como humanidade e virtude, repetidos com tamanha frequência, e com um entusiasmo tão falso, pelos charlatães de nossa época”. 23

                        Palissot, por seu comportamento oportunista durante o Terror,  parece ter merecido as flechas envenenadas do Sobrinho. Mas seu alvo, enquanto voltaireano desejoso de manter alguma coisa da religião, era estabelecer uma luta em duas frentes. “Contra a Enciclopédia, contra Diderot e o materialismo ateu, ele queria elevar uma frente comum da filosofia razoável. Um Voltaire asseptizado, um Bayle confiável, todos os excessos esquecidos (...), são recuperados a qualquer preço : opostos ao mesmo tempo aos filósofos e aos anti-filósofos fanáticos, eles servem como caução à via média que Palissot tenta assumir”.  Palissot procura elogiar o pirronismo, conciliando esta atitude à religião “raisonnable”. “Entre todas as seitas filosóficas”, escreve, o pirronismo é a que “mais naturalmente nos dispõe a abraçá-lo”. Enquanto isto,  a metafísica mostra-se apenas como “un campo tenebroso” onde o espírito se perde.24  

                        As críticas de Palissot teriam boa acolhida mesmo em escritores muito próximos a Diderot. Em artigo denso de consequências,  Roland Mortier  apresenta o dilema  de toda filosofia  “democrática”. A Enciclopédia,  e tal é a crítica de Palissot, deseja ser uma obra aberta. Diderot não tem a ingenuidade de acreditar que todo discurso possa endereçar-se ao público na sua inteireza. O artigo “Encyclopédie” lembra “que sempre existirão obras acima da capacidade dos homens comuns”. Mas, para Diderot, continua Mortier, “a verdadeira questão é a de saber se importa fornecer à filosofia (que ele entende também como filosofia moral e a teoria das ciências), uma linguagem, uma forma, uma expressão que a torne acessível a todos, ou pelos menos a todos os que se interessam ativamente por ela. O problema não é apenas de ordem moral ou pragmática; ele atinge a possibilidade de comunicação e de recepção de um pensamento novo e abstrato... dificilmente integrado no vocabulário usual. De fato, Diderot instaura um debate sobre aidéia de vulgarização. ele tem consciência das concessões que isto implica, dos seus limites também, mas deseja alargar a audiência da filosofia sem prejuízo para  a sua dignidade”.25

                         Diderot fracassou, conclui Mortier, por muitas causas. Entre elas, o afastamento dos ‘idéologues’, pretensos herdeiros das Luzes, da metafísica, “à qual Diderot concedia ainda em 1753 um plano privilegiado: eles têm pouco gosto pela especulação abstrata e irão impôr à filosofia objetivos utilitários e sociais. Mas, mais profundamente, ele não acreditaram na conciliação entre ‘filosofia’ e povo, na possibilidade aproximar  —como dizia Diderot— ‘o povo do ponto onde estão os filósofos’. No  século 19, o crescente especialização da filosofia, o apelo inflamado de Diderot perderá seus últimos ecos.Ele parecerá, com o recuo dos tempos, como uma das quimeras mais significativas e mais sedutoras da idades das Luzes”. 26  Com os “idéologues”, pessoas como Palissot estavam “vingadas”...

                        Se relativisarmos a “culpa” dos inimigos , atenuando o ressentimento pessoal na composição do Sobrinho e se acrescentarmos o traço da filosofia popular,  teremos  uma outra análise da sátira naquela obra. Colocando entre parêntesis o plano empírico e histórico imediatos, podemos discutir os seus participantes enquanto “cópias de cópias”, imagens que figuram sensivelmente os tipos ideais de comportamento humano. Se o fim visado é conduzir as verdades éticas e científicas ao maior número possível de leitores, nada mais eficaz do que uma escrita onde   as personagens encenam virtudes e vícios humanos universais.

                        Um escritor satírico. A afirmação precisa receber aval do próprio Diderot. Poderíamos evocar muitos textos de nosso homem para provar este ponto 27  . Inicio com um trabalho que levantou celeuma no século dezenove, ajudando a fama  do enciclopedista enquanto homem “pouco sério”. Refiro-me ao misto satírico de prosa e poesia  contra o poder e os costumes, intitulado Les Éleuthéromanes, ou Abdication d’un roi de la Fève  (l772). 28   O’Gorman finaliza sua análise em Diderot, the Satirist, colocando nosso escritor sob o signo de Apolo, para exorcizar o dionisismo  que o empolgava. O comércio com Platão,  moderado autor satírico, inspiraria nosso moderno Sócrates. O Sobrinho , obra de catarse, terminaria com a vitória da paz estabelecida pelo autor consigo mesmo.  Não é esta a imagem que o leitor retira de Diderot nos Éleuthéromanes.

                        O texto começa com uma apologia do ditirambo que os antigos dedicaram a “Baco,o deus da embiaguez e do furor”. Isto corresponde à liberdade na composição, indicando a audácia  poética na escolha do assunto. Presa do  entusiasmo, o poeta “seguia sem se sujeitar a nenhuma medida, amontoando versos de toda espécie, como lhe  eram inspirados pela variedade do ritmo ou desta harmonia cuja fonte reside no fundo do coração”. O tempo e o ritmo aceleram, tornam mais lento, temperam os movimentos dos versos, “segundo a natureza da idéia, dos sentimentos e das imagens”. Estas  características notabilizam o estilo do Sobrinho, procedimento a que Leo Spitzer chama de “ritmo fisiológico”29 .  Em  outro ensaio, Spitzer  cita um trecho do Paradoxo sobre o Comediante que define a importância do ritmo na arte de escrever e de encenar: “Os acentos podem ser imitados melhor do que os movimentos, mas os movimentos ferem com maior violência”. 30  Georges Daniel, em seu Le Style de Diderot, Légende et Structure 31  lembra tal “ritmo fisiológico”:  como aproveitar a religião para outros fins? Basta fazer com que, nos templos, homens dancem com homens, mulheres com mulheres, e homens com mulheres. Assim,  “Eu faria tanto por meus imames que a dança religiosa passaria dos templos para as casas, das casas para as ruas, e que pouco a pouco o espírito religioso seria esquecido e a dança tornar-se-ia uma diversão pública e geral”. (Memoires  pour Catherine II) 32 .

                        O ritmo ensandecido orienta a pena do filósofo : “semelhante ao personagem que ela caracterisa, a loucura de Rameau, atestada pelo epíteto que se prega em seu nome, se decompõe em duas loucuras contraditórias : uma é fisiológica, tumultuosa, alienante, delírio do gesto e desvio da palavra; a outra é burlesca, palhaça, em busca de aplausos, feita para captar a benevolência de um público. Folia desencadeada, folia raciocinada : Rameu é louco e ‘faz-se de louco’; como na pantomima dos ‘aduladores, dos cortesãos, dos criados e dos vadios’”.33 No poema Eleutheromanes, Diderot desce no tempo até Píndaro, para gerar uma concepção da estrofe, da antistrofe, e do epodo, como se fossem três personagens “que perseguem, unidos, o mesmo elogio ou a mesma sátira. A estrofe tange o assunto; às vezes a antístrofe interrompe a estrofe, se apossa de sua idéia, e abre um novo campo para o epodo, o qual possibilita um repouso ou fornece um outro rumo à estrofe”. O ritmo, a dança, a pantomima estão presentes neste “elogio” ou “sátira”, dando-lhe o tom poético de uma conversa viva, esperta.

                        Nos Eleutheromanes, diz o próprio Diderot na introdução do poema, “vemos um interlocutor feroz, ferido vivamente pelo pensamento de um primeiro interlocutor, cortar-lhe a palavra e se apoderar de um raciocínio que ele promete expôr com mais fogo e força, ou se precipitar num vazio brilhante”.  34  Não é apenas neste trabalho que o filósofo  desdobra a unidade, mostrando ser possível pensar o múltiplo transformando o Um  em “pessoas” imaginárias. Aqui, trata-se dos elementos do verso ditirâmbico. Na Carta sobre os Surdos e Mudos, Diderot autonomiza, de modo plástico,  os cinco sentidos em “pessoas” que formam uma “sociedade”.

                        Vejamos a homologia entre verso e sentidos: “Minha idéia seria...decompor, por assim dizer, um homem, e considerar como ele depende de cada um dos seus sentidos.Lembro-me de ter-me ocupado algumas vezes desta espécie de anatomia metafísica; e achava que, de todos os sentidos, o olho era o mais superficial; o ouvido, o mais orgulhoso; o olfato, o mais voluptuoso; o gosto, o mais supersticioso e o mais inconstante; o tato, o mais profundo e mais filosófico. Seria, no meu entender, uma sociedade engraçada, a composta por cinco pessoas na qual cada uma delas teria apenas um sentido; não há dúvida de que estas pessoas se considerariam recíprocamente  insensatas; e deixo que vocês pensem com tal fundamento.Está é, no entanto, uma imagem do que se passa a todo momento no mundo : só temos um sentido, e julgamos sobre tudo. De resto, há uma observação singular a ser feita sobre esta sociedade de cinco pessoas da qual cada uma delas teria apenas um sentido; é que, pela faculdade que ela teriam de abstrair, poderiam todas serem geômetras, entendendo-se às mil maravilhas, e só entender-se em geometria”.  35

                        As duas “sociedades”, a  dos versos e a  dos cinco sentidos,  são regidas pelo ritmo frenético e ensandecido.Cada um dos elementos “fala”, buscando supremacia sobre os demais. Para quem não é filósofo, verso e sentidos definem uma unidade na superfície. Mas o real, o efetivo, é o caos revelado na “anatomia”, pelo despedaçamento do todo. Para fugir do elemento caótico originário, o único recurso seria a geometria. Mas a compreensão entre as pessoas, adquirida por esta linguagem, limitaria as possíveis falas com sentido apenas...à geometria. Esta é uma refutação violenta do ideal clássico da mathesis universalis. A geometrização do saber, posta como paradigma de conhecimento físico, ético, moral, estético, religioso, mostra aqui os seus limites. Com sentido diverso ao de Vico, Diderot evidencia a falta de razão da imagem puramente geométrica do mundo. Não produzimos este último, nem o nosso corpo e mente. Para  captar a nós mesmos, precisamos perceber nossa origem caótica, seguindo as infinitas tentativas da natureza e nossas para atingir o sentido racional, um resultado transitório e nunca pressuposto. Poderíamos penetrar por este atalho, a crítica à mathesis universalis, descendo até Francis Bacon e a recusa da hegemonia absoluta da matemática. Este ponto, válido para o Chanceler inglês e para seu imitador Diderot, impingiu-lhes não poucas acusações de “primitivismo”  no plano da ciência moderna. Conhecemos os enunciados  sobre este ponto polêmico da filosofia de Bacon. Th. Kuhn parece ter apresentado razões graves para não aceitarmos as caricaturas de Francis Bacon, alardeadas por autores como A. Koyré. 36

                       
Seguidor de Bacon, Diderot não poderia, neste ítem, deixar de receber  caçoadas de escritores pouco afeitos às dificuldades expostas por um pensador aberto ao plural, e que fugiu do espírito de geometria, com seu dogmatismo matematizante. Até hoje o leitor incauto pode encontrar, como verificamos recentemente em artigo jornalístico de famoso economista brasileiro, anedotas inverídicas sobre Diderot fugindo da corte russa, envergonhado, por não poder refutar um “argumento”   —posto em forma de teorema—  sobre a existência divina... Tais lendas são refutadas, com precisão, no livro de Jean Mayer.37 Importa notar que a atenuação do papel das matemáticas no conhecimento da física e da cultura, em Diderot, corresponde ao que ele chamou de “anatomia metafísica” : análise de elementos costumeiramente unidos, o que nos dirige ao caos primitivo. A harmonia é só um dos casos possíveis dentro do mundo, das idéias, dos valores. Ceticismo, de um lado, e sátira, de outro, indicam, sob a camada “harmônica”, um turbilhão cujo ritmo é estonteante. O repouso mostra-se aparente.

Nesse ponto, acentua-se um nexo entre a recusa da matematização absoluta e o mundo da experiência física ou moral. E o vínculo passa, justamente, pela figura do músico Rameau, o tio do personagem diderotiano. “O sentido da vista é o mais superficial” lemos  na Carta sobre os surdos  e os mudos. Se tomássemos a Carta sobre os Cegos , revisitando a definição dos olhos, por Saunderson, chegaríamos às mesmas teses sobre o tato, “o mais profundo e filosófico dos sentidos”. O que é a vista?   “É um orgão...sobre o qual o ar faz o efeito de um cajado sobre minha mão”.  E recomenda Diderot: “abram a Diotriptica de Descartes, e vocês observarão os fenômenos da vista ligados aos do tato, e as pranchas de optica cheias de figuras humanas ocupadas em ver com bastões. Descartes, e todos os que vieram depois dele, não puderam nos fornecer idéias mais nítidas da visão; e este grande filósofo não teve a este respeito mais vantagem sobre nosso cego do que o povo que possui olhos”. 38

Se a vista é o sentido mais superficial, e se o tato é o mais profundo e filosófico, a audição constitui o sentido mais orgulhoso. Se à soberba  associarmos a ordem matemática e o dogma da harmonia natural primitiva , continuando na cultura, chegamos à descrição exata das idéias de Jean-Philippe Rameau. O compositor-filósofo teria o mérito de encontrar, segundo D’Alembert, “no baixo fundamental o princípio da harmonia e da melodia ; de ter conduzido por este meio, a leis mais certas e simples, uma ciência jogada antes dele às regras arbitrárias ou ditadas pela cega experiência”. Como sabemos, Rameau não se contentou com este momento teórico, unindo música e matemática. O passo seguinte foi dado por ele: a matemática, ela própria, seria um produto musical. Nas frases de C. Kintzler: “Doravante  as matemáticas  deverão submeter-se a um modelo musical : o princípio de geometria é apenas o corpo sonoro...quem conhece a teoria do corpo sonoro detem uma espécie de saber absoluto. O reino de Rameau teórico não conhece mais barreiras. A música lhe aparece como a chave de inteligibilidade do universo inteiro, ela dá seu fundamento a toda luz, a toda demonstração, a toda cientificidade”  Kintzler cita Rameau passando um pito no geômetra: “ Quaisquer que sejam as razões com que o geômetra se vista para autorizar suas descobertas, elas sempre parecerão o trabalho de um instinto do qual a natureza nos apresenta o germe no corpo sonoro: ela só poderia se explicar ao ouvido”.39 Não por acaso, pois, Diderot pode enunciar que, de todos os sentidos, o que se localiza na orelha é o mais orgulhoso...

“Há uma ordem primitiva e invariável na natureza, sobre a qual tudo deve ser estabelecido, e da qual é preciso partir necessariamente”. 40  Colocando-se lado a lado esta tese cartesiana, assumida por Rameau, e a concepção  caótica que marca o pensamento  de Diderot, veremos que este último, na sátira que discutimos, o Sobrinho, atinge  os mores de sua gente, os da humanidade, e  a atitude dogmática ramista, que preocupou mesmo D’Alembert, para quem a matematização, em física e na música, possui limites. “Não devemos procurar... esta evidência espantosa, própria dos trabalhos geométricos, e que se encontra tão raramente nos da física. Entrará sempre na teoria dos fenômenos musicais uma espécie de metafísica, que estes fenômenos supõem implicitamente, e que alí colocam sua obscuridade natural; não devemos esperar, nesta matéria, o que chamamos demonstração, já é muito ter conduzido os principais fatos a um sistema bem ligado e consequente, e tê-los deduzido de uma só experiência”.41 Se D’Alembert, admirador de Rameau e das matemáticas, contrário à “experiência cega”, apresenta reservas diante da universalização e do pretenso método demonstrativo ramista, imagine-se o que de tudo isto pensava Diderot, para quem, dentro da natureza profunda não vigora o domínio da matemática, em termos absolutos, e que faz o elogio do tato, contra a visão e o ouvido. J. Chouillet tem amplas razões para indicar, na Carta sobre os Cegos, o processo moderno contra a metafísica.


“O ceticismo é o primeiro passo rumo à verdade”. 42 . Este lema, indica R. Niklaus, permanecerá até nas últimas obras diderotianas.43  Neste ponto, poder-se-ia dizer, não há novidade em Diderot. Descartes, com a dúvida metódica, Pascal acolhendo as suspeitas dos libertinos contra a razão, Hegel, fazendo a marcha do Conceito digerir o momento cético, integrando-o no sistema  44 , todos eles fizeram o ceticismo assegurar o papel da mão do gato, para atingir uma certeza primeira, situada na razão ou na fé. Mas de algum modo nosso autor escapa desta linhagem dogmática. Para ele, “a dúvida é necessária”, enquanto, ao mesmo tempo, paradoxalmente, “existe a verdade, mesmo se a encontrada por nós é relativa”. 45 Este pêndulo entre suspeita e verdade produz uma oposição permanente nos textos diderotianos,  impedindo-o de seguir qualquer via fixa e única. “Meus pensamentos são minhas rameiras” : a frase corresponde à “libertinagem do espírito”, a qual serve para constituir “um trampolim para exprimir paradoxos que fazem sobressair a verdade”. 46  

Desses paradoxos, o menor não é a criação de personagens que os encarnam. Como vimos, os sentidos são transformados em “pessoas”, os versos também recebem personalidade. Não espanta se o diálogo é recurso permanente na pena diderotiana. Dela brotam Dorval, Jen-François, Saunderson, D’Alembert, Jacques, e uma infinidade de máscaras, que afirmam e negam conceitos, apalpam as dobras dos fenômenos, declaram verdades e as negam na página seguinte. Liberdade e determinismo, conhecimento e ignorância, a cadeia dos oxímoros que movimentam a escrita de Diderot lembra sempre, ao leitor, “a anarquia que reside no coração do homem” e que é “um fator que ele reconhece e deve aceitar”.

                        Nos Eleutheromanes  conferimos a justeza das observações avançadas por J. Chouillet sobre a linguagem enérgica de Diderot. Este último, no Salão de l767 fala sobre a “cruel energia que existe no fundo do coração humano”. Todo homem sofre de um excesso de energia. Segundo Diderot, é loucura tentar extrair  paixões. Entre delas liberar o ser humano ou liberá-las, o filósofo escolhe a segunda alternativa. Para atingir este fim, deve-se atentar para a força da conversa. Nenhuma lingua é possível sem a percepção instantânea do objeto. “Quanto mais a expressão se aproxima desta unidade original, mais energia ela tem”. Por não poder falar tudo ao mesmo tempo, “unimos muitas idéias  numa só expressão”.  (Carta sobre os Surdos e Mudos). É isto que Diderot chama o “hieroglifo” ou “emblema”.47

                        Chouillet apresenta consequências paradoxais sobre essa teoria diderotiana da linguagem. Em primeiro plano, há uma relação entre a energia da fala e a quantidade de discurso.  Se, além disto, a energia da linguagem é inversamente proporcional à quantidade de discurso, podemos supor que este se reduziria à uma palavra, um gesto, silêncio total, sendo assim o “mais enérgico”. Chouillet não lembra, mas é possível estabelecermos uma correlação entre o aforismo diderotiano sobre a pintura, “Pintar, como se fala em Esparta” e um outro, presente no Sobrinho de Rameau: “Era  a Noite com suas trevas; era a Sombra e o Silêncio, pois o próprio Silêncio é colorido por sons”.Chouillet considera “uma estranheza” diderotiana o elogio do silêncio, pois “o silêncio absoluto em literatura não existe. Ele só pode significar quando está empenhado num sistema de signos”. O terceiro traço notável dessa atitude diante da linguagem é que um discurso, para sua beleza, depende de seu gráu de energia. É o que se pode ler em “Eu e Dorval” : “O que nos afeta no espetáculo do homem de alguma grande paixão ? Seus discursos ? Às vezes. Mas o que sempre emociona são os gritos, as palavras inarticuladas, as vozes que se quebram, alguns monosílabos que escapam por intervalos, não sei bem qual murmúrio na garganta, entre os dentes”. Entre estas afirmações e a marcha entusiástica dos Eleutheromanes há mais do que simples concordância.

Essa perspectiva sobre a energia da lingua conduz Diderot a não apreciar tanto Eurípides na tragédia grega, pois este último seria “muito civilizado”. Também Sófocles não o atrai com entusiasmo sublime, porque seria “muito raciocinador”. Ésquilo o apaixona, com as Eumênides infernizando  Orestes: “... momento de terror e piedade, quando ouvimos a súplica ... do infeliz atingir, através de gritos e  movimentos, os seres cruéis que o perseguem!”.48  Termina Chouillet : as palavras inarticuladas têm, segundo Diderot, mais energia do que os discursos. E cita o próprio Diderot num arroubo entusiástico pelo estraçalhamento da fala contra a rigidez fria dos modernos: “Filoteto na caverna vale muito mais do que os personagens de Racine em seus palácios : ‘A verdade! A natureza! Os Antigos! Sófocles! Filoteto!”. 49

                        A mesma força corrosiva definida na linguagem enérgica, encontra-se nas considerações diderotianas sobre a tragédia e a sátira. Em ambas, o alvo é limpar a fala de suas escórias intelectuais, ou pedantes, para atingir as experiências mais próximas da infância ou do original humano. Nesta tarefa dionisíaca, trata-se de primeiro destruir as certezas e as formas de expressão (pintura-teatro-poesia-música) que se tornaram canônicas. No drama, Diderot avançou para a produção dos elementos burgueses, desligados dos aristocratas sem alma e sem corpo do teatro “clássico” . Seu intento fracassou conjunturalmente, mas abriu o atalho para o teatro moderno, onde as dores e alegrias da vida não passam  hegemonicamente por aquelas máscaras . Na sátira, o poderoso acicate para seu trabalho foi o ceticismo filosófico, de um lado, e, de outro, seu conhecimento  da cultura greco-latina, com a tradição de, rindo, castigar os costumes .

                        Muitas leituras  consideram ”relativista” o pensamento filosófico de Diderot . Como nota L. Crocker, a natureza, na concepção do pensador, é  o caos misterioso. A ordem que nela vemos é só aparente, porque existe apenas em relação aos nossos processos mentais. O homem atenua a desordem que se apresenta no íntimo da natura. Ordem e desordem cósmicas são intercambiáveis , pois são, ambas, simultâneas 50 . A diferença entre a atitude diderotiana e o ceticismo, pode ser sugerida na leitura do artigo “Ecletismo”  51 . Primeiro, o ponto de união: “Céticos e ecléticos poderiam assumir como divisa comum  : nullius addictus jurare in verba magistri”. A seguir, a diferença: os ecléticos, menos difíceis do que os céticos, aproveitavam muitas idéias que estes últimos desdenhavam. Deste modo, “sendo o ceticismo a pedra de toque do ecletismo, o ecletico deveria sempre seguir ao lado do cético, para recolher tudo o que seu colega não reduzisse ao pó inútil, pela severidade de seus ensaios”. Dissolução, desmembramento, pulverização:  caminhos que mostram um todo fragmentado como base para se entender o mundo e o homem enquanto sínteses provisórias. Isto exige que o filósofo materialista e eclético ouça o cético, antes de avançar algo sobre o pensamento e os fenômenos.

                        Se não está preso às certezas dogmáticas, o eclético  assume teses das mais variadas origens. Enquanto os outros filósofos vivem em sociedade civil, com suas propriedades intelectuais e títulos, o eclético vive no estado de natureza , “onde tudo pertence a todos” 52 . Na verdade, o eclético é como o rei que devora os bens de súditos e de inimigos. Discutirei esta imagem mais adiante. Pitágoras, Zenão, e outros, pilharam os sistemas de seus amigos ou adversários. É grande a tentação do leitor, diante destas frases, de lembrar a corda na casa do enforcado. Diderot, em quem se reconheceu o pilhador de Bacon, de Goldoni, de Locke, e de outros, é um “rei da fava” ou um “rei filósofo”...eclético? Qualquer resposta é possível. Importa assinalar que a pilhagem não deixa intocado o larápio. “é muito difícil para um homem de juízo, que frequente muitas escolas filosóficas, apegar-se exclusivamente a um partido qualquer, e não cair no ecletismo, ou no ceticismo”. 53

                        Vale escutar uma caracterizaçao da atitude cética, comparando-a com a de Diderot: “O cético se revela particularmente sensível à questão da diaphonia, chama continuamente nossa atenção sobre ela, sem permitir que a esqueçamos ou percamos de vista, como é habitual na maioria dos filósofos, que não consentem em sobre ela demorar-se. Ele nos convida com insistência a que consideremos com cuidado e meditemos profundamente sobre o conflito permanente das posições filosóficas, por assim dizer condenadas a desse mesmo conflito se alimentarem e viverem. A que examinemos mais de perto a curiosa natureza desse empreendimento que nos leva a sustentar teses e pontos de vista como eminentemente racionais e verdadeiros, mas que os outros filósofos sempre rejeitam, nunca aceitam nem podem, parece, aceitar. O cético propõe-se a fazer-nos conscientes do inegável desafio que a perpetuação inevitável desse estado de coisas representa para nossos desígnios filosóficos costumeiros. E se esmera em denunciar a estranha obstinação dos filósofos dogmáticos em dai não tirarem as necessárias consequências, nem extraírem a lição que se impõe. O cético a extrai e suspende o juízo” .54

                        Enquanto o cético aponta as certezas que se entrechocam,  transformando-se em amontoado de fragmentos, sem solidez alguma, o eclético também retira consequências das guerras filosóficas: “A leitura dos filósofos também produziu seu gênero de emulação; argumentou-se, sistemas foram edificados, dos quais a disputa revelou bem depressa o forte e o fraco: então sentiu-se a impossibilidade tanto de admitir quanto de rejeitar cada um deles por inteiro”.55  Céticos e ecléticos dizem que os sistemas são instáveis na sua base. Mas, enquanto os primeiros deixam os materiais de uma construção do universo “sobre a terra”, os segundos buscam edificar algo sólido, sabendo que isto é impossível com o modêlo do universo que tinham diante dos olhos. “Pois tais homens não se propõem nada menos do que encontrar a pasta do grande Arquiteto e os planos perdidos deste universo; mas o número dessas combinações é infinito.Eles já tentaram um grande número, com pouquíssimo sucesso; mas eles continuam sempre a combinar: podemos chamá-los ecléticos sistemáticos”.56    Ao ecletismo sistemático, soma-se um outro, o experimental, que consiste em reunir verdades conhecidas e fatos dados, aumentando o seu número pelo estudo da natureza. “O ecletismo experimental é partilhado pelos homens laboriosos; o ecletismo sistemático é o dos homens de gênio; quem reuní-los terá seu nome colocado entre os de Democrito, de Aristóteles e de Bacon”.
                       
            Desde o século l9 a crítica  acompanha, na obra de Diderot, o caminho que vai do deísmo ao franco materialismo, passando pela trilha cetica. Esta é a leitura de Erdmann, Rosenkranz, e outros. Haveria, no dizer de Erdmann, uma “evolução” ou, pelo menos, uma “oscilação” do pensamento diderotiano, do deísmo ao ceticismo e, deste último, ao materialismo ateu. 57 . Mais apropriada para descrever a atitude filosófica diderotiana, parece, é a manutenção, em todos os seus passos, do choque entre desejo de verdade e certeza de sua impossível obtenção absoluta.

                        Se o filósofo busca o saber, partilhando com o dogmático a vontade de conseguir alguma via segura para o conceito, ele também reconhece que todo conhecimento é provisório, aberto às mudanças mais radicais, tanto no plano físico quanto no da cultura espiritual. Poderíamos, ousando um pouco, comparar esta atitude de Diderot ao que ele mesmo diz sobre a paixão dos jovens amantes quando, à beira de uma árvore, juram amor eterno. Eles não mentem, mas desconhecem que o céu, com suas nuvens, muda. E com o firmamento, ambos também se transformam. Sua “eternidade” é real, mas transitória. 58  Mente, com dolo, o religioso que decreta o vínculo inquebrantável de indivíduos mutáveis. Também no plano do saber, temos a impressão de possuir conhecimentos sólidos. Isto não é um erro ou mentira. Esta última começa, no dogmatismo, quando são eludidos os novos elementos, descartando-os por colocarem em risco sistemas bem ajustados, mas que se revelam falsos. O filósofo eclético partilha, com o cético, “o antidogmatismo, a recusa das idéias prontas, a rejeição da autoridade, a liberdade de pensamento....Fazendo assim, Diderot passou pelo crivo de seu próprio ‘ecletismo’ a imensa logomaquia das seitas filosóficas, como juiz esclarecido e menos como historiador”. 59

            O exercício poético unido ao ceticismo que impulsiona de modo permanente a atitude eclética, apresentam-nos uma filosofia que precisa destruir as certezas físicas e morais, os sistemas científicos e políticos, colhendo o ser humano na sua face ao mesmo tempo séria e cômica, trágica e gaiata. A sátira não é sermão que usa o ridículo para ensinar verdades éticas estabelecidas e permanentes. O filósofo mergulha na humanidade, partilhando com ela alguma certeza, mas abrindo-se ao inesperado. À fixidez aparente do mundo e das consciências, ele retruca com o riso e os versos entusiastas, ao modo pindárico. Ceticismo e sátira constituem um mesmo recurso analítico. Ao contrário do uso que  Descartes fez da dúvida cética (ou Pascal, ou Hegel...), Diderot não a expulsa  60 , como não joga fora o riso, para ficar com a seriedade dogmática e bem pensante, com suas asserções  ex hypothéseos. Na epistemologia, na ética, na estética, na política, com o ceticismo e a sátira, “ri melhor quem ri por último”

                        Os versos de Diderot , nos Eleutheromanes, parecem  o pastiche de Rousseau. “O filho da natureza odeia a escravidão...Costumes ou caretas do uso, podem bem servir como veu à ferocidade; uma urbanidade hipócrita, as agilidades de um tigre preso em sua jaula, não enganam o olho do sábio; e, nos muros da cidade, ele reconhece o homem selvagem, agitando-se sob os ferros que o garroteiam”. O traço político desta sátira foi notado pelos seus editores em pleno século 19. Eles conectam  o grito de liberdade do “homem natural” à recusa da tirania monárquica. Ressalta, na “notícia histórica” dos Eleutheromanes, o tema dos reis devoradores de homens. “Naigeon o desenvolveu em 1790, em seu discurso à Assembléia Nacional : ‘Homero dá aos reis...um título notável ; ele os chama comedores de povos,  populi vorator rex... e depois cita Plutarco :’Eu sei que um rei, por natureza, é um animal que se nutre de carne humana, zôon, ô basileus, sarcophagon estin “. Nós devoramos como lobos esfaimados, diz o Sobrinho . Neste ponto,os particulares não diferem dos governantes. O tom hobbesiano da sátira, em  Diderot, já foi notado pelos comentadores. Não irei desenvolver este ítem.O alvo da sua escrita, tanto no Sobrinho quanto em outras críticas dos costumes, elevam-se ao  gênero humano, colhendo os indivíduos nas mais amplas determinações.Estas ultimas definem particularidades que vincam um número definido dentro da espécie.  A isto o Jean-François chama “idiotismo” de comportamento e linguagem.


                        Tecendo considerações sobre Swift, discípulo de Luciano no século dezoito,Basil Willey indica um ponto crucial das técnicas satíricas. Nelas, o alvo maior é “nos enganar fazendo-nos ver coisas efetivas e familiares como se fôsse pela primeira vez, ou como se fôssemos visitantes de um planeta utópico, ou da China, da Persia, ou de qualquer outro quartel da razão”. Além disto, trata-se, para o satirista, de “arrancar o objeto satirizado da sequência familiar que normalmente o reconcilia conosco,  fazendo-nos vê-lo como ele é realmente em si mesmo, como a criança viu o imperador despido no conto de Hans Andersen”.  61 

                        Há uma condição para que o satirista seja bem sucedido: seu texto deve reformular nossa relação com as coisas.  Para isto, ele as retira da sequência e ordem “naturais”. O inesperado no habitual:  dominando esta técnica o escritor nos espanta, trazendo o caos para o aparente cosmos a que nos habituamos. Willey une esta força plástica à energia da razão, capaz de colher a incongruência entre o que  parece “normal” e o que de fato ocorre . A sátira  declina quando a razão perde a hegemonia do pensamento 62 , abrindo o campo para a sensibilidade apaziguada com o existente. “Shaftesbury, Hutcheson e Hume prepararam a via proclamando que nossos juízos morais, como os estéticos, não brotam totalmente da Razão”. A sátira oscila entre aceitar uma situação ou revolucioná-la. Já esta sensibilidade, sobretudo ao situar-se no íntimo, anuncia a sujeição do homem às “condições existentes”, mote da política conservadora. “Burke proclamou que ‘a política deve adaptar-se, não à razão humana, mas à natureza humana, da qual a razão é uma parte, e não a maior”. 63

                        Essa dialética do “sentimento” foi bem colhida por E.Auerbach, referindo-se aos herdeiros de Rousseau na Contra-Revolução. O que seria “natural” para a gente educada do Ancien Régime, para  Rousseau era pura falta de sentido. Dele, diz Auerbach, os discípulos que viveram sob a política romântica  “guardaram apenas a cisão interna, a tendência para a fuga da sociedade, o desejo de se isolar e permanecer sozinhos; o outro lado da natureza de Rousseau, o lado revolucionário e combatente, êste eles perderam”. 64  Diderot caminha entre a razão e o sentimento. A razão dá-lhe a certeza do gênero, com seu modo próprio de ser, o sentimento abre-lhe perspectivas de crítica aos indivíduos.É  difícil estabelecer um balanço de sua real atitude política. Mas ela é dirigida para a mudança das instituições. Claro, não se trata de uma revolução nos moldes jacobinos. A sátira diderotiana inclui o elemento racional e mergulha no caos das paixões. L. Crocker tentou dizer isto em seu trabalho sobre Diderot.  65 .

                        Alguns fenômenos naturais, afirma Crocker, “são manifestamente naturais, especialmente os mecânicos”.Mas a própria vida não pode ser explicada deste modo. Para Diderot, “Uma explicação dos fenômenos em termos racionais, como a mecânica celeste, substancia um universo num processo ordenado. Mas a introdução do tempo e do devir, do processo de mudança, injeta elementos desordenados —a evolução dos mundos, a produção de animais e monstros, conduz à conclusão central de uma ordem da desordem”. 66  A existência humana foge ao controle de uma explicação totalmente racional. É por este motivo, segundo Crocker, recusada a utopia. O Sobrinho exemplifica isto. As ações dos outros também estão fora de nosso império. Frequentemente elas são irracionais e imprevisíveis. Não dominamos a maioria de nossos  atos. Não subjugamos nosso destino. O escritor não captura seus pensamentos, “suas rameiras”.  Diderot, como Sartre,  entendeu que o mundo ordenado esconde desordens intoleráveis. “O mundo das explicações e razões não é o mundo da existência”.67  Para o filósofo , “Ordem e desordem são qualidades complementares da mesma realidade. Esta verdade ele entendeu, explorou, e aplicou”.68

                         Eleutheromanes :  poema satírico e báquico. Na política, para entender a atitude diderotiana, a lembrança dionisíaca é fundamental.. Leitor dos antigos e dos modernos, Diderot captou  a doutrina hobbesiana sobre o homem. No De cive, justo no fim do capítulo l2, há  o símile entre o povo que deseja mudar o governo e as filhas do rei da Tessalia. Aconselhadas por Medéia, elas cozinharam Eson, após tê-lo decepado, esperando  rejuvenesce-lo.  69 Em carta a Sophie Voland, lemos que a passagem correspondente à citada por Hobbes é o único trecho de Ovídio apreciado por Diderot. Nele, Medéia aparece como “bacante”. 70  Gianluigi Goggi, discutindo as metáforas de Hobbes e de Diderot sobre Medéia, mostra que se no primeiro a operação de rejuvenescimento fracassa, no segundo ela é bem sucedida, no relativo à reforma do Estado.71 .Em Hobbes, a saúde do corpo  social e político exclui o conflito. Para Diderot, ocorre o oposto. Hobbes condena a eloquência. Diderot a exalta. Ela deslancha a resistência ao poder arbitrário, e liga-se aos movimentos de revolta e rebelião, recurso dos povos contra os soberanos que romperam o contrato social “e  separam seus interesses dos interesses da sociedade”.72

                        As primeiras linhas da “Epístola Dedicatória”, no  De Cive, mostram os homens do povo romano como lobos devoradores, que destroem os demais, vivendo, como os reis, de rapina. Diderot inverteu a imagem, acompanhando o juízo de Catão repetido  em Plutarco: Zôon ô basileus, sarcophagon estin.A referência ao delírio báquico para descrever o povo, o elogio da eloquência, a violenta face dos reis, devoradores de povos, tudo isto faz lembrar que  Diderot,  leitor das tragédias antigas, soube apanhar a essencia da invectiva hobbesiana. Ele inverteu o nome do verdadeiro  dissolutor da república. Se os reis são como deuses, como queria Jaime I, e se o deus invocado é Baco, a sátira  mostra o despedaçamento da república, estilhaçando os poderosos que agem ao modo dos tiranos. Dionisio, sublinhe-se, não é reconhecido imediatamente como poderoso.Sua força explode nas mãos das mulheres que despedaçam e devoram seus próprios filhos.73  A dilaceração, no Sobrinho, é preparada por outros escritos diderotianos, especialmente os políticos, na confluência de sua leitura dos antigos e modernos.74 


            Elisabeth de Fontenay indica, no Sobrinho de Rameau,uma forte  crise da razão. A autora aproxima o elemento báquico e diderotiano do pensamento nietzcheano  juvenil , O Nascimento da Tragédia. O deus, afirma Nietzsche,  parece um indivíduo que erra e sofre.”Ele se parece” avança Fontenay, “ao Sobrinho,este Dionisos sofredor dos Mistérios, este deus que faz sobre si mesmo a prova dos sofrimentos da individuação e cujos mitos admiráveis relatam que, menino, ele foi estraçalhado pelos Titans, e que se venera assim, mutilado e disperso, sob o nome de Zagreus”.O que mais dá a pensar, analisa Fontenay seguindo Nietzsche, é que o mito dionisíaco não tardou a perecer.  Logo chegaram os “ Lucianos sarcásticos”. No trabalho de Diderot,  os dois momentos, a morte do mito e o sarcasmo lucianesco, são contemporâneos, “o que autoriza talvez, na leitura do Sobrinho,  pensá-lo como um ditirambo gemente oferecido a esse Dionisos desmembrado que também é um filósofo ‘à venda’”.  75   Encontram-se, nesta citação de Fontenay , os  elementos que reuní ao longo dessas primeiras páginas, sobretudo a passagem do ditirambo, dos Eleutheromanes ao Sobrinho de Rameau, pela evocação de Luciano de Samosata, autor cujo tratamento  do mito  modelou as grandes obras satíricas do mundo ocidental.

1)Relatório da Polícia sobre Diderot, Bibliothèque  Nationale, n.a.f., l078l, f.l46.
2)  Le Territoire de l’Homme,Paris, Albin-Michel, 1978, página 298.
3)  páginas 277-278.
4) Texto publicado em Rodgers, G. B. Diderot and the Eighteenth Century French Press- Studies on Voltaire and the Eighteenth Century. Editor: Fheodore Besterman. V. CVII, The Voltaire Foundation, Banbury, Oxford Shine, l973, página 57.
5) Cf. Kempf, Roger, Diderot et le Roman, páginas 106-107.
6) Rodgers, página 76.
7) “Notice sur  M. Diderot”. Journal des Gens du Monde, Rodgers, página 236 e ss.
8) Cf. Balcou, Jean, Fréron contre les Philosophes. Genève, Droz, l975, página  l36.
9) Do grego “kakos” (malvado) e a sílaba humorística “couac”. Onomatopéia que busca retratar a pretensa algaravia filosófica. Carnap não chegou a tanto, na crítica a Heidegger.
10) Balcou, op.cit. página l52.
11) Nouvelle Edition, Revue, Corrigée & Considerablement Augmentée, A Londres -et Paris-  Jean-François Bastien, l779.
12) páginas l05 e ss.
13) página ll2.
14) Princeton, University Press, l993.
15) III,2.
16) Palissot, páginas ll4-ll6.
17) Genève, Droz, l975.
18) Palissot, Oeuvres, ed. cit. T.6, páginas 386-388.
19) têrmo de R. Darton.
20) Palissot páginas l26-l27.
21) Palissot, Oeuvres, ed. cit. T. 6, página 388.
22) Cf.Rétat, P. Le Dictionnaire de Bayle et la lutte philosophique au XVIIIe. Siècle. Paris, Les Belles Lettres, 1971, páginas 343-344, nota 16.
23) Citado por Rétat, página 345. Note-se a insistência no tema do palavrório. Retornarei a este ponto.
24) Dissertation sur les Progrès des connaissances humaines (1755). Rétat, página 346.
25) R. Mortier, “Diderot et le Projet d’une ‘Philosophie Populaire’ in Revue Internationale de Philosophie, Diderot et l’Encyclopédie, nº l48, fasc. l-2, páginas l82 e ss.
26) Mortier, página l95.
27) Testemunhos explícitos de admiração por autores satíricos, como Swift, são encontrados nos escritos diderotianos, como por exemplo no artigo “Humor” da Enciclopédia. Diderot cita o lugar comum, sempre que se trata de Swift:  este, “pelo torneio que sabia dar às suas brincadeiras, produziu às vezes, entre seus compatriotas, efeitos que jamais se poderia esperar de obras mais sérias e melhor raciocinadas, ridiculum acri, etc. É assim que ele aconselhou os inglêses a comer com repolhos os filhos dos irlandeses, fazendo o governo inglês a mudar de atitude, quando este estava prestes a arrancar os últimos recursos de comércio que restavam aos irlandeses”.  Admiração que vai até a paródia, ou, mesmo, cópia. O capítulo XL dos Bijoux Indiscrets, “Rêve de Mirzoza” foi tirado da Battle of the Books (l697), publicado em l704, de Swift. Cf. Dedeyan, Charles. Diderot et la Pensée Anglaise. Firenzi, Leo S, Olschki Ed. l987, páginas 94-95.
28) Uso a edição A.Ghio, l884 (Édition du Centenaire).
29) “The Style of Diderot” in Linguistics and Literary History,Princeton University Press, l948, páginas l35-l9l
30) Critica Stilistica e Semantica Storica, Bari, Laterza, l966, página 307.
31) Gèneve, Droz, l986.
32) cit. por Daniel, página 7l.
33) Daniel, página 337.
34) É de muito interesse, neste plano, ler o artigo “Pindarico”  (AT, l6, páginas 293-294). “O nome de Píndaro não é apenas o nome de um poeta, mas do próprio entusiasmo. Ele traz em si mesmo a idéia de transportes, separações, desordem, digressões líricas; entretanto, ele sai muito menos de seus assuntos do que se acredita normalmente; seus pensamentos são nobres, sentenciosos, seu estilo é vivo e impetuoso, suas ações são ousadas; mas embora ele pareça, às vezes, abandonar seu assunto, ele nunca acaba sem a ele retornar... As ousadias que reinam em suas odes, e sobretudo a irregularidade de sua cadência e de sua harmonia, fizeram alguns poetas  imaginar que eles tinham feito odes pindaricas, porque seus versos apresentavam o mesmo delírio”.
35) AT. página 532-533.
36) Rossi, Paolo: Os Sinais do Tempo, São Paulo, Cia. das Letras, l992, páginas l4-l5.
37)  Diderot Homme de Science.
38) Lettre sur les Aveugles, Pleiade, páginas 8l4-8l5. “A história da filosofia ocidental é a história da vista, da ideologia dos videntes, a história do geral que se considerou universal, esquecido de seu solo sensorial e de sua essencial relatividade”.Eric-Emmanuel Schmitt, “La Question du Sensualisme” in Revue Philosophique,3/l984, página 373.
39) Rameau, “Lettre au Père Martini”, l759, cit. por Kintzler, página 4l.
40) Rameau, cit. por Kintzler, página 37.
41) Discours Préliminaire aux Élements de musique. cit por Kintzler, página 207.
42) Pensées sur l’interpretation de la Nature, xxx.
43) .“Réfléxions sur la Philosophie de Diderot”, Revue Internationale de Philosophie, Diderot et l’Encyclopédie, l48-l49, l984, fasc. l-2, páginas 24 e ss
44) N. Merker, “Hegel e lo scetticismo”, in Le Origine della logica hegeliana. Cf. Marcelo Gigante, Scetticismo e Epicureismo,Napoli, Bibliopolis, l98l, página l5.Cf. também Dumont, Jean-Paul, Le Scepticisme et le Phénomène, Paris, Vrin, l985, páginas 75-79.
45) Niklaus, página 28.
46) Niklaus.
47) Chouillet, J. Diderot poète de l’Energie. , página 30.
48) cit. por Chouillet, página 36.
49) cit. por Chouillet, página 36. Escreve Diderot: ‘os gritos de Filoteto rasgam as entranhas do espectador’ . Dando crédito à selvageria, à desmesura do efeito produzido pelas cenas  —tanto no fundo quanto na forma—  Diderot opõe-se à norma da tragédia clássica de seus contemporâneos (...) Diderot  fornece igualmente indicações sobre a nova escrita dramática que deve predominar depois do classicismo”. Szondi,Peter: “Denis Diderot, Theorie et Pratique Dramatique” in Diderot,Paris, Comédie Française, l984, página40.
50) Niklaus, página 34.
51) AT, l4, páginas 304 e ss.O artigo ecletismo, “contem o esboço de um auto-retrato e uma chave de leitura que se aplica às outras compliações da história da filosofia redigidas por Diderot”. P. Casini, “Diderot et le Portrait du Philosophe Écletique”.Revue Internationale de Philosophie, “Diderot et l’Encyclopedie”, l48-l49, l984, fasc. l-2, página 36.
52) AT, l4, 305.
53) Página 306.
54) Porchat Pereira, “Ceticismo e Argumentação”. Analytica, V.l, l, l993, página 32.
55) .Diderot, op. cit.
56) Diderot, op. cit.
57) Cf. Mortier, R. Diderot en Allemagne, página 385.
58) Há um comentário importante deste ponto em R. Niklaus (op.cit. páginas 3l-32) : para Diderot, “O universo, desde toda eternidade toma formas diferentes num devir incessante sem começo nem fim, enquanto nosso mundo finito segue lenta mas inelutavelmente rumo ao seu fim próprio nesta ‘depuração geral’ de que Buffon tinha consciência. O presente, o passado, o futuro nada mais são do que a soma do mundo que se torna um com a eternidade.Mesmo para nós, há uma espécie de eternidade. Como ele diz em outro lugar: ‘Vivo, ajo e reajo em massa...morto, ajo e reajo em moléculas”. (Lettre a d’Alembert)”. “Que sequencia prodigiosa de gerações de efêmeros atesta nossa eternidade! Que imensa tradição! Mas nós todos passaremos, sem que se possa assinalar nem a extensão real que ocupamos, nem o tempo preciso que tivermos durado. O tempo, a matéria e o espaço talvez sejam um só ponto”. Lettre sur les Aveugles, Oeuvres Philosophiques, ed. Vernière, página l24.
59) P. Casini, “Portrait d’un Philosophe Écletique”, página 45.
60) Cf. Schwarts. Jerome. Diderot and  Montaigne. Genève, Droz, l966.
61) ‘Nature’ in Satire’, in The Eighteenth Century Background, Studies on the Idea of Nature in the Tought of the Period.Boston, Beacon Press, 1961, páginas 95-109
62) Páginas 108-109
63) página 109.
64) Mimesis,The representation of reality in Western Literature, trad. Trask,W.,N.Y., Doubleday l957, página 412.
65) Diderot ‘s chaotic Order.
66) páginas l5l-l52 .
67) página l68.
68) página 169.
69) Hobbes, Opera Philosophica, Vol. II, Scientia Verlag,  Second Reprint, l966, página 296.
70) Metamorfoses, Livro VII.258.
71) ”Diderot et Medée dépeçant le viel Éson” in Colloque International Diderot l7l3-l784,Chouillet, AnneMarie, Paris, Aux Amateurs de Livres, l985, páginas l73 ess.
72) Goggi, página l80.
73) Otto, W. “A Tenebrosa Demência”, in Dionysos,Paris, Mercure de France, l969; Jeanmaire,H. Dionysos, Paris, Payot, l985; Daraki. M. , Dionysos, Paris, Arthaud,l985.
74) Do lado doutrinário, há homologia entre esta atitude diderotiana face ao despedaçamento dionisíaco e a sua percepção, marcada por um forte sentido epicurista redimensionado para as ciências modernas,  da existência humana. “O homem enquanto organização efêmera, não escapa à lei geral da dissolução, algo nele sempre subsistirá : as moléculas de que é formado”.Chouillet, Jacques, Diderot, Poète de l’Energie,página 24l. Como a bacante Medéia, a  natureza nos corta e recorta, sempre rejuvenescendo.
75) Fontenay, Diderot ou le Materialisme enchanté.

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                                    Luciano e Diderot: algumas aproximações

                       


           
                         O nexo entre Diderot e Luciano tem sido afirmado por vários autores, embora a maior parte deles insista no peso maior do relacionamento entre o sírio e Voltaire. Tal é o caso de Ernest Renan :  “Luciano foi a primeira aparição desta forma do gênio humano,    encarnada completamente por Voltaire, e que, em muitos aspectos, é a verdade (...). Luciano nos aparece como uma sábio perdido num mundo de loucos. Ele nada odeia e ri de tudo, menos da virtude séria”. 1 C. Robinson fala sobre a recepção de Luciano na Europa sem aprofundar as relações entre ele e Diderot. Suas análises sobre as influências lucianescas nos séculos dezessete e dezoito, entretanto, deixam claro que o solo estava preparado para o trabalho  do enciclopedista. 2 Em dissertação mais extensa, dedicada à presença de Luciano na literatura das Luzes, Ludwig Schenk atribui todo um capítulo aos vínculos entre os dois. Schenk não analisa o Sobrinho, mas apresenta alguns prismas estratégicos dos textos diderotianos, e da própria figura de Diderot, que auxiliam bastante a reflexão sobre o diálogo entre “Eu” e “Ele”. 3 

                        Comparando os escritores, o homem das Luzes e o sírio, Schenk indica  pressupostos  comuns que fazem de Diderot  “um Luciano moderno”.  A semelhança principal entre ambos é de ordem estilística e psicológica : Diderot pensa e escreve como  Luciano, usa com agilidade a forma dialógica, reúne a prodigiosa e turbulenta diversidade de suas idéias e sentimentos, domina a técnica do improviso.Todos estes traços, já vimos, encontram-se nos Eleutheromanes : fluidez, idéias e sentimentos personificados em figuras que se sucedem numa turbulência dionisíaca, onde a fala sugere a improvisação dialógica.

                        Outra semelhança, aponta Schenk, é a tentativa livresca de recolher todos os conhecimentos de seu tempo e da cultura humana. Em Diderot e Luciano encontramos filosofia, literatura, arte, política, história, ciência, tudo o que seu temperamento e engenho pudesse adquirir. Os dois escritores possuem o talento do grande jornalista, divulgador e crítico.O seu racionalismo comum conduz à uma afinidade interna na produção de textos como o Asinus, ou a Verae Historiae lucianescos e Tiago, o Fatalista. Notável também, nos dois letrados, a presença simultânea dos sentidos, implicando  a música,a pintura, a dança.

                        Apesar desses “belos paralelismos”, afirma Schenk, “Diderot não é um lucianista, como também não o é Voltaire”. Na obra inteira de Diderot não  encontraríamos  nenhum diálogo cuja forma, motivo, estilo, tivesse o modêlo estrito de Luciano. Os exemplos mimetizados por Diderot seriam os diálogos inglêses, especialmente os de Shaftesbury e Berkeley. Diderot, entretanto, partilharia do lucianesco sarcasmo contra os mitos, conforme a fala de Nietzsche : passado o dionisismo, “o mito fenece, suas folhas caem, e logo chega a vez dos Lucianos sarcásticos da antiguidade, correndo atrás das folhas descoloridas e mortas que voam pelos quatro ventos”. 4 O trecho que Schenke indica, em 1931, é o mesmo que E. Fontanay cita. A virulenta dessacralização  aproxima Diderot  de Luciano. Para o primeiro,  à maneira do segundo,  todos os deuses tornam-se risíveis, disto  resultando o ateísmo das Luzes e a anarquia espiritual, como seu último extremo.5

                        Se não identifica um diálogo de  Diderot cujo modelo seja de Luciano, Schenke aponta a ordem e a qualidade das citações lucianescas, notáveis em vários trabalhos do enciclopedista.Nelas, ressalta a temática  do cinismo e do estranhamento entre  scitas e gregos. Em Luciano,  como veremos, o scita aparece como alheio ao ethos da cidade grega, formulando perguntas que embaraçam um filho de Atenas, indicando o quanto a paideia , julgada “natural” pelos helenos, era muito questionável. Discutirei isto mais abaixo.  Sigamos as citações de Luciano  em  Diderot.

                        No dicionário de filosofia recolhido nas Obras de Diderot, editadas por Assezat  6 , na voz  “Cínicos”, Luciano é unido a Menipo de Gadara,  modelo literário  e  seu “herói em moral”. Diderot também refere-se aos  cínicos Demonax e Peregrinus e resume,  com economia de palavras, as suas vidas : “Demonax viveu sob Adriano, e  serviu enquanto modelo para todos os filósofos ...ele praticou a virtude sem ostentação ... e recriminou o vício sem acidez ; ele foi ouvido, respeitado, e acarinhado durante sua vida, e preconizado pelo próprio Luciano após sua morte”. Notemos, no retrato de Demonax feito por Luciano, alguns traços que integram,  sem dúvida,  os escritos satíricos  e “sérios” de Diderot.

                        A primeira marca de nosso Demonax é sua liberdade e fala sem peias.   Demonax não se prende a uma ou outra escola filosófica, mas  “combina muitas delas, nunca  revelando qual  é a sua favorita”. O termo para esta atitude, no século dezoito francês, é “ecletismo”. ”Um homem perguntou-lhe qual escola filosófica ele preferia, Demonax replicou: ‘ quem  disse que eu sou filósofo?’ Quando o homem se foi, Demonax caiu na gargalhada.  Favorinus perguntou-lhe do que estava rindo, respondeu: ‘parece-me ridículo  pensar que um filósofo possa ser valorizado por sua barba, se você mesmo não tem uma”.7 .Acentua-se o caráter moral, a livre maneira de ser e falar, o riso e o ecletismo deste filósofo cínico  —que espantava as pessoas ironizando  sua condição de filósofo  sem dogmas. Finalmente, nota Luciano, Demonax “ tinha ... muito em comum com Sócrates, embora não partilhasse sua ironia : sua fala era cheia de encanto ático”. 8

                        A esse pensador  risonho, severo para com os costumes mas benevolente face aos que erravam, Diderot  compara outra figura  biografada por Luciano,  o desregrado Peregrinus, o qual “iniciou cometendo adultério, depois foi pederasta e parricida, terminou como ‘cínico’, cristão, apóstata, e louco. O seu ato mais louvável, durante toda a sua vida, é se ter queimado vivo ; julguemos, por ele, as demais”. Sem avançar aproximações difíceis, seria interessante discutir o dualismo dos personagens. O primeiro  é tido por Diderot como  eclético, aberto mas sempre idêntico a si mesmo. O segundo  nunca é igual a si mesmo, assumindo todos os papéis éticos e morais condenáveis. Ambos    podem fornecer materiais  para se construir um “Ele ” e um “Eu”, no Sobrinho de Rameau. O moralista Demonax se identifica com Sócrates, ícone preferido de Diderot na filosofia grega, ao contrário de seu ex-colaborador na Enciclopédia, Rousseau, cuja preferência vai para o autor da República. Quanto a Menipo, Diderot, no texto citado, diz que ele “tornou-se mais recomendável pelo gênero de escrita ao qual ligou seu nome, do que por seus costumes e sua filosofia”.  A referência admirativa ao gênero e à técnica literária  mostra a afinidade entre Diderot e Menipo.

                        Outro aspecto importante o tema scita em Diderot, a partir de Luciano. O “motivo scita” surge em Luciano em três textos estratégicos: no Anacharsis seu de Gymnasiis, no Toraxis sive Amiticia, e no Scytha seu Hospes. Diderot discute as figuras de Anacharsis e de Toraxis no Dicionário Enciclopédico, no artigo “Gregos”, ao discutir  Solon.9  O tema também aparece no artigo “Scitas”.10 Este povo, egresso da natureza, sem leis, sem padres, sem monarcas, sente-se tão feliz quanto o  grego, desenvolvido culturalmente. Diz por exemplo Schenk: Diderot, de um modo caçoísta  faz o pastiche de Rousseau: “Ora! a ignorância dos vícios seria preferível ao conhecimento da virtude, e os homens tornar-se-iam malvados e infelizes na medida em que seu espírito se aperfeiçoa e que os simulacros da Divindade diminuem entre eles?”.                   

                        Tal fio condutor acompanha a produção do Sobrinho de Rameau. Neste ponto vou adiante das análises apresentadas por Schenk. O personagem “Ele”,  Jean François, é lídimo fruto da cultura, sua natureza, por assim dizer, é cultural. Este personagem conhece as noções de vício e virtude, até mesmo as estuda nos autores morais para aperfeiçoar sua prática cínica e cética.”Digo corrupto, é para falar a sua linguagem ; porque se nos chegássemos a explicar, poderia ser que o senhor chamasse vício o que eu chamo virtude, e virtude aquilo que chamo vício”.11  No mundo refinado onde  a lei é feita  para ser eludida, onde se fala em virtude para melhor praticar vícios (as Ligações Perigosas  exemplificam tal  modo de ser ) surge a estranheza que fez brotar o elogio do “homem natural”.Deste último, entre muitos personagens, o scita é representante. Uma desordem escondida é pior, para Diderot, do que o caos explícito. Somando os  benefícios e os malefícios do confronto entre os civilizados gregos e os “bárbaros” scitas, Diderot  arremata: “prefiro um crime atroz e monentâneo do que uma corrupção policiada e permanente ; um violento acesso de febre, do que as manchas da grangrena”.12

                        Retomemos o nosso problema, a partir do que dissemos sobre os Eleutheromanes e a devoração dos súditos pelo rei. Dissemos que  os indivíduos fazem uns contra os outros o que os soberanos realizam contra os povos.Passamos para o tema do envelhecimento do corpo republicano, com o remédio encontrado por Diderot na figura de Medéia despedaçando o sogro, tentando rejuvenescê-lo. O modo ideal para renovar a política é o despedaçamento, cruel mas necessário, para deter a morte do Estado. Esta atitude conecta-se ao dionisismo dos Eleutheromanes, à sua concepção de conversa e verso, no ditirambo.  Com o tema scita, Diderot prefere um estado de inculta violência ao de refinada selvageria . Esta última é “grangrena” que anuncia morte. A força que faz o “bárbaro” despedaçar a si mesmo e ao seu próximo, num furor repentino, traz vida.O tema scita ocasiona uma análise da cultura “superior” européia, nos moldes das interpretações vigentes também na filosofia de Rousseau, mas com sentido oposto. 

                        O ícone scita  ocasiona uma análise da cultura “superior”. A sociedade letrada e polida é criminosa como outra qualquer, mas sabe usar a fala e a máscara para inverter os nexos reais. Onde reina a violência pura, ela se mostra  “espiritual”. No artigo “Sociedade”, Diderot afirma que as aglomerações humanas “ sutilizaram os vícios, refinaram a arte do crime;  daí vem o fato de que enxergamos frequentemente, em nações policiadas, atentados dos quais não encontramos similar entre os selvagens. Os gregos, com toda a sua polidez, com toda a sua erudição, e com toda a sua jurisprudência, não adquiriram a probidade que a natureza, sozinha, fazia reluzir entre os scitas”.  Schenk aponta para um influxo real dos problemas discutidos no Discurso sobre as Ciências e as Artes nestas linhas, e não só para riso ou  caçoada do indivíduo “Eu”. No Sobrinho , é preciso ir adiante de Schenk, temos a  figuração da cultura que traz em si mesma um lado “bom”  —a superfície que parece   até meio óbvia—  na fala do “homem honesto”, enquanto “Ele” é o refinamento no exercício da canalhice, insuportável para as relações “normais” entre os homens. Há uma regra jurídica universal que diz não ser permitido a ninguém alegar a própria torpeza. E se Jean-François Rameau fosse um expediente, utilizado pelo “moralista”, para atingir seus alvos reais? O homem da natureza, o desigual, o que não pode ser livre, ou seja, “Ele”, como os scitas, brota diante da consciência honesta, desarrumando esquemas e desculpas.

                        “Pintar como se falava em Esparta”. A frase, lida nas Pensamentos Dispersos sobre a Pintura  13  contrasta  com a catadupa de palavras, frases kilométricas, períodos enormes de Diderot, no Sobrinho. Alí, enunciados curtos interrompem longas digressões, quase todas na boca do artista sem obras.Como analisa Schenk, um estilo deste tipo encontra-se em Luciano,  nos seus exames de quadros e nos seus relatos, breves e completos. Este ponto  une a  escrita decorosa e a forma escritural de Luciano. Comentando o trabalho de Poussin, “O testamento de Eudamidas”, Diderot usa a técnica por ele apreciada em Luciano e no pintor francês. Nas poucas linhas dedicadas ao quadro, Diderot apanha o  motivo em sua essencia, a estrutura artística que tem diante de si. A pintura  evoca um homem digno e pobre que lega sua mãe e irmã a dois amigos ricos e poderosos. Nesta cena da morte, retratada por Poussin, pergunta Diderot, “quais são os acessórios? Nenhum , só a espada e o escudo do personagem principal, pendurados no fundo”.

                        Luciano emprega  o mesmo número de linhas para contar a história exemplar de Eudamidas sobre a amizade. Há, em seu texto, um elemento silenciado por Diderot, e não visível imediatamente em Poussin. A história de Eudamidas possui dois lados, um sério, quase sublime, e outro ridículo, dependendendo de quem a escuta. O legado pareceu ridículo aos que desconheciam a amizade entre Eudamidas,  Charixenus e Areteus,  os dois últimos sendo os “herdeiros” inusitados. Muitos consideraram a história uma brincadeira risível.14 . Este traço da história não foi pintado por Poussin, mas Diderot nota ser ele  o contraste que produz, no quadro, o choque gerador de sua força sublime. Luciano enuncia a inversão real  na história dos amigos : o que para eles é serio, parece risível para os não iniciados nos segredos da sua amizade. Diderot traduz genialmente este antagonismo para a pintura de Poussin, enunciando o problema ético em termos estéticos: “O silêncio, a majestade, a dignidade da cena são coisas poucos sentidas pelos observadores comuns”. Voltarei a este prisma da sátira, que usa o duplo efeito causado no choque entre o que é ridículo na existência, e o seu lado sério, e vice-versa.

                        O último ponto  levantado por Schenk na afinidade entre Luciano e Diderot, situa-se num prisma fundamental do Sobrinho : a pantomima. Diderot escreveu coisas fundamentais sobre esta arte nos Conversas sobre o Filho Natural, em Eu e Dorval , na segunda “Conversa”.Um elemento importante, é ter ele feito a citação de Luciano sem indicá-lo diretamente. “Nós perdemos uma arte, cujos recursos os antigos conheciam bem. A pantamomima desempenhava outrora todas as condições, os reis, os heróis, os tiranos, os ricos, os pobres, os habitantes das cidades, os do campo, escolhendo em cada estado o que é  mais próprio; em cada ação, o que é mais notável. O filósofo Timócrates que assistia certa vez este espetáculo, do qual a severidade de seu caráter sempre o havia afastado, dizia : ‘Fui privado deste espetáculo pelo meu pudor!’.Timócrates tinha uma vergonha prejudicial ;  ela privou o filósofo de um grande prazer”.15  A passagem de Luciano, não citada explícitamente por Diderot, nem discutida por Schenk, encontra-se em De Saltatione.16

                        O trecho diderotiano que vem logo a seguir, na “Conversa”, também foi extraído  de Luciano, ainda no De Saltatione.O cínico Demetrius, que atribuía todo o efeito da representação aos instrumentos, às vozes, à decoração, mudou de juízo quando ficou diante de um pantomímico que lhe disse “Só me olhe desempenhar ; e diga, depois, de minha arte, o que você quiser”. Arremata Diderot: “As flautas se calam. A pantomima inicia.Grita  o filósofo num transporte : ‘Eu não te vejo apenas; eu te ouço. Tu falas com as mãos’”. 17  No texto de Luciano, também desta vez, aparecem elementos poupados por Diderot em seu escrito, mas que podem ser preciosos numa aproximação entre o escrito lucianesco e o Sobrinho. No trecho correspondente ao citado, o pantomimico não apenas “fala com as mãos” mas, após o silêncio das flautas e do coro, “ele dançou os amores de Afrodite e Ares (...) Hefaístos agarrando-os na armadilha, os deuses que chegaram até eles retratados individualmente, Afrodite envergonhada, Ares buscando cobertura e implorando piedade, e tudo o que pertence à história (Odisséia, VIII, 266-320)”.18 Só após esta passagem pelos gestos proteicos do artista chega Luciano à  sua garrulice manual .

                        É possível ser eloquente sem a lingua falada. O  ator realiza este feito 19 . Diderot,  na Carta sobre os Surdos e os Mudos foi mais longe, buscando no próprio exercício comunicativo dos surdos e mudos os elementos para a compreensão da estrutura e da gênese da fala, com sua retórica e sua poética. O método proposto segue a via do ceticismo fundamental. Um mudo ou surdo não tem preconceitos sobre a lingua falada. Ele está próximo à natureza, sendo uma imagem dos homens fictícios, empregados bastante, de Montaigne até o século l8, sob o título de “selvagens”.20

                                    Trata-se de propor uma tradução da lingua gestual para a oralidade 21 , não salvar apenas o sentido e o pensamento, mas  fazer  a ordem dos signos da tradução corresponder fielmente  aos gestos do original. Com este recurso, poder-se-ia substituir os gestos pelo seu equivalente em palavras. Isto,  “porque existem gestos sublimes que jamais a eloquência oratória poderá traduzir” . A senhora Macbeth, na peça de mesmo nome, caminha silenciosamente com os olhos fechados, imita a ação de uma pessoa que lava as mãos, como se elas estivessem ainda manchadas pelo sangue do rei degolado por ela há mais de vinte anos. “Não conheço nada mais patético do que o silêncio e o movimento das mãos desta mulher”. O mímico descrito por Luciano, e assumido como exemplo por Diderot, parolava com as mãos. A senhora Macbeth  fala com estes instrumentos corporais. O gesto vence o discurso. O elogio da energia gestual encontra-se também no Discurso sobre a Origem da Linguas. Rousseau, entretanto, dá a entender que tal força desapareceu gradativamente da comunicação humana.22  Diderot, amigo do teatro e da técnica, considera que esta capacidade, eminentemente cultural, pode ainda ser aprendida e reproduzida, como toda e qualquer modificação do espírito.

                        A passagem pelo outro   —o cego, o surdo, o mudo—   ajuda o homem de bom gôsto a ampliar, refinando-os, os seus dotes estéticos. Diderot  costumava assistir peças de teatro com os ouvidos tapados, para que a linguagem dos gestos lhe mostrasse, no desempenho dos artistas, todos os seus acertos e defeitos. Também a crítica da pintura  aproveita este artifício. Quem passeia por uma galeria de quadros, diz ele na Carta sobre os Surdos e Mudos, realiza, sem pensar nisto, o papel de um surdo que se divertiria ao examinar mudos que se entretêm sobre assuntos que lhes são conhecidos. É com esta técnica, confessa Diderot, que foram vistos por ele os quadros dos Salões. “Considerei que se tratava de um meio seguro para reconhecer as ações anfibológicas e os movimentos equívocos”. 

                        “Pintar como se falava em Esparta”. A  linguagem dos gestos, a mímica e a pantomima, ajudam a encontrar o decôro próprio ao laconismo, a eloquência exata para persuadir e encantar sem garrulice e indiscreção.”Como um pintor mostra-me suas figuras na tela...é preciso silêncio no quadro”, escreve Diderot a Madame Riccoboni.23  O decôro integra a metodologia que exige o ceticismo, contra as afirmações dogmáticas que não examinam os seus próprios erros. A análise da linguagem, via gestos, ajuda a diminuir as anfibologias e demais equívocos de comunicação.24  Na escrita  depositamos nosso modo de pensar : “não sei se podemos ajuizar de modo sadio sobre os sentimentos e os costumes de um homem através de seus escritos; mas creio que não correríamos o risco de nos enganar sobre a justeza de seu espírito, se o julgássemos pelo seu estilo ou melhor, pela sua construção... Vi que todo homem, do qual só se poderia corrigir as frases refazendo-as completamente, era uma pessoa da qual só poderíamos reformar a cabeça dando-lhe uma outra”.

                        A alma pode ser comparada à música: o juízo é a formação dos acordes e o discurso constitui a sua sucessão. O som que une um juízo ao outro, seria o traço dedutivo .25  Mas ela também pode se aproximar de  “um quadro movente, segundo o qual pintamos sem cessar : empregamos bom tempo para traduzi-lo com fidelidade: mas ele existe,  íntegro e totalmente simultâneo: o espírito não caminha passo a passo como a expressão. O pincel só executa, em longo prazo, o que o olho do pintor abarca num só golpe. A formação das linguas exigia a decomposição; mas ver um objeto, julgá-lo belo, experimentar uma sensação agradável, desejar a sua posse, é o estado da alma num mesmo instante”.

                        Notamos dois momentos no método filosófico mencionado acima : o primeiro desfaz analiticamente o todo anterior. O segundo mostra a sincronia conquistada pelos homens. Esta sincronia é precária e por isto a alma está sempre pintando e sempre tendo a ilusão do repouso. A música e os versos dão o ritmo desta mudança perpétua. A pantomima passa da pintura à música, e vice-versa, mimetizando o silêncio da primeira e sugerindo todos os sons e harmonias da segunda. Nestas passagens, que implicam ao mesmo tempo dados  estéticos, morais, políticos e psicológicos, Diderot elabora a famosa arte das relações, base no seu entender para a teoria do belo. Não há exagero em se afirmar que muitas doutrinas sobre a beleza, como a de I. Kant, dependem, pelo menos em plano inicial, deste arranjo diderotiano entre os sentidos.  26

                        Segundo Béatrice Didier, a solução mais inovadora de Diderot no Sobrinho é a de “mimetizar a linguagem musical por um personagem, para que ela seja ouvida através do texto. É preciso, ainda, que a linguagem literária se torne capaz de traduzir a linguagem do mimetizador, o qual serve, então,  de ligação.Todo o problema da representação no interior da obra literária  encontra-se posto deste modo.Parece mais fácil dar conta das imagens plásticas do que da própria música”. Não se trata, adianta Didier, de mimetizar um instrumentista. O gesto do Sobrinho pode sugerir o caráter do trecho e mesmo sua estrutura musical:”Sua voz se expandia como o vento e seus dedos voltejavam sôbre as teclas, ora deixando o alto para tocar no baixo, ora deixando a parte de acompanhamento para voltar ao alto”.  Isto, para a estrutura. No que tange ao caráter,”as paixões se lhe sucediam no rosto; distinguia-se a ternura, a cólera, o prazer, a dor ; sentiam-se os piano, os forte, e estou certo que alguém mais hábil do que eu reconheceria o trecho pela vivacidade, pelo caráter, pelas expressões e por algumas frases de canto que lhe escapavam de vez em quando”.  A música, comenta Didier, não pode ser expressa totalmente no texto, a não ser   pela teatralização do gesto. Com isto, Diderot faz ver e faz ouvir música. E, em contrapartida, o texto literário também colabora  na descrição do gesto. “Em toda esta pantomima existe uma sonorização do gesto pelas palavras, do gesto que, por sua vez, só tende a exprimir o som cujo misterioso complemento é o silêncio”.27

                        Se passarmos ao Sobre a Poesia Dramática, no capítulo 21 (“Sobre a Pantomima ”), veremos que Diderot “pinta” a morte de Sócrates com esta técnica artística: “Mas agora tenho vontade de esboçar os ultimos momentos da vida de Sócrates. É uma sequência de quadros que testemunharão a favor da pantomima mais do que tudo que eu pudesse acrescentar”. 28. Após estas as cenas, onde Diderot  exibe os últimos momentos  do moralista, lemos no mesmo escrito: “Eis as circunstâncias a serem empregadas.Podeis  dispô-las como vos aprouver, mas conservai-as. Tudo o que colocásseis em lugar delas seria falso e de nenhum efeito”.29  Temos aí  as exigências de decoro apresentadas na análise sobre Poussin no testamento de Eudaminas. Não por acaso,  Diderot menciona, logo a seguir, o mesmo patético que rege o fim de Sócrates, por ele imaginado, e a pintura de Poussin.Poucas palavras, gestos expressivos, “pintar como se falava em Esparta”.

                        O pantomímico, na expressão de Luciano, “parola com as mãos”,    expressando individualidades divinas e suas paixões. O mesmo tipo de artista expõe cenas patéticas, trágicas, sublimes, no entender de Diderot. Sátira, pois, de fio duplo, sério e risível, recolhendo elementos que se condensam no Sobrinho.30  Este último “fala” com o corpo inteiro, compondo quadros expressivos que deixam a linguagem oral em desvantagem.31  Ele não só expõe figuras individualizadas com sua pantomima, como  sugere a própria música, mimetizando instrumentos, sons, etc. Bavard em todos os sentidos,  Jean-François resume na sua face traços dispersos em vários trechos da escrita diderotiana e lucianesca. O elemento da fala gestual, e do palavrório unido à lisonja, permite-nos entrever, na sua fatura, não apenas Luciano, mas também Plutarco.

                        Poderíamos lembrar, desde já, a força de Luciano na formação de Jean -François enquanto figura, pelas passagens onde o mímico exibe toda sua eloquência na arte da música.”...ele põe-se na posição de um violinista...o braço direito imita o movimento do arco... se tira uma nota falsa, pára e ajusta ou afrouxa acorda...Estava convencido de que os acordes ressoavam aos seus ouvidos e aos meus”. No cravo,”as paixões se lhe sucediam no rosto; distinguia-se a ternura, a cólera, o prazer, a dor”. 32 Antes de entrar numa discussão mais direta sobre a estrutura da sátira lucianesca, para depois acrescentar o que, nos textos de Plutarco, teria sido extraído para compor a face do Sobrinho,vejamos como dá-se o juízo de Diderot sobre o próprio Luciano. Este julgamento é importante na mesma busca de elementos que formam o personagem “Ele”.

                        Schenk, na obra que venho acompanhando, e da qual retiro férteis aproximações sem concordar com suas teses básicas, afirma categoricamente que não há influência direta de Luciano sobre Diderot, e que o abalo inicial para qualquer uma de suas obras não vem do satírico de Samosata. Além disto, diz ele, Diderot não conhecia Luciano nos textos originais, mas só  a partir de traduções . Certo desconhecimento é patente, como prova Schenk, em Diderot, sobre os fundamentos doutrinais assumidos por Luciano . Mas  é difícil extrair a consequência de que Diderot não recebeu nenhuma inspiração dos textos e das técnicas plásticas de Luciano, sobremodo no campo da sátira. Em quase todos os casos citados por Schenk, onde há paralelismo entre um texto de Luciano e outro de Diderot, o mesmo Schenk deixou na sombra a essência do trecho. Como vimos ao comentar a pantomima, se Diderot aproveitou o De Saltatione, o fez justamente nas passagens onde Luciano coloca o pantomímico “pintando” as paixões...dos deuses. A “influência” não está apenas na arte da pantomima, mas no uso refinado que dela fez Diderot, tanto na sua estética da pintura,  no comentário sobre Poussin, no desenho de Jean-François, com sua força plástica para exprimir, na música mimetizada, as paixões humanas.

                        O juízo sobre Luciano é eloquente, quando pensamos nos motivos  do  Sobrinho, texto onde se embaralham com maestria insuperável moral e imoralismo, razão e loucura, decoro e pouca vergonha .  No Plano para uma universidade, Diderot afirma que Luciano seria um autor ideal para a juventude.”Mas ele é ímpio, mas ele é sujo, devemos escolher entre seus diálogos”.  No  encarregado de escrever a ratio sudiorum de uma universidade em país cristão  —e como!—  seria surpreendente encontrar o elogio de Luciano. Mas no autor das Jóias Indiscretas e do Sobrinho, o vício lucianesco torna-se virtude. Alí, o elogio ruma para o “Luciano elegante, o engenhoso e agradável Luciano”.33 Por que não valeria para o juízo de nosso autor sobre Luciano, o mesmo elogio que ele endereça a Epicuro? “Todos os filósofos de seu tempo parecem ter conspirado contra os prazeres dos sentidos e contra a volúpia : Epicuro assumiu sua defesa, e a juventude ateniense, enganada pela palavra volúpia, correu para ouví-lo...”34

                        Luciano sujo? Luciano ímpio? Seria preciso pouquíssimo conhecimento de Diderot e do século 18, para aceitar estas afirmações com seriedade. Pelo menos, elas não concordam com a própria biografia do escritor que, em companhia de D’Alembert, entrava nos cafés para escandalizar as pessoas, tendo antes combinado com seu amigo quem representaria o crente a ser esmagado pelo racionalista...até que a polícia os  ameaçou com uma segunda estadia em Vincennes...Sobretudo, ela não concorda com o escritor que escreve, em l76l, a Sophie Volland, unindo os temas da sublime amizade—num tom seríssimo— e o elogio do libertino. Citarei os dois trechos da missiva, já conhecidos fartamente pelo leitor, para deles deduzir algumas consequências no que tange aos nexos entre Diderot, Luciano , Plutarco.

                        Como obter um amigo? Como discernir o amigo? Há dois modos:”alguns devem-se à nossa escolha; é a estima, a virtude, a conformidade de caráter, tudo o que inspira o respeito, a confiança, a veneração, tudo o que constitui a simpatia entre pessoas honestas, que nos liga a eles. São dois instrumentos que a natureza afinou em uníssono.Eles encontraram-se um junto ao outro; as cordas do primeiro foram dedilhadas, e as cordas do segundo fremiram.Eles sentiram ao mesmo tempo a doçura intima e deliciosa deste frêmito; eles  aproximaram-se, tocaram-se, uniram-se: isto ocorreu num instante. Existem amigos que nos são dados pelo acaso”.  Neste plano, toda a moral define-se enquanto harmonia e música perfeita. Entre os dois amigos, poderíamos dizer, ou na sua aproximação, temos o baixo fundamental, princípio matemático e necessário, cuja racionalidade é mais do que evidente.

                        Mas existe o amigo produzido pelo acaso. Vemos, nesta fresta, os temas nucleares dos Dois amigos de Bourbonne e de Tiago, o Fatalista. Morais ou bandidos, os homens experimentam amizade uns pelos outros, a razão responde apenas em parte por este vínculo.O acaso preenche o intervalo.”Voce cai no fundo de um rio, um celerado põe-se a nadar e conserva a sua vida, arriscando a dele. Eis, senão um amigo, pelo menos um benfeitor que a circunstância lhe oferece. O que você faria deste homem ? Seu caráter  será um obstáculo para você ; mas isto lhe eximirá do reconhecimento ? Mesmo supondo que, aborrecido com a vida, você tivesse se jogado no rio. Ele não sabe que você queria morrer, e, porque o ignorava, permaneceria como observador vadio e tranquilo do seu risco? O que fez o seu pai por você ? Compare com o que fez este celerado. Seu feito está bem acima do necessário. Acrescente o resto...”.

                        Com essas linhas, Diderot discute uma longa tradição filosófica no tratamento da amizade. Desde Platão até Plutarco, chegando a Erasmo e Montaigne, o assunto foi sempre estratégico na análise dos nexos entre as coisas e os homens. Só isto bastaria para olhar de outro modo a dialética entre  o “Ele” e o “Eu” do Sobrinho.Mas há mais na carta de Diderot. O passo seguinte, a indistinção absoluta entre o ser moral e o imoral, lança sobre o tratamento das virtudes, em Diderot, uma luz que, reconheçamos, é muito própria de seu tempo, a era das Ligações Perigosas e de Sade.Novamente cito o trecho muito conhecido do leitor, mas estratégico para indicarmos o quanto as leituras sobre o Sobrinho, as que dividem os personagens em “bom” e “máu”,  violentam o pensamento e a técnica expositiva de Diderot. Entre a base matemática e musical, harmônicas, e o acaso caótico, surgem seres que ao mesmo tempo possuem para sua existência uma explicação perfeitamente racional, e uma outra,  alheia ao  “bom senso”.

                        O trecho adiante traz um forte sabor de Mandeville, com seus paradoxos entre os vícios privados e as virtudes públicas e vice-versa. O choque entre ordem coletiva e desordem pessoal, entre fins conflitantes  definindo vantagens “loucas”  no entender  do raciocínio “sadio”, tudo isto surge na Carta a Volland :”Os libertinos são bemvindos ao mundo porque eles são inadvertidos, alegres, prazenteiros, dissipadores, doces, complacentes, amigos de todos os prazeres”. Note-se a forma da frase: o “porque”, uma fórmula que “normalmente”  anuncia sequência “racional”, traz  uma série de afirmações com estrutura idêntica ao auto-elogio da loucura, na pena de Erasmo.

                        Essa última aproximação é mais do que casual. Há um trabalho recente de Apostolos Kouidis sobre as  relações entre Erasmo e Diderot, especialmente ao redor do Sobrinho.Kouidis levanta as vezes em que “louco” e “tolo” aparecem no texto diderotiano: 46 vezes. “Loucura” e “tolice” surgem l8 vezes. Soma-se a esta lista a ocorrência de “bufão”, “original”, “singular”, “estranho”, etc. A tese de Kouaidis aproxima-se da que venho  perseguindo: a “realidade”dos personagens teria afastado a crítica dos modêlos literários, da grande corrente satírica à qual deve muito tanto o autor do Sobrinho quanto o artífice do Elogio  da Loucura.

                        Kouidis analisa  o artigo  da Enciclopédia, onde é dito que existe”loucura em tudo condenar, como em tudo aprovar”.(“Loucura”).  Diderot leu Erasmo, pelo menos é o que se depreende do Salão de l767, quando se analisa o trabalho de Renou:”Todas estas coisas representam mímicas grotescas reunidas no Elogio da Loucura de Erasmo e nas figuras de Holbein”. As primeiras páginas de ambas as obras, a de Erasmo e a de Diderot, partem do que é louco para mostrar coisas sérias. Mesmo a discussão sobre as profissões, no Sobrinho, assemelha-se às várias formas de loucura, dispostas  no Elogio, onde também são satirizadas as mais diversas atividades profissionais .Trata-se do conhecido enunciado sobre “os idiotismos dos ofícios”.35

                        E um “ofício” como o de “libertino” ? Este produz racionalmente o bem público através de meios “irracionais”: ”é impossível que um homem se arruine sem enriquecer outros”. Além disto,”Nós preferimos os vícios que nos servem e divertem, do que as virtudes que nos rebaixam e entristecem”.Todos conhecem a mesma tese, na boca de Jean-François, com seu corolário : “é preciso ter os pés quentes”. Gostamos dos libertinos porque “eles nos falam daquilo que não ousamos dizer ou efetivar”. A partir deste ponto mostra-se a radicalidade  diderotiana, na auto-posição crítica que apenas a sátira  ocasiona : amamos os libertinos porque “somos sempre um pouco viciosos...um libertino assegura a libertinagem que nos proibimos: e além disto eles são tão comuns que, se fosse preciso baní-los da sociedade, a maioria dos homens e das mulheres seriam obrigados a viver na solidão...quase todos os libertinos são galantes, desavergonhados, et coetera”. 36  Mais Luciano, o elegante Luciano, o agradável Luciano....é sujo...

                        Se todos os homens e mulheres são um pouco libertinos, se a razão e o bom senso isolam e impedem a sociedade, se os virtuosos cansam e os loucos distraem os pobres humanos, a sátira , misturando atitudes e motivos, mas  escondendo o que é racional no que parece ensandecido, e vice-versa, torna-se meio para uma desmistificação impiedosa de todos os personagens sociais, mesmo e sobremodo do personagem “Eu”. O libertino é alegre, enquanto os virtuosos se pretendem sérios. Ora, lemos nos artigos “grave” e “gravidade” da Enciclopédia : o  Quixote é grave, porque medita e raciocina gravemente”seus doidos empreendimentos e suas aventuras perigosas”.  Do mesmo modo, os fanáticos realizam extravagâncias “muito seriamente”. Um pregador que anuncia verdades terríveis sob imagens ridículas, “é apenas um bufão sério”. Um ministro, um general que prodigalizam seus segredos, ou que aplicam sua confiança de maneira inconsiderada, são homens frívolos. A gravidade é ridícula nas crianças, nos tolos, e “nas pessoas envilecidas por ofícios infames...a verdadeira devoção perde muito com o ridículo que se espalha sobre os falsos devotos”.37

1)    Marc-Aurèle et la fin du monde antique, Paris, Calman Levy ed., l883, páginas 376-377.
2)     Robinson, C. Lucian and his Influence in Europe, London, Duckworth, l979.
3)   4.Schenk, Ludwig, Lukian und die französische Literatur im Zeittalter der Aufklärung. München, UniversitätsBruchdruckerei, l93l
4)   La Naissance de la Tragédie. Ed. franc. Colli , G. e Montinari, M. Paris, Gallimard, 1977, página 86.
5)   Schenk,  páginas l26-l27.
6)     AT.l4.páginas 265-266.
7)   Demonax, Loeb, V. I, páginas l42-l73
8)   Loeb, páginas l46-l47.
9)   Ed.Assezat, V. l5, página 60.
10)       Ed. cit. v. l7, páginas llo-ll3.O contraste entre o “natural” e “primitivo” scita e o moderno habitante das grandes cidades modernas, com suas cortes dissolutas, surge de modo diverso em Voltaire. De algum modo, lemos no Prefácio da peça “Os Scitas” (uma tragédia...) que trata-se do estado de natureza “oposto ao estado do homem artificial, como ele existe em nossas grandes cidades. Podemos, nas cabanas, encontrar sentimentos tão emocionantes quanto os que se encontram nos palácios”. A moderação voltaireana, ao contrário de Rousseau e de Diderot, não permite uma ruptura entre o “natural” e o “civilizado”. No palácio cortesão das cidades modernas e nas cabanas primitivas ocorrem “sentimentos” que atingem os sentidos. Esta continuidade retira o choque e a estranheza entre alteridades, as quais  agudizam a sátira e a tragédia. Cf. Voltaire, Obras Completas, Paris, Garnier, l877. Kraus Reprint
11)        Ed. Fabre, página 62; tradução Difel, página 249
12)       Cit. por Schenk, página l30.
13)       Oeuvres Esthetiques, Garnier, P.Vernière ed., página 794.
14)       Luciano, Toraxis, Loeb,  t.V,  página l4l
15)       Ed. Assezat, V. 7, páginas l04-l05; Pleiade, Oeuvres, página l2l9.
16)       Loeb, Volume V, 69, página 273.
17)       Pleiade, página l2l9.
18)       Loeb, 63, página 267.
19)       As recomendações de Hamlet (Ato III, cena II) indicam o ideal de adequação entre palavra e gesto  como lugar comum: “suit the action to the word, the word to the action”. Na tradução de Andre Gide: “Mettez accord entre geste et parole”. A mímica decorosa importa muito: “Nor do not saw the air too much with your hand, thus, but use all gently, etc”. “Et puis ne fauchez donc pas trop l’air avec la main, comme ceci.Allez-y doucement” (Gide).Cf. Hamlet, Ed. H. Jenkins, The Arden Shakespeare, páginas 287-288. Trad. Gide, Pleiade, Obras Completas de Shakespeare, V.II. página 654.
20)       Em Diderot, “não é mais a natureza humana que, por sua corrupção, torna necessário instaurar um aparelho coercitivo, o exato é o contrário. O caráter do homem civilizado, que sempre se havia tomado como natural, na realidade é uma criação da cultura;  ele não é causa, mas produto desta corrupção originária que é a irrupção do poder.Para nos convencermos disto, basta observar outra vez o selvagem : ele, que soube fugir desta nova versão da Queda não parece afetado pelos traços de caráter que se tornaram ‘naturais’ para a civilização. Isto porque ele permaneceu fiel —é o que termina conlcuindo, pelo menos, após toda a corrente primitivista da idade clássica, o Diderot da História das Duas Índias— ao que é original na verdadeira natureza do homem. “ Marouby, Christian, Utopie et Primitivisme.Essai sur l’imaginaire anthropologique à l’âge classique. Paris, Seuil, l990, página  158.
21)       ara uma análise das dificuldades de composição gráfica do Sobrinho, e das soluções encontradas por Diderot, cf. Proust, Jacques, “De L’Encyclopédie au Neveu de Rameau: l’objet et le texte”. Recherches Nouvelles...página 332.
22)       J.-J. Rousseau. Oeuvres Complètes. Pléiade, V, página 376 e nota de J. Starobinski, página 1540.
23)       Cit. por R. Kempf, op. cit. página 77.
24)       Há homologia entre o modo pelo qual Diderot entende a pintura e a música. “No seu entender, que outra coisa é um rouxinol, um músico, um homem? E qual outra diferença você encontra entre o canarinho(Serin) e o pequeno órgão(Serinette) para ensinar o canto aos pássaros ?...Se você confessa que entre o animal e você a única diferença é a organização, você mostrará bom senso e razão” . Conversa entre D’Alembert et Diderot, texto recolhido por Béatrice Durand-Sendrail : Diderot. Ecrits sur la Musique (Paris, Jean-Claude Lattès Ed., l987) página l38. Os “gritos da paixão” anunciados para a música pelo Sobrinho, tem esta base animal comum como pressuposto. No plano da pintura, vale a pena mencionar que Le Brun, um dos autores que Diderot tinha na mesa de trabalho, ao lado de L. da Vinci, para ajudar na descrição dos quadros examinados nos Salões, aproxima as fisionomias de homem e animal. Levi-Strauss, em O Pensamento Selvagem, mostra o quanto esta atitude foi arraigada na cultura européia.Jean-Jacques Courtine, entretanto, afirma, contra toda esta perspectiva, que Le Brun realizou apenas uma ilustração das cartesianas Paixões da Alma. Mais econômico é ter Le Brun utilizado o saber renascentista enquanto Diderot, êmulo de Montaigne e de Bacon , o  viu neste prisma passionnal.
25)       Diderot compara “as fibras de nosos órgãos às cordas vibrantes sensíveis. A corda vibrante, sensível, oscila, ressoa longamente após ter sido tocada. É esta oscilação, esta espécie de ressonância necessária que mantem o objeto presente, enquanto o entendimento ocupa-se da qualidade que lhe convem. As cordas vibrantes tem outra propriedade,elas fazem as outras fremir. É assim que uma primeira idéia apela uma segunda... ”. Conversa entre Diderot et d’Alembert, Durand-Sendrail, B. op.cit. página 23.
26)       Carta sobre os Surdos e os Mudos, AT, página 368-369.Para uma consideração pouco equânime de Diderot, na reflexão sobre as artes e a linguagem, veja-se o livro recente de Claude Lévi-strauss: Regarder, Écouter, Lire (Paris, Plon,l993). Após indicar “uma interessante teoria” diderotiana que passa pela teoria dos                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        números, Lévi-Strauss termina reduzindo a elaboração de Diderot sobre a pintura a um “côté western avant la lettre” (página 76). O parti-pris em filosofia ou na crítica é sempre algo complicado. Admirar Rousseau, como o faz Lévi-Strauss, não garante análises mais justas de seus ex-amigos, os enciclopedistas, sobretudo de Diderot.
27)       “ses doigts voltigeaient sur les touches ; tantôt laissant le dessus, pour prendre la basse; tantôt quittant la partie d’accompagnement pour revenir au-dessus”.O Sobrinho de Rameau, Ed. Fabre, página 28,Trad. Difel, páginas 214-215..“On y distinguait la tendresse, la colère, le plaisir, la douleur. On sentait les piano, les forte. Et je suis sur qu’un plus habile que moi auoroit reconnu le morceau, au mouvement, au caractere, a ses mines et a quelques traits de chant qui lui echappoient par intervalle”.Idem. Didier, op.cit. páginas 34l-344
28)       Oeuvres Esthétiques, Ed. Vernière, página 272. Tradução L.F. Franklin de Matos, São Paulo, Brasiliense,1986, página 120.
29)       op.cit. Vernière, página 276. Trad. L.F. Matos, página 123.
30)       Não só nesta obra, claro. Anthony Strugnell indica que a técnica da escrita que passa pela pantomima, pela pintura e demais artes, é uma característica estilística, filosófica e política de Diderot. Na História das Duas Indias, nos trechos pertencentes à pena diderotiana, e nos romances, como na Religiosa, “as cenas de quadro e de pantomima são perfeitamente integradas na estrutura narativa e psicológica” . Cf. “La voix du Sage dans l’Histoire des Deux  Indes. In Colloque du Bicentenaire 2-5 septembre l984, a Edimbourg. Textes réunis et présentés par Peter France et Anthony Strugnell, Edimburgh University Press l985,  página 36.
31)       Todo o esforço de Diderot será no sentido “não de acreditar o discurso, mas de neutralisar ou disjuntar para afirmar a expressividade dos valores corporais : gestos e movimentos, olhar, inflexiões da voz”. R. Kempf, op. cit. página 106.Ou melhor : “Diderot trata o corpo como um texto que deve ser decifrado”. Idem, página 12.
32)       “...il se met dans l’attitude d’un joueur de violon...son bras droit imite le mouvement de l’archet...s’il fait un ton faux, il s’arrete, il remonte ou baisse la corde...il est sûr que les accords résonnaient dans ses oreilles et dans les miennes”.Pleiade, páginas 4l2-4l3. Trad. Difel, páginas 213-214.“Les passions se succedaient sur son visage. On y distinguait la tendresse, la colère, le plaisir, la douleur...” .Idem.
33)       Plan d’une université...Ed. Assezat, V. III, página 480.
34)       “Épicureísme”, Assezat, v. XIV, página 524.
35)       Kouidis, Apostolos: “Le Neveu de Rameau” and “The Praise of Folly”: Literary Cognates. Salzburg, Institut fur Anglistikund Amerikanistik, Universitat Salzburg, Salzburg Studies in English Literature, Elizabethan & Renaissance Studies, J.Hogg ed., l98l.
36)       Lettres a Sophie Volland, Paris, Gallimard,l938, A.Babelon ed., V.I, páginas 224-225.
37)       Assezat, V. XV, páginas 43-44.