Trapaças, vícios e virtudes.
Roberto Romano/Unicamp.
Carl Schmitt se notabilizou por apresentar, no auge da tirania fascista, um texto no qual expõe a hermenêutica autoritária do Leviatã. ([1]) Partindo do Antigo Testamento ele indica, no monstro que encarna o poder, um símbolo que não pode ser visto de modo intelectual ou científico. Nas próximos instantes pretendo, sem esmiuçar em demasia os textos, dizer o exato contrário do controvertido jurista alemão. ([2]) Hobbes intimida qualquer leitor prudente. Mas sua argumentação racional é das mais poderosas na história da filosofia.
No Discurso Preliminar da Enciclopédia, uma passagem sugere a cautela do autor sobre a filosofia de Hobbes. À pergunta habitual relativa à formação da sociedade, o texto afirma que o vínculo entre os indivíduos aumenta a extensão das idéias existentes e gera outras, bem mais complexas das que eles teriam por si mesmos, sem os laços sociais. Cabe aos filósofos, afirma ainda o Discurso, a tarefa de julgar se a comunicação recíproca, unida à semelhança que percebemos entre as nossas sensações e as dos nossos semelhantes, contribui para fortalecer o nosso pendor invencível de supor a existência dos objetos que nos tocam. O prazer e a vantagem que encontramos no trato social, seja ao expor nossas idéias aos demais, seja ao unir as suas idéias às nossas, devem nos levar ao reforço dos laços coletivos já iniciados e torná-los, tanto quanto possível, mais úteis. O lado positivo da vida urbana, louvado no De cive, tem um aspecto sombrio segundo o Discurso. Cada habitante, diz o autor, “busca aumentar para si mesmo a utilidade que dela retira, precisando combater em cada um dos outros uma ânsia igual à sua, todos não conseguem ter a mesma parte das vantagens, embora todos tenham o mesmo direito. Um direito tão legítimo, pois, logo é desrespeitado pelo bárbaro direito da desigualdade, a lei do mais forte cujo uso parece nos confundir com os animais. Mas de semelhante direito, no entanto, difícil é não abusar. Deste modo a força, concedida pela natureza a alguns homens, força que eles deveriam empregar apenas para sustento e proteção dos fracos, torna-se pelo contrário a origem da sua opressão. No entanto, quanto mais violenta é a opressão, mais eles a sofrem com impaciência porque sentem que nela nada razoável deve sujeitá-los. Daí a idéia do injusto e por conseguinte do bem e do mal moral, cujo princípio é buscado pelos filósofos. O grito da natureza, o qual ressoa em todo homem, ecoa mesmo nos povos mais selvagens. Daí também esta lei da natural que encontramos em nosso interior, fonte das primeiras leis que os homens formaram : sem o recurso dessas leis ela, algumas vezes ela é forte o bastante para aniquilar a opressão ou pelo menos contê-la em certos limites. O mal que sofremos, pelos vícios de nossos semelhantes, produz em nós o conhecimento refletido das virtudes, opostas aos mencionados vícios; conhecimento precioso do qual seríamos privados se ocorresse a união e igualdade perfeitas”. ([3])
Em 1740, o rei Frederico II da Prússia sobe ao trono e redige a réplica virulenta do escrito publicado por d´ Holbach, o Ensaio sobre os Preconceitos. Trata-se do mesmo soberano que ainda em 1778 fez a seguinte pergunta para concurso da Academia, em Berlim : “Seria útil enganar o povo?”. O mesmo Frederico escrevera um libelo contra Maquiavel, com afirmações moralistas que, supostamente, desvendariam a virulência tirânica do Florentino. Diderot assume a defesa de d´ Holbach, o qual solicitara aos soberanos que renunciassem aos “preconceitos” de nobreza e glória militar. Além disso, seu ensaio pedia que se falasse a verdade ao povo. Diderot analisa a leitura de Frederico contra o Ensaio numa carta, o que fornece à sua crítica um tom enganosamente velado. ([4])
Diderot indica que d´ Holbach, no Ensaio sobre os Preconceitos, expõe o mundo cheio de mentirosos, salafrários, opressores de todo tipo, esta a realidade : reis despóticos e cruéis, ministros violentos e ávidos, padres astuciosos, fanáticos, pessoas cegas pelas paixões, pais duros e negligentes, filhos ingratos, esposos pérfidos. Dessa maneira, o filósofo mostra que d´ Holbach segue Spinoza que, no Tratado Político ([5]) compara o moralista e o político. Sendo moralista, o Ensaio deveria manter-se no plano utópico e “ideal” enquanto Frederico, um rei, deveria ser mais preso ao real. Há uma diferença efetiva, mas que joga em favor de d´ Holbach. Embora acentue o lado baixo da existência humana, ele afirma que os homens procuram a verdade. Frederico, de seu canto, critica o pessimismo do Ensaio, mas se refestela com o segredo, a mentira e a razão de Estado. D´ Holbach mostra que os homens não poderiam se enganar sem ferir a si mesmos, pois a felicidade efetiva encontra-se no verdadeiro. Assim, não se deve julgar os seres humanos pela sua ação, mas pelo que buscam. Todos os homens podem afirmar após Medéia : “Vejo o bem e o aprovo, mas é o mal que me arrasta”. ([6])
A sociedade não pode existir sem a verdade. Esta tese recolhe a noção republicana da fé pública (o termo inglês, que vem do século 17 e da Revolução Puritana é accountability), mas exige que o segredo e a dissimulação sejam atenuados ao máximo. A mentira e seus assemelhados ameaçam o coletivo, pois corrompem o juízo e as condutas. A simples busca da verdade diminui o fanatismo e, diz Diderot, o rei da França pode permitir que os padres falem ao povo nos domingos entre 10 e 11 horas, e também tem condições de murmurar : “Agora mesmo, cinqüenta mil salafrários falam o que melhor lhes parece a dezoito milhões de imbecis; mas graças a meu punhadinho de filósofos, a maioria desses imbecis ou não acreditarão no que ouvirem, ou se acreditarem não significarão o menor perigo para mim”.
A verdade reside na busca, nunca na posse absoluta do verdadeiro por indivíduos ou coletividades. O intolerante sendo odioso, é preciso separar as idéias de probidade e de existência divina. Seja qual for o culto sagrado, ele é compatível com a virtude. “Que os homens pensem do ser divino o que desejarem, desde que deixem em paz os que pensam de maneira diferente”. Esta frase na qual ressoam as lições de Pierre Bayle, ([7]) também recorda toda a forma e conteúdo do ensino hobbesiano. Mas agora surge uma afirmação que dificilmente seria admitida por Hobbes. Diderot critica Frederico porque o rei, ao analisar o texto de d´ Holbach, afirma ser necessário respeitar a forma do governo sob a qual se vive. Caso o soberano queira dizer que é preciso respeitar as leis da sociedade, da qual todos são membros, não existiria dificuldade em seu enunciado. Mas se tais leis forem ruins, seria necessário silenciar? A resposta hobbesiana seria positiva, porque o juízo sobre as leis não é de competência dos juízos privados. Não é o caminho assumido por Diderot, que pergunta como o legislador teria consciência dos erros em suas leis, se ninguém falasse ? E se uma dessas leis determinasse a pena de morte para quem atacasse a legislação funesta, seria preciso curvar-se diante dela? Com esse passo, Diderot afasta o enunciado hobbesiano de que a verdade não tem conexões com a vida pública.
É essencial recordar que a soberania, em Hobbes, exige o banimento na ordem pública dos juízos com origem privada, pois eles geram a polêmica. Não existe, segundo o filósofo, padrão ou medida comum para o juízo moral. Indivíduos diferentes percebem as coisas de modo diferente, pois desenvolvem diferentes paixões. Ninguém concorda sobre o que é benéfico ou maléfico, certo ou errado, justo ou injusto. E o juízo de cada um tende a se ampliar ao infinito, na medida mesma do desejo nele presente, desejo que desconhece limites (pleonexia). A guerra de todos contra todos não é apenas física, mas também psicológica, pois inveja e ódio campeiam, cada indivíduo julga-se mais esperto do que o outro. Paixões diversas e igualdade no poder mortífero, levam à morte. É impossível arrancar a força física dos homens, mas é factível fazê-los abdicar de seu juízo privado. No pacto todos renunciam ao seu juízo particular em proveito de um homem ou assembléia. Em termos jurídicos, visto que todos possuem um direito mesmo direito natural, cada um pode aderir ao pacto. Assim, todos renunciam ao seu direito sobre tudo e submetem-se ao juízo de um árbitro, seja ele individual ou coletivo, aceitando-o como seu. Só o soberano guarda o seu direito natural, com o pleno uso da força física e do juízo próprio. ([8])
O soberano concentra o poder de julgar em todas as matérias, nas leis, na administração, nos tribunais, na guerra ou paz, controla a religião, decide o bom e o ruim. Este é o pressuposto para colocar limites sólidos contra os desejos infinitos dos indivíduos. Como todos abrem mão do juízo privado, pouco sobra ao direito de resistência que nele reside. É preciso aceitar que as coisas são diferentes do modo pelo qual a concebemos. Entre o mundo como o vemos em nós e o mundo tal como existe, ocorrem diferenças, pois construímos um mundo pela imaginação que, por sua vez, é movida pelos nervos. O intelecto humano não possui um perfeito conhecimento do mundo externo ou interno aos demais homens. O estratégico para os indivíduos “não é a verdade, mas a imagem que faz a paixão. E a tragédia afeta mesmo um assassino, se ela for bem desempenhada” (The Elements of Law). A paixão causada pela imagem traz rebeliões e guerras. O uso correto dos nomes e palavras não consiste na verdade, mas apenas serve para evitar ambigüidades nocivas. A distinção entre o interior e o mundo externo, a imaginação e o efetivo, fundamenta a tese da ausência um padrão, ou medida comum de bem e mal. ([9]) Os indivíduos não atingem a concórdia sobre o certo e o errado, portanto são incompetentes para emitir tais juízos. “Os homens, veementemente amorosos de suas próprias novas opiniões (mesmo as mais absurdas) e decididos com obstinação a mantê-las, também deram às opiniões o reverenciado nome de consciência, como se julgassem fora da lei mudá-las ou falar contra elas”.
Logo, “é evidente que, seja o que for que acreditemos tendo como única razão para tal a que deriva da autoridade dos homens e de seus escritos, quer eles tenham ou não sido enviados por Deus, nossa fé será apenas fé nos homens”. ([10]) Diderot volta às sendas hobbesianas logo a seguir, mas inova na crítica ao “reino das trevas” denunciado no Leviatã. Ele critica a tese de Frederico sobre os nexos entre o clero e o trono. Acreditando-se racionalista e desprovido de preconceitos, o soberano alemão concorda com a tese de que é o povo supersticioso que prende o monarca em seu cargo. E se é o clero que alimenta a superstição, conclui Frederico, é preciso apoiar o clero. ([11]) “Este raciocinador seguramente não é soberano ou filósofo” ([12])
Diderot, nessa frase, ataca Frederico, em duas frentes. Na escrita diderotiana, raisonneur pode assumir o significado de “sonhador” ou “tolo”. É o que se passa no Entretien d' un Philosophe avec la Maréchale de ***: Um jovem mexicano, cansado de seu trabalho, passeava um dia à beira-mar. Deu com uma tábua cuja ponta estava imersa na água. E passou a raisonner sobre as lendas de seu povo, dormindo. Enquanto dormia, ele terminou navegando na tábua, em pleno mar. “J'ai raisonné comme un étourdi, soit ; mais j'ai été sincère avec moi-même ; et c' est tout ce qu' on peut exiger de moi. Si ce n' est pas une vertu que d' avoir de l' esprit, ce n' est pas un crime que d' en manquer”. ([13]) Assim, o raisonneur é uma espécie de sonhador que joga seus arrazoados contra as crenças comuns do povo, mas o que ele tem para trocar por aquelas crenças é apenas a sua febre de argumentos. Trata-se de uma forma de douta tolice. ([14])
No Sobrinho de Rameau, a crítica do raisonneur é mais complexa, visto que o diálogo trata desse problema exatamente quando se discute tendo no pano de fundo a crítica ao pensamento de Leibniz, a doutrina do otimismo. O fio condutor é a natureza que produz bons frutos, segundo personagem “Eu”. E logo replica “Ele” : “mas se a natureza fosse tão poderosa quanto sábia; porque ela não faria os frutos tão bons quanto grandes?”. E observa “Eu” : “Mas você não enxerga que, ao usar semelhante raciocínio, subverte a ordem geral, e que se tudo aqui embaixo fosse excelente, nada seria excelente?”. “Ele” assume o questionamento agostiniano sobre a teodicéia, retomado em Leibniz : “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. ([15])
Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seria). “Ele” deixa a “igualdade” momentaneamente e passa à “excelência”. E o sobrinho concorda: “Você tem razão. O ponto importante é que você e eu sejamos, e que sejamos eu e você. Que tudo vá como é possível. A melhor ordem das coisas, na minha opinião, é aquela onde eu deveria estar; e dane-se (na verdade, o termo usado por Diderot —foin— é bem mais chulo) o mais perfeito dos mundos, se nele não estou. Prefiro ser, e mesmo impertinente raciocinador (raisonneur) do que não ser. Eu.- Ninguém que pensa como você deixa de fazer o processo da ordem que é; sem perceber que renuncia à sua própria existência. Ele.- É verdade. Eu.- Aceitemos pois as coisas como elas são. Vejamos o que elas nos custam e o que nos rendem; deixemos de lado o Todo que não conhecemos o bastante para louvá-lo ou criticá-lo; e que talvez não nem bem nem mal; se ele é necessário, como muitas pessoas honradas imaginam”. No trato coletivo o “melhor” (como, por exemplo, os intermináveis debates sobre o melhor governo, se a monarquia, a aristocracia, a democracia) só pode ser dito pelos que possuem a visão da totalidade. Estes são deuses. Cabe aos seres finitos o cálculo e o raciocínio (raisonnement). Se um indivíduo é fraco raciocinador, mesmo assim o seu cálculo é mais efetivo do que afirmações dogmáticas sobre “o melhor”. Assim, raisonneur apesar de se inscrever no interior do texto mais satírico e ácido dentre os escritos por Diderot, não pertence à sátira como no primeiro caso, o do jovem mexicano.
O terceiro significado da palavra raisonneur na pena de Diderot encontra-se no artigo “Direito Natural” da Enciclopédia. Aqui o termo adquire sentido polêmico contra Hobbes. Tomemos o Capítulo 5 do Leviatã. “Quando um homem raciocina (Reasoneth), ele nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou um resto a partir da subtração de uma soma a outra; o que, (se feito com palavras) é conceber a consequência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade e de uma parte para o nome da outra parte (…) Os escritores da política adicionam pactos (Pactions) para achar os deveres (duties) dos homens. E os juristas somam leis e fatos para descobrir o certo e o errado na ação dos homens privados. Em suma, em qualquer matéria onde existir uma adição e subtração haverá lugar para a razão (Reason). Onde aquelas não tiverem lugar, também a razão nada a fazer”. Assim, “razão” é cálculo, nada mais. Todo homem pode errar no cálculo, o que não quer dizer que inexista a razão. “Assim como ao surgirem controvérsias sobre um cálculo as partes precisam, por mútuo acordo (by their own accord) recorrer à razão certa de um árbitro ou juiz, a cuja sentença se submetem, a menos que sua controvérsia se desfaça e permaneça indecisa por falta de uma razão certa constituída pela natureza. O mesmo ocorre em todos os debates, de qualquer natureza. Quando homens se julgam mais sábios do que todos os demais gritam e exigem uma razão certa para juiz, eles só procuram garantir que as coisas sejam asseguradas não pela razão dos outros homens, mas pela sua. É intolerável, na sociedade e no jogo, uma vez escolhido o trunfo, usar como trunfo em todas as outras ocasiões a série de que se tem mais cartas na mão. Então os “jogadores” nada mais fazem do que tomar cada uma de suas paixões, à medida que elas neles surgem, pela razão certa, e isso em suas próprias controvérsias, revelando a falta de justa razão com a exigência que dela fazem.” ([16]) Pinturas conhecidas no mundo artístico e político mostram a atitude do “tricheur” que joga com a simulação e a dissimulação. Entre muitas, a de Georges La Tour (talvez 1593, morto em 1652), ou a de Caravaggio (Os Trapaceiros, por volta de 1594).
Note-se, naqueles quadros, o jogo dos corpos e dos olhares. Tudo se define no plano da dissimulação, especialmente os rostos e as mãos. Torquato Acetto, embora em seu pequeno texto ([17]) invective a fraude, ao descrever a dissimulação indica bem o que a raison d´ État renascentista e moderna assume como essencial —La dissimulazione è una industria di non far veder le cose come sono. Si simula quello che non è, si dissimula quello ch' è— ([18]) para manter o segredo e afastar os ouvidos e olhos do povo comum, os ministros e seu rei usam a fraude unida à dissimulação. Antoine Mizauld, em 1565, escreveu um livro para ajudar as pessoas a “julgar incontinenti o natural de cada um apenas pela inspeção da face e dos seus lineamentos”. Como indica Giovanni Macchia, o cardeal Mazzarino (ou o pseudo-Mazzarino) ensinava, com base nesta técnica, a distinguir o indivíduo astucioso e fraudulento pois este possuiria uma saliência na fronte, na altura pouco acima do nariz. O mentiroso teria, ao rir, duas saliências nas bochechas. Assim, o poderoso busca descobrir os intentos secretos de seus inimigos ou liderados nos menores gestos, nas mais tranqüílas situações. Não apenas os olhos eram movidos nesta descoberta: todos os sentidos entravam na economia do desvelamento. Trata-se de uma economia global do corpo a serviço da razão secreta do Estado. A situação perfeita, para os governantes, seria a de plena transparência dos inimigos e dirigidos, e a sua plena obscuridade própria. ([19])
Afinal, o que é a raison d´ État ? Um analista diz que ela se assemelha ao jogo viciado. O governante que a usa para validar atos e tratados opostos às leis comuns do país, age como o jogador desonesto ou mau perdedor : quando as regras do jogo não lhe são favoráveis, ele trapaceia em segredo e quebra todas a sequência da partida. Deste modo, ele arranca dos cidadãos a confiança, a fé pública, base mesma da instituição do Estado. ([20]) Esta metáfora do jogo e das regras é antiga na filosofia política. No exato século em que a razão de Estado se firmou, um dos filósofos mais agudos da modernidade, Blaise Pascal, construiu a partir dela toda uma moral, uma política, uma teologia. A vida humana é jogo. As regras supremas são de acesso dificil aos homens. Só Deus joga com absoluta certeza. E ganha sempre. No caso humano, tudo é incerto, sobretudo no campo das leis e da política. Esta antropologia, que hoje volta a ser um assunto de interesse filosófico e político, é nuclear na história do pensamento moderno. ([21]) Nela, importa a idéia do cálculo como elemento básico da política, plataforma da razão de Estado. O governante que sabe calcular as suas oportunidades e as de seus inimigos tem condições de, pelo menos, desrespeitar sem muitos prejuízos as regras “normais” do jogo diplomático, bélico, ou de política interna, como por exemplo nas escolhas para os dirigentes públicos. ([22])
Se atentarmos novamente para as linhas do Leviatã, notamos que Hobbes afasta a fraude no “jogo” da sociedade civil, mas em proveito do soberano que não está preso a regras. Os particulares não têm mais direito (porque assumiram o pacto) de viver segundo a fraude. O
soberano, cuja função é salvar o povo de todas as maneiras, sobretudo dos inimigos que pertencem aos Estados estrangeiros, não sofre esta limitação. O jogo opera com a inteligência e a imaginação dos indivíduos. Na sociedade civil, se todos podem jogar sem obedecer as regras, desaparece a essência mesma do jogo, porque nenhum dos jogadores parte da igualdade das chances, visto que o truque não se revela e nem pode-se indicar quem o usa (caso contrário, o jogo acaba e se transforma em guerra). O jogador sem regras usa o segredo, a simulação e a dissimulação. Ele finge seguir as regras, mas guarda para si mesmo o fato de que as desrespeita, simulando aceitá-las e dissimulando os truques. O jogador comum opera com a imaginação e a discrição: ele deseja ganhar, imagina-se no instante em que vence (pode imaginar os frutos do ganho como por exemplo riquezas, amores, etc) e ao mesmo tempo não pode revelar suas cartas. O jogador que não segue as regras (e, portanto, não é um jogador) deve usar a discrição, a imaginação, a simulação e a dissimulação. Ele opera como se estivesse em pleno direito natural. Mas seu intelecto (Wit) não é imediatamente natural, porque ele possui experiência e consegue enganar os demais se tiver uma imaginação rápida. Caso contrário, será bisonho ladrão de cartas. A imaginação sem discrição dificilmente é força.
E Hobbes apresenta a diferença entre o poeta e o historiador, um lugar comum que remonta a Aristóteles. O poeta usa a imaginação e o juízo, seus trabalhos devem agradar pela extravagância, mas não devem desagradar pela indiscrição. O historiador usa o juízo com método e verdade, a imaginação deve apenas ornamentar o estilo. Quem move o intelecto no jogo exerce uma deliberada dissipação da mente (mind), como ocorre na ordem familiar onde é permitido jogar com os sons e palavras equívocos. Alí permite-se a desregrada sequência da imaginação (Fancy), mas jamais num sermão ou em público diante de pessoas desconhecidas ou às quais é devido reverência. A discrição é fundamental, porque ela traz as regras do trato entre os indivíduos, regras que determinam a loucura (brilhante, pouco importa) de uns e a lucidez de outros. Juízos sem imaginação (Fancy) mostram inteligência (Wit), mas imaginação sem juízo foge do engenho. É possível ser discreto e prudente, mas perverso. “Caso à prudência se acrescente o uso de meios injustos ou desonestos, como os que os homens são levados pelo medo e pela necessidade, temos a perversa sapiência (Crooked Wisdome) a que se chama astúcia (Craft), sinal de pusilanimidade. A magnanimidade é o desprezo pelos expedientes injustos ou desonestos. Aquilo que os latinos chamam Versutia —versatibilidade— e consiste no afastamento de um perigo ou incômodo presente, mediante a passagem a um maior ainda, como roubar uma pessoa para pagar a outra, astúcia de vistas curtas”.
Como fazer com que todos os jogadores sigam as regras, sem truques? “As leis da natureza (justiça, equidade, modéstia, benevolência, em suma fazer aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem, por si mesma, sem o terror de algum poder, para fazê-los observá-las, são contrárias às nossas paixões naturais, que nos empurram para a parcialidade, orgulho, vingança etc. E pactos sem a espada, são apenas palavras (Covenants, without Sword, are but Words) e não possuem nenhuma força (strength) para assegurar um homem”.
O terror do poder dita as regras do jogo político e as impõe para todos e para cada um. Leis civis, os homens são obrigados a respeitar. Uma lei não é conselho, mas ordem dada pelo soberano, regra que o Estado impõe oralmente ou por escrito, ou por algum sinal suficiente de sua vontade, para uso e distinção do bem e do mal, do que é contrário ou não à regra (Rule). As leis são interpretadas pelo soberano e apenas por ele, ou pelos que ele designa para a tarefa de julgar. Elas não são julgadas pela razão dos particulares, porque implica em contradições dos intérpretes com suas escolas. “Se os homens tivessem liberdade para considerar como divinos os seus próprios sonhos e fantasias (fancies) não mais de dois homens concordariam (agree) sobre o que são os mandamentos de Deus. Quando o juízo privado pretende mudar as leis e o poder público, os que agem tendo em vista sua “consciência” assumem o papel de estraçalhadores da Commonwealth. No De cive (capítulo 12) lemos que “muitos homens, que mesmo sendo bem apegados à sociedade civil, fazem por carência de saber (knowledge) inclinar a mente dos súditos à sedição, quando ensinam, aos jovens, a doutrina conforme às suas opiniões nas escolas, e ao povo todo nos seus púlpitos. Os que desejam levar aquela disposição aos atos, colocam todo o seu esforço nisso: primeiro, eles juntam todos os doentiamente afetados na facção e na conspiração; depois, eles mesmos buscam ter a maior força na facção. Eles os colocam na facção enquanto fazem de si mesmos os relatores e intérpretes dos conselhos e ações do homem individual, e nomeiam as pessoas e lugares para reunião e para deliberar sobre as coisas nas quais o governo atual deve ser reformado, segundo deve parecer melhor aos seus interesses. O alvo é fazer deles mesmos os que governam a facção e a facção deve ser tolhida por uma outra facção; ou seja, eles devem ter suas reuniões secretas em separado, apenas com poucas pessoas, reuniões nas quais eles podem ordenar o que devem a seguir propor numa Assembléia Geral, e por quem, e sobre quais assuntos e em que ordem cada um deverá falar, e como eles atrairão os mais poderosos e populares dentre os homens para a facção de seu lado. E quando eles conseguem grande o bastante, a qual podem dirigir (rule) pela sua eloquencia, eles a mobilizam para administrar os negócios. E assim, às vezes eles oprimem a sociedade (Commomwealth) quando não existe outra facção maior para se opor a eles; mas na maioria das vezes eles conseguem fazer aquilo e começam uma guerra civil. Porque a loucura e a eloquência concorrem para a subversão do governo, de maneira igual à das filhas de Pélias, rei da Tessália, que conspiraram com Medéia contra seu pai. Elas iam restaurar o ancião decrépito em sua juventude, por conselho de Medéia cortaram-no em pedaços e o colocaram para ferver; em vão esperando o momento em que ele viveria novamente. Assim o povo comum em sua loucura, como as filhas de Pelias, desejando renovar o governo antigo, é conduzido pela eloquência de homens ambiciosos, como se tivessem enfeitiçados por Medéia; divididos em facções eles consomem em chamas em vez de reformar o governo”. ([23])
Vejamos agora a versão diderotiana da mesma fábula escrita por Ovidio: “a condição do restaurador de uma nação corrompida é bem diferente. É um arquiteto que se propõe erguer sobre uma área coberta por ruínas. É um médico que se propõe tentar a cura de um cadáver grangrenado. É um sábio que prega a reforma a pessoas endurecidas. Ele só tem ódio e perseguições para obter da geração atual. Ele não verá uma geração futura. Ele produzirá poucos frutos, com muito trabalho, durante sua vida; e só obterá estéreis lamentos depois de sua morte. Uma nação só pode se regenerar num banho de sangue. É a imagem do velho Esão, a quem Medéia só concedeu a juventude cortando-o em pedaços e fazendo ferver. Quando ela decaiu, não cabe aos homens fazê-la levantar-se. Parece que tal obra é devida à uma lonfa sequência de revoluções. O homem de gênio passa muito rápido, e não deixa posteridade”. ([24]) Diderot distorce a história contada por Ovidio (Metamorfoses, 7), onde Medéia rejuvenesce seu sogro. Esão, cortando sua garganta e tirando o seu sangue, dando-lhe uma transfusão de sangue de ovelha, leite, vinho e outras iguarias. Seguindo este portento,Medéia engana as filhas do inimigo de Esão e irmão, Pélias, que desejavam também aumentar a vida do seu pai, fazendo-as despedaçar os seus membros e fervê-los, o que o matou. Diderot expõe num só lance dois episódios —o rejuvenescimento de Esão e o esquartejamento de Pélias— para mostrar que um indivíduo solitário não consegue regenerar o corpo político, apenas uma “longa sequência de revoluções sangrentas.
Diderot conhecia muito bem os escritos de Hobbes. A Enciclopédia está cheia de referências ao filósofo inglês e não apenas no verbete “Hobbismo”. No artigo “Vintième” discute bastante o pensamento de Hobbes. Diderot não se preocupa com a parte em que são condenadas as reformas e a eloquência, mas se volta para as passagem em que são decepadas pela sátira as pretensões de soberania espiritual da Igreja, no item do Leviatã intitulado “Reino das Trevas”. O colaborador de Diderot, Jaucourt passa por Hobbes em artigos como Contrat, Engagement, Estime, Injustice, Malmesbury, Morale, Rutland, Shropshire, Société, Sujet. Jaucourt, no artigo Sujet, recorda Antigona na peça de Sófocles: “Hobbes não teria fugido da questão mais importante que se coloca sobre a relação súdito-soberano, ou seja, se um súdito pode seguir inocentemente uma ordem que sabe injusta e que o soberano lhe prescreve formalmente, a sua resposta está longe de nos satisfazer. Hobbes sustenta que ser preciso distinguir se o soberano ordena fazer em nosso nome uma ação injusta que seja dita nossa, ou se ordena seguir em seu nome uma ação injusta e como simples instrumentos. No último caso, ele pretende que se pode efetivar sem medo a ação ordenada pelo soberano, que deve ser considerado como o único autor sobre quem deve recair a culpa. A distinção, para Jaucourt (e antes para Burlamaqui) não resolve a dificuldade porque "de qualquer modo que um súdito opere de modo ilícito, seja em seu nome próprio, seja em nome do soberano, a sua vontade concorre para a ação injusta e criminosa (…) é pois verdade que em toda ordem do soberano evidentemente injusto o que pareça injusto, ocorre mostrar coragem nobre, refutar seguí-lo, resistir com toda força à injustiça porque mais vale obedecer a Deus do que aos homens, qualquer que seja o seu cargo nesta terra (…) Eu não acreditava, diz Antigona a Creonte, rei de Tebas, que os editos de um homem mortal como tu, devessem prevalecer sobre as leis dos próprios deuses, leis não escritas na verdade, mas certas e imutáveis”. ([25])
Cavallo, na obra citada, indica o verbete “Vintième” como uma espécie de reabilitação de Hobbes. Diderot afirma que os princípios autoritários do Leviatã devem-se às infelicidades pessoais do autor e à necessidade das circunstâncias nas quais ele viveu : “ocorre com essas obras políticas como o passado com o Principe de Maquiavel; os que apenas viram o sentido aparente que eles possuem, não compreenderam o verdadeiro”. Donde Hobbes e Maquiavel devem ser interpretados de maneira diferente ao jeito comum da cultura européia. Hobbes, ao fazer a apologia do soberano, tinha apenas o fito de conseguir um pretexto de satirizar a divindade à qual ele o compara, e à qual nenhum homem honesto desejaria assemelhar-se. Aceitando-se apenas a superfície dos textos “de um dos maiores lógicos” de seu tempo, é difícil não enxergar no Leviatã uma ordem tirânica. Mas, replica Diderot, “como presumir que um raciocinador (raisonneur) tão profundo tenha pensado que um ser qualquer pudesse dar sobre si mesmo para um outro ser da mesma espécie um poder indefinido, e que por consequência desta concessão, este pudesse ser na verdade um ser malévolo, mas nunca injusto? Como imaginar que ele tenha acreditado que aquele a quem o direito da guerra permitia matar no estado de natureza, submeter-se-ia a toda sorte de serviços e obediências para com aquele que deseja conservar sua vida com esta condição, e que esta obrigação é irrestrita para tudo o que ele desejar ? Esta proposição anuncia muito distintamente várias contradições. 1 . O vencedor, segundo este sistema medonho, poderia exigir do vencido que ele se matasse, assassinasse seu pai, sua mulher, filhos, enfim, que ele sacrificasse o que é mais caro e se curvasse a esta escravidão infame que pode conservá-lo. 2 . Se é verdade que na natureza o mais forte mata o mais fraco que lhe resiste, não é verdade que ele o faça seu escravo. (…) Onde as obrigações não são recíprocas, as convenções são nulas…Não seria um abuso das palavras e da faculdade de raciocinar (raisonner) dizer que o magistrado que tem o seu poder da lei, não está submetido à lei? Apesar de Santo Agostinho que o afirma, e apesar de todos os sofismas que se pode cometer para sustentar esta asserção desumana, é claro que ao transgredir a lei que lhe dá autoridade, o magistrado derruba os fundamentos de seu pode (…) Se Hobbes tivesse realmente pensado, como ele diz (…) que um povo que colocou seu direito nas mãos de um tirano não subsiste (…) a multidão (como a chama Hobbes depois que este direito foi entregue) diria ao tirano: ´não sou mais o povo de quem você recebeu o direito que deseja exercer : dado que sua eleição me nadifica, não sendo eu mais o que era quando contratei com você, sendo uma outra pessoa, não estou mais obrigado a seguir nenhuma de suas condições´”. Diderot “esquece” que o povo contrata com o povo, o rei não contrata com ele. Uma dificuldade hermenêutica bem grave para a leitura “inovadora” de Hobbes…
A defesa do povo e dos indivíduos, contra Hobbes, apresenta em Diderot vários matizes que devem ser analisados com precaução máxima. Antes de seguir adiante, vejamos a imagem do povo antes do século 18, na França. As batalhas entre os reformados e católicos, pensam os juristas do rei, ameaçam o Estado. É preciso dar um fim às rebeliões geradas em nome das causas religiosas. Em janeiro de 1562, o dirigente L´ Hospital ([26]) fala em nome do rei e dirige a Assembléia composta de Presidentes e Conselheiros dos Parlamentos da França, reunidos em Saint-Germain-en-Laye. A tentativa é, uma vez mais, atenuar as querelas e lutas físicas entre o partido católico e huguenote. Carlos IX (1550-1574) abre os Estados Gerais (13/12/1560) e participa do Colóquio de Poissy, entre os dois cultos religiosos. O Colóquio foi organizado por Catarina de Médicis e Michel de l´ Hospital, tendo por alvo aproximar os inimigos. Único resultado: a lista dos desacordos. Em 31/01/1561, um Ordenamento é assinado pelo rei em Orleans, proibindo as perseguições contra os protestantes, autorizadas por Henrique II. Mas as querelas aumentam. O duque de Guise, católico, tudo faz para gerar uma guerra civil, cujo primeiro passo seria o “Massacre de Wassy”. O nobre queria assistir a missa, se irrita com os cantos protestantes, entra no lugar onde aqueles últimos se refugiavam e os massacra. Este fato produziu a primeira guerra de religião moderna na França. Os protestantes, comandados por Louis de Condé e pelo Marechal Coligny perdem em Dreux (19/12/1562). Guise cerca Orléans, sendo assassinado por um protestante. Enquanto isso, Antoine de Bourbon, um chefe protestante, é morto em Rouen. Catarina de Médicis aproveita o sumiço de ambos os chefes e assina a paz, oferecendo liberdade (apenas privada) de culto aos huguenotes.
Carlos IX, maior a partir de 1563, anda pela França durante 1564 até 1566 e leva consigo Henrique de Navarra, que reinará como Henrique IV. O alvos das viagens é reconciliar os inimigos religiosos sob o manto real. Na sequência da guerra religiosa, condé cai na batalha de Jarnac e é executado. O marechal Coligny refugia-se em La Rochelle. Finalmente Catarina de Médicis assina a paz em 1570. Neste ano o rei se livra da tutela materna e continua a tentar a união dos inimigos. Em 1570 ainda (08/08) em Saint-Germain são oferecidas algumas garantias aos huguenotes e La Rochelle, Cognac, Montauban são ditas cidades protestantes. A liberdade de culto é oferecida, menos em Paris. Toda essa política tem inspiração em Michel de l' Hospital. Coligny retorna ao círculo do rei, onde adquire influência, inclinando o soberano à guerra contra a Espanha. Catarina, católica e política de ferro, arrisca novamente a guerra civil. A família Guise quer vingar a morte de seu chefe e tenta matar Coligny contratando assassinos de aluguel. Em 22/08/1572, Coligny sofre um atentado, recebendo a visita do rei que, no entanto, assume a idéia de Catarina de acabar com os protestantes, acusados de, sob liderança de Coligny, subverter o Estado. O Marechal é executado com requintes de crueldade. Depois de sua morte, durante cinco dias, a partir de Paris ocorrem os massacres conhecidos como “A noite de São Bartolomeu” (na verdade, as noites…) praticados em Lyon, Dijon, Blois, Tours causando algo ao redor de 15 mil mortos. O rei perde a confiança dos súditos, os protestantes enfraquecidos não se rendem e se rebelam em 1573. ([27])
Carlos IX usou a razão de Estado, um jogo onde as regras não foram, como é o hábito, obedecidas. Se conseguiu impôr sua decisão, nem por isso ele conseguiu o essencial: unir os súditos sob a sua autoridade. É esse o desejo expresso por Michel l ´Hospital na já mencionada reunião em Saint-Germain-en-Laye de 1562 : “O rei não quer que entreis em disputa sobre qual opinião (religiosa, RR) é a melhor. Porque não se trata aqui de constituenda Religione (….) sed de constituenda Republica. E muitos podem ser Cives, que non erunt Christiani, e pode-se viver em repouso com os de opinião diversa, como vemos numa família, onde os católicos não deixam de viver em paz e amar os da nova religião”. ([28]) Com esse passo, atingimos um ponto nuclear tratado nos textos de Hobbes e também nas obras diderotianas. Trata-se, como já indiquei antes, da secularização determinada pelo Estado ao espaço público. Hobbes viveu algum tempo na França, afastado pela guerra civil e religiosa que sacudiu a Inglaterra. Ao deixar seu país e penetrar na França, encontrou uma realidade próxima, pois as duas nações que estavam se constituindo na cena política européia corriam o risco de fragmentação devido às batalhas campais entre segmentos teológico-políticos. A unidade do Estado é um dos temas mais caros à raison d´ État, desde o Renascimento. ([29]) E a desejada unidade se dissolvia a olhos vistos no território francês e britânico.
Vale a pena examinar um autor estratégico do Renascimento e que tem um posto relevante na história da razão de Estado na França. Refiro-me ao autor do Discurso sobre a Servidão Voluntária, ou Contra Um, Etienne de la Boétie, morto com 33 anos em 1563. Ao falecer, deixou com seu “intimo irmão e inviolável amigo” Montaigne livros e documentos. Oito anos depois, o autor dos Ensaios publicou alguns dos escritos do falecido, traduções de Plutarco, de Xenofonte, versos latinos e franceses. As duas ausências na coletânea eram justamente o Discurso da Servidão Voluntária e os Relatórios sobre Nossas Confusões sobre o Edito de Janeiro de 1562. Ao justificar o corte ou censura, Montaigne diz que as duas obras eram delicadas em demasia para serem abandonadas “ao grosseiro e pesado ar de uma estação tão insalubre”. Quem segue a história do período recorda-se do que se passou no governo de Carlos IX, com ou sem a tutela de Catarina de Médicis. Os protestantes sublevados e os católicos que recorriam ao massacre não eram, com certeza, geradores de bons ares. Publicar os dois textos teria efeito semelhante ao de acender um palito de fósforo num paiol. Os volumes ficaram inéditos. Mas os huguenotes se apoderaram do Discurso e publicaram um pedaço em 1574 numa coleção de panfletos intitulada o Despertador dos Francêses (Réveille-matin des François). Nome sugestivo, pois os franceses deveriam acordar, bem cedo, se não desejassem perder a vida e a cidadania. Em 1576 e 1578, eles publicaram o texto inteiro, “levemente” adequada para a defesa da Causa. O juízo de Montaigne é duro para com os protestantes. Eles juntaram ao escrito de La Boétie coisas de sua própria lavra, para “confundir e mudar o estado de nossa polícia, sem se preocuparem se eles a podem reparar”. ([30]) Bem antes de Hobbes, pois, temos a percepção de que os rebeldes constituem pessoas incompetentes, facciosas, inábeis, que estraçalham a república e não a podem reparar.
Enquanto o bem demagógico Discurso serviu perfeitamente ao desígnio dos rebeldes, o Relatório passou intacto por eles. Durante bom tempo se considerou que o tirano desenhado vivamente por La Boétie fosse Henrique III. Mas o testemunho de um autor italiano em 1570, Jacopo Corbinelli que dizia ter lido um manuscrito do Discurso “in franceze elegantíssimo” deixou inequívoca paternidade de La Boétie e, portanto, a sua escrita no reinado de Carlos IX. Tendo em vista as trapaças políticas do rei, sob ou sobre Catarina de Médicis, é mais lógico pensar que o monarca que suportou ou aceitou ou incentivou os massacres e batalhas de todos contra todos (protestantes e católicos) cabe melhor no papel de tirano na obra de La Boétie. ([31])
Como o Relatório não foi utilizado por nenhum dos partidos, ele permaneceu no anonimato até data muito recente, ao contrário do Discurso que adquiriu fama com o correr do tempo. Paul Bonnefon, pouco prezado no Brasil pelos que conhecem os temas por ouvir dizer ou pela fé em professores de filosofia, buscou em Arquivos e Bibliotecas o documento em questão. Encontrou o texto na biblioteca Mejanes, em Aix -en- Provence, no manuscrito Número 410. Quase todas as peças reunidas sob aquele número eram relativas ao século XVI, anteriores a 1575. Com as turbulências no reino, os conselheiros reunidos por L´ Hospital em Saint-Germain-en-Laye não poderiam discutir “qual seria a melhor religião, mas se as Assembléias deveriam ser permitidas”. Este é problema de La Boétie, de l´ Hospital e, depois, de Hobbes chegando a Diderot. La Boétie desejava a liberdade das pregações huguenotes, desde que os reformados seguissem a lei e devolvessem as igrejas tomadas por eles. A tese do Relatório é que todos devem respeitar a coisa pública. Vejamos o que se enuncia no texto, para notar o quanto ele se aproxima dos pressupostos hobbesianos.
Como pacificar as lutas intestinas na França ? La Boétie recorre, como inúmeros outros pensadores antes dele, à figura do médico. Para saber como acabar com a doença, urge saber “o estado presente do mal que se deseja curar, reconhecer a origem e a fonte para saber como ele nasceu, como ele se nutriu e cresceu. Se devemos encontrar algum remédio, o encontraremos mais facilmente após ter considerado aquelas duas coisas”. E qual é a doença? Toda ela encontra-se na diversidade religiosa, a qual avançou tanto que “um mesmo povo, vivendo sob um mesmo príncipe, dividiu-se em duas partes”. A ruptura não ocorre apenas na “consciência”, na “opinião”. Ela se instala “em diversas igrejas, diversos chefes, contrárias observações, diversa ordem, contrária polícia quanto à religião”. O resultado é a forma de duas repúblicas opostas, uma contra a outra. Ler o texto de La Boétie tendo o De cive e o Leviatã ao lado é tarefa mais do que instrutiva.
Vejamos: do mal causado pela divisão religiosa e da fratura da república, surgem dois outros malefícios. Em primeiro, o ódio (secreto ou público) e malefícios quase universal entre os súditos do rei, com os tristes efeitos previsíveis. Em segundo lugar vem o fato de que “pouco a pouco o povo se acostuma à uma irreverência diante do magistrado e, com o tempo, aprende a desobedecer voluntáriamente e se deixa conduzir para as armadilhas da liberdade, ou melhor, da licença, o mais doce e gostoso veneno do mundo. Isto porque o populacho, tendo conhecimento de que não é obrigado a obedecer o seu principe natural em se tratando de religião, aproveita mal esta regra que, em si mesma, não é ruim, e dela tira uma consequência falsa, a de que só é preciso obedecer aos superiores nas coisas boas em si mesmas, e depois ele se atribui o juízo do que é bom ou mau, e chega à pensar que não existe outra lei a não ser a sua consciência, isto é, a persuasão de seu espirito e de suas fantasias, e às vezes tudo o que eles querem; pois como nada é mais justo e nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso e temente a Deus, e provido de honestidade e prudência, também nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição do aglomerado (multitude) indiscreto”.
Hobbes e La Boétie, a partir do mesmo diagnóstico —a república se quebra se a ruptura religiosa for mantida— passam ao modus operandi comum. O juízo dos particulares causa a guerra civil e destrói a obediência às autoridades. Hobbes afirma que na república nenhum juízo particular pode ser ensinado e praticado sem ordem do soberano. A opinião privada deve permanecer silente, sem exteriorizar-se. La Boétie fornece um outro remédio, como veremos adiante.
La Boétie indica também algo que pode ser verificado nos textos de Hobbes. A desobediência encontra alimento poderoso no fato de que integrantes do Estado, que deveriam distribuir a justiça do rei, possuem eles mesmos sua opinião religiosa. Assim, os “officiers de Justice” agem segundo a sua crença na tarefa que lhes cabe publicamente. Com isso, levantam a desconfiança e o rancor dos que assumem religião oposta às suas. Desse modo, “sendo grande o ódio contra a Justiça, é necessário que a reverência e a obediência seja diminuída em demasia, pois é impossível honrar os que desprezamos e obedecê-los de bom grado, voluntáriamente”. Se a doença não for curada, “por contágio” a pior doutrina “e a mais perniciosa” pode passar para todas as regiões da França. E pode ocorrer que “o populacho indiscreto” pode aderir aos grandes vícios e mesmo “dos que têm origem na licença”, como ocorre com as “doenças contagiosas que seguem de país em país”.
Agora temos a imagem que surge no De cive e que aparece com força no Relatório. Se as filhas de Pélias obedeceram a feiticeira Medéia e seguiram a sua “receita” matando o pai Esão, o populacho, diz La Boétie, cheio da febre das novidades, busca opiniões diferentes, segundo as razões que ele imagina. Tratando-se da salvação, a busca indiscreta é mais perniciosa porque “toma uma opinião falsa por verdadeira e muda de bom grado, e com frequência, sem saber o que deixa e o que toma. É bem o que um grande ator antigo dizia da medicina, sobre o perigo de colocarmos nossa pessoa nas mãos de um médico desconhecido”. Na licença religiosa e na busca indiscreta da salvação, o populacho coloca sua vida até nas mãos “das velhotas mais ignorantes, se elas prometem a saúde, com rezas ou braceletes de ervas”. E o medo da morte faz com que as pessoas “entreguem seu corpo a desconhecidos”. Tudo isto resume-se nas seguintes palavras : “tolice e um estulta e cega superstição”. Uma ferida inflamada, quando as pessoas têm medo de um cirurgião, precisa no entanto de seu bisturi para acabar.
A origem das lutas que ameaçam o Estado, pensa La Boétie, encontra-se na Igreja, há muitos anos “maravilhosamente corrompida”, pelos abusos e dissolução dos costumes. A comunhão eclesiástica foi tocada, pela Reforma, “nos pontos em que seria necessário mesmo efetivar a purga”. Somado a esse ponto, no entanto, as coisas pioraram porque o povo foi chamado pelos partidos em luta para ampliar as querelas e legitimar a busca do poder. Ora, “o povo não tem condição de julgar, porque é desprovido do que dá ou confirma o bom juízo, as letras, os discursos, a experiência. Porque não pode julgar, ele acredita nos outros. Ora, é comum notar que a multidão acredita mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela é mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões enunciadas; e não duvida que, em seu lugar, as impressões percebidas pelos seus olhos corporais têm mais poder do que as disputas sutís e os mais vivos argumentos. Porque o seu entendimento principal reside nos sentidos naturais e não no espírito”. Ao ver o péssimo comportamento do clero, e ouvindo as críticas dos protestantes, a multidão passa do que enxerga (o comportamento apodrecido) à doutrina, declarada errônea pelo que é visível. E muita gente deixou a Igreja por perder o respeito ao clero, “deixaram uma causa que não entendiam, como vários juízes que, por um zelo indiscreto, conhecendo uma parte de má fé e com defesa competente, condenam a causa devido à pessoa, sem respeitar o direito”. Um lugar comum da época, entre os católicos, dizia que os protestantes seriam “gente iletrada”. Como analisa E. Telle, “o erro dos dirigentes (católicos) naquele momento era acreditar que a nova religião só atraía as pessoas de inteligência e instrução medíocre ou nula, era praticar a política da avestruz”. ([32]) A Reforma, iniciada entre letrados (Lutero era um deles), recebeu adesões relevantes nas universidades e nos meios de ensino tradicionais. Os pastores nomeados eram antigos sacerdotes ou acadêmicos, juristas, etc. que tiveram papel relevante na cultura e conheciam o grego, o latim, o hebreu e sabiam o que fazer com o manejo daqueles idiomas no campo da filologia, história, filosofia, teologia, medicina, direito, etc. Ainda na edificação do futuro Estado norte-americano, os puritanos mostraram conhecimentos amplos e sofisticados da cultura, inclusive da Patrística, na sua prática e nas propostas de ensino. ( [33])
O “argumento” utilizado por La Boétie, na passagem citada acima, deve-se mais à uma apologética estereotipada e usual no catolicismo. A questão já vem dos Evangelhos, mais precisamente dos Atos dos Apóstolos (4:13) : João e Pedro são ditos, alí, “sine litteris, et idiotae”. ([34]) O ideal de “simplicidade” iletrada tentou os monges. Mas a elite do clero, bem logo, assumiu as letras e passou a acusar os hereges, dando-lhes o título “gentil” de iletrados. O assunto, que remete à uma história bastante singular dos preconceitos e dos ódios entre católicos e protestantes, é bastante estudado em nossos dias. [35]La Boétie mostra apego ao “ethos” tradicional, o que mostra alguns limites de sua análise política e jurídica.
Os eventos que deram o sinal das guerras religiosas ocorreram dentro da Igreja, com as indulgências de 1517. O fato demonstra, adianta La Boétie, que “a Igreja estava tão tarada (tarée) que era impossível cobrir aquela deformidade sem demasiada impudência”. Os chefes da Igreja, a começar com o Papa, em vez de curar o mal no início “o alimentaram e nutriram”. O fogo da rebelião, assim assoprado pelos próprios eclesiásticos, consumiu não apenas o edifício existente, que era gasto e viciado, mais ainda “o lado bom, sólido, bem fundado”.
Com a repressão aos protestantes, pelos Estados católicos, pensa La Boétie, as coisas chegaram ao perigo máximo. “Pois nada é mais ameaçador num Estado, do que se desejar proibir o crescimento de uma opinião religiosa que perturba a coisa pública, obrigando os que a aprovam testemunhar por ela com a morte”. E o Relatório apresenta uma lista de mortos pela sua opinião religiosa, sem no entanto, La Boétie cita a regra de Santo Agostinho, terem sido verdadeiramente mártires —como no caso dos maniqueus, donatistas, anabatistas— mas apenas testemunhos desesperados que, “no entanto, não deixaram de aumentar seu número por aquele meio”. De qualquer modo, seja para decidir a questão num sentido, seja para determiná-la em outro, o soberano não pode, em hipótese nenhuma, acompanhar o povo nas suas opiniões, visto que o populacho “é o pior produtor de políticas que existe no mundo” (“le populaire, qui est le pire policeur du monde”). Se o rei permitir duas religiões, o estrangeiro pode guerrear a França e vencê-la, devido à divisão interna. “Nenhuma dissenção é maior nem mais perigosa do que a devida à religião: ela separa os cidadãos, os vizinhos, os amigos, os parentes, os irmãos, o pai e os filhos, o marido e a mulher; ele quebra as alianças, os parentescos, os casamentos, os direitos invioláveis da natureza, e penetra até o fundo dos corações para extirpar as amizades e enraizar os ódios irreconciliáveis.”. Pode ocorrer que, apesar de tudo isso, os cidadãos ainda continuem obedientes ao rei. Mas pela sua divisão, eles deixam de resistir ao estrangeiro com eficácia. A autoridade real deve prover templos comuns para que todos possam cultuar a Deus, em horários diferentes. Nenhuma das duas religiões teriam templos próprios, ostentando assim a divisão interna do reino. La Boétie termina seu Relatório comentando o dito de Santo Atanásio : quando Constantino lhe sugeriu que aos arianos deveria ser alocado um templo em Alexandria, a resposta do santo foi pronta. “Deixaremos sete templos, quando eles concederem setes aos católicos de Antioquia”. Com este diálogo, La Boétie deixa bem claro o que pensa sobre as divisões religiosas e o poder real: este não pode conceder nenhuma oportunidade para que os dois lados quebrem a ordem pública e a obediência ao soberano.
Tanto em La Boétie quanto em Hobbes, portanto, apesar de suas diferenças, existe o veto de se trazer ao público, sob controle do soberano, as opiniões religiosas e demais opiniões que residem na “consciência” individual ou dos grupos. Os Elements of Law já afirmam que ([36]) a dificuldade oferecida pela frase “É preciso obedecer mais a Deus do que aos homens” cai por terra. Em primeiro lugar, porque as leis não foram feitas para governar as consciências, mas as suas palavras e atos. Os cristãos encontram na Biblia o ensino de que devem submeter-se ao soberano “em todas as coisas”. O dilema (obedecer Deus ou obedecer o soberano) é desconhecido entre os Judeus, Gregos, Romanos e outros gentios. Naqueles povos, as leis civis definiam o justo e o virtuoso e o culto externo a Deus. Os católicos romanos apresentam dificuldades para o poder soberano, na medida mesma em que exigem para a autoridade religiosa poderes acima do civil ou, pelo menos dele independente. As leis civis não obrigam a consciência dos homens, mas suas palavras e atos. Mesmo os apóstolos não pretendem controlar as consciências, mas persuadi-las e instruí-las. Quanto às ações, a paz só é conseguida quando elas são reguladas (submetidas às regras). Caso contrário, persiste a divisão no Estado devido à “liberdade” de consciência. Ser papista, luterano, calvinista, arminiano, como no passado paulistas, apolineanos, cefasianos, não é necessário nem impede a obediência aos superiores na ordem pública. Quem luta com o pretexto dessas questões, e “se dividem em seitas, não devem ser contados entre os piedosos da fé, porque sua luta é carnal, o que é confirmado por São Paulo (1 Cor. 3, 4) ; quando alguém diz, afirma o apóstolo, eu sou de Paulo, e outro, eu sou de Apolo, nãos sois carnais? Porque aquelas questões não vem da fé, mas da inteligência (Wit) e carnalmente os homens são inclinados a buscar o domínio um sobre o outro. Porque nada é verdadeiramente um ponto de fé, senão que Jesus é o Cristo”. Assim, Paulo mostra que as questões surgidas pelos raciocínios humanos (human ratiocination) são perigosas para a vida cristã. Em se tratando do mundo civil, quem resiste a um rei porque duvida de seu título ou porque é dominado pelas paixões, merece punição. E de outro lado, sob um soberano poder de uma república cristã, não há lugar para a danação pela simples obediências das leis humanas. “Sendo a consciência apenas um juízo humano e opinião” não deve ela ser abolida, mas restrita a sua exteriorização para o espaço público o qual não pode ser uma soma heteróclita de opiniões, mas o resultado de uma só “opinião” racional. O medo da morte iguala a consciência comum do necessário pacto.
O debate sobre o destino post-mortem não deve ser feito em público e, sobretudo, deve ser afastado das leis comuns que regem todo o corpo social. Pierre Bayle indica esse ponto no pensamento hobbesiano, de modo claríssimo : “O sumário do Leviatã é que sem a paz não existe segurança num Estado, e a paz não pode subsistir sem comando, o comando sem armas; e estas últimas nada valem se não são postas nas mãos de uma pessoa; o medo das armas não pode conduzir à paz os que são impulsionados a combater por um mal ainda mais terrível do que a morte, isto é, pelas dissenções sobre as coisas necessárias à salvação eterna”. ([37]) O Estado possui uma potência que chega ao nível espiritual, sempre que se trata da república. No pacto, o indivíduo aliena o direito de agredir os demais. O soberano, no entanto, choca-se com algumas barreiras para a sua soberania. Em termos lógicos: se todos abrem mãos de seu direito natural para afastar a morte, não tem sentido o Estado exigir contra eles o direito de vida e morte. A segurança é inalienável.
Seria apenas no plano da conservação do Estado que Hobbes apresenta interesse? Aqui tocamos os elos entre o seu pensamento e os do século 18, sobretudo a filosofia diderotiana. Ferdinand Tönnies ([38]) editor e estudioso de Hobbes, movido pelo projeto de refutar todo o saber político e social mecânicos suposto no Leviatã (Tönnies pertence à sociologia romântica que opõe a vida comunitária, à vida societária moderna) define dois modelos contrários de ordem social, incluindo a vida pública. A sociedade é algo morto, maquinal, enquanto a comunidade é viva, corporal. “O que vai de uma ferramenta artificial ou a determinada máquina construída para certos fins, até um sistema orgânico ou a alguns órgãos concretos de um corpo animal, é o que vai de um conglomerado de vontade desse tipo —vontade sobreposta— a um conglomerado de vontade de uma outra classe, a uma vontade essencial”. Como indica com bastante correção Georg Lukács, “Tönnies pinta a sociedade com as cores da filosofia do direito de Hobbes, como o estado em que cada um é inimigo do outro e no qual apenas a lei assegura uma ordem externa.”. ([39]) Pois bem, é exatamente em sua famosa biografia de Hobbes, citada acima, que Tönnies recorda Augusto Comte e sua genealogia das Luzes e da Revolução Francêsa. No Cours de Philosophie Positive (Volume V), Comte aponta para os nexos entre Hobbes e o pensamento iluminista dizendo que “Hobbes é o verdadeiro pai da filosofia revolucionária”. E Tönnies concorda com o positivista, ao recordar que d´ Holbach traduziu bons trechos de Hobbes (Human Nature, em 1772) e que Rousseau combateu sua doutrina do Estado, enquanto Diderot, no Plano de Uma Universidade para a Rússia, recomenda ao lado da Lógica de Port-Royal o livro de Hobbes sobre a Natureza Humana “ouvrage court et profond (…) un chef- d´ oeuvre de logique et de raison”. ([40])
Nada mais alheio à hermenêutica proposta, em péssima hora da humanidade, por Carl Schmitt. O Leviatã pode ser um símbolo do poder arbitrário, ditatorial, ou seja lá o que for, mas sua lógica é um dos esteios do pensamento filosóficos e políticos da modernidade. E isto é muito, quando se pensa na tarefa, proposta pelo irracionalismo fascista, que pretendeu usar a filosofia do século 17 para a domesticação das massas e dos indivíduos.
Schmitt movimenta o paradigma orgânico da existência e do mundo jurídico, mas nem por isso ele deixa de criticar alguns elementos do pensamento romântico. Antes de Catolicismo Político, seu trabalho mais notável no campo especulativo chama-se justamente Romantismo Político, onde ele ataca a ironia romântica, a perene relativização do mundo em favor do Ego absoluto (como diz Hegel, do "absoluto em négligé"). Na fórmula hegeliana das Lições sobre a Estética, "o verdadeiro conteúdo do romântico é a interioridade absoluta, enquanto a forma correspondente é a subjetividade espiritual na medida em que ela colhe a própria autonomia e liberdade. Este em si infinito e em si e para si universal são a negatividade absoluta de todo particular, a simples unidade consigo, a qual absorve toda exterioridade recíproca, todos os processos da natureza com as suas fases de nascimento, morte e ressurreição, toda limitação da existência espiritual". ([41])
Esse juízo é retomado por Hegel nas Lições sobre a História da Filosofia especialmente quando discute figuras românticas exemplares, como no caso de Novalis. "A subjetividade" adianta Hegel ao falar do poeta especulador, "se estabelece na falta de algo fixo, mas como impulso (Trieb) naquele rumo, conservando assim a marca da nostalgia (Sehnsucht). Esta nostalgia, próprio de uma bela alma (einer schönen Seele) surgem nas obras de Novalis. Esta subjetividade nostálgica não entra no que é substancial, se esfumaça dentro de si mesma e se apega a este ponto de vista, rodeando a si mesma. É uma rede que tece a si mesma, para si mesma; é a vida interna e o falatório sobre toda a verdade. A extravagância da subjetividade se transforma com frequência em loucura (Verrücktheit); quando se percebe posta no pensamento, se percebe raptada pelo torvelinho (Wirbel) do entendimento que reflete, sempre negativo em relação a si mesmo". ([42])
O delírio romântico se aproxima do desarrazoado germânico. Desde o texto sobre a Constituição da Alemanha, Hegel dignostica a perda de um centro de poder que poderia dar sentido às vidas particulares, às subjetividades alemãs. A Alemanha, cindida de alto a baixo, enfrenta três problemas objetivos: ela constitui um espaço territorial em estilhaços, com múltiplos principados onde predomina a Kleinstaatarei. No plano econômico, multiplicidade de moedas e impostos aduaneiros, atividades produtivas não coordenadas, sendo marcantes as diferenças entre a Prússia agrícola dos Junkers e a Renânia industrializada. E mais as diferenças religiosas : além das seitas e igrejas protestantes, os católicos continuam na defesa da supremacia do Sumo Pontífice na direção das consciências. Os choques das várias confissões aumentam na querela dos casamentos mistos e na disputa sobre os bens eclesiásticos, etc.
No plano jurídico institucional a Alemanha também estava dividida. É a esse ponto que Hegel mais se refere em A Constituição da Alemanha. Haveria uma correspondência entre a perda do sentido universal e os estilhaços a que estava reduzida a vida política. "Na Alemanha", diz Hegel, "o poder universal, fonte de todo direito, desapareceu, fragmentou-se, passou ao estágio do particular". Assim, adianta ele, "os poderes legislativo, judiciário, religioso, militar, são misturados, divididos e reunidos de modo desordenado e desigual, com a mesma diversidade que a apropriação privada das pessoas". Ora, o Estado exige um centro comum, um centro cujos dirigentes têm o poder indispensável de afirmarem-se e afirmar suas decisões, mantendo os diferentes elementos sob sua dependência".([43])
A crítica ao romantismo, em Hegel, ataca o palavrório, como vimos acima, e a supremacia da subjetividade que ajuda a dissolver os laços do Estado. Já Kant afirma que na forma estatal moderna é permitido ao funcionário o exercício do Räsonnieren desde que ele não dissolva a obediência necessária às leis e ordenamentos do soberano. ([44]) Hegel desde logo combateu o apego ao particularismo e ao sentimento. No âmbito romântico, afirma ele quando discute Schleiermacher, "tudo é cifrado pela subjetividade particular" ([45]) Schleiermacher e os românticos fornecem boas razões para a crítica hegeliana. Nos Monólogos, texto manifesto do hermenêuta, é afirmado alto e bom som que "só encontro a mim mesmo no ato interior; no exterior, só encontro o mundo" físico, espacializado. Como o tempo e o conceito foram banidos da interioridade, o referido "mundo" é dito "uma lentidão preguiçosa", ou "movimento sem força". ([46])
Na mesma ordem de Hegel, Schmitt afasta o culto do Ego e a falta de seriedade moral dos românticos alemães. Ele acusa o sestro dos que pensam se limitar ao "interessante", o exercício da fantasia. Deste modo os românticos, no entender de Schmitt, não pensam a política e jamais chegam à decisão (recordemos que a decisão, no texto hegeliano Die Verfassung Deutschlands é o núcleo de todo Estado). Eles sempre fogem da contradição política (e demais contradições) quando procuram um "terceiro mais elevado" do que os oponentes em choque. Este terceiro elemento não brota do choque mortal entre tese e antítese, cujo movimento de dissolução resulta numa síntese. Como ele não reside no Ego nem no mundo, é apenas e tão somente um ideal, anelo, nostalgia. O romantismo nega a causalidade que marca os embates políticos. Muitos dos românticos atacados por Schmitt eram conservadores convertidos ao catolicismo no fim de suas vidas. ([47]) O embasamento paradigmático que eles assumiram reside no organicismo que enxerga o Estado e a sociedade como grandes corpos. Segundo Schmitt, tais visões eram recusáveis, bem como a de pensadores seus contemporâneos como Othmar Spann, com seus delírio de uma retomada de estamentos medievais, que seriam partes de uma sociedade orgânica. Segundo o jurista, não apegado ao sentimento e ao culto da interioridade individual, as revoluções européias e as guerras a elas ligadas acabaram com toda e qualquer pretensão de legimitidade baseada no pretérito medieval, mesmo que idealizado.
O romantismo se caracteriza, na vertente conservadora, como um pensamento aristocratizante. A sua própria noção de genialidade traz as marcas do privilégio espiritual do indivíduo dotado dos poderes poéticos da fantasia. Mas o termo "romântico" não é unívoco e se aplica também aos setores democráticos das doutrinas européias e germânicas. Assim, pode-se perfeitamente caracterizar Heine, Marx, Bruno Bauer, Feuerbach e outros como presos às formas românticas e liberais de visão jurídica e social. É sobretudo este último romantismo que se torna o alvo predileto de crítica em Schmitt. Romântico e liberal se recobrem no seu texto, especialmente pela exaltação da individualidade e mania de adiar decisões, com recurso a uma longa discussão (Räsonnieren, ou em termos mais brutais, Geschwätz, parolagem desprovida de sentido). O esteticismo em política também é condenado por Schmitt, o que foi louvado em tempo certo por um escritor que também se preocupava com o político, em fronteira diversa ao do jurista, György Lukács, que elogiou bastante o Romantismo Político. ([48])
Ao recusar a subjetividade informe, romântica, e criticando o liberalismo que se perde em eterno palavrório, Schmitt empreende a redação de A ditadura, forma de decisão política inexorável, remédio para a fragmentação do Estado e da sociedade, além de Catolicismo Romano e Forma Política.
O que busca Schmitt na Igreja Católica? Não exatamente o que nela procuravam os românticos como Novalis, que enxergavam na sua estrutura um modelo (Muster) de sociedade medieval a ser restaurado. Schmitt não tenta retroagir ao pretérito, mas está premido pelas tensões políticas e fragmentação do Estado na Alemanha, caos trazido tanto pelos conservadores quanto pelos revolucionários socialistas e anarquistas. A reiteração perene dos conflitos encontra-se no ideário de burgueses e trabalhadores que enfatizam o peso do econômico sobre o político, neutralizando a ação do Estado. Schmitt encontra no catolicismo uma espécie de matriz para a estabilidade jurídica e a obediência política.
Schmitt busca compreender a política, tanto em sua natureza quando na sua significação. É isto o que ele indica como "o político". Após grande número de textos, porque ler hoje em dia O Catolicismo Romano e Forma Política, um ensaio de 1923 ? Desde logo, precisamos nos referir novamente ao livro fundamental de Schmitt sobre as duas pontas ideológicas, o liberalismo e o socialismo, que tecem a exposição de A Ditadura (1921). Ele estuda as mais variadas formas daquela função, da Idade Média a Maquiavel, deste aos jacobinos parlamentares francêses e ao pensamento de Lenine sobre a ditadura do proletariado. Na estrutura argumentativa de A Ditadura existe uma análise arguta do poder pontifício na instauração da moderna Igreja. Desde aquele instante os poderes mais baixos da Ecclesia foram despossuídos de seu direito à propriedade dos meios de salvação e de governo do organismo salvífico. Schmitt aproveita a tese de Max Weber sobre o nascimento e reforço do poder central em privilégio da Santa Sé e do Papa e em detrimento dos bispos, abades, nobreza dona de igrejas e conventos. Trata-se da radical Trennung entre o indivíduo que exerce um cargo e os próprios meios daquele cargo. Weber retira a noção de Marx, para quem o operário e os meios de trabalho são separados na ordem capitalista. Assim como o operário é despossuído dos meios (da terra aos utensílios, máquinas, etc), também, pensa Weber, o funcionário é despossuído dos meios de administração (e na Igreja, administração e salvação). Ao analisar o legado, funcionário ou embaixador papal, Schmitt mostra o que, para ele, significa representação. O legado representa o Sumo Pontífice como se dele fosse realmente uma encarnação. Quando é feita uma visita do legado às dioceses, não importa se o legado é um simples padre ou frade, e o visitado cardeal ou arcebispo. O legado representa o poder do Papa, sem contestação. Só esta pequena lembrança faz recordar o peso de A Ditadura sobre o escrito intitulado Catolicismo Romano e Forma Política, e vice-versa.
Segundo Ulmen, a pressuposição de Schmitt no Catolicismo Romano é que os Estados soberanos, cuja origem residiria nos séculos 16 e 17, e nos quais temos as bases do ius publicum Europaeum, com uma lei internacional europocêntrica (este lado será desenvolvido, e muito, em O nomos da Terra) começam a declinar no século 19.
Tal forma de Estado seria um dos principais agentes da secularização e do racionalismo. Aqui, podemos resumir uma longa e tortuosa história que joga raízes nas emboscadas de Felipe o Belo contra o Papa, sendo seguido por outros monarcas como Henrique I da Inglaterra. A luta anterior pela soberania legítima, no fim da Idade Média, teve origem em sinais do poder. Tanto o rei quanto o papa disputaram as almas e os corpos, exigiram a espada para a sua soberania que, por sua vez, recebeu o nome jurídico de plenitudo potestatis, superlativa auctoritas, plenaria potestas, summa potestas, etc. Com a premissa de que a sociedade seria inteiramente cristã — a Respublica christiana — o coletivo resumia-se à comunhão religiosa, em especial nos cargos dirigentes. Como os reis tinham dignidade eclesiástica, sobretudo após instaurada a sagração dos reis franceses em 751 por Pepino o Breve — cerimônia que se espalhou pela Europa — eles deveriam seguir as ordens do papa. A sagração deixava bem clara esta dependência do rei ao pontífice nas próprias roupas que ele envergava cerimonialmente: a túnica do subdiácono, a dalmática do diácono e a casula do presbítero. O rei estava na Igreja, mas não era superior ao Corpus mysticum. Ele recebia um anel semelhante ao episcopal, mas isto não significava que seu elo com a Ecclesia era semelhante ao do bispo e do papa. Estes últimos, na ordenação, tornavam-se esposos da comunidade, o que explica a fórmula segundo a qual “o bispo está na Igreja e a Igreja está no bispo”.
Grandes pensadores na Idade Média e começo da Moderna, no entanto, apontavam a plenitudo potestatis em proveito do poder laico. Como em Guilherme de Ockham: para ele o Estado é legítimo quando aceito pelos cidadãos. A Igreja é infalível em matéria de fé, constituindo a multidão dos fiéis que se retoma do Antigo Testamento aos últimos tempos. Cabe ao príncipe leigo reprimir fisicamente a heresia e defender a Igreja. Mas ele nega os plenos poderes do pontífice nas duas ordens, secular e religiosa. Já Cristo disse: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Precisamos reafirmar a importância da representação na ordem católica. Durante certo tempo o termo "repraesentare" significou "tornar presente" literalmente, como "pagar em dinheiro" ou conduzir um novo Papa diante da multidão que o espera. ([49]) Para que alguém seja representado, é preciso estar presente de certo modo no ou através de um intermediário.([50]) Como diz Franco Todescan ao comentar Guilherme de Ockham, "Não obstante as múltiplas oscilações dos juristas e teólogos no uso do termo ´repraesentare´ (entre um significado genericamente alegórico de figuração simbólico-profética, e outro mais rigorosamente técnico-jurídico de relação vicária entre mandatário e mandante, entre tutor e e pupilo) se poderia justificar a identificação entre o Concilio Geral e Igreja universal e a consequente superioridade do Concilio sobre o Papa". ([51])
O pressuposto para a aplicação ao concílio da idéia de representação no sentido jurídico é a idéia da Igreja como corpo ou congregatio fidelium. Esta congregatio contem em si mesma todos os direitos, de modo originário. Tal enunciado só pode surgir com a leitura de Aristóteles feita a partir do século 13. Soberania do povo e representação surgem pela primeira vez com João Quidort, quando se discutia a destituição do papa pelo concilio. ([52]) Assim, a reunião dos bispos agiria loco totius populi (em lugar do povo). Mas não só em defesa do concilio contra o papa foi estratégico o conceito de representação. Ele serviu para os adversários do Sumo Pontífice, como no caso de Marsilio de Pádua. ([53])Para ele, a representação perde o sentido antigo e passa a significar delegação do povo soberano, sendo o Concilio não mais um encontro de chefes da Igreja, os bispos, mas dos representantes do povo, os padres e leigos.
Assim, os defensores do concilio usam a idéia de representação para subordinar o papa ao Concilio, pois este último "representa" o consenso eclesial de maneira mais unívoca do que o papa. O cardeal Ratzinger, hoje Bento 16, permanece fiel à doutrina vencedora na época, contrária à idéia democrática da Igreja e do concilio. Ele diz que um concilio, antes de ser a representação da Igreja é a "assembléia dos que têm cargo de direção. Na ordem concreta da Igreja, são evidentemente os bispos". ([54]) Nota-se a conotação vertical da idéia de "representação" oposta ao significado horizontal, com os conciliaristas e os que entendem a Igreja e o Estado em sentido democrático.
Não predominando na vida eclesiástica a tese conciliarista de representação, torna-se hegemônica a que concede ao Papa supremacia sobre os Concilios. A representação, assim, passa pelo enunciado segundo o qual "im omni ierarchia in qua praesidens et gubernatur tribuit alteri potestatem ac iurisdictionem, est superior illo cui atribuitur potestas" ( Em toda hierarquia na qual o que preside e governa atribui aos outros poder e jurisdição, é superior a quem o poder é atribuído). ([55]) Segundo o jurista e teólogo Tubeta, o Papa "successorem Petri gerentem vices eius cum plenitudine potestatis", usufrui de suprema auctoritas e da potestas praesidentiae sobre a Igreja.
Não foi essa a via assumida pelos seguidores dos poderes civis. A Igreja, no seu entender, é apenas a universitas fidelium não implicando poderes temporais para o papa. Com as reivindicações de soberania espiritual do rei acentuou-se a imagem de seu casamento com o Estado, inter principem et rempublicam matrimonium morale et spirituale contrahitur et politicum, no dizer de Lucca de Penna. Tal enlace mimetiza o “matrimônio” do bispo com a Igreja, o que faz Lucca de Penna insinuar, citando Sêneca, que no rei respira a alma da res publica ([56]) enquanto esta última é o seu corpo ([57])
Temos a gênese do Estado enquanto corpo místico do rei. Este último não se integra mais na Igreja, sob o papa, mas é a Igreja que a ele seria subordinada. O soberano laico tem o direito de ostentar o báculo porque o uso exclusivo e legítimo da espada ele o conquistara, contra o papa. Ainda em termos religiosos nota-se a ambição de que o rei seja um com a Igreja, um com o Estado. O signo da plenitudo potestatis é a espada. Na Contra-Reforma a polêmica antihobbesiana foi bem executada por Roberto Bellarmino e não é sem motivos que Hobbes estabelece com aquele cardeal uma guerra cuidadosa e virulenta. Com Hobbes, o corpo místico eclesiástico é atacado porque deve submeter-se ao corpo da república, cujo soberano detém as duas “espadas”, a espiritual e a material.
A figura do Leviatã ameaça o imaginário teológico-político e defende o predomínio da laicidade sobre a hierarquia religiosa. Esta revolução no pensamento tenta apagar antigas doutrinas católicas. Devemos retomar o pensamento católico medieval para compreender em maiores detalhes o nosso tema. Em Tomás de Aquino o universo desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os leigos comuns, o que define a espinha dorsal do catolicismo político. Essa é a doutrina neoplatônica haurida em Dionísio, o Pseudo-Areopagita. ([58]) Deus encontra-se além dos sentidos e apenas por intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bênçãos. A hierarquia encontra-se no próprio ser. Com o Estado moderno, toda representação hierárquica transcendente foi afastada, em proveito da igualização de todos os dirigidos e em favor dos dirigentes.
Segundo Carl Schmitt, enquanto o Estado manteve o monopólio do político —enquanto era notável a distinção entre Estado e Sociedade— , a fórmula que enuncia ser o Estado igual à política era efetiva. Quando o Estado e a Sociedade começaram a se misturar, o que se deu por volta de 1848 e atingiu seu apice na revolução de 1918, a equação passou a ser falsa. Não se trata de saber qual forma política poderia substituir o Estado, e qual nomos ou ordem poderia ser estabelecida. A pergunta é a seguinte: como entender a política neste contexto histórico novo.
Carl Schmitt assevera que "todos os conceitos significativos da moderna teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados". ([59]) É bom recordar que a sequência da frase segundo a qual o estado de exceção é o análogo do milagre na teologia política, tem sua origem no Discurso sobre a Ditadura, de Juan Donoso Cortés. ([60])
A passagem do teológico ao político ocorre no processo de secularização. É preciso compreender o enunciado significa. O evento moderno que marca o processo de "secularização" ocorre em 1789. No mesmo tempo em que a sociedade hierarquizada em "estados" (Ständgesellschaft) do Antigo Regime cai por terra, cai o seu outro complementar, a Igreja feudal e a Igreja de Estado (galicana). O Estado absolutista desejou integrar a Igreja no Estado, como entidade cooperativa. O Estado constitucional liberal pós-revolucionário exigia o contrário, em nome da garantia da liberdade individual e uma integração auto-reguladora dos grupos sociais na sociedade para conseguir as relações capitalistas, eliminando antigas estruturas sociais que entravariam aqueles elos.
Para tal fim era preciso deslocar a Igreja, poderosa societas perfecta de direito próprio e concorrente do Estado na integração social. Seria preciso reduzi-la ao estatuto de instituição privada, neutralizando a ação dos sacerdotes e deles fazendo funcionários controláveis. Nesta situação, algo inédito ocorreu: a Igreja, praticamente uma síntese de todas as culturas do Mediterrâneo, estou quase parafraseando Nietzsche, não conseguiu assimilar o liberalismo e o capitalismo. Em vez de seguir sua milenar prática de assimilação do diverso cultural que a envolve, ela se crispou centralizando sua potência burocrática. Tal centralização ocorre com o dogma da infalibidade papal, instituído pelo Concílio Vaticano I (1869-70), convocado por Pio 9º. O documento Pastor Aeternus, aprovado em 18 de julho de 1870, proclama a primazia do papa sobre toda a Igreja e define sua infalibilidade na doutrina da fé. No mesmo passo, a Igreja tentou conduzir, graças a representações românticas que entendiam restaurar um Estado e uma sociedade não mais vigentes, uma pacificação social. A fórmula intermediária entre a antiga estrutura feudal ou absolutista e a nova sociedade capitalista e liberalizante, ela a achou no corporatismo.
O que se passa no Catolicismo Romano e Forma Politica? Alí Carl Schmitt defende a política contra análises como as de Marx Weber, cuja ênfase maior em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é a razão econômica que brotaria da fé irracional, mas que rotiniza e estereotipa o carisma em prática calculáveis e controláveis no interior do tempo e do espaço. O encômio da política serve como antídoto ao pensamento econômico e tecnológico, cujos pressupostos encontram-se no mecanismo do Estado e sua neutralização nas resoluções dos conflitos sociais e jurídicos.
Schmitt indica na Igreja Católica algo que os românticos queriam mas eram incapazes de obter, dada a sua imersão na interioridade: a Igreja consegue ser o terceiro mais elevado nas contradições ocorridas entre as partes sociais, políticas, econômicas. Ela é o chamado complexio oppositorum e sua racionalidade jurídica seria superior à razão mecânica e instrumental do liberalismo e do socialismo modernos. Na Igreja existe uma teoria e uma prática da representação de uma idéia na qual o Papa representa o Cristo. Uma representação, pensa Schmitt, deve ser necessariamente pessoal e deve envolver crenças substantivas, ideiais e mitos. Representar, neste sentido, é representar diante do povo, não para o povo. A representação vem do Eterno para o tempo, de cima para baixo, e não como no pensamento liberal ou socialista, do tempo para a idéia, do econômico para o político. ([61])
O Catolicismo Romano e Forma Política ([62]) põe a questão da idéia política do catolicismo, a sua forma. Desde o início Schmitt constata a sua espantosa elasticidade da política eclesiástica, tomada por oportunismo pelos seus adversários. Ela se alia a correntes e grupos opostos, com muitas coalizões que testemunham contra uma suposta integridade da instituição. Numa terra ela patrocina a reação contra revolucionária, e se torna inimiga declarada de toda libertade burguesa. Em outra, ela exige a mesma liberdade, a exemplo da liberdade de ensino. ([63]) Segundo Schmitt, todas as correntes e tendências são instrumentalizadas, desde que ajudem a encarnar as formas eclesiásticas. A mesma experiência poderia ser encontrada no Império Romano, um complexo de opostos de todas as culturas mediterrâneas, da Europa e mesmo da Asia. Nele, todas as religiões, formas políticas, administrativas, filosóficas eram aceitas, desde que reconhecessem a supremacia do direito e da autoridade romana.
O mais particular na Igreja, entretanto, é que parece não existir oposição que ela não englobe, a começar com a sua estrutura mesma, que reúne elementos democráticos, aristocráticos e monárquicos absolutistas. E nela, também, se harmonizam transcendência e imanência, intransigência e tolerância, princípio masculino e feminino, paterno e materno, natureza e espírito, natureza e razão, natureza e arte, etc. Citando Schmitt: "Do ponto de vista da idéia política do catolicismo, a essência do complexio oppositorum católico-romano reside numa superioridade específicamente formal da vida humana sobre a matéria, tal que nenhum imperium não a conheceu até hoje. Aqui foi bem sucedida uma forma substancial da realidade histórica e social, que, apesar de seu caráter formal, subsiste na existência concreta, cheia de vida e no entanto racional no mais elevado ponto. Esta particularidade formal do catolicismo romano repousa sobre a aplicação estrita do princípio de representação". A Igreja representa a civitas humana, manifesta a cada instante o elo histórico entre a incarnação e o sacrifício da cruz, representa o próprio Cristo, pessoalmente, o Deus que se tornou homem na realidade histórica. É nesta forma representativa que está a sua superioridade sobre uma época dominada pelo pensamento econômico". ([64])
Carl Schmitt dá uma força particular ao último enunciado: o racionalismo da Igreja "que capta moralmente a natureza psicológica e sociológica do homem" tem, no seu entender, mais peso do que o racionalismo da indústria e da técnica orientada para o domínio e uso da matéria para fins produtivos e de consumo, que pensa e age segundo polaridades (em especial a oposição entre economia e política) e que gostaria de usar a Igreja enquanto "instituto higiênico para os sofrimentos da luta concorrencial" ou como "polaridade espiritual ou ausência de espírito" como negócio privado, como se compatível à propriedade privada.
O racionalismo da Igreja é fundado em plano institucional, sendo essencialmente jurídico. Nela o sacerdócio é um ministério, que se refere (por sua dissociação do carisma) por uma cadeia contínua à pessoa e à missão de Cristo, que, segundo Schmitt, é o mais espantoso complexio oppositorum. Erasmo de Rotterdam, católico, já falara do Cristo como a união mais espantosa dos opostos. Basta reler o Adágio Sileni Alcibiadis. Cristo é um Sileno mirífico: por fora era a impotência pura, os seus pais eram gente sem meios, os discípulos idem, mas sob a crosta abjeta, uma pérola rara, altitude vertiginosa, na extrema pobreza a máxima riqueza, na debilidade uma força incrível, na mais baixa ignomínia a glória excelsa, na morte precoce uma perene imortalidade. Obviamente, diz Erasmo, estava em poder do Cristo instalar certa monarquia e atingir a meta que os imperadores romanos perseguiram em vão, ter um cortejo mais numeroso do que o de Xerxes, uma riqueza maior do que a de Creso, impor silêncio aos filósofos. Mas quis assumir uma outra imagem. ([65])
A Igreja é uma representação concreta e pessoal de uma personalidade concreta. Tanto no representante quanto no representado está presente um princípio pessoal de autoridade pelo alto. É por tal motivo que ela encarna uma idéia política, capaz de resolver as oposições que sequer são percebidas pelo pensamento mecânico da indústria e da técnica. "Este mundo da representação tem sua hierarquia de valores e de humanidade. É nele que vive a idéia política, bem como sua energia para realizar as três formas principais:
1) a forma estética, isto é, a simbólica representativa que consiste na capacidade retórica, num discurso que não discute, não arrazoa (ao modo do Räsonnieren), que é pré e anti burguêsm um discurso cuja percussão vem da fé na representação reclamada pelo locutor
2) a forma jurídica da societas perfecta, que torna a Igreja que torna a Igreja capaz de negociar com o Estado como figura de representação igual
3) A forma de potência histórica mundial que representa o Cristo reinante, soberano, triunfante, e funda a força política do catolicismo. Ela produz a eterna oposição entre justiça e a glória, a potênciam que só pode ser adquirida no próprio Deus. Em seu imperialismo mundial, a Igreja, se ela atinge seu fim, trará paz ao mundo.
Esses tres pontos formais, no pensamento de Schmitt, trazem uma importante compreensão do catolicismo, ou melhor, de sua auto-compreensão.
À crítica dos protestantes, endereçada aos fundamentos da Igreja (ela seria um mecanismo, um aparato burocrático) responde Schmitt que, na verdade, são os protestantes os genitores do mecanicismo em política e sociedade.
Lutero ao mesmo tempo proclama o sacerdócio universal dos fiéis, nega a divisão hierárquica ao modo de Dionisio o pseudo-Areopagita e declara nulas as distinções entre clero e laicato. "Lutero não poderia, nem fez, da Igreja uma ordem distinta, hierarquizada e centralizada neste mundo, análoga a outros Estados, porque sua doutrina da igreja tinha antes assumido uma forma fixada por sua teologia. A forma da verdadeira Igreja, a invisível (ecclesia invisibilis) no Reino de Deus era o igualitário sacerdócio dos crentes, governado apenas pelo Cristo". ([66]) Lutero nega à Igreja toda autoridade mundana independente. Mas ele também nega que o igualitarismo deveria ser a forma visível da Igreja (ecclesia visibilis). O igualitarismo se atenua nos projetos de um ministério estruturado, cujo destino é complexo e não segue em sentido único, sobretudo não segue no plano de imitar a Igreja romana.
Lutero, portanto, proclama a invisibilidade da Igreja. Esta não é mais um organismo externo dirigido por uma autoridade, mas comunidade espiritual formada pelos crentes, só conhecidos pelo Cristo, a sua cabeça, diretor e senhor. As funções eclesiásticas (pregação, sacramentos) não indicam autoridade que permitam a quem os administra legislar em matéria religiosa e, sobretudo em campo civil. "Quem nos mostrará a Igreja, dado que ela se esconde no Espírito Santo, sendo simplesmente objeto de fé?" diz Lutero em 1522. Com a Guerra dos Camponeses, Lutero atenua a invisibilidade da Igreja. Esta ainda é invisível, em grande parte, mas ele determina mais acentuadamente alguns prismas visíveis de sua organização. Com o tempo, a visibilidade eclesiástica se acentua, porque as igrejas passam a ser definidas pelos Estados, deles dependendo estreitamente. Contra o Iluminismo, Lutero aumenta os poderes eclesiásticos em favor da Igreja mãe, a de Wittenberg: pastores e pregadores devem ser submetidos a exames doutrinários, segundo os padrões de Wittenberg. ([67]) Mas na base teórica, é mantida a divisão entre o visível e o invisível, os dois reinos, "o temporal, dirigido pela espada e visto com os olhos, e o espiritual, governado pela graça e perdão dos pecados". ([68]) A ambiguidade da eclesiologia luterana estourou no Terceiro Reich, quando os crentes que aderiram ao nazismo lutam para que sinais visíveis da Igreja (cultura comum, raça, etc) surgissem como elemento essencial. Também não entro agora no debate, embora ele seja muito próximo ao problema apresentado por Schmitt. ([69])
No pensamento filosófico e político germânico a distinção entre o visível e o invisível é seguida de maneira habitual. Em Kant ocorre a separação entre os dois campos, o da Razão Teórica, campo dos fenômenos (o que vem à luz) e a Razão Prática, determinada pela consciência invisível. ([70]) No mundo da física não existem atos livres, nele impera a necessidade; no da ordem livre rege a liberdade do sujeito. A religião não pode ser algo externo, visível, imposto como necessária, sobretudo em se tratando da autoridade. Resta, claro, o problema de como unir necessidade e liberdade. Tal ponto é encaminhado por Kant na Critica da Faculdade de Julgar, o que não é nosso tema agora. ([71])
" A ideia sublime, nunca plenamente alcançável, de uma comunidade ética mingua muito em mãos humanas, a saber, para chegar a ser uma instituição que, capaz em todo o caso de representar somente a forma daquela, está, no tocante aos meios de erigir semelhante todo, muito restringida sob condições da natureza sensível do homem. Mas como pode esperar-se que de um lenho tortuoso se talhe algo de plenamente recto? Instituir um povo de Deus moral é, portanto, uma obra cuja execução não se pode esperar dos homens, mas somente do próprio Deus. Contudo, não é permitido ao homem estar inactivo quanto a este negócio e deixar que a Providência actue, como se a cada qual fosse permitido perseguir somente o seu interesse moral privado, deixando a uma sabedoria superior o todo do interesse do género humano (segundo a sua determinação moral). Pelo contrário, há- de proceder como se tudo dele dependesse, e só sob esta condição pode esperar que uma sabedoria superior garantirá ao seu esforço bem intencionado a consumação.
O desejo de todos os bem-intencionados é, pois, ”que o Reino de Deus venha, que se faça a sua vontade na Terra"; mas que devem eles organizar para que isto lhes aconteça? Uma comunidade ética sob a legislação moral divina é uma Igreja, que, na medida em que não é objecto algum de experiência possível, se chama a Igreja invisível (uma mera ideia da união de todos os homens rectos sob o governo divino imediato, mas moral, do mundo, tal como serve de arquétipo às que devem ser fundadas por homens). A visível é a união efectiva dos homens num todo que concorda com aquele ideal. Na medida em que toda a sociedade sob leis públicas traz consigo uma subordinação dos seus membros (na relação dos que obedecem às suas leis com os que se atêm à observância das mesmas), a multidão unida naquele todo (a Igreja) é a congregação sob os seus superiores, que (chamados também mestres ou pastores de almas) administram somente os negócios do seu chefe invisível e se chamam conjuntamente, a este respeito, servidores da Igreja, do mesmo modo que na comunidade política o chefe visível se denomina a si mesmo, de vez em quando, o supremo servidor do Estado, embora não reconheça decerto acima de si nenhum homem (em geral, nem sequer a própria totalidade do povo). A verdadeira Igreja (visível) é aquela que representa o reino (moral) de Deus na Terra, tanto quanto isso pode acontecer através dos homens. Os requisitos, por conseguinte, as notas características, da verdadeira Igreja são os seguintes:
1. A universalidade, por conseguinte, a sua unidade numérica; deve em si conter a disposição para tal, a saber, embora dividida em opiniões contingentes e desunida, encontra-se, apesar de tudo, quanto ao fito essencial, erigida sob princípios que devem necessariamente levá-la à universal unificação numa única Igreja (portanto, nenhuma divisão em seitas
2. A característica (qualidade) de tal Igreja; i.e., a pureza, a união sob nenhuns outros motivos a não ser os morais. (Purificada da imbecilidade da superstição e da loucura do fanatismo.)
3. A relação sob o princípio da liberdade, tanto a relação interna dos seus membros entre si como a externa da Igreja com o poder político, ambas as coisas num Estado livre (por conseguinte, nem hierarquia, nem iluminismo, uma espécie de democracia mediante inspirações particulares, que podem ser diferentes de outras, segundo a cabeça de cada qual).
4. A modalidade de tal Igreja, a imutabilidade quanto à sua constituição, com a reserva, porém, dos ordenamentos contingentes, respeitantes só à administração da Igreja, as quais podem mudar segundo o tempo e as circunstâncias, embora ela tenha para tal de conter já a priori em si mesma (na ideia do seu fim) os princípios seguros. (Portanto, sob leis originais, como que prescritas publicamente por um código, não sob símbolos arbitrários que, por lhes faltar a autenticidade, são contingentes, expostos à contradição e mutáveis). Por conseguinte, uma comunidade ética considerada como Igreja, i.e., como simples representante de um Estado de Deus, não tem, em rigor, nenhuma constituição análoga, quanto aos seus princípios, à constituição política. Tal constituição não é nela nem monárquica (sob um Papa ou Patriarca), nem aristocrática (sob Bispos e Prelados), nem democrática (como de iluminados sectários). Quando muito, poderia ainda comparar-se a uma comunidade doméstica (família) sob um pai moral comunitário, embora invisível, enquanto o seu filho santo, que conhece a sua vontade e, ao mesmo tempo, está em parentesco de sangue com todos os seus membros, ocupa o seu lugar de maneira a tornar conhecida mais em pormenor a sua vontade àqueles que, por isso, nele honram o pai e deste modo ingressam uns com os outros numa voluntária, universal e duradoira união de coração". ([72])
Como enuncia Alexis Philonenko, a obra de Kant significava "liberar o ético do jugo teológico, fazer a lei moral boa em si mesma e não suspensa ao arbítrio de um Deus onipotente". O mesmo Philonenko indica o sexto capítulo das Contribuições para Mudar o Juízo do Público sobre a Revolução Francesa, de Fichte, como resultado consequente de uma recusa persistente de uma igreja visível. ([73]) Para Fichte, Deus sendo imanente à consciência e formando o todo das consciências éticas uma cadeia, a ordem moral do mundo, a "Igreja, simplesmente considerada em si mesma, só tem força e direito num mundo invisível; no visível ela não possui força e direito" ([74])
Um ponto relevante na atitude de Fichte, no entanto, é essencial na cruzada de Schmitt em prol da Igreja visível, a católica. Para o especulativo do século 19, seguidor radical de Kant, não existe direito de propriedade para a Igreja, ou para os integrantes da Igreja enquanto tais. Eles só podem exigir seus direitos neste mundo, não lhes sendo facultado nenhuma posse de bens (e demais vantagens da vida civil) como integrantes da comunhão eclesiástica. Se isto não bastasse para minar as bases do pensamento católico e luterano (que Fichte acusa de falta de consequência em relação ao seu princípio essencial, a invisibilidade da consciência) o filósofo baseia toda a sua argumentação no contrato, algo inimaginável para a eclesiologia de tipo dionisíaco. ([75]) Ampliando ao mundo religioso a base contratual, Fichte aponta a inconsistência das reivindicações de poder visível eclesiástico, pois quando um fiel contrata com a Igreja a sua salvação eterna, o conteúdo do contrato está fora do tempo e do espaço, fora do mundo fenomênico. Como diz um comentador, "um contrato de troca só é válido quando ocorre no mundo dos fenômenos e se as duas partes cumprem sua promessa. Ora, nesta vida, um contrato de troca de bens terrestres contra bens celestes jamais tomba no mundo dos fenômenos. O possuidor dos bens terrestres executa sem dúvida o contrato de seu lado; mas a detentora dos bens celestes não o executa do seu.". ([76])
O exemplo de Fichte é importante, porque ele reúne os elementos combatidos por Carl Schmitt na ordem liberal moderna: a privatização do político e do religioso, a sua redução ao plano do mercado e do contrato, o que joga por terra toda e qualquer idéia de representação hierarquizada e visível do mundo, figurada pela Igreja Católica. Resta indicar, no sistema filosófico alemão do século 19, a posição de Hegel. Até os anos de Francfurt (1797-1800) o jovem pensador assumiu a tese kantiana sobre a Igreja. Em carta a Schelling ele afirmara que "razão e liberdade são a nossa divisa, a Igreja invisível nosso ponto de união". Neste momento, como para Kant, Cristo é no entender de Hegel "um ideal da virtude". A fé no Cristo é um ideal personificado. ([77])
Ainda em 1816 Hegel considera que "a função central do protestantismo consistia na ´formação geral do Espírito´, onde escolas e universidades seriam institutos ´religiosos´do saber. As ´igrejas´protestantes seriam as escolas e as universidades e não a Igreja no sentido propriamente católico do termo. Privilegia-se, assim, a atividade racional e não os atos de fé, a submissão a determinados dogmas. A razão é elevada à posição de árbitro supremo de todas as questões, inclusive religiosas, contando, para isto, com o apoio de uma religião determinada. Ou seja, a função de ligar as pessoas entre si por um credo determinado, função eminentemente religiosa, é também atribuída ao trabalho da razão, à atividade propriamente filosófica".( [78])
Nas Lições sobre a Filosofia da História temos uma análise ampla e completa de Hegel sobre a Igreja. O filósofo insiste sobre o caráter externo das práticas e da estrutura eclesiástica antes da Reforma. Hegel chega ao ponto de afirmar que na Igreja a imagem fez esvanecer a adoração de Deus em espírito, afastando o próprio Cristo. ([79]) Na forma dos sacramentos e na confissão, "a Igreja tomou o lugar da consciência; ela guiou os indivíduos como crianças e lhes disse que o homem pode se liberar dos tormentos merecidos, não modificando a si mesmos, mas por atos externos, opera operata —atos não da boa vontade , mas executados por ordem dos servidores da Igreja (...) Assim se produziu uma perfeita inversão de tudo o que é reconhecido como bom e moral na Igreja cristã: são pedidas aos homens coisas exteriores às quais se satisfaz de maneira totalmente exterior. A ausência absoluta de liberdade foi, deste modo, introduzida no próprio princípio da liberdade".
A divisão (Trennung) entre o ser humano e o conhecimento do bem, algo reservado a uma casta de pessoas (a hierarquia) torna o homem presa do externo (os tormentos infernais, etc). Esta separação liga-se a uma outra, absoluta, a separação (Trennung) entre o princípio espiritual e o temporal. Assim, a piedade só pode se dedicar ao exterior, à história e sem história, pois "a história é o império do espírito presente a si mesmo em sua liberdade subjetiva, como reino ético do Estado (als sittliches Reich des Staates). Com a Reforma o princípio espiritual, interior, assume a preponderência. "A doutrina de Lutero", diz Hegel, "é simplesmente que o isto (das Dieses), a infinita subjetividade, a verdadeira espiritualidade, Cristo, não é de nenhum modo presente no efetivo exterior, mas que ele se adquire como espiritualidade, de maneira geral, apenas na reconciliação (Versöhnung) com Deus, na fé e na comunhão. Estas duas palavras dizem tudo. Não é a consciência de uma coisa sensível que seria Deus, nem tão pouco uma coisa simplesmente representada (noch auch eines bloss Vorgestellten), que não é nem efetiva (wirklich) nem presente, mas de um efetivo (Wirklichen) que não é sensível. A exterioridade é assim descartada , todos os dogmas são reconstruídos e toda a superstição na qual, em consequência se desagregou a Igreja se esvaneceu". A doutrina luterana diz (adianta Hegel), que o nascimento da Igreja vem apenas do Espirito Santo e não depende de uma individualidade particular. Neste ponto, Lutero guarda algo da Igreja Católica, mas sem a exterioridade desta última.
Sabendo o indivíduo agora que ele está cheio do espírito divino, desaparece toda condição externa e não mais existe a diferença entre padres e leigos. "O conteúdo da verdade não é mais detido exclusivamente por uma casta". Deste modo, "o espírito da verdade pode aparecer na vontade subjetiva, na ação particular da vontade; quando o espírito livre subjetivo, em sua intensidade, se decide pela forma da generalidade, pode aparecer o espírito objetivo. É neste sentido que precisamos compreender que o Estado se fundamenta na religião. Estados e leis são apenas fenômenos da religião nas condições da efetividade".
Com a Paz de Westfalia, arremata Hegel, a independencia da Igreja protestante foi reconhecida, para vergonha da Igreja Católica. Mas a mesma Paz de Westfalia fragmentou a Alemanha, definindo o mais perfeito particularismo e determinação, segundo o direito privado, de todas as relações. "É a anarquia constituída, como nunca antes tinha sido vista no mundo". ([80]) Importa sublinhar, agora, uma coincidência importante entre as teses hegelianas e as de Carl Schmitt.
Primeiro, no relativo a um aspecto da crítica Schmittiana ao romantismo, cuja intersecção com os argumentos hegelianos é patente. O romantismo, para ambos, é o campo da subjetividade sem freios do mundo objetivo e do Ideal que pode reconciliar as contradições, sobre as do Ego e do campo social e político. A segunda coincidência, se pudermos usar a expressão, vem no mesmo tom de crítica ao romantismo e ao seu elogio da sensibilidade.
Segundo Hegel, a mulher, ser sensível por excelência, é inepta e inapta para a política. Vejamos a tese passo a passo. ([81]) Dos dois sexos, diz ele, "um é o elemento espiritual que divide a si mesmo em independência pessoal para si, em saber e querer (Wissen und Wollen) da livre universalidade, a consciência de si do pensamento conceptualizador e o querer do alvo final objetivo. O outro sexo é o elemento espiritual que se mantem na unidade como saber e querer do substancial, mas sob a forma da individualidade concreta e do sentimento (Empfindungung). Em relação ao exterior o primeiro é poderoso e ativo (Mächtige und Betätigende). O segundo é passivo e subjetivo. É por tal motivo que o homem tem sua vida substancial efetiva no Estado, na ciência e coisas similares, logo, na luta e no trabalho (Kampfe und der Arbeit) que o colocam em choque com o mundo externo e consigo mesmo (mit der Aussenwelt und mit sich selbst). É apenas ao preço de uma tal separação (Entzweiung) e por seu combate (Kampfe) que ele pode conquistar a unidade verdadeira consigo mesmo. Na família, ao contrário, ele tem o sentimento tranqüilo desta unidade com a vida ética subjetiva, sob a forma do sentimento. Na família a mulher encontra seu destino (Bestimmung) substancial, sendo a piedade que para ela constitui a convicção (Gesinnung) da vida ética".
Hegel fornece, aqui, uma interpretação já dada por ele na Fenomenologia do Espírito. Em sua exegese, a figura feminina surge em Antígona (Sófocles) que, no seu entender, é a "piedade apresentada na forma a mais sublime, a lei da mulher, a lei da substancialidade subjetiva sensível, da interioridade que ainda não (noch nicht) chegou à sua completa efetivação, a lei dos antigos deuses, dos seres subterrâneos, a lei eterna da qual ninguém sabe de onde veio e que é exposta (dargestellt) em oposição à lei revelada a todos, a lei do Estado. Esta oposição (Gegensatz) ética suprema, que, por conseguinte, é a oposição trágica no mais alto grau, a que se individualiza na oposição entre virilidade e feminilidade. Cf. Fenomenologia do Espírito (trad. Hyppolite, T. II, página 15 e seguintes)."([82])
Duas forças, a do sentimento, subjetiva, e a do entendimento somado à razão. A primeira tem como apanágio o feminino e a segunda, o masculino. A tragédia Antígona é consequente, porque nenhum daquelas duas forças cede à outra. Mas fica bem claro que a política é o elemento masculino e público, aberto, a luz contra as trevas do sentimento. Se é verdade que em Hegel a síntese das antíteses acima é o caminho da razão ("Sentido", diz ele, "é esta palavra maravilhosa que reúne o sensível e o pensamento"), também é verdade que no seu sistema político a mulher ocupa o lugar da casa, do intimo, do não público. A mulher é destinada, essencialmente, ao casamento, e o homem tem, "fora da família, outros domínios onde pode exercer sua atividade ética" (Filosofia do Direito, §164, acréscimo).
E chegamos à divisão entre mulher e homem, no plano mais profundo da estrutura espiritual e política. Esta última atividade, definitivamente, não cabe à mulher. Vejamos a Adição ao § 166 : "Mulheres podem muito bem ser cultas, mas não feitas para as ciências superiores, nem para a filosofia ou para certas formas de arte, que exigem um universal. Mulheres podem ter inspiração (Einfälle), gosto, elegância, mas não tem o Ideal (Ideal). A diferença (Unterschied) entre homem e mulher é a que existe entre animal e planta. O animal (Tier) corresponde ao caráter masculino, a planta ao da mulher. Pois a mulher tem mais um desdobramento tranqüilo, cujo princípio é a unidade indeterminada da sensibilidade. Se as mulheres estiverem no topo do governo (Regierung), o Estado (Staat) corre perigo, pois elas não agem segundo as exigências do universal, mas sob a inclinação de opiniões contingentes. A educação (Bildung, também formação) se faz não sabemos como (man weiss nicht wie) por impregnação da atmosfera que difunde a representação (Vorstellung), ou seja, pelas cirscunstâncias da vida e não por aquisição de conhecimentos (Kentnissen). O homem se impõe pela conquista de seu pensamento e por numerosos esforços de ordem técnica".
O pano de fundo, a crítica ao romantismo que exalta a mulher e o feminino, é comum entre Schmitt e Hegel. Mas vejamos, antes a idéia de Hegel sobre um elemento "feminino" por excelência, a opinião pública. Mostrarei que a depreciação deste elemento segue pari passu em Hegel o desprezo pela soberania popular. Antes, alguns considerandos estratégicos.
"Povo", como crise e política, é um conjunto tenso e polissêmico de relações, interesses, vontades, saberes e projetos. Ele não se resume a uma das facetas sociais, como foi o caso do Terceiro Estado burguês ou do proletariado socialista. O povo constitui muitos públicos com interesses contrários, contraditórios, convergentes. Faz-se mister falar de "publicos de cidadãos, que se constituem para politizar um problema específico e que se desagregam para renascer em outras cenas e de modo diferente, sobre um mesmo problema. Há, pois, descontinuidade dos públicos e heterogeneidade de sua composição sociológica e política, segundo os diferentes problemas que eles politizam".
O que nos leva ao ponto crucial, a partir dessa heterogeneidade dos públicos. A própria definição do espaço público não pode "se reduzir à definição da publicidade, ao simples jogo da liberdade de expressão. Esta liberdade, com certeza, é o elemento preliminar do espaço democrático, mas não é o seu horizonte.". Existem e existiram autores para os quais a "opinião pública" é apenas um fantasma. Entre eles, W. Lippman ([83]) Esta caráter fantasmagórico viria, segundo ele, do seguinte fato: a opinião dos cidadãos jamais atinge o estatuto de um verdadeiro juízo político, pois ela apenas manifesta um ponto de vista privado e limitado sobre a realidade social e política. Assim, diz o autor, a democracia não tem como alvo garantir um espaço em que se desenvolve a opinião pública. Tal opinião, ao contrário, é obstáculo a ser vencido. Assim, é preciso controlar a opinião por meio de procedimentos governamentais que fabriquem o consentimento dos cidadãos: "a fabricação dos consentimentos será o objeto de refinamentos substanciais (...) graças aos meios de comunicação de massa", diz o mesmo Lippmann em outro livro, agora o famoso Public opinion. ([84])
A essa clara suspeita, hoje ainda mais dirigida contra o sistema democrático, indicado por vários escritores, se acrescenta um ódio contra a opinião pública. Tal idiossincrasia, diríamos, é velha como o Ocidente. Em Platão ela foi sistematizada na tese de que a competência científica ou técnica é tarefa que não pode, nem deve, ser obra de discussão, debate, opiniões. No pensamento platônico, a epistême deve ser distinta, absolutamente, da mera doxa. Tal ideário é encontrado ao longo da história e tem como ápice o pensamento autoritário do século 19 e do século 20. Basta recordarmos o refrão perene de Carl Schmitt e de seus discípulos atuais, de esquerda ou direita, contra a democracia parlamentar, na qual muito se debateria e pouco se decidiria ([85]).
E também é suficiente citar as idéias do jurista autoritário sobre o controle da opinião pública e a fábrica de legitimade a ser conseguida para o poder. Citando Schmitt: "Atrás da fórmula do Estado total se esconde este conhecimento exato: o Estado atual possui novos meios de potência e possibilidades de uma intensidade extraordinária, do quais pressentimos dificilmente a amplitude e os efeitos últimso, porque nosso vocabulário e nossa imaginação ainda se enraizam no século 19". Assumindo o Estado na era da técnica (o enunciado é de J.F. Kervégan) o jurista afirma que no seu mister de formar a opinião pública, a imprensa estaria prestes a ser destronada pelo audio-visual (rádio e cinema), percebidos como técnicas de influenciar massas. A midia não seria um espaço de liberdade de expressão, mas de ameaça ao Estado, concorrente na sua tarefa de moldar o pensamento coletivo. Assim, pensa Schmitt, o Estado efetivo deve responder à ameaça por um controle, direto ou indireto) daquelas técnicas, interpretadas como instrumentos de propaganda. "Não existe ainda", acrescenta Schmitt, "um Estado tão liberal que não tenha reivindicado em seu proveito pelo menos uma censura intensiva e um controle sobre filmes e imagens, e sobre o rádio. Nenhum Estado pode permitir deixar a um adversário estes novos meios técnicos de dominação das massas, sugestão das massas e formação da opinião pública". Estado total, no sentido dado por Schmitt, será o que tem o controle dos meios de comunicação. Assim, "os novos meios técnicos pertencem exclusivamente ao Estado e servem para o aumento de sua potência". O Estado total, acrescenta o autor, "não deixa surgir em seu interior forças inimigas que o obstruem ou o desagregam. Ele não pensa deixar que seus inimigos disponham de meios técnicos, deixando também sapar sua potência por um slogan qualquer como Estado de direito, liberalismo ou um nome outro. Ele sabe distinguir entre amigo e inimigo. Neste sentido ele é, como se diz, um Estado total. Sempre foi assim e a novidade reside apenas nos meios técnicos, cuja importância política deve ser levada em conta". ([86])
Schmitt tem alguns mestres na arte ditatorial. Um deles é Donoso Cortés. No Discurso sobre la dictadura (1849), diz o espanhol que mais desce o nível da fé em Deus na sociedade, e mais o poder precisa emprestar a onisciência divina, além da onipotência. Chega um dia em que o governo diz: “temos um milhão de braços, mas não bastam. Precisamos mais, precisamos de um milhão de olhos. E tiveram a polícia e com ela um milhão de olhos. Apesar disto (...) o termômetro político e a repressão política deviam subir, porque, apesar de tudo, o termômetro religioso baixava, e subiram. Não bastou aos governos um milhão de braços, não lhes bastou um milhão de olhos. Eles quiseram um milhão de ouvidos, e os tiveram com a centralização administrativa, pela qual vieram parar no governo todas as reclamações e todas as queixas. (...). Mas os governos disseram: não me bastam, para reprimir, um milhão de braços; não me bastam, para reprimir, um milhão de olhos; não me bastam, para reprimir, um milhão de ouvidos; precisamos mais, precisamos ter o privilégio de nos encontrar ao mesmo tempo em todas as partes. E tiveram isto, pois se inventou o telégrafo”. ([87]) Chegamos hoje à internet, aos meios eletrônicos de busca e controle, além da espionagem dos próprios cidadãos, com uma eficácia que recorda os procedimentos descritos na imaginação que gerou o romance 1984. A razão de estado impulsiona a perda quase absoluta do espaço individual pela ações comandadas (seja em clima de guerra a países, seja na luta contra o terrorismo) pelos governos poderosos, em detrimento das liberdades e dos direitos humanos.
Tomemos Hegel nas Lições sobre a Filosofia do Direito (§ 317 e seguintes). A opinião pública se efetiva na forma primitiva do bom senso, ao qual não podemos aplicar o selo da racionalidade. Nele existem todos os preconceitos (Vorurteilen). Na opinião pública, ao lado de raciocínios com base em fatos reais, assistimos a contingência da opinião, falta de conhecimento científico ou conhecimento falso, um modo de enxergar as coisas ao contrário, juízos errôneos e inapeláveis. Assim, seriam verdadeiras simultâneamente, diz Hegel, a frase "Vox populi, vox dei" e o enunciado de Ariosto : "Que o vulgo ignorante a todo mundo repreenda, e mais fale do que menos entenda" (Orlando Furioso, canto 28, estrofe 1). Erro e verdade moldariam a opinião pública.
Logo, escreve Hegel, ela "merece ser ao mesmo tempo apreciada (geachtet) e desprezada (verachtet). A independência diante dela é condição para que se faça algo importante, universal, tanto na ação quanto na ciência. E segue-se o nosso problema: a liberdade de comunicação pública (na imprensa e nos discursos, os dois meios conhecidos no século 19) tem sua garantia, diz Hegel, em leis e ordenamentos que tanto antecipam quanto punem os excessos. Mas a sua principal garantia é o fato de que ela é inócua, desde que fundamentada numa constituição sábia e num governo estável e na publicidade das Assembléias de representantes. Hegel ataca a tese de que a liberdade de imprensa é permissão para publicar o que se deseja. Para ele, esta reivindicação é própria de um pensamento grosseiro e inculto, mera superficialidade.
O objeto da imprensa, ataca Hegel com a maior dureza, é constituído do mais passageiro, mais particular, mais contingente na opinião, a infinita diversidade de conteúdos e modos de expressão. É a arte de caluniar por meias palavras e insinuações, o que dá à imprensa seu caráter indeterminado de conteúdo e forma e impede as leis de cumprir seu papel punitivo, visto o caráter altamente subjetivo dos personagens em jogo, em especial o jornalista. Este último pratica, não raro, "ofensas à honra dos indivíduos, a calúnia, a difamação, a falta de consideração para com o governo, autoridades, e particularmente para com o príncipe, desvia as leis e incita o povo à revolta".
A opinião pública, movida pela imprensa, é ao mesmo tempo falsa e verdadeira, já as ciências "quando são de fato ciências, não se situam no terreno das opiniões e formas subjetivas. Seu modo de exposição não consiste na arte dos torneados, das alusões, das meia palavras, dos subentendidos, mas numa expressão sem equívocos, precisa, sincera do significado e do conteúdo. É por tal motivo que elas não entram na categoria da opinião pública. ([88])
O mesmo juízo negativo é dado por Hegel sobre a soberania popular. No § 279, no adendo que o segue, o filósofo discorre sobre a soberania do povo. Esta expressão, diz ele, pode ser empregada corretamente se com ela entendermos que um povo é independente e constitui um Estado. Mas a soberania pertence apenas ao Estado. "É opondo à soberania que existe no monarca que se colocou a falar, em data recente, da soberania popular. Vista nesta oposição, a soberania do povo integra os pensamentos confusos que têm por base uma representação grosseira do povo. Sem o seu monarca e sem o organismo que a ele se apega necessária e imediatamente, o povo é massa informe (formlose Masse) que não é mais um Estado (...) se a república for entendida como soberania popular e, de modo mais preciso, a democracia (...) não temos mais lugar para esta representação". E Hegel remete ao § 273, onde ele critica a república e exalta a monarquia constitucional.
Antes dessa observação negativa sobre a soberania popular, Hegel apresenta a sua idéia dos poderes e do seu nexo no interior do Estado. Ele ataca o desconhecimento do Estado pelos que repetem, de maneira irrefletida, a tese de Montesquieu sobre os três poderes. De fato, anui Hegel, "o princípio da separação dos poderes (Teilung der Gewalten) contem o elemento essencial da diferença, da real racionalidade (der realen Vernünftigkeit) ". Mas o entendimento abstrato (abstrakte Verstand) ([89]) entende aquela divisão como absoluta autonomia dos poderes (der absoluten Selbständigkeit der Gewalten) uns em relação aos demais e como limitação negativa recíproca. O medo de um poder diante de outro exigiria que o Estado fosse definido como balança, na qual funcionam os poderes como contrapesos (Gegengewichte) que fabricam um peso igual universal (Gleichgewicht), mas nunca uma unidade viva (eine lebendige Eiheit). ([90]) O Estado repõe o silogismo da Razão no qual a Idéia (Idee) e seus conceitos concretos se determinam abstratamente como momentos do universal, do particular, do singular. Mas o todo é o concreto.
Hegel define o Estado como "organismo, isto é, desenvolvimento da Idéia segundo o processo de diferenciação de seus diversos momentos". Com a Revolução Francesa o social se fragmentou porque foi absolutizado o princípio civil e político da igualdade. Para salvar o lado orgânico estatal ele retoma a velha fábula do estomago e dos membros :"o organismo é composto de tal natureza que se todas as partes não concordarem na identidade, se uma só delas torna-se independente das outras, ocorre a ruína do Todo". Assim, "é preciso venerar o Estado como um ser divino-terrestre". Como todo corpo, o ser estatal possuiria certa "irritabilidade" interior, marca do governo civil. O exterior dessa iirtação volta-se contra os demais corpos reunidos em Estado, é "o poder militar". Na Filosofia do Direito encontram-se enunciados cujo fruto é negar a igualdade e a liberdade dos indivíduos. Quem fala em igualdade ou liberdade, sem o Todo, assume o "ponto de vista da populaça".
O Estado é pensado, pois, como "desenvolvimento da Idéia segundo o processo de diferenciação de seus diversos momentos". Esta tese indica que o racional difere do intelectual, justamente porque no primeiro existem momentos que são sintetizados num Todo. O Estado é fruto de uma miríades de ações, cujo resultado é uma Ação coletiva. Esta ação (Tat) é uma unidade essencial, a "unidade do distinto, o concreto". Esta é a trilha do desenvolvimento (Gang der Entwicklung) da Idéia "a qual consiste em ter o mesmo e o outro, e que ambos sejam uma só coisa, que é a terceira, na medida em que um é no outro consigo mesmo e não fora de si (nicht ausserhalb seiner). A Idéia é concreta quanto ao seu conteúdo, tanto em si (...) quanto para si".
A Idéia é essencialmente concreta, pois ela consiste na "unidade de distintas determinações (die Einheit von unterschiedenen Bestimmungen). É nisto que o conhecimento racional se distingue do conhecimento puramente intelectivo e a tarefa da filosofia, à diferença do Entendimento (Verstand), consiste em demonstrar que a verdadem a Idéia, não pode ser cifrada em meras generalidades , mas em algo geral que é, por sua vez, particular, determinado. Quando a verdade é abstrata, não é verdade". Para ilustrar o conceito de concreto Hegel usa o exemplo orgânico por excelência, o do vegetal. "Embora a flor tenha muitas qualidades como o cheiro, o sabor, o colorido, a forma, ela constitui uma unidade: nesta pétala, deste flor, não pode faltar nenhuma de suas qualidades próprias (Eigenschaften) e cada uma das partes da pétala reúne todas as qualidades próprias da pétala ao mesmo tempo. O mesmo ocorre com o ouro, o qual encerra em todos e em cada um de seus pontos, inseparadas e indivísas (ungettrent und ungeteilt) todas as qualidades próprias daquele metal". ([91])
Segundo um comentador de Hegel, o termo "concreto" exige as noções complementares de crescimento e desenvolvimento. O concreto não é unidade estática mas ele se desdobra, sendo essencialmente vivo. Os exemplos fornecidos pelo filósofo com maior regularidade são os do organismo natural, como é o caso do crescimento de uma planta ou árvore. Ele descreve aqueles desdobramentos com os conceitos aristotélicos de dunamiß e de energeia. "O que se desenvolve procede de um estágio germinal (Keim) no qual toda planta, na sua diversidade de determinações, encontra-se compreendida no estado latente, ainda informe e indiferenciado, de simples disposição. Mas o germe é como tal ´tendência a se desenvolver´, desdobrar toda sua riqueza interna, se exteriorizar e, assim, se exibir numa série de momentos diferentes que se sucedem, o que implica ao mesmo em alteração —a planta no seu desenvolvimento, passa por toda uma série de estados diferentes, do germe ao fruto— e identidade, pois todo este desenvolvimento na verdade estava compreendido no germe, envolvido em sua simplicidade inicial. Logo, ela muda, se transforma e permanece, no entanto, a mesma; o fruto é uma outra coisa do que o germe, mas ele é ao mesmo tempo aquilo no qual o germe encontra seu fim, o alvo de todo desenvolvimento que se iniciou com ele". Mas, de acordo com o próprio Hegel, todas estas são apenas imagens, analogias e uma tarefa mais complexa deve ser encetada quando se fala do fazer e do saber humanos, no chamado mundo do Espírito. ([92])
No Estado ([93]) a Idéia manifesta os momentos da universalidade, da particularidade, da singularidade, todas num silogismo que determina uma figura orgânica espiritual. A populaça, que radicaliza os procedimentos do intelecto abstrato, pensa em termos de separação, ou independência dos momentos, e dos poderes, o que levaria, se o populacho fosse obedecido, "à ruina do Estado" (Zertrümmerung des Staats). O mesmo termo é usado por Hegel quando fala da consciência fanática em religião e política, que não se decide por uma atividade efetiva, e se acantona no plano subjetivo da vontade absoluta, aferrada à forma da opinião e do arbítrio (dein Meinen und dem Belieben der Willkür entschieden wird). "Em oposição à esta verdade que se envolve na subjetividade do sentimento e da representação (Vorstellung), o verdadeiro é constituído por este passo enorme [excessivo, ou monstruoso, ungeheure], que se faz ao passar do interior ao externo, da imaginação da Razão para a realidade (Realität) pela qual trabalhou toda a história mundial, trabalho pelo qual a humanidade civilizada ganhou a efetividade (Wirklichkeit) e a consciência da existência (Dasein) racional, das instituições políticas, das leis. Dos que procuram o Senhor e que, em sua opinião inculta (ungebildeten Meinung) se persuadem de tudo deter imediatamente, em lugar de se impor o trabalho de elevar sua subjetividade ao conhecimento da verdade, ao saber do direito objetivo e do dever, deles podemos esperar apenas a destruição de todas as relações éticas, tolice e abominação (nur Zertrümmerung aller sittlichen Verhältnisse, Albernheit und Abscheulichkeit ausgehen)". (§ 270, Nota).
A separação dos poderes, portanto, é tarefa do intelecto ou da imaginação subjetiva, não do pensamento racional. Quando a tarefa de dividir e separar do intelecto entra em cena, sem correções da razão, o Estado tende a se desagregar, passando à ruina. "O primeiro princípio do Estado em geral, qualquer que ele seja, é que não haja nenhuma Razão acima dele, nenhuma consciência moral ou sentido do direito superior aos que o próprio Estado reconhece. Um Estado verdadeiro não pode tolerar em seu interior, por exemplo, pessoas como os quakers, os anabatistas, etc., que desconhecem e recusam determinados direitos do Estado, como a defesa da terra natal. Este liberdade miserável de pensar e crer o que cada um julgue melhor, não pode ser admitida". ([94])
Quem deseje forçar um povo à escolha de certa constituição fabricada intelectualmente por indivíduos, sejam eles intelectuais ou poderosos, fracassa necessáriamente. Cada povo tem a constituição ao que seu estágio de desenvolvimento atende. Impor constituições artificiais, por melhores e com maior carga de racionalidade que elas apresentem, é tarefa sem frutos. É o que se pode ler no § 274 e notas da Filosofia do Direito. "Como o Espírito (Geist) só é como efetivo (wirklich) quando conhece a si mesmo (er sich weiss) e o Estado, como Espirito de um povo, ao mesmo tempo é a lei que penetra todas as situações da vida deste povo, os costumes (die Sitte) e a consciência (Bewusstsein) de seus indivíduos (Individuen), a constituição de um povo determinado depende absolutamente da natureza ou grau de cultura da auto-consciência deste povo. É nesta consciência que reside a liberdade subjetiva desse povo e, portanto, a efetividade (Wirklichkeit) da Constituição. ". Hegel segue o dito de Montesquieu : "le gouvernement le plus conforme à la nature est celui dont la disposition particulière se rapporte le mieux à la disposition du peuple pour lequel il est établi" (Espírito das Leis, I, 3). ([95])
Segundo Hegel, o Estado se divide nas seguintes diferenças substanciais: um poder de determinar o universal (legislativo), a subsunção das esferas particulares e os casos singulares sob o universal, o poder de governo, a subjetividade como poder último de decisão, o poder do príncipe. Notemos bem a fórmula do último poder: a ele cabe a livre decisão volitiva (Willensentscheidung). (§ 273). Cabe ao príncipe reunir os diferentes poderes numa unidade individual. Logo, este poder é a ponta mais elevada (Spitze) e ao mesmo tempo o começo de tudo, ou seja, é a monarquia constitucional.
Quem deve fazer a Constituição? Pergunta errada, segundo Hegel. "Ela supõe que não existe nenhuma constituição, mas apenas certa massa atômica de indivíduos (ein blosser atomischer Haufen von individuen)". ([96]) Como a massa poderia chegar a ter uma constituição, seja por ela mesma, ou por uma ajuda externa "seja ela trazida pela bondade, pela força (Gewalt) ou pensamento ? É a esta massa que seria preciso, nesta hipótese, deixar o cuidado de resolver tal dificuldade, pois o conceito (Begriff) nada tem a ver com a massa". Fica bem clara a recusa de Hegel do campo mecânico como paradigma da Constituição. Assim como ele recusa a doutrina de Rousseau e de Fichte sobre o contrato ([97]) também ele a recusa no caso da Constituição. A massa, por outro lado, como a mulher, é alheia ao Conceito. Logo, não tem sentido apelar para ela para determinar o fundamento do Estado, a sua Constituição. Logo, desaparece a tese de uma soberania popular, como vimos acima.
O Estado em si e para si, afiança Hegel, é o Todo ético (das sittliche Ganze), a afetivação da liberdade. "É um fim absoluto da Razão tornar a liberdade efetiva. O Estado é o Espírito presente no mundo e que se realiza (realisiert) conscientemente em si, enquanto na natureza ele só se efetiva (verwirklicht) como o outro de si mesmo, como Espírito adormecido (als schlafender Geist). Apenas na medida em que se apresenta na consciência e conhece a si mesmo como objeto (Gegenstand), o Espírito é o Estado. Quando se trata da liberdade, não se deve partir do indivíduo, da auto-consciência individual, mas apenas da essência (Wesen) da auto-consciência, porque, saiba o homem ou não, esta essência se realiza (realisiert) por sua própria força e os indivíduos são apenas momentos de sua realização". Interessa notar que, aqui, Hegel emprega dois conceitos de origem mecânica, o conceito de força e de momento. ( [98]) Como enuncia um comentador, em Hegel a palavra "momento" é extraída da mecânica (Conforme pode ser visto na Ciência da Lógica). Ele o emprega para designar as forças opostas que sao mutuamente dependentes e cuja contradição forma uma equação. Assim a fórmula Esse=Nada. Aqui, Esse e Nada são momentos que dão nascimento ao Werden, a existência. ([99]) Importa notar que tais conceitos de mecânica, pela mediação do pensamento germânico anterior, em especial de Leibniz, retoma Aristóteles numa formulação imagética ao mesmo tempo mecânica e orgânica. ([100])
Os indivíduos são momentos do Todo ético, eles se chocam e se contrapõem, mas o Estado é o seu telos, o seu fim objetivo. Os momentos sem o Todo perdem todo sentido. Voltemos ao texto da Filosofia do Direito: os indivíduos são momentos na realização do Estado. Este último manifesta o poder divino: "é a marcha de Deus no mundo que faz o Estado existir (es ist der Gang Gottes in der Welt, dass der Staat ist)". O fundamento do Estado é a força da razão que se torna efetiva como vontade. É muito possível, como o fazem Friedrich Meinecke e Franz Rosensweig atribuir a razão de Estado a Hegel. Alguns senões, no entanto, deveriam ser levados em conta. Eu os considero na Introdução que escrevi para a tradução brasileira de Hegel e o Estado, e também em outros escritos que publiquei sobre o filósofo. ([101])
É possível criticar o Estado, mas não se deve ter, para a Idéia do Estado "ter diante dos olhos Estados particulares, nem instituições particulares, deve-se observar a Idéia, este Deus operativo para si" (die Idee, diesen wirklichen Gott, für sich betrachten)".
O poder do príncipe, diz o filósofo no § 275, reúne os três momentos (Momente, recordar o matiz mecânico da noção) da totalidade em si (Totalität, note-se o termo latinizado, que poderia ser Ganzheit, mas que Hegel usa para determinar o aspecto total do poder principesco. ([102]) Ele reúne a universalidade da Constituição e das leis; a deliberação (Beratung) que relaciona o caso particular ao universal; o momento (Moment) da suprema decisão (letzten Entscheidung, Hegel sublinha o último termo, Entscheidung) para a qual retorna todo o resto e da qual ele (o resto) retira o começo de sua realidade (Wirklichkeit). Nesta auto-determinação absoluta reside o princípio que distingue o poder do príncipe enquanto tal. É pela exposição desse princípio que devemos começar. Vejamos a adição ao § 275: "o poder do príncipe é o momento da singularidade porque ele contem os três momentos(Momente) do Estado como totalidade (Totalität). O eu é ao mesmo tempo o que há de mais singular e o que há de mais universal. Na natureza, à primeira vista, um singular. Mas a realidade (Realität), a não idealidade (nicht Idealität) e a exterioridade recíproca não consistem em ser junto-de-si-mesmo (Beisichseiende) e as diferentes singularidades subsistem uma ao lado da outra. No Espírito, ao contrário, tudo o que é diferente só existe como algo ideal (Ideeles) e como unidade. Enquanto tal o Estado é o desdobramento de todos os seus momentos, mas a singularidade é ao mesmo tempo a alma e o princípio da vida, a soberania (Souveranität) que contem em si todas as diferenças".
Assim, o principe é a instância singular decisória, que por decidir em nome de todo o organismo estatal é a alma daquele mesmo corpo, é soberana. No feudalismo, o todo era apenas um agregado de partes. No idealismo do Estado, que constitui a soberania, dá-se "a mesma determinação da que faz com que, num organismo vivo, as chamadas partes não sejam partes, mas membros, momentos orgânicos cuja separação e isolamento em relação ao todo constituem a doença" (Hegel mesmo cita a Enciclopédia das ciências filosóficas, § 293 e § 371).
Vejamos o papel das individualidades no movimento estatal, ainda na nota do § 278. "Na paz, as esferas e os assuntos particulares prosseguem seus alvos e empresas, mas é tanto a necessidade inconsciente da coisa que transforma seu egoismo num contributo à ao fim de todos (des Ganzes) e ao dos outros, quanto a ação direta da autoridade superior que dirige suas atividades ao serviço do fim do todo, os limita e obriga a se empregar na conservação do todo (...) Mas no estado de perigo (Zustande der Not), devido a acontecimentos internos ou exteriores (es sei innerer oder äusserlicher) é a soberania quem fornece o conceito simples que permite levar o organismo à unidade, a conservando em seus elementos particulares. É a ela que se confia a salvação do Estado (die Rettung des Staats), mesmo ao preço do sacrifício do que é legítimo em outras circunstâncias. É nesta situação que o idealismo do Estado atinge sua efetividade própria".
Temos a decisão, a soberania, o príncipe e o estado de necessidade. O Estado repousa, portanto, no poder do príncipe, que é o seu momento mais elevado e constitui o ponto de união de todo o organismo. O príncipe decide no instante da paz e da guerra, seja ela interna ou externa. Ele decide e salva o Estado, mesmo à custa de direitos que, em outras situações, seriam legítimos e deveriam ser respeitados. Ele decide, pois, quais ocasiões determinam a necessidade de sua decisão em prol da totalidade, as situações excepcionais.
Daí, a dedução do indivíduo, o príncipe, que salva o todo, estar incluída na soberania. "Esta é, de início, apenas o pensamento universal do idealismo do Estado e só existe como subjetividade que tem certeza de si mesma, auto-determinação abstrata, logo sem fundamento, da vontade, na qual reside o elemento último da decisão (in welcher das Letzte der Entscheidung liegt)". Este é, precisamente, "o aspecto individual do Estado e o que faz o Estado ser uno. Entretanto, em sua verdade a subjetividade só existe como sujeito e a personalidade como pessoa. Na Constituição que chegou à racionalidade real (reellen) cada um dos tres momentos do conceito possui sua figura efetiva particular à parte. É por isto que este momento absolutamente decisivo do todo (entscheindende Moment des Ganzen) não é a individualidade em geral, mas um indivíduo, o monarca". O monarca decide. Ele é "a instância suprema que conserva todas as formas particulares no Si simples, põe fim à deliberação que pesa os argumentos pró e contra, entre os quais não cessamos de hesitar, e decide (beschliesst) por um ´eu quero´, com o qual se inicia toda ação efetiva". Como adianta T. M. Cox, citado por Robert Derathé na sua tradução francêsa da Filosofia do Direito, "como Deus no mundo de Aristóteles, o monarca é o que põe em movimento a máquina do Estado, sem ser ele mesmo tomado neste movimento".([103])
No § 281 Hegel insiste sobre o papel eminente do príncipe, "o Si supremo da vontade, independente de todo fundamento e a existência igualmente sem fundamento enquanto determinação que se origina na natureza —esta idéia de que algo não seria movido pelo arbítrio, constitui a majestade do monarca. Nesta unidade reside a unidade efetiva do Estado. É só graças à sua imediatez interna e externa que esta unidade (do Estado) está abrigada contra o perigo de cair na esfera da particularidade, de seu arbítrio, de seus alvos e opiniões, também abrigada contra as lutas que opõem as facções ao redor do trono e que provoca o enfraquecimento e a ruína (Zertrümmerung) do poder estatal".
Abaixo desse "protetor da Constituição" que decide e salva o Todo de qualquer esfacelamento, interno ou externo, opera uma grande máquina para administrar e impor as decisões tomadas pelo monarca. Trata-de do "poder governamental", chamado por Hegel de "classe universal" (der allgemeine Stand). Entre o Si singular, o monarca, e a diversidade do corpo social e político, este setor é o elo médio entre singular e universal, o Mittelpunkt que permite a operacionalização da lei no interior do Estado. "Nada sendo políticamente, o funcionário é tudo na organização do Estado. Ele forma o segundo poder, o poder governamental situado entre o poder soberano e o legislativo. É verdade que o príncipe decide, é verdade que as Câmaras votam leis e regulamentam as questões de alcance universal; mas é a administração que vence os dois" ([104]) O funcionariato é o cume da hierarquia governativa que entra em contato com o monarca.
Hegel compara a sociedade civil a um campo de batalha (Kampfplatz) dos indivíduos (Nota ao § 289) privados, uns contra todos os demais com seus interesses particulares. As corporações, ao reunir os indivíduos em defesa de interesses comuns, ajuda a enraizar o que é particular "no universal. No espírito corporativo reside a profundidade e a força que o Estado pode encontrar na disposição de espírito dos indivíduos". Agora, na divisão do trabalho para que se administre o universal, surgem os funcionários que se organizam de baixo até o alto da escala hierárquica, garantindo o poder de governo. Sua função é objetiva, embora ela seja exercida por indivíduos. Entre função e individualidade não existe nexo natural direto, pois os indivíduos não nascem funcionários deste ou daquele setor administrativo. Eles devem ser treinados e demonstrar conhecimentos, capacidades. Esta prova de saber garante o Estado de que ele pode atender as suas necessidades universais, particulares, individuais. Esta é a função dos que pertencem à classe universal.
Embora seja objetiva a tarefa mediatizadora universal, os cargos são ocupados por indivíduos. Cabe, então, ao poder decisório e político, o do príncipe, nomear os que irão exercer a função. Cito a frase inteira de Hegel (§292) : "Lado subjetivo, esta ligação entre indivíduo e sua função, elementos contingentes um diante do outro, pertence de direito ao príncipe, enquanto poder soberano de decisão no Estado (als der entscheidenden und souveränen Staatsgewalt)". Fica bem claro, em Hegel, que a máquina dos funcionários exerce seu papel porque é autorizada pela soberania do monarca, o indivíduo que decide. Assim, se a atuação dos mesmos funcionários é um dever, suas atribuições partilham com o monarca "um direito que escapa a toda contingência" (§ 293). Assim, "o indivíduo que, por um ato do soberano (das durch den souveränen Akt) ocupa um cargo público deve cumprir seu dever". Para tal fim, recebe um pagamento que lhe permita a vida, sem que ele precise depender de influências subjetivas que o afastem do cumprimento de sua função objetiva. (§294). Hegel ainda sublinha que o nexo entre indivíduo e Estado não é o de um contrato (nota ao § 294). Eles, com o pagamento correto, são protegidos pelo Estado "contra o outro lado subjetivo, as paixões dos governados cujos interesses particulares são lesados pela prioridade concedida ao interesse geral".
Como os governados podem se defender dos abusos cometidos por funcionários ? A resposta encontra-se na própria organização funcional, hierárquica por excelência. De outro lado, as corporações servem para fiscalizar, por assim dizer de baixo para cima, os abusos dos funcionários. Qual seria a forma ideal do funcionário? Ele deveria ostentar ausência de paixão, sentido de justiça e certa moderação no comportamento. Os termos são claros: um bom burocrata possui Leidenschaftslosigkeit, Rechtlichkeit. Estamos em pleno domínio da operação sine ira et studio, tal como descrita por Max Weber. Os funcionários devem ser educados, portanto, para aquela ausência de paixão e senso de justiça, para que possa fazer com que o lado mecânico das ciências requeridas pelas várias esferas do Estado tenha um contrapeso. "Mas o tamanho do Estado também é um elemento essencial que atenua o peso das relações familiares ou de outras relações privadas e torna também impotentes ou com menor força a vingança, o ódio e as outras paixões. Quando se está encarregados dos interesses maiores no interior do grande Estado, estes ângulos subjetivos passam ao segundo plano e se forma o hábito das visões e negócios relativos ao interesse geral" (§296).
Os membros do governo e os funcionários do Estado, arremata o § 297, "constituem a parte principal da classe mediadora (Mittelstand) onde se encontram a inteligência cultivada e a consciência jurídica da massa de um povo (der Masse eines Volkes). As instituições da soberania que agem do alto (o poder decisório, RR) e os direitos das corporações que agem em baixo, impedem esta classe mediadora de tomar posição isolada contra a aristocracia, suprimem o perigo de uma transformação da cultura e da competência em meios de exercer um arbítrio (Willkür) e se tornar uma dominação (Herrenschaft).
É possível avançar que Carl Schmitt assume a defesa da primeira parte do poder executivo, a decisão soberana que reside no príncipe, e tenta exorcizar a segunda, o poder burocrático que também dele emana segundo Hegel. Mas devemos nos deter na divisão dos poderes do Estado e sua recusa pelo filósofo. Ele recusa, como afirma Franz Rosenzweig, "em função da unidade do Estado, e porque à consciência do Estado não pode caber desconfiança, aquela ´autonomia´e sua fundamentação liberal, que remontava a Montesquieu —a recíproca limitação e supervisão dos poderes. A relação entre os poderes não deve se dar em termos de equilíbrio, mas de ´unidade viva´ ; cada um deve se constituir em ´totalidade´ , ou seja : deve possuir os outros ´ativos em seu interior´. Uma disposição como aquela incluída na Constituição de 1791, que impedia o acesso ao ministério por parte dos membros da assembléia legislativa e dos detentores de altas funções judiciárias, descreveria aproximadamente o que Hegel pretendia excluir com sua doutrina da divisão dos poderes". ([105])
Schmitt se refere aos laços do pensamento legado por Hegel à cultura jurídica e sociológica alemã posterior. Ao se referir ao pensamento da direita, ele indica "uma outra linhagem de Hegel", retomando assim a divisão entre a "esquerda" e a "direita" hegeliana. John P. McCormick se refere à dialética, praticada por Lukács e Schmitt, na tentativa de sanar as deficiências do pensamento liberal weberiano sobre a modernidade e a tecnologia. ([106]) Ainda McCormick cita Schmitt quando este afirma que Hegel é o único pensador que ajuda a resolver a dualidade entre conceito abstrato e ser concreto que reside na racionalidade da "visão de mundo mecanistica" praticada por Descartes, Hobbes e Kant. "Logo cedo, em 1801, Hegel, com certeiro senso de genio reconheceu a conecção entre o racionalismo do século anterior e a inadequação histórica do sistema, que reside na relação causal entre o ego e o não ego. Os românticos eram incapazes deste tipo de intuição filosófica". ([107]) A retórica do "concreto", diz Ernst Fraenkel, se instala na jurisprudência de Schmitt, tendo sido arrancada de Hegel. Segundo Fraenkel "Schmitt subtraiu de Hegel a tendência a usar a ´concretude´como arma contra a ´abstração´." E conclui McCormick a citação de Fraenkel: "Segundo Hegel o princípio da razão deve ser concebido como concreto de modo que a verdadeira liberdade possa dominar. Hegel caracteriza a escola de pensamento que namora com o abstrato como liberalismo e enfatiza que o concreto é sempre vitorioso contra o abstrato e que o abstrato sempre abre falência quando se põe contra o concreto". ([108])
[1] Uso a tradução francesa: Le Léviathan dans la doctrine de l État de Thomas Hobbes, sens et échec d´ un symbole politique (Paris, Seuil, 2002).
[2] A bibliografia oceânica sobre Hobbes não será invocada neste escrito. No Brasil existem muitos trabalhos sobre o pensador que merecem leitura, como é o caso do livro publicado por Renato Janine Ribeiro : Ao leitor sem medo (SP, Ed. Brasiliense). Publiquei um artigo sobre o tema com o título de “Massa, Poder e Morte” (Cf. Roberto Romano : Lux in Tenebris, meditações sobre Filosofia e Cultura, SP, Cortez/Unicamp, 1987, pp. 23 ss).
[3] Richard N. Schwab comenta do seguinte modo a passagem citada : “This basic natural law is that which naturally leads men to preserve themselves from pain or death at the hands of those who are stronger than they. Ultimately, it is the natural law of social self-preservation that is stamped upon everyone, and it involves the necessity of resistance to oppression. Thus, the fundamental natural law of ethics and society is, for d' Alembert, an empirical fact in the history of humanity. The first laws of organized societies were designed to limit oppression; thus they derive from the natural law of self-preservation, protecting the members of society as well as possible from pain and death at the hands of the strong. This seems almost to be a Hobbesian view of the natural state of man and the origins of law, government, and the ideas of right and wrong”. Cf. Preliminary Discourse to the Encyclopedia of Diderot (Jean Le Rond d' Alembert) (The Library of Liberal Arts, 1963) página 12.
[4] Cf. “Lettre de M. Denis Diderot sur l ´ Examen de l ´Essai sur les Préjugés”, in Versini, Laurent (Ed.) : Diderot. Oeuvres, Tome III – Politique (Paris, Robert Laffont, 1995), páginas 165 e seguintes.
[5] TP, I, 1 : “Os filósofos concebem as afecções conflitantes em nós como se fossem vícios em que os homens caem por erro próprio. Por tal motivo eles se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los e, quando desejam parecer muito morais, detestá-los. (….) Concebem os homens não como eles são, mas como gostariam que eles fossem. Assim (…) é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos adequados para governar o Estado dos que os filósofos”. “Affectus, quibus conflictamur, concipiunt philosophi veluti vitia, in quae homines sua culpa labuntur; quos propterea ridere, flere, carpere vel (qui sanctiores videri volunt) detestari solent. (…). Homines namque non ut sunt, sed ut eosdem esse vellent, concipiunt; (…) Cum igitur omnium scientiarum, quae usum habent, tum maxime p o l i t i c e s t h e o r i a ab ipsius p r a x i discrepare creditur, et regendae reipublicae nulli minus idonei aestimantur, quam theoretici seu philosophi”.
[6] Ovídio, As Metamorfoses, VII, 20 : “video meliora proboque, deteriora sequor”.
[7] Dictionnaire historique et critique (Rotterdam, 1697). Desde o Renascimento e a Reforma, “ateu” era uma palavra de guerra. Ela designava uma pessoa sem bons costumes, contrária às leis morais, libertina. Erasmo foi chamado de “ateu” por Lutero e o termo passou do campo religioso para o da ética. Marx e Engels apenas repetem o juízo de todo o século 18 sobre Bayle “ quem, na teoria arrancou o crédito da metafísica do século 17 e de todas as metafísicas, foi Bayle. Sua arma era o ceticismo forjado em fórmulas mágicas da metafísica. Seu ponto de partida foi a metafísica cartesiana (…) Por duvidar da religião, Bayle submeteu a metafísica à crítica, em toda a sua evolução histórica. Ele anunciou a sociedade atéia que logo viria, ao demonstrar que pode existir uma sociedade de puros ateus e que um ateu pode ser honesto ”. A Sagrada Família
[8](6) Esse ponto é tratado de maneira oposta por Spinoza. Sendo a força física um elemento do espaço e os juízos a modificação do pensamento, e sendo ambos, pensamento e força física modos da substância infinita, Deus ou Natureza, cada indivíduo possui em si mesmo a força e o pensamento que seguem ao infinito. Não é possível arrancar deles a força, como em Hobbes, mas é impossível também deles retirar, pela força, o juízo próprio. Algo só pode ser movido por algo que apresenta as mesmas determinações modais. Um corpo não pode ser movido ou forçado pelo pensamento. E também um pensamento só pode ser modificado por outro pensamento. Usar a força para impôr a soberania e o poder é um erro ontológico e epistemológico, além de ser uma violência que não garante o Estado e a soberania, visto que os indivíduos recebem o pensamento da substância infinita divina. Pode-se tentar controlar os pensamentos, mas ele não aceita os limites da força física e, sobretudo, os limites da imaginação religiosa ou política. Este é o sentido da frase spinozana quando o Eleitor Palatino lhe convidou para dar aulas, mas sem “perturbar a religião oficialmente estabelecida”. A resposta é clara: “Desconheço em quais limites minha liberdade de filosofar deveria ser contida para que eu não parecesse desejar a perturbação da religião estabelecida”. (Carta a Fabritius, 30/03/1773). Cf. Spinoza. Oeuvres complètes. (Paris, Gallimard, 1954), Coleção Pléiade, página 1284.
[9] Problema ético e científico dos mais complexos, sempre retomado na filosofia política e no campo epistemológico. Importantes achegas ao campo podem ser encontradas no Seminário publicado sob a coordenação de Jean-Claude Beaune : La mesure, instruments et philosophies (Paris, Champ Vallon, 1994)
[10] Leviatã, VII. Cf. Ed. Macpherson (Pelican, Penguin Books, 1977), páginas 132 a 134.
[11] A atitude de Frederico foi piorada nos reinos de seus sucessores, sobretudo pelos que não partilhavam o seu racionalismo, como foi o caso de Frederico Guilherme 2. O rei baixou um Edito de Religião (09/07/1788) que proibia toda crítica pública à crença estabelecida. I. Kant criticou acerbamente o governo prussiano por controlar a população com o uso da fé religiosa, da medicina e do direito. Na Universidade, eles permitem aos ministérios o controle do povo. Este, por sua vez, “quer ser dirigido, isto é, na lingua dos demagogos, enganado. Mas ele não quer ser dirigido pelos cientistas da faculdade (…) mas por seus agentes, que sabem muito fazer, pelos eclesiásticos, funcionários da justiça, médicos, na medida em que eles são práticos e, por isso mesmo, lhe apresentam presunções mais vantajosas”. São “instrumentos do governo” (Werkzeuge der Regierung) os eclesiásticos, os magistrados, os médicos que se “endereçam diretamente ao povo que se compõe de ignorantes (Idioten), como, pode-se dizer, o clero em relação aos leigos”. Der Streit der Facultäten, Erster Abschnitt. In I. Kant Werkausgabe (F.A.M., Suhrkamp Verlag, 1977). Cf a tradução de J. Gibelin : Le Conflit des Facultés (Paris, J. Vrin, 1935).
[12] “As Luzes não exigem mais liberdade além da que permite usar de modo público a própria razão em todos os domínios, seja como escritor ou erudito, mas não como funcionário a quem não se permite raciocinar (räsonnieren) enquanto tal. ”Cf. Eisler, Rudolf : Kant-Lexicon, Trad. francêsa de Balmès, A.D e Osmo, P. (Paris, Gallimard, 1994), página 646. Os enunciados de Kant no clássico “Que são as Luzes?”, mostram a plena ambigüidade do pensamento político que procura, como é o caso kantiano, negar a tese de Hobbes sobre a opinião na república. O funcionário não tem o direito de operar com o raciocínio livre, apenas os “intelectuais” podem usufruir tal privilégio, o que se paga, no entanto, com a ausência de poder efetivo no Estado. Quem partilha o poder estatal não tem “liberdade” de pensamento ao modo dos escritores e eruditos. Neste sentido, Theodor Adorno aponta uma ambigüidade no trato das Luzes com a razão pública. Cito um trecho de suas lições traduzidas para o espanhol : Th. Adorno : La Crítica a la Razón Pura de Kant, Lição 6, 09/06/1959, Traduzida por Francesc J. Hernàndez no site http://www.uv.es/fjhernan/arxiu/L6.pdf : “Desde que o funcionário tenha função determinada, como funcionário, o arrazoar acaba; para um funcionário o uso sem travas da razão tem o duplo significado da palavra “raciocinar” (Räsonieren) de injuriar inconveniente e de uma espécie de crítica prática às instituições. Ele diz : `As Luzes não querem dizer isto. Enquanto você fica apenas no dominio da razão que é auto-suficiente, tudo estará perfeito; mas este não é só o domínio do espirito puro no mundo da divisão do trabalho´ (…) esta tendencia, de ao mesmo tempo transfigurar a razão como o mais elevado e, no entanto restringí-la como um mero raciocinar [Räsonieren], já está em Kant, um ilustrado supostamente radical”.
[13] Na tradução Guinsburg (Obras de Diderot, Filosofia e Política, páginas 244-245) lemos : “Raciocinei como um tonto, seja; mas fui sincero comigo mesmo; e é tudo o que se pode exigir de mim. Se não é virtude ter espírito, não é crime não tê-lo”.
[14] Ainda Kant pode nos servir como elemento de comparação, sobretudo nos Sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da Metafísica onde os metafísicos são ditos “construtores de castelos no ar (Luftbaumeister) e “sonhadores da razão ” (Träumer der Vernunft).
[15] “Songeons au bien de notre espèce. Si nous ne sommes pas assez généreux; pardonnons au moins à la nature d'avoir été plus sage que nous. Si vous jetez de l'eau froide sur la tête de Greuze, vous éteindrez peut-être son talent avec sa vanité. Si vous rendez de Voltaire moins sensible à la critique, il ne saura plus descendre dans l'âme de Mérope. Il ne vous touchera plus. LUI: Mais si la nature était aussi puissante que sage; pourquoi ne les a-t-elle pas faits aussi bons qu'elle les a faits grands? MOI: Mais ne voyez-vous pas qu'avec un pareil raisonnement vous renversez l'ordre général, et que si tout ici-bas était excellent, il n'y aurait rien d'excellent. LUI: Vous avez raison. Le point important est que vous et moi nous soyons, et que nous soyons vous et moi. Que tout aille d'ailleurs comme il pourra. Le meilleur ordre des choses, à mon avis, est celui où je devais être; et foin du plus parfait des mondes, si je n'en suis pas. J'aime mieux être, et même être impertinent raisonneur que de n'être pas. MOI: Il n'y a personne qui ne pense comme vous, et qui ne fasse le procès à l'ordre qui est; sans s'apercevoir qu'il renonce à sa propre existence.LUI: Il est vrai. MOI: Acceptons donc les choses comme elles sont. Voyons ce qu'elles nous coûtent et ce qu'elles nous rendent; et laissons là le tout que nous ne connaissons pas assez pour le louer ou le blâmer; et qui n'est peut-être ni bien ni mal; s'il est nécessaire, comme beaucoup d'honnêtes gens l'imaginent. LUI: Je n'entends pas grand-chose à tout ce que vous me débitez là. C'est apparemment de la philosophie; je vous préviens que je ne m'en mêle pas." Le Neveu de Rameau, éd. critique de Jean Fabre (Genève, Droz, 1977), pp. 14-15.
[16] Sainte Beuve (Port-Royal) diz que entre Hobbes e Pascal há mais proximidade do que se imagina. Jogo e truque são analisados com a perspectiva do poder e da justiça por Pascal, sendo continuado no século 18 por filósofos como Condorcet.
[17] Della dissimulazione onesta , cópia muito boa pode ser encontrada na seguinte home page italiana, dedicada à tarefa de publicar textos eletrônicos : http://web.comune.torino.it/liberliber/biblioteca/a/accetto/index.htm
[18] “A dissimulação é uma técnica de não fazer enxergar as coisas como elas são. Simula-se o que não é e se dissimula o que é”. No jogo fraudulento da razão de Estado, como na fraude do jogo de cartas, a dissimulação e a simulação entram enquanto técnicas do engodo que, mesmo usando o cálculo, não respeitam as regras que devem ser obedecidas pelos súditos ou pelos “paspalhos” enganados nas partidas. Hobbes denuncia os que, numa república, fingem seguir as regras mas no segredo as violam e, pior, violam as próprias regras de seu jogo escondido. Mais adiante discutirei este ponto ao comentar as facções e a figura de Medéia. O artifício de fazer com que apenas o soberano não esteja submetido às regras suscita problemas graves de interpretação do pensamento hobbesiano no contexto da razão de Estado. Cf. o já citado texto de Micheline Triomphe: “Hobbes et la raison d´ État” in Zarka, Yves Charles : Raison et déraison d´État (Paris, PUF, 1994).
[19] Breviario dei Politici, secondo il Cardinale Mazzarino. Edição italiana de Giovanni Macchia. (Milano, Rizzoli Ed., 1981)
[20] Cf. Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: “Introduction” ao livro La raison d´ Etat: politique et rationalité. (Paris, PUF, 1992) página 9 e ss.
[21] Lembro apenas três textos fundamentais para se entender uma parte deste rico pensamento: o volume de Laurent Thirouin, Le hasard et les règles. Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal. Paris, Vrin, 1991, e o pequeno grande livro de Gerard Lebrun, Blaise Pascal, Coleção Encanto Radical, São Paulo, Brasiliense, 1983, além do clássico de Sainte Beuve, Port Royal, Paris, Gallimard. 3 volumes.
[22] Toda esta temática se une ao problema essencial do golpe de Estado e da exceção ao direito, importantes na doutrina conservadora e nos textos fascistas como o Carl Schmitt. Uma fonte importante na cultura mais ampla, no entanto, é o relevante livro de Gabriel Naudé: Considérations politiques sur les coups d´Estat (1639). Uso a edição fac similar da Gallica (BNF). Ainda hoje a análise mais aguda do campo encontra-se no livro de Thuau, Etienne : Raison d’’État et pensée politique à l’ epoque de Richelieu (Paris, Albin Michel, 1966). Para uma crítica moderada do estado de exceção segundo Carl Schmitt e seus aderentes na esquerda ou direita ideológica, cf. Monod, Jean-Claude: Penser l ´ennemi, affronter l´exception, réflexions critiques sur l ´actualité de Carl Schmitt (Paris, Éditions La Découverte, 2007), importante sobretudo é o capítulo intitulado "La banalisation de l ´exception", pp. 71 e ss.
[23] De cive, 12 in Gert, B. (Ed.) : Thomas Hobbes Man and Citizen (Cambridge, Hackett, 1993, páginas 254-255. Esta crítica hobbesiana em imagens é seguida no século 18 por Edmund Burke, um dos maiores escritores contra-revolucionários que, nas Reflections on French Revolution indica as filhas de Pelias de modo idêntico. “To avoid, therefore, the evils of inconstancy and versatility, ten thousand times worse than those of obstinacy and the blindest prejudice, we have consecrated the state, that no man should approach to look into its defects or corruptions but with due caution, that he should never dream of beginning its reformation by its subversion, that he should approach to the faults of the state as to the wounds of a father, with pious awe and trembling solicitude. By this wise prejudice we are taught to look with horror on those children of their country who are prompt rashly to hack that aged parent in pieces and put him into the kettle of magicians, in hopes that by their poisonous weeds and wild incantations they may regenerate the paternal constitution and renovate their father's life”. O texto de Edmund Burke pode ser encontrado no seguinte lugar da Internet : http://www.cpm.ll.ehime-u.ac.jp/AkamacHomePage/Akamac_E-text_Links/Burke.html
[24] “La condition du restaurateur d' une nation corrompue est bien différente. C'est un architecte qui se propose de bâtir sur une aire couverte de ruines. C'est un médecin qui tente la guérison d'un cadavre gangrené. C'est un sage qui prêche la réforme à des endurcis. Il n'a que de la haine et des persécutions à obtenir de la génération présente. Il ne verra pas la génération future. Il produira peu de fruit, avec beaucoup de peine, pendant sa vie; et n'obtiendra que de stériles regrets après sa mort. Une nation ne se régénère que dans un bain de sang. C'est l'image du vieil Æson, à qui Médée ne rendit la jeunesse qu'en le dépeçant et en le faisant bouillir. Quand elle est déchue, il n'appartient pas à un homme de la relever. Il semble que ce soit l'ouvrage d'une longue suite de révolutions. L'homme de génie passe trop vite, et ne laisse point de postérité.” (Histoire des Deux Indes citada por Srinivas Aravamudan : Tropicopolitans. Colonialism and Agency, 1688-1804 (Duke University Press, 1999), página 317. Cf. também Goggi, G. : “Diderot et Médée dépeçant le viel Eson” in Denis Diderot 1713-1784. Colloque International Paris-Sèvres-Reims-Langres. Actes recueillis para Anne-Marie Chouillet (Paris, Aux Amateurs de Livres, 1985), páginas 173-183.
[25] Cf. Cavallo, T. : “Aggressore dell'umanità e apologeta della tirannide? L'Hobbes degli enciclopedisti” na home page do autor : http://www.cromohs.unifi.it/8_2003/Cavallo.html O texto indicado da Encyclopédie, “Sujet” foi redigido por Diderot e Jaucourt : “On demande donc si un sujet peut exécuter innocemment un ordre qu'il sait être injuste, & que son souverain, lui prescrit formellement ; ou s'il doit plutôt refuser constamment d'obéir, même au péril de perdre la vie? Hobbes répond qu'il faut bien distinguer, si le souverain nous commande de faire, en notre propre nom, une action injuste qui soit réputée nôtre, ou bien s'il nous ordonne de l'exécuter en son nom & en qualité de simple instrument, & comme une action qu'il répute sienne. Au dernier cas, il prétend que l'on peut sans crainte exécuter l'action ordonnée par le souverain, qui alors en doit être regardé comme l'unique auteur, & sur qui toute la faute en doit retomber. C'est ainsi, par exemple, que les soldats doivent toujours exécuter les ordres de leur prince, parce qu'ils agissent comme instrumens, & au nom de leur maître. Au contraire, il n'est jamais permis de faire en son propre nom une action injuste, directement opposée aux lumieres d'une conscience éclairée. C'est ainsi qu'un juge ne doit jamais, quelque ordre qu'il en ait du prince, condamner un innocent ni un témoin à déposer contre la vérité.Mais, cette distinction ne leve point la difficulté ; car de quelque maniere qu'un sujet agisse dans tous les cas illicites, soit en son nom, soit au nom du souverain, sa volonté concourt à l'action injuste & criminelle qu'il exécute. Conséquemment, ou il faut toujours lui imputer en partie l'une & l'autre action, ou l'on ne doit lui en imputer aucune. Il est donc vrai que dans tout ordre du souverain évidemment injuste, ou qui nous paroît tel, il faut montrer un noble courage, refuser de l'exécuter, & résister de toutes ses forces à l'injustice, parce qu'il vaut mieux obéir à Dieu qu'aux hommes, quel que soit leur rang sur la terre. En promettant au souverain une fidele obéissance, on n'a jamais pu le faire que sous la condition tacite qu'il n'ordonneroit rien qui fût contraire aux loix de Dieu, soit naturelles, soit revélées. " Je ne croyois pas, dit Antigone à Créon, roi de Thebes, que les édits d'un homme mortel tel que vous, eussent tant de force, qu'ils dûssent l'emporter sur les loix des dieux mêmes, loix non écrites à la vérité, mais certaines & immuables ; car elles ne sont pas d'hier ni d'aujourd'hui ; on les trouve établies de tems immémorial ; personne ne sait quand elles ont commencé ; je ne devois donc pas par la crainte d'aucun homme, m'exposer, en les violant, à la punition des dieux. " C'est un beau passage de Sophocle, Tragédie d'Antigone, vers 463. (D. J.)” Edição eletrônica da Encyclopédie em CD, na Redon, CD-Macintosh.
[26] Michel l ´Hospital (1505-1573), Chanceler da França.
[27] Para a documentação dessa passagem, cf. François Hotman, La vie de Messire Gaspar de Colligny, Admiral de France. Ed. Fac. símile aos cuidados de Emile-V. Telle (Genève, Droz, 1987). O texto original foi redigido, compreensivelmente, em latim.
[28] Citado por Telle, Vie de Messire…”, Ed. cit. “Introduction”, página 35.
[29] Em Shakespeare, o tema é onipresente nas peças políticas. O erro fatal de Lear foi a divisão territorial de seu Estado pelas filhas que o adularam e seguiram a sua ordem tirânica. Ele usou de maneira estulta a lei da razão de Estado que ordena Divide et impera. O soberano que perde seu espaço, tudo perde e nada garante aos súditos, salvo guerras civís. É bom lembrar o núcleo da peça logo nos primeiros instantes. “Lear. Meantime we shall express our darker purpose./Give me the map there.Know that we have divided/In three our kingdom: and 'tis our fast intent/To shake all cares and business from our age;/Conferring them on younger strengths, while we/Unburden'd crawl toward death./Our son of Cornwall,/And you, our no less loving son of Albany,/We have this hour a constant will to publish/Our daughters' several dowers, that future strife/May be prevented now. The princes, France and Burgundy,/Great rivals in our youngest daughter's love,/Long in our court have made their amorous sojourn,/And here are to be answer'd./Tell me, my daughters,/Since now we will divest us both of rule,/Interest of territory, cares of state,/Which of you shall we say doth love us most?/That we our largest bounty may extend/Where nature doth with merit challenge”. A peça liga-se à adulação, na linha do escrito de Plutarco Como distinguir o amigo do adulador do qual existe tradução em português (São Paulo, Scrinium Ed., 1997). Analiso tal problema com detalhes no meu livro Silêncio e Ruído. A sátira e Denis Diderot (Campinas, Unicamp Ed., 1997).
[30] Polícia tem a mesma origem de política: ambas as palavras vem de Politéia (grego) e do latim Politia. É evidente o nexo com a polis. Quando se diz, até o século 19 pelo menos, “polícia”, entende-se geralmente um Estado dirigido de maneira legal pelo soberano, o que garante os direitos e deveres dos súditos. Dizer, como o faz Montaigne, que os rebeldes protestante desejam perturbar a polícia da França, não significa que eles levantam-se contra uma “polícia” tal como nos habituamos a nomear, mas contra toda a ordem legal e legítima do Reino.
[31] Todos esses informes são extraídos do prefácio de Paul Bonnefon à sua edição do Relatório. Cf. Bonneffon, Paul: “Une oeuvre inconnue de La Boétie: Les Mémoires sur l ´Édit de janvier 1562”, in Révue d´Histoire littéraire de la France, 24e Année- 1917 (Paris, Armand Colin, 1917), página 1 e seguintes (primeira parte). O mesmo Paul Bonnefon publicou, em 1892, uma edição crítica das Oeuvres complètes de La Boétie (Bordeaux, G. Gounouilhou Éd./Paris, J. Rouam Ed.). Bonnefon também publicou uma importante biografia de La Boétie que até os nossos dias fornece preciosos dados para a análise do período e do pensador. Cf. Bonnefon, Paul: Estienne de La Boétie. Sa vie, ses ouvrages et ses relations avec Montaigne. (Genève, Slatkine Reprints, 1970).
[32] Cf. Telle, E. : “Introduction”. La Vie de Messire…ed. cit. p. 25.
[33] Os textos de Calvino e de outros reformadores, brilham pelo estilo, rigor lógico e controle das fontes. Um elemento decisivo na expansão da fé reformada entre as elites intelectuais européias e também de eficácia na pregação, o que conquistou vastas camadas populares. Na Inglaterra e suas colônias não foi diferente. "The Anglican sermon is constructed on a symphonic scheme of progressively widening vision; it moves from point to point by verbal analysis, weaving larger and larger embroideries about the words of the text. The Puritan sermon quotes the text and "opens" it as briefly as possible, expounding circumstances and context, explaining its grammatical meanings, reducing its tropes and schemata to prose, and setting forth its logical implications; the sermon then proclaims in a flat, indicative sentence the "doctrine" contained in the text or logically deduced from it, and proceeds to the first reason or proof. Reason follows reason, with no other transition than a period and a number; after the last proof is stated there follow the uses or applications, also in numbered sequence, and the sermon ends when there is nothing more to be said. The Anglican sermon opens with a pianissimo exordium, gathers momentum through a rising and quickening tempo, comes generally to a rolling, organ-toned peroration; the Puritan begins with a reading of the text, states the reason in an order determined by logic, and the uses in an enumeration determined by the kinds of person in the throng who need to be exhorted or reproved, and it stops without flourish or resounding climax" Perry Miller The New England Mind, (Boston. Beacon Press, 1968), páginas 332-3. Tal amplo domínio da lógica e do estilo prova também amplo domínio da história filosófica, teológica, etc.
[34] “Vendo a constância de Pedro e de João, entendendo que eles eram iletrados e ignorantes, pensavam: e eles souberam então que eles estiveram com Jesus”. [Videntes autem Petri constantiam et Iohannis conperto quod homines essent sine litteris et idiotae admirabantur et cognoscebant eos quoniam cum Iesu fuerant].
[35] Cf. Biller, Peter e Hudson, Anne (Ed.) : Heresy and Literacy, 1000-1530. (Cambridge, University Press, 1994). Uma coletânea bastante rica de análises sobre este ponto que até os nossos dias apresenta, nas franjas do populismo e do aristocratismo abstratos que falseiam os estudos sobre o mundo cultural, sérias consequências para o entendimento e a observância da ordem democrática.
[36] Cf. The Elements of Law Natural and Politic / by Thomas Hobbes Electronic Text Center, University of Virginia Library.
[37] “Le précis de cet ouvrage est que, sans la paix il n'y a point de sûreté dans un État, et que la paix ne peut subsister sans le commandement, ni le commandement sans les armes; et que les armes ne valent rien si elles ne sont mises entre les mains d'une personne; et que la crainte des armes ne peut point porter à la paix ceux qui sont poussés à se battre par un mal plus terrible que la mort, c'est-à-dire par les dissensions sur des choses nécessaires au salut. Ejus autem summa haec fuit, sine Pace impossibilem esse incolumitatem, sine Imperio Pacem, sine Armis Imperium, sine opibus in unam manum collatis nihil valere Arma, neque metu Armorum quicquam ad pacem profici posse in illis, quos ad pugnandum concitat malum morte magis formidandum; nempe dum consensum non sit de iis rebus, quae ad salutem aeternam necessariae creduntur, pacem inter cives, non posse esse diuturnam”. Pierre Bayle, Artigo “Hobbes”.DICTIONNAIRE HISTORIQUE Et CRITIQUE, 4e édition, Tome Second (C-I). Amsterdam et Leyde 1730
[38] Thomas Hobbes Leben und Lehre (Stuttgart-Bad Cannstatt, 1971), páginas 272-273.
[39] Cf. El Asalto a la Razon. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. (Barcelona, Grijalbo, 1968), páginas 480-481.
[40] Tönnies, op. cit. páginas 272-273 e Diderot, Plan d´mune Université… in Versini, L. (Ed.) Oeuvres de Diderot, T.III, (Paris,Robert Laffont,1995), página 445.
[41] Cf. Vorlesungen über die Ästhetik, Dritter Abschnitt, Vom Romantischen Überhaupt, in Werke in zwanzig Bänden (FAM, Suhrkamp, 1970) V. 14, II, páginas 129-130. Trad. italiana de Nicolao Merker e Nicola Vaccaro (Torino, Einaudi Ed., 1976), Volume I, páginas 583-584.
[42] "Novalis", in Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, Werke in zwanzig Bänden (FAM, Surhkamp, 1971), volume 20, III, página 418.
[43] Die Verfassung Deutschlands, in Frühe Schriften (F.A. M, Werke in zwanzig Bänden, Suhrkamp, 1971, volume 1), página 469; tradução francesa de Michel Jacob in G.W.F. Hegel, Écrits politiques (Paris, Champ Libre, 1977), páginas 38-39.
[44] .“Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?”in Kant Werkausgabe, Band XI, (F.A.M. Suhrkamp Verlag, 1968), p. 55. Cf. J. Habermas, L. Espace Public (Paris, Payot, 1978) e R. Romano : “Universidade, Estatuto e Constituição Política”in Lux in Tenebris, meditaçõe sobre Filosofia e Cultura (SP, Cortez/Unicamp, 1987
[45] Cf. Glauben und Wissen in Werke in zwanzig Bänden (F.A.M., Shurkamp, 1971, volume 2) página 392. E também Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (F.A.M., Shurkamp, 1971, volume 20, T.III), página 417.
[46] Cf. R. Ayrault: La genèse du romantisme allemand (Paris, Aubier, 1976), p. 201 ss; também g. Stenzel (Ed.) : Die Deutschen Romantiker (Salzburg, Das Bergland-Buch, s.d.), página 320.
[47] Para uma análise do ponto, cf. Jan-Werner Muller: A dangerous Mind, Carl Schmitt in Post-War European Thought (Yale, University Press, 2003), página 20 e seguintes.
[48] Indicado por Jan-Werner Muller, op.cit. p. 21 e 253.
[49] Georges de Lagarde, "L´idée de représentation dans les Oeuvres de Guillaume d´Ockham" International Commitee of the Historical Sciences Bulletin (Dezembro, 1937), páginas 425-51. Citado em James Roland Pennock (Ed.): Representation (New Jersey, Transaction Publishers, 2007), página 41. Cf. também Franco Todescan, "Fermenti Galicani" in Luigi Lombardi Vallauri (Ed.) : Cristianesimo, secolarizzazione e diritto moderno (Milano, Giuffrè, 1981), página 585.
[50] O conceito de representação recebe duplo veto em Rousseau. O primeiro é o que surge com o liberalismo, no qual o povo é representado "de baixo para cima" pela eleição ou transferência da vontade (a qual não pode, jamais, ser transferida) e o segundo, subentendido, é o religioso e católico, que supõe a desigualdade entre os homens, dada a hierarquia cósmica e social nela implicadas. Comenta um autor do século 20: "It is not without significance that Rousseau, who was never weary of singing the praises of democracy, should have thought pure democracy fit only for angels. Yet representative democracy was a last resource which he rejected absolutely in principle. 1 In practice, the only form of democracy worthy of the name, was, in his view, the direct democracy of a co whose citizens could come together and debate and decide their own affairs. Rousseau recognised that the size of most political communities and the complexity of their affairs precluded the possibility of such immediate and personal self-government; but he did not draw the natural inference that therefore some sort of representative system is of necessity imposed upon most, if not all, democratic communities." James Hogan: Election and Representation (Cork University Press, 1945), página 106.
[51] Todescan, página 585.
[52] Cf. Miruna Tataru-Cazaban : Quod omnes tangit: le problème du consentement politique de Thomas d´Aquin jusqu´à Nicolas de Cues. Universita di Bologna, Alma mater studiorum, Dottorato di Ricerca in Europa e Americhe, constituzioni, dottrine e istituzioni politiche, Anno 2007. Na internet, seguinte endereço eletrônico da universidade de Bolonha: amsdottorato.cib.unibo.it/459/1/Tesi_Cazaban.pdf (consultado em 16/06/2010, 14 horas PM).
[53] Cf. Philippe Buc: L´ambiguité du livre. Prince, pouvoir, et peuple dans les commentaires de la Bible au Moyen-Age, Paris, Beauchesne Ed., 1994. Cf. Sobretudo o capítulo VI: Summa rerum gerendarum, le pouvoir et le peuple (página 312 e seguintes).
[54] Le Nouveau peuple de Dieu (Paris, 1971), página 90. citado por H.-J. Sieben "Dimensions historiques de l ´idée de concile" Paris, CAIRN, 2005/2 Tome 93, página 195. Endereço eletronico: http://www.cairn.info, acessado em 07/09/2009, as 16: 30, PM.
[55] Tubeta, De auctoritate Papae et Concilii, citado por Todescan, página 587.
[56] A metáfora ainda ocorre em Spinoza. Se não existem condições para que a democracia impere, que o rei seja “como a alma do Estado, enquanto o Conselho servirá a esta alma como se dela fosse o corpo e os sentidos exteriores; ele fará o rei conhecer a situação do Estado e será o instrumento para executar o que for reconhecido como o melhor” (Tratado político, VII, 19). Existe um problema na tradução do trecho para a nossa língua. O termo latino é mens: “et absolute rex censendus est veluti civitatis mens, hoc autem concilium mentis sensus externi, ceu civitatis corpus, per quod mens civitatis statum concipit et per quod mens id agit, quod sibi optimum esse decernit”. Traduzir mens por “intelecto”, “mente”, etc. pode trazer contra-sensos. Cf. MOREAU, Pierre-François. Le vocabulaire psychologique de Spinoza et le problème de sa traduction. Disponível em:
[57] Ernst Kantorowicks, The King´s two bodies, 1970, páginas 214 e seguintes.
[58] David Keck: Angels & Angelology in the middle Ages (Oxford, University Press, 1998) : "Most modern studies of medieval angelology focus almost exclusively on the scholastic treatment of angels. The impetus given to Christian philosophy and metaphysics by Pope Leo XIII Aeterni Patris in 1879 led neo-Thomists such as Etienne Gilson and J. D. Collins to explore the metaphysical and philosophical aspects of scholastic angelology with great care. Gilson's chapters on the angelologies of Aquinas and Bonaventure in his books on their respective Christian philosophies are perhaps the most lucid treatment of scholastic angelology ever written. Collins The Thomistic Philosophy of the Angels remains the most detailed analysis of the origins and meaning of the Angelic Doctor's angelology (tradition ascribes the origin of this epithet both to the purity of Aquinas's teachings and to their heavenly character). These studies reveal that the leading thinkers of medieval Christendom, theologians such as Aquinas and Ockham, were fascinated with angels and explored their mysteries tenaciously. To the scholastics, the universe required the existence of angels, and the theologian had a special responsibility to uncover and describe their sublime nature." página 4.
[59] Cf. "Todos os conceitos mais eficazes da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados. Não apenas com base em seu desenvolvimento histórico, porque eles passaram para a doutrina do Estado vindos da teologia, como por exemplo o Deus onipotente que se tornou o legislador onipotente, mas também na sus estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma consideração sociológica daqueles conceitos. O Estado de exceção tem, para a jurisprudência, um significado análogo ao milagre na teologia. Só com a consciência desta situação de analogia é possível compreender o desenvolvimento súbito da idéia do moderno Estado nos últimos séculos". Cf. Teologia Política, in Le categorie del ´politico´(Bologna, Il Mulino, 1972), p. 61.
[60] Deus, fala Cortés no Discurso sobre a Ditadura (1849) deixou aos homens, até certo ponto, o governo das sociedades. Ele reservou para si o governo do universo. O doutrinário zomba dos liberais que o escutam, dizendo que Deus governa de maneira constitucional o universo, com leis precisas chamadas "causas secundárias". Estas são o análogo das leis humanas. Ora, se Deus, em relação ao mundo físico, é legislador, Ele governaria sempre com estas mesmas leis que Ele mesmo impôs em sua eterna sapiência e com elas nos sujeitou a todos? Não, é a resposta de Cortés. Algumas vezes Ele manifesta, clara e explícitamente, sua VONTADE soberana, quebrando as leis que Ele mesmo se impôs e torcendo o curso natural das coisas. "Então, senhores, quando opera assim, não se poderia dizer, se a lingua humana pudesse ser aplicada às coisas divinas, que Ele opera ditatorialmente? ". Cf. Discurso sobre la dictadura, in Obras Completas de Juan Donoso Cortés (BAC, Madrid, 1970), tomo I, páginas 308-309. Cf. também o Discurso sobre a Situação da Espanha, mesmo volume, p. 494.
[61] Cf. Jan Muller, op. cit. p. 22.
[62] Cf. para as análises seguintes, Ben van Onna: "La désintegration du Catholicisme Politique, essai pour comprendre l ´évolution de l ´attitude du catholicisme face à la société bourgoise, in M. Xhaufflaire (Ed.) : La pratique de la theologie politique (Paris, Casterman, 1974), página 155 e seguintes.
[63] Este aspecto foi analisado por Maurice Merleau-Ponty, no artigo "Foi et Bonne Foi", reolhido na coletânea Sens et Non Sens (Paris, Genebra, Nagel, 1948). O católico é sempre um companheiro de estrada incerto, tanto para os conservadores quanto para os socialistas, é a tese de Ponty.
[64] Sobre o conceito diverso de representação, o burgues ou liberal, é preciso notar nele pelo menos três pontos que diferem da representação católica. Na forma liberal, a pretensão, como diz J. Habermas, é a de não levar em conta a hierarquia dos privilégios, mas valorizar a pressuposição da igualdade no debate. O segundo ponto é o domínio da preocupação coletiva na qual, ao contrário da Igreja, não existe monopólio de interpretação. O terceiro é o critério da inclusão: jamais o público pode ser dirigido e orientado por uma seita ou igreja, menos ainda por grupos que formam cliques. O debate define a forma de representação liberal ou burguesa, tal como formulada nos tempos modernos. Cf. Strukturwandel der Oeffentlichkeit (Neuwied, 1971), página 19 e seguintes.
[65] Erasmo de Rotterdam, Sileni Alcibiades in Adagia, sei saggi politici in forma di proverbi, a cura de Silvana Seidel Menchi (Torino, Einaudi, 1980), página 67 e seguintes.
[66] James D. Tracy, "Luther and the Modern State in Germany" in Sixteenth Century Journal Publishers, 1986, página 37.
[67] Cf. E. de Moreau, "Les doctrines de Luther" in La crise religieuse du XVIe siècle, Histoire de l ´Église (Paris, Bloud &Gay), 1950, volume 16, página 103 e seguintes.
[68] Über das 1 Buch Mose, Predigten, citado por James D. Tracy, op.cit. página 33.
[69] Para uma leitura relevante, até os nossos dias (ou especialmente em nossos dias), cf. Charles S. MacFarland: The New Church and the New Germany: a study of Church and State (London, The Macmillan Company) 1934. " National Socialism in Germany discovered little difficulty in its complete transformation of the life and even the mind of the nation, until it struck the Protestant Christian Church, or more particularly, the pastors of the churches. At this point it has aroused a near counter-revolution in which, unless the state is cautious, as at last accounts it appeared to be, it may even meet its Waterloo, by arousing to resistance not a few of the people in general who have thus far accepted it as inescapable, but with reservation or resentment. Indeed, the Roman Catholic Church, at first seemingly taken care of by a concordat, will perhaps be so encouraged by Protestant resistance as to revise its terms or insist upon its own interpretation of them. Adolf Hitler, while sympathetic with Christianity, evidently did not know the Protestant genius and spirit, the fundamental principles of the gospel, or the inner nature of the Protestant Church. As to the Catholic problem, he had not adequately studied the experience of Bismarck. To arouse both the Protestant and Catholic Churches was an extremely hazardous venture. To understand the church situation in Germany one must contemplate the amplitude of this political and social revolution in which it has become, for the time being, a significant element. National Socialism aims at the establishment of a "totalitarian" state, into the Gleichschaltung (unification, harmonizing) of which every social institution, educational, cultural, industrial, is to be assimilated. At the same time the political and other divisions of the several German states are to be assimilated into a unified Reich. The Church in Germany was envisaged as a public institution and inasmuch as it was also divided into separate churches in these states, it came within the scope of both these unifying processes. Not only, however, are these institutions to be thus brought into conformity along the lines of their own kindred traditions and affinities, but they must be greatly reshaped in their readjustment to a political and social theory, National Socialism”.
[70] Apresento este ponto, com detalhes, no artigo "Kant e a Aufklärung" em Corpo e Cristal, Marx Romântico (RJ, Guanabara Ed., 1985).
[71] Cf. Gérard Lébrun: Kant et la fin de la métaphysique (Paris, Le Livre de Poche, 2003 Collection Philosophie).
[72] A Religião nos Limites da Simples Razão, IV, "A Idéia de um povo de Deus só é (sob organização humana) realizável na forma de uma Igreja", Tradução de Artur Morão in www.lusofobia.net, acessado em 12/02/2009, as 10: 30 AM.
[73] Em meu livro Brasil, Igreja contra Estado (SP, Kayrós, 1979), discuto este problema, a partir do mencionado texto fichteano..
[74] Alexis Philonenko: Métaphysique et politique chez Kant (Paris, Vrin, ), página 18.
[75] "A Igreja visível é uma verdadeira sociedade, fundada sobre o contrato" (Fichte, "Da Igreja, em relação ao direito de uma transformação do Estado, in Considerações sobre a Revolução Francêsa, Cf. Bernard Gilson : L´essor de la dialectique moderne et la philosophie du droit (Paris, Vrin, 1991) página 161 e seguintes.
[76] Cf. Emilio Brito : J.G. Fichte et la transformation du christianisme , Peeters Publishers, 2004 ) página 107.
[77] Para uma análise detalhada do passo, cf. Edmilson Menezes : História e Esperança em Kant (São Cristóvão, Editora Universidade de Sergipe, 2000).
[78] Denis Rosenfield: "Moralidade e protestantismo em Hegel" in Hegel, a moralidade e a religião (Vários) (RJ, Jorge Zahar Ed.2002) página 178.
[79] Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Vierter Teil, in Werke in zwanzig Bänden, 12, (FAM,Suhrkamp Verlag, 1970), p. 455
[80] Philosophie der Geschichte, ed. cit. volume 12, páginas 490 e seguintes.
[81] Vorlesungen über die Philosophie des Rechts, § 166, Adição. Ed. Werke in zwanzig Bänden, volume 7, página 318 e seguintes.
[82] "Antígona, uma das obras artísticas mais sublimes, em todos os sentidos mais perfeitas de todos os tempos. Tudo nesta tragédia é consequente; a lei pública do Estado (das öffentliche Gesetz des Staats) está em conflito aberto com o amor intimo familiar e o dever diante do irmão; o interesse familiar tem como pathos a mulher Antígona, a salvação da cidade Creonte, o homem. Polinice, ao combater contra sua própria cidade natal, caíra diante das portas de Tebas; Creonte o soberano, ameaça com a morte (...) quem desse a honra da sepultura ao inimigo (Feinde) da cidade. Mas esta ordem que diz respeito apenas à vida pública, ao bem do Estado, não preocupa Antígona e como irmã ela cumpre o dever sagrado da sepultura, pela piedade do seu amor pelo irmão. Ela invoca em tal caso a lei dos deuses; mas os deuses que ela honra são os dos subterrâneos do Hades (Sófocles, Antigona, V, 451), os internos do sentimento (die inneren der Empfindung), do amor do sangue, não os deuses da luz, da livre e auto-consciente vida estatal e popular". Vorlesungen über die Ästhetik ("Die alten Götter im Unterschiede zu den neuen", Parte segunda, Werke in zwanzig Bänden, Volume 14, II, página 52.
[83] Cf. W. Lippmann, The Phantom Public (New York, Macmillan, 1925).
[84] Public Opinion, cap. 15, 4 (NY, Hartcourt Brace and Company, 1922), página 150. Argumentos de Lenoir.
[85] Cf. Jan-Werner Muller : A Dangerous Mind, Carl Schmitt in post War European Thought (London/New Haven, Yale University Press, 2003).
[86] Schmitt, Carl: "Gesunde Wirtschaft im starken Staat" Mitteilungen des Vereins zur Wahrung der gemeinsamen wirtschaftlichen Interessen in Rheinland und Westphalen, Heft 21 (23 novembro 1932). Cf. Olivier Beaud: Les derniers jours de Weimar. Carl Schmitt face à l´avènement duz nazisme (Paris, Descartes & Cie., 1997), página 61 e seguintes.
[87] in Obras Completas de Donoso Cortés, Madrid, BAC, 1970, v. 2, p. 318.
[88] Grundlinien der Philosophie des Rechts, in Werke in zwanzig Bänden, volume 7 (F.A.M., Suhrkamp Verlag, 1971), página 483 e seguintes.
[89] O entendimento (Verstand) tem como função dividir e classificar os elementos do saber e da prática. Seu príncípio não é o da Razão, que sintetiza os opostos e suprime os contraditórios numa identidade mais elevada.
[90] Para maiores detalhes sobre esta visão orgânica do Estado, cf. Roberto Romano, "A fantamagoria Orgânica" in Corpo e Cristal, Marx Romântico (RJ, Guanabara, 1987).
[91] "Der Begriff des Konkreten" in Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (Vol. I) Werke in zwanzig Bänden (18) (FAM, Suhrkamp Verlag, 1973), página 42 e seguintes. Hegel insiste no conceito ao apresentar a filosofia de Platão, que "constitui um ponto nodal em que se unem verdadeiramente, de forma concreta, todos os princípios abstratos e unilaterais. Ao descrever a noção geral da história da filosofia, vimos que que na sua trajetória e desenvolvimento progressivo do pensamento filosófico é preciso dar-se, necessáriamente, certos pontos nodais onde o verdadeiro aparece de modo concreto. O concreto é unidade de distintas determinações e princípios, para se desdobrar, para que se revelem à consciência de modo claro e preciso é preciso que os comecem estabelecendo para si" (Werke in zwanzig Bänden, volume 18, página 23).
[92] Gilbert Gérard: Le concept hégélien de l´Histoire de la Philosophie (Paris, Vrin, 2008) página 36 e seguintes.
[93] "Hegel écrit dans sa Logique : ´L’abstraction n’est pas vide, elle est le concept déterminé. Mais tout concept déterminé est vide dans la mesure où il ne contient pas la totalité, mais seulement quelque chose d’unilatéral.´ Même s’il a par ailleurs un contenu concret : homme, État, animal, il reste un concept vide dans la mesure où sa caractéristique ne donne jamais le principe de ses différences. Quand l’intuition ou la pensée ne désignent pas seulement l’un des termes mais la totalité structurée on peut dire qu’elle est une pensée concrète parce qu’elle offre en même temps le mouvement qui la constitue.". "La pensée abstraite détourne-t-elle de la réalité?", documento sem indicação de autoria, no endereço http://www.editionsosiris.fr/victor/pensee%20abstraite.doc. Acessado no dia 08/10/2009, as 9:38 AM.
[94] Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (I) in Werke in Zwanzig Bänden [18] (FAM, Suhrkamp Verlag), página510.
[95] Hegel, em nota, cita o caso da Espanha e de Napoleão
[96] O termo Haufen pode significar "agregado, massa, multidão".
[97] Rousseau teve o mérito de estabelecer o princípio da vontade como base do Estado. "Mas como ele concebeu a vontade apenas sob a forma determinada da vontade individual (Fichte fará o mesmo mais tarde) e a vontade geral não é o racional em si e para si na vontade, mas apenas o que deduz como o interesse comum em cada vontade indivudual consciente de si mesma, a associação dos indivíduos no Estado se torna, em sua doutrina, um contrato. Este contrato tem por fundamento o livre arbítrio dos indivíduos, sua opinião (Meinung) seu consentimento livre e explícito. O que, por consequência lógica, tem por resultado destruir (o termo usado é Zerstörung, o mesmo usado por Lukacs para falar da razão estraçalhada pelo irracionalismo) o divino existente e si e para si, sua autoridade e majestade absolutas". Uma vez chegadas ao poder "tais abstrações ofereceram o espetáculo monstruoso (ungeheure Schauspiel) que foi possível assistir desde o início da Humanidade: a tentativa de recomeçar inteiramente a Constituição de um Estado, destruindo tudo o que existia e se apoiando no pensamento para dar uma base a este Estado que supunha-se ser racional. Mas ao mesmo tempo, porque se tratava de abstrações sem Idéia (Ideenlose Abstraktionen) esta tentativa trouxe a situação mais terrível e a mais cruel". §258, nota.
[98]Na Encyclopédie de Diderot "Moment, s. m. dans le tems, (Méch.) est une partie très-petite & presqu'insensible de la durée, qu'on nomme autrement instant. Le mot instant se dit néanmoins plus proprement d'une partie de teins non seulement très-petite, mais infiniment petite; c'est à-dire, plus petite qu'aucune partie donnée, ou assignable. Voyez Tems. Moment, dans les nouveaux calculs de l'infini, marque chez quelques auteurs, des quantités censées infiniment petites. (...) C'est ce qu'on appelle autrement & plus communément différences; ce sont les augmentations ou diminutions momentanées d'une quantité considérée, comme dans une fluxion continuelle. Voyez Différentiel & Fluxion. Moment ou Momentum, en Méchanique, signifie quelquefois la même chose qu'impetus, ou la quantité du mouvement d'un mobile. Voyez Mouvement. Dans la comparaison des mouvemens des corps, la raison de leurs momens est toujours composée de celles de la quantité de matiere, & de la vitesse du mobile, de façon que le moment d'un corps en mouvement peut être regardé comme le produit sait de sa quantite de matiere & de sa vîtesse; & comme on sait que tous les produits égaux ont des facteurs réciproquement proportionnels, il s'ensuit de là que si des mobiles quelconques ont des momens égaux, leurs quantités de matiere seront en raison inverse de leurs vîtesses; c'est-à-dire, que la quantité de matiere du premier sera à la quantité de matiere du second, en raison de la vîtesse du second à celle du premier: & réciproquement, si les quantités de matiere sont réciproquement proportionnelles aux vìtesses, les momens sont égaux. Le moment de tout mobile peut aussi être considéré comme la somme des momens de toutes ses parties; & par conséquent si les grandeurs des corps & le nombre de leurs parties sont les mêmes, ainsi que leurs vîtesses, les corps auront les mêmes momens. " Em outro verbete a Encyclopédie remete, no plano do momentum, para a filosofia de Leibniz, em consonância à de Aristóteles: "En 1711 il adressa à l'académie des Sciences sa théorie du mouvement (...) & à la société royale de Londres, sa théorie du mouvement concret. Le premier traité est un système du mouvement en général; le second en est une application aux phenomenes de la nature; il admettoit dans l'un & l'autre du vuide; il regardoit la matiere comme une simple étendue in différente au mouvement & au repos, & il en étoit venu à croire que pour découvrir l'essence de la matiere, il falloit y concevoir une force particuliere qui ne peut gueres se rendre que par ces mois, mentem momentantam, seu carentem recordatione, quia conatum simul suum & alienum contrarium non retineat ultro momentum, adeòque careat memoriâ, sensu actionum passionumque suarum, atque cogitatione. Le voilà tout voisin de l'entéléchie d'Aristote, de son système des monades, de la sensibilité, propriété générale de la matiere, & de beaucoup d'autres idées qui nous occupent à présent. Au lieu de mesurer le mouvement par le produit de la masse & de la vitesse, il substituoit à l'un de ces élémens la force, ce qui donnoit pour mesure du mouvement le produit de la masse par le quarré de la vîtesse. Ce fut-là le principe sur lequel il établit une nouvelle dynamique; il fut attaqué, il se défendit avec vigueur; & la question n'a été, sinon decidée, du-moins bien éclaircie depuis, que par des hommes qui ont réuni la Méthaphysique la plus subtile à la plus haute Géométrie. Voyez l'article Force. ". Quem deseja maiores informes sobre o pensamento de Diderot sobre Leibniz, veja o verbete inteiro intitulado "Léibnitzianisme ou Philosophie de Léibnitz".
[99] Cf. Daniel Brown, Gerard Manley Hopkins: Hopkin´s idealism: philosophy, physics, poetry ( Oxford, University Press, 1997), páginas 186-187.
[100] "Encontramos nas teorizações sobre a natureza, a sociedade, o homem, paradigmas extraídos especialmente do nosso próprio corpo, ou dos instrumentos por nós produzidos. Ou projetamos o cosmos e o social como imenso corpo, e ampliamos ao máximo o modelo do organismo, ou ideamos o universo na figura de refinada máquina, construída por um demiurgo, cujo ato devemos repetir. À linhagem mecânica, de Platão a Hobbes e aos philosophes das Luzes, contrapõe-se a seqüência orgânica, seguindo de Aristóteles aos estóicos, e deles aos românticos. Evidentemente, nenhum desses paradigmas foi utilizado, sempre, de modo unívoco ou sem "contaminações" pelo seu oposto. Nem tudo em Aristóteles é "orgânico". Georges Canguilhem mostra as dificuldades encontradas, nesse sentido, para se definir uma ou outra perspectiva. (...) Devemos, na realidade, fazer descer até Aristóteles a assimilação do organismo a certa máquina (...) Aristóteles encontrou, na construção das máquinas de guerra, como as catapultas, a permissão de assimilar a movimentos mecânicos automáticos os movimentos dos animais. (...) Ele assimila efetivamente os órgãos do movimento animal aos `organa', ou seja, partes de máquinas de guerra, por exemplo, o braço de uma catapulta que vai lançar o projetil (...) Ele foi fiel, neste ponto, a Platão, o qual, no Timeu, definiu o movimento das vértebras como se fossem os de gonzos". Cf. Canguilhem, G. "Machine et organisme", in: La connaissance de la vie. Paris: Vrin, 1980, pp. 107-108. “ Cf. Roberto Romano : “A crise dos paradigmas e a emergência da reflexão ética, hoje” in Revista Educação e Sociedade, volume 19, número 65, dezembro de 1998.
[101] Cf. Roberto Romano: "Prefácio" a Franz Rosenzweig, Hegel e o Estado (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2008); "A dança e a Lira: notas sobre a Guerra e a Paz en Hegel, Empédocles e Hölderlin" e também "Hegel e a Guerra" in O Caldeirão de Medéia (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2001), páginas 87 a 101.
[102] O Dicionário Hegel de M.J. Inwood pode ser de alguma ajuda neste ponto. Diz o autor que Hegel distingue entre um agregado (no qual as partes são anteriores ao todo) e no qual o todo só pode ser conhecido se entendermos cada uma das partes. Tal agregado, diríamos, seria a massa atomizada de indivíduos que não podem responder pela Constituição do Estado. Já Das Ganze é usado para um todo como o Espírito, um organismo ou sistema, cujas partes não podem ser removidas, ou só podem ser removidas com prejuízo para as partes restantes. Tal todo não é feito por agregação, mas por desenvolvimento de seu conceito. O todo é anterior às partes e estas só podem ser compreendidas nos termos do todo. Cada parte serve ao telos do Todo. "A verdade é o todo. Mas o todo é apenas a essência (Wesen) que aperfeiçoa a si mesma em seu desenvolvimento". Ele usa muitas vezes o termo Teile de semelhante todo, mas prefere com frequência a palavra Glieder (membros), Organe ou Momente (momentos) que não sugerem ser a parte separável. Este conceito aparece em Aristóteles, místicos como Böhme e Kant. Ele pode ser comparado ao to pan da Metafísica aristotélica (o todo, a totalidade) das partes e to holon (o todo). Um holon para Aristóteles não é apenas o todo das suas partes, mas ele tem uma causa interna de unidade, uma forma. O latim para ganz é totus, que deu nascimento, na escolástica, ao totalis e à totalitas. No século 16 alemão eles se tornaram total e Totalität. Este último termo significa "totalidade" tanto no sentido de completude, inteireza e de uma totalidade, um todo. Ele difere de Ganzheit em dois aspectos: ele não precisa sugerir a articulação interna característica de um todo, mas deve referir à Allheit (ou to pan). Kant fala de uma absoluta Totalität das condições das entidades condicionadas que está sob as idéias transcendentais ou uso especulativo da razão (CRP, A 407, B434ff). Aqui ele sublinha a inatingível completude, Allheit, das condições, não suas iterrelações sistemáticas. Totatität marca mais enfaticamente do que das Ganze a completude do todo, o fato de que nada é deixado fora dele. Um indivíduo integra o Estado, o seu todo como totalidade. O uso de Hegel da palavra Totalität varia. Ele vai de um simples agregado químico como "a totalidade das reações (de um elemento quimico e de outros) presente apenas numa soma total, não como infinito retorno a si mesmo (Enciclopédia, II, § 336A). Mas com maior frequencia é o todo que a tudo envolve. Totalidades são entes que pertencem "essencialmente à razão, ao pensamento do que é concreto, universal: alma, mundo, Deus (Enciclopédia I, § 30). O princípio de totalidade proibe aplicar a semelhantes entidades um par de predicados opostos, que excluiria o outro (Enciclopédia, I § 32A). Cf. M.J. Inwood: A Hegel Dictionary (Wiley Blackwell, 1992) página 309 e seguintes.
[103] Cf. Robert Derathé, nota 42 des Leçons sur la Philosophie du Droit (Paris, Vrin, 1975), p. 294.
[104]Eric Weil, no livro Hegel e o Estado, citado por Robert Derathé, op. cit. página 299.
[105] Franz Rosenzweig: Hegel e o Estado (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2008) páginas 474 e 475. Para uma exposição do poder executivo em Hegel, conferir na mesma obra as páginas 476 e seguintes.
[106] McCormick cita o artigo de Schmitt intitulado "Die andere Hegel-Linie: Hans Freyer zum 70. Geburtstag" in Christ und Welt 30 (25 de julho, 1957). Cf. Carl Schmitt´s Critique of Liberalism, against politics as technology (Cambridge, University Press, 1997), página 37, nota 19.
[107] Mcormick, página 47.
[108] O texto de Fraenkel tem como título The Dual State: a contribution to the theory of dictatorship (New York, Octagon Books, 1969). A primeira edição é de 1941. McCormick, página 247.