Independência do pensamento: prerrogativa máxima da filosofia
Estar livre de demandas pontuais é um dos aspectos que confere grandeza a essa área do conhecimento, destaca Oswaldo Giacóia. No século XXI a filosofia se desdobra em duas linhas gerais: na analítica da verdade e na ontologia política do presente
Por: Márcia Junges
Independência do pensamento. Isso sempre foi a diretriz máxima da filosofia. Por essa razão, assinala Oswaldo Giacóia, instrumentalizar tal área do conhecimento se constitui numa “perspectiva de infortúnio”. Recordando Adorno, diz que “a filosofia não serve a nada”, pois não se coloca como instrumento de outrem ou de demandas pontuais. E é exatamente na preservação dessa independência que reside sua grandeza. Atualmente o pensamento filosófico depara-se com a “tarefa indeclinável de retomar e reelaborar a questão do universal. Questões como as de fundamentação, de objetividade do conhecimento, de legitimidade, eficácia e vigência dependem da possibilidade de reconhecimento de referências – inclusive axiológicas – com pretensões de alcance universal”. As afirmações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Giacóia é também mestre e doutor em Filosofia por esta instituição. É pós-doutor pela Universidade Livre de Berlim, Universidade de Viena e Universidade de Lecce, Itália, e livre docente pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde leciona no Departamento de Filosofia. Especialista em Nietzsche, sobretudo em seu pensamento político, publicou, entre outros: Nietzsche – para a Genealogia da Moral (São Paulo: Editora Scipione, 2001), Nietzsche como psicólogo (2ª ed. São Leopoldo: Unisinos, 2004), Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade (Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2005) e Nietzsche & para Além do Bem e Mal (2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Edgar Morin compreende o ser humano como sapiens e demens, concomitantemente. Essa compreensão aponta também para um novo tipo de filosofia, não apenas aquele marcado pelo exercício da razão?
Oswaldo Giacóia – Certamente, essa diretriz aponta para uma antropologia com horizontes teóricos mais amplos do que a que se inspira diretamente nos textos seminais do final do século XVII e do século XVIII. No entanto, a filosofia nasce e permanece marcada pelo exercício da razão. Atualmente tudo se passa, creio eu, em termos de uma concepção de racionalidade que inclui também tanto o desenvolvimento das ciências e das artes como as contribuições advindas da própria autocrítica da razão.
IHU On-Line – O que essa mudança de rumos atesta sobre o filosofar na pós-modernidade?
Oswaldo Giacóia – O próprio termo pós-modernidade não deixa de ser problemático; sua utilização como noção ou conceito histórico-filosófico está longe de ser pacífica. Penso que o pensamento filosófico contemporâneo enfrenta a tarefa indeclinável de retomar e reelaborar a questão do universal. Questões como as de fundamentação, de objetividade do conhecimento, de legitimidade, eficácia e vigência dependem da possibilidade de reconhecimento de referências – inclusive axiológicas – com pretensões de alcance universal. A questão das relações entre o universal e sua historicidade permanece um desafio para o pensamento filosófico mesmo “pós-moderno”.
IHU On-Line – Como percebe o diálogo da filosofia com outros saberes, no exercício da transdisciplinaridade? Esse diálogo tem sido mais frequente? Em que aspectos esse debate entre saberes faz “avançar” o conhecimento?
Oswaldo Giacóia – Tendo em vista o próprio desenvolvimento das ciências e das tecnologias no mundo contemporâneo, bem como a extensão e profundidade de suas consequências e impactos, no campo da filosofia teórica, mas também da ética e da política, seria muito estranho que a transdisciplinaridade não avançasse de modo considerável. Essa mesma conjuntura produz seus desdobramentos no campo das artes, e isso não pode deixar de repercutir como estética filosófica.
IHU On-Line – Cada filosofia é filha de seu tempo. Em linhas gerais, como pode ser caracterizada a filosofia no século XXI?
Oswaldo Giacóia – Para retomar uma expressão cunhada com rara felicidade ainda no século passado por Michel Foucault, diria que a filosofia no século XXI desdobra-se, em suas linhas gerais, na vertente de uma analítica da verdade e de uma ontologia política do presente.
IHU On-Line – Que autores considera fundamentais dentro da tradição filosófica e cujo legado prossegue expressivo na sociedade pós-moderna?
Oswaldo Giacóia – A seleção de autores fundamentais no interior da tradição parece-me sempre problemática, porque tudo depende do ângulo de avaliação. Penso que a filosofia presente vivifica-se em referência essencial ao conjunto de sua própria tradição. A reflexão sobre problemas, dilemas, impasses e desafios que são nossos hoje é sempre fecundada pelo diálogo com os pensadores cujo legado nos foi traditado pela história da filosofia. Nessse sentido, as filosofias de Platão e Aristóteles oferecem uma interlocução tão relevante como as de Heidegger ou Wittgenstein, por exemplo.
IHU On-Line – A filosofia tem que necessariamente propor respostas, ou fazer perguntas e instigar a reflexão continua sendo seu grande papel?
Oswaldo Giacóia – O papel da filosofia esteve sempre comprometido com a independência do pensamento. Por isso acredito que a instrumentalização da filosofia é uma perspectiva de infortúnio. Adorno afirmou certa vez que “a filosofia não serve a nada”; no sentido de colocar-se utilitariamente como instrumento a serviço de alguma demanda ou tarefa especializada – para isso a filosofia não se presta, não serve para nada. Nisso mesmo, porém, consiste sua grandeza, ou seja, na preservação da independência do impulso crítico e emancipatório do pensamento.
IHU On-Line – Como podemos compreender e atualizar o conceito de filósofos legisladores, a que Nietzsche se refere?
Oswaldo Giacóia – O conceito de filósofos governantes e legisladores não foi criado por Nietzsche; ele foi apropriado e transfigurado no interior de seu programa crítico da metafísica ocidental. A noção nietzscheana de filósofo legislador é problemática, e para sua compreensão exige uma interpretação adequada do conceito de “grande política”. O problema da política, por sua vez, constitui um dos aspectos mais controversos da filosofia de Nietzsche.
IHU On-Line – A partir do surgimento da “ágora virtual”, a internet, estaria em xeque a “era dos grandes sábios”? Por quê?
Oswaldo Giacóia – Ágora virtual e internet são parte do problema genuinamente filosófico que diz respeito à necessidade de reflexão sobre a essência da técnica moderna. Somente uma reflexão dessa natureza, com a densidade e a profundidade que a problematização filosófica exige, pode enfrentar essa tarefa do modo como ela merece ser levada em conta, na medida em que implica a questão do futuro da vida humana sobre a Terra. Não se trata de demonizar a priori a tecnologia, de vincular o fim da era dos grandes sábios aos progressos dos recursos tecnológicos. Mas não se pode também permanecer no nível da fascinação que oblitera e ofusca a potência do pensamento.
IHU On-Line – Como o PPG em Filosofia da Unisinos se situa dentro do contexto nacional filosófico? Qual é a sua percepção sobre essa década de vida que está completando?
Oswaldo Giacóia – Tenho a impressão que o PPG em Filosofia da Unisinos, desde sua criação, inseriu-se no contexto filosófico nacional com uma proposta de seriedade inequívoca, que valoriza sobremaneira o compromisso com a excelência acadêmica de seu trabalho nos segmentos do ensino, da pesquisa, da extensão e da orientação, destacando-se também pelo empenho na promoção dos valores éticos que provêm as bases de sustentação e as diretrizes de sentido de nossa cultura. A percepção que tenho a respeito dessa década que ora se cumpre é de realização e avanço permanentes no sentido desse compromisso.
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* Sobre técnica e humanismo. Edição nº 20, Cadernos IHU Ideias, de 21-07-2004, disponível em http://migre.me/65uYP
* Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência. Edição nº 330, Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, disponível em http://bit.ly/a20L4m
* Superar a condição humana, uma fantasia antiga. Edição nº 344, Revista IHU On-Line, de 21-09-2010, disponível em http://migre.me/62jRT
* Perfil. Edição nº 345, Revista IHU On-Line, de 27-09-2010, disponível em http://migre.me/62jTC