quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Quarta-feira, 12 de Outubro de 2011

ÉTICA DO TRABALHO E DA JUSTIÇA

É arriscado, nos tempos que correm, atrever-se a evocar a Grécia como um paradigma positivo. Dobrado ao peso de uma situação económica incomportável, o orgulhoso povo grego parece soçobrar, nas margens resvaladiças do abismo da desgraça, perante o olhar distante de uma Europa acoitada ainda nas calhas estreitas de um comodismo suicida.

Se há coisa que ninguém deseja – e os portugueses habituaram-se a ouvir esse comentário redobradas vezes ao dia – é ser comparado à Grécia.

Triste ironia esta, a de um tempo vergado à omnipotência de uma especulação globalizada e sem rosto, que nos leva a negar as evidências da própria história. A mesma Grécia que representa o primeiro e brilhante fulgor da cultura ocidental é hoje repetidamente acossada para o posto envergonhado de bode expiatório da falência da ideia de Europa.

E no entanto, há quase três milénios que a Hélade vem alimentando o caudal vagaroso do desenvolvimento civilizacional, depois que Homero (mantenhamos o nome transmitido pela tradição) compôs esses dois primeiros monumentos literários - a Ilíada e a Odisseia -, que, tal como representam um espelho interactivo das contradições motivadas pela guerra, expõem igualmente uma galeria de heróis dedicados a grandes causas e ilustram as marcas do engenho que produz conhecimento e progresso, mesmo sendo inseparável de momentos de privação e sacrifício.

Falar da Grécia implica sempre, de uma forma ou de outra, falar de Homero, mas a nossa atenção iria centrar-se agora num outro autor, menos conhecido, embora deva situar-se também no séc. VIII a.C., ainda que anunciando já uma nova mentalidade, marcada pela crescente afirmação do indivíduo.

Trata-se de Hesíodo, pastor e poeta, de cuja produção nos chegaram duas obras maiores: a Teogonia e os Trabalhos e Dias. A primeira constitui uma das fontes mais importantes para o conhecimento das famílias divinas e do mito – essa metáfora eternamente plástica e expansível, que nos permite aprofundar a leitura do mundo e do lugar que a humanidade nele ocupa; a segunda, embora menos preparada, numa abordagem mais superficial, para servir as exigências da imaginação criativa, mostra ainda assim os primeiros indícios da afirmação progressiva da lei na vida em comunidade.

E é particularmente significativo que o faça através do elogio de dois princípios essenciais: o trabalho e a justiça. O trabalho é visto como um bem em si mesmo, que dignifica a humanidade e lhe acrescenta valor, e não como um simples instrumento necessário para afastar a rude pobreza. A justiça, por seu lado, é apresentada como uma dádiva do próprio Zeus, o chefe supremo dos Olímpicos, e como o maior dos bens: é ela que distingue os homens dos animais e impede que aqueles se vejam simplesmente como presas e predadores uns dos outros.

Neste nosso tempo, marcado por índices crescentes de desemprego, pelo desaparecimento de critérios de estabilidade profissional que julgávamos inatacáveis, pela dificuldade em inserir, ao fim de muitos anos de estudo, os jovens licenciados numa actividade que esteja ao nível do investimento feito, afiguram-se miragens cada vez mais distantes o princípio da justiça directamente retributiva e o direito ao trabalho. E o Estado, baluarte último da protecção social, parece não ter outra saída que não seja recuar em toda a linha de actuação.

Num cenário assim marcado pelo pessimismo, pode o passado servir de alento e inspiração? Hesíodo diz-nos claramente que sim, pois na mesma altura em que os males se espalharam pelo mundo, também se desvelou, para a humanidade, a consciência da sua capacidade para inovar. E se o Estado demora a encontrar uma saída global para a crise, cabe ao indivíduo encontrar, em cada dia, as próprias soluções e transformá-las em motor de progresso colectivo. Este impulso criador está identificado e aparece incessantemente referido por políticos e economistas pelo nome de empreendedorismo. Hesíodo e os Gregos davam-lhe um nome menos pomposo: elpis. Simplesmente ‘esperança’.


Delfim F. Leão