segunda-feira, 14 de novembro de 2011

UERJ, um mini curso de filosofia, a partir de um texto meu e de outro, do prof. Guinsburg.

Laboratório de Licenciatura e Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia

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(2010) A crítica filosófica de O Sobrinho de Rameau, de D. Diderot
Escrito por Suellen da Rocha Gomes

ROTEIRO DE MINI-CURSO


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Objetivo: Explorar a crítica filosófica das “profundezas” feitas por Jean-François Rameau, personagem de O Sobrinho de Rameau, no diálogo com Denis Diderot, o filósofo.


Justificativa: A obra de Diderot utilizada neste curso insere-se no movimento do iluminismo francês do século XVIII e apresenta, num diálogo mordaz, críticas à tradição filosófica de elevação da racionalidade. Utilizando dois personagens emblemáticos para a exposição, Diderot


Proposta do curso: O curso divide-se em três grandes pontos de abrangência que visam propor: (i) a discussão do uso da obra literária, principalmente o diálogo, como recurso filosófico à tradição da exposição sistemática; (ii) a análise dos personagens-arquétipos que contribuem para o contexto de crítica, representando a defesa da tradição filosófica por Diderot e a radicalidade do relativismo por Rameau; e (iii) a “inversão geral da ordem” proposta na inversão dos mundos numa passagem de forte teor filosófico de O Sobrinho..., com o levante da crítica à meta-física.


Referências Bibliográficas

DIDEROT, Denis. O sobrinho de Rameau. In DIDEROT, Denis. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.


GUINSBURG, Jacó. Denis Diderot. São Paulo: Revista USP. Dezembro / Janeiro / Fevereiro: 1990.


ROMANO, Roberto. Diderot, Penélope da Revolução. São Paulo: Revista USP. Março / Abril / Maio: 1989.




MINI-CURSO

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A CRÍTICA FILOSÓFICA DE O SOBRINHO DE RAMEAU,

DE D. DIDEROT



OBRA LITERÁRIA, RECURSO FILOSÓFICO


A pena espirituosa e a mente instigante do escritor alinham as idéias (ou para nossa sorte as desalinham?) nos textos que saltam das páginas e alcançam os leitores. A escrita literária detém o prazer de uma leitura considerada mais leve, descontraída, esvoaçante e nem por isto despretensiosa. O texto poético-narrativo minimiza a fixidez do texto puramente descritivo e proporciona a fluidez para as problematizações e discussões.

Mas não se trata de separar uma escrita que seja estritamente literária de outra cuja função seja a filosófica, ou mesmo da distinção do objetivo do leitor, ora detendo-se em leituras literárias, ora enfatizando a leitura filosófica. A composição de uma obra que atraia para o prazer indiscutível do movimento literário e a sagacidade da discussão filosófica.

A obra literária torna-se então uma ferramenta, um recurso, para a libertação textual das dominações fechadas e encolerizantes, cultuadas pela tradição. As metáforas, ironias, hipérboles, metonímias, passam a servir à expressão filosófica sempre tão analítica, normativa e descritivo-demonstrativa, mesmo que o gênero seja objeto de desconfiança de sua perspicácia intelectual ou filosófica. Quão pretensiosos são filósofos!

Roberto Romano compreende que através do texto literário e “contra a imposição violenta do Tratado, Diderot opera uma revolução na forma expositiva da filosofia”.¹ Ora, o editor da Enciclopédia que tornou-se conhecido por tamanho intento, envolvido numa empresa de longos anos de trabalho, denota com sua obra literária (exemplos como Diálogo entre D’Alembert e Diderot, Suplemento à viagem de Bougainville, Diá-

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1 Roberto Romano em seu artigo Diderot, Penélope da Revolução, acrescenta que esta revolução operada por Diderot ataca os significantes da história da filosofia para justamente dissolver os significados.


logo de um filósofo e outros) o combustível para a detonação de novas abordagens da filosofia, revivendo de forma majestosa a proposta do diálogo, presente na áurea história da filosofia grega com Sócrates e Platão. Ainda no caminho do pensamento de Romano, a sátira diderotiana pode ser considerada como herdeira do diálogo socrático que discute dialeticamente, ao contrário do diálogo platônico, uma espécie de afirmação “monológica” das verdades pré-estabelecidas e propensas à inauguração do “diálogo magistral”.

O diferencial do texto poético (seja em forma de diálogo, ou romance...) é justamente a possibilidade de análises proporcionadas através da obra, garantia de inúmeras conexões arrojadas e contextualizadas. No entanto a fixidez do texto tradicional e expositivo garante ao leitor a comparação e hierarquização tão nobres a dita verdadeira compreensão do texto filosófico. Talvez “estúpido” fosse a melhor ponderação para tal pensamento.

Numa citação de Albin Michel, Romano faz uma colocação bastante pertinente sobre tal posição “engessada” arremetendo a característica de dado leitor:


O sistemático, como Aristóteles, “é pensador sem sonho (oposto a Platão), ele exibe desprezo pelo mito, e quando os poetas não lhe servem, não os aprecia. Ainda hoje encontramos gente que só consegue aproximar-se de um assunto, aplicando-lhe compartimentos [...] e imagina que nas gavetas e caixas de Aristóteles, as coisas apresentam-se com maior clareza, quando, na realidade, elas estão ali, perfeitamente mortas”. (ROMANO, R. Diderot, Penélope da Revolução. São Paulo: Revista USP, 1989)


Essa apresentação sistemática da filosofia torna os conceitos estáticos, na medida em que são definidos, julgados, comparados, e substituídos. A exposição sistemática serve quase a um procedimento didático elaborado pelo autor, no seu grau máximo de estudo e pesquisa, que habilita a pretensa verdade da escrita acadêmica. Verdade tão singela e tão exposta a refutação e sobreposição.

A obra O Sobrinho de Rameau, de Denis Diderot fornece-nos a expressão escrita da leveza artística (literária) e a problematização filosófica. Dosador (no sentido da condução dos argumentos sem extremismo), Diderot lança os artifícios fugidos do diálogo para prender o leitor.

Sua astúcia no confronto com grandes intelectuais (verdadeiros maciços de sistemas na história da filosofia) e exposição radical de seus pensamentos torna-o mal-quisto na comunidade francesa do século XVIII, mas não menos digno de figurar ao lado de outros iluministas para os acontecimentos da Revolução Francesa.²

Romano nos salienta a espécie de aproximação do leitor da escrita diderotiana com a própria filosofia quando compreende que o autor oferece uma reapresentação desta. Quiçá uma ressignificação! Interessante como a própria leitura filosófica do texto literário pode provocar-nos a afetação de nossas paixões. Talvez seja essa aproximação que beneficie o ressurgir das abordagens filosóficas, um tanto sobrepostas pelas expressões de retórica na própria escrita. Vejamos a citação de Romano sobre a função da escrita diderotiana:


Ele [Diderot] apanha os leitores que passam ao largo da complexidade existente na pele, na superfície. Acostumados por Rousseau, e por seus êmulos românticos, ao charlatanismo das “profundezas”, os hermeneutas desse tipo imaginam que um texto é só... um texto, ignorando nele o resultado magnífico de todo o processo vital e intelectivo. (ROMANO, R. Diderot, Penélope da Revolução)


Vis leitores de Diderot, como estão enganados que um texto seja simplesmente mais um texto!





O DIÁLOGO DIDEROTIANO


O texto O Sobrinho de Rameau apresenta-se como um diálogo entre dois personagens-chave para a discussão da problemática dada aos iluministas nos séculos XVII e XVIII.

Este diálogo denota o confronto fictício entre Denis Diderot (o filósofo) e Jean-François Rameau (personagem real, mas pelo que estudiosos relatam de maior distinção do que a retrato feito por Diderot) num encontro casual. Repleto de descrições pormenorizadas dos personagens e suas reações, o diálogo estende-se em geral sobre arte apresentando também explanações sobre educação moral, mas alcança altos pontos de discussão sobre teoria do conhecimento, que caberá nossa atenção neste trabalho.

Os personagens encarnam arquétipos de discussão, ou seja, são alegorias utilizadas por Diderot para o singelo embate de forças emergentes no iluminismo francês e tão caras à história da filosofia: a crise do racionalismo no levante filosófico dos sécu -

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2 Como afirma Jacó Guinsburg em seu artigo Denis Diderot, na Revista USP, de 1990.

los XVII e XVIII (e talvez tardia?) da força do empirismo.

Assim, Eu e Ele, filósofo e boêmio, Diderot e Rameau, constituem representações metafórico-literárias da discussão filosófica e


O “eu” filosofante se dissolve nos pensamentos do sobrinho de Rameau, resolve a questão apresentada por “ele”, na forma aparente das respostas fixas. Mas estas apenas dinamizam a violência da dissolução de ambos, “filósofo” e “vagabundo”, na linguagem. (ROMANO, R. Diderot, Penélope da Revolução)


Vejamos de forma mais fundamentada as posições representadas pelos personagens.




À defesa dos filósofos


O personagem Eu (Diderot) de O Sobrinho de Rameau, é apresentado inicialmente no diálogo, de forma superficial, mas já contendo o cerne de sua postura em passagens que denotam o isolamento do tradicionalismo filosófico, pois “sempre solitário” entretém-se consigo mesmo divagando sobre política, amor, gosto ou filosofia, ao passo que “olhando muito, falando pouco, ouvindo o menos possível” configura-se numa espécie de esfera que abrange o conhecimento.

Narrador e interlocutor, Eu está constantemente discordando das explanações ávidas de Ele (Rameau), mas rotula debochadamente seu companheiro de diálogo. É um misto de superioridade e austeridade, põe-se altivo e reflexivo sobre o devaneio filosófico e retrata durante a obra suas reações repugnantes alternadas às destemperanças e incongruências observadas no seu interlocutor.

Sua postura no diálogo cunha a defesa da tradição filosófica, da racionalidade, dos costumes morais, da pretensão de verdade. Defende, acima de tudo, a concepção filosófica de intelectualidade pautava na razão, pois é um “homem direito” e crê que “a mentira pode servir um momento, mas a longo prazo é necessariamente nociva, e que, ao contrário, a verdade serve necessariamente a longo prazo, embora possa ocorrer que prejudique no momento” e venera o homem a empenhar-se na grande verdade.

Reflete, pondera, pensa novamente, não obstante altera a voz e as próprias emoções com todas as “extravagâncias” ditas e feitas por Ele: “Ó louco, arquilouco! Como é possível que em tua cabeça idéias tão corretas se misturem com tanta extravagância?” remete gritando a Rameau, que avalia a serenidade de seu oponente e ainda mais debochado não apresenta qualquer resposta palpável à pergunta, pois nem mesmo desconfia das “certezas” para tal fato.

Interessante é notar a perturbação que o confronto com Ele provoca em Eu, de modo que durante o diálogo diferentes passagens aludem ao aborrecimento por tamanha petulância. No entanto, ao mesmo tempo, um misto de irritante conquista o acomete. Vejamos tal expressão na passagem:


Eu o escutava (...) a alma agitada entre dois movimentos opostos, eu não sabia se me abandonava ao desejo de rir ou ao transporte da indignação. (...) Sentia-me confundido com tanta sagacidade e baixeza, com idéias tão corretas e alternativamente falsas, uma perversidade tão geral dos sentimentos, uma torpeza tão completa e uma franqueza tão incomum. (DIDEROT, D. O Sobrinho de Rameau. Pág. 49)


Diderot dialoga encarnando os intelectuais da cena dominante na França sem caracterizá-los explicitamente, mas implicitamente representa-os nas tentativas de dominação, contradição e inferiorização do pensamento de Rameau e por repetidas vezes é tentado a concordar com Rameau, mas procura recuperar a tempo todo o seu saber e desviar o foco do assunto em questão (principalmente nas passagens finais do diálogo).

Romano salienta em seu artigo a incansável luta entre o filósofo e Rameau sobre a distinção de atributos morais (a exaltação da organizada vida sócia!), mas suas tentativas são em vão, pois o autor nos adverte que:


O filósofo “bom” e simples do Neveu, que deseja “moralizar” o social perverso, dele extraindo a violência, a dominação astuciosa de uns indivíduos pelos outros, fica aquém deste mundo. Sua crítica não o atinge. (ROMANO, R. Diderot, Penélope da Revolução)


Eu pouco expõe suas explanações, mas detém as prerrogativas do conhecimento, enquanto que desafiando seu interlocutor frustra-se com o levante de possibilidades apresentadas. É mesmo que Ele não apresenta sempre todas as possibilidades, porém é acima de tudo fluente no jogo dialético, possuidor de uma espécie de magnetismo:


Eu – [pensamento] Apossa-se de nossas almas, deixando-as suspensas na situação mais estranha que já vivi... Admiro-o? Sim, eu o admiro! Eu cheio de piedade? Sim, estou cheio de piedade. E, no entanto, um certo ridículo mescla-se nesses sentimentos misturando-os. (O Sobrinho..., página 72)


A suspensão da alma é provocada por esse magnetismo exercido pelo sobrinho (sua persuasão aumenta no confronto) e quase decreta a queda da racionalidade.



Radicalidade: pela falência da razão


Jean-François Rameau é a personificação do boêmio estereotipado com acréscimo de vários outros adjetivos (pejorativos?) aplicados por Diderot em um “misto de altivez e baixeza, bom senso e desatino”. Altivez por ser “dotado de uma forte compleição, de um singular calor de imaginação e de um vigor pulmonar incomum”; baixeza por sua obscenidade, petulância e estupidez; bom senso provavelmente proporcionado pela sagacidade; e desatino devido, entre outros fatos, às noções de honestidade e desonestidade estarem “estranhamente embaralhadas em sua cabeça, pois mostra sem ostentação as boas qualidades que a natureza lhe deu, e as más, sem pudor”. Por certo declara-se que Diderot faz ressalvas a Rameau, pois “se um dia o encontrardes, que sua originalidade não vos detenha: taparei os ouvidos com vossos dedos, ou fugireis”.

Certamente Rameau é original. Fora dos padrões morais, perturbador, desordenador, gozador. A extravagância e a provável destemperança o tornam digno de nota: sua representação instigante no diálogo é magnífica e espantosa.

Contrário às instituições, gozador das leis, irônico dos costumes, etc., a prática social de Rameau vincula-se a seu bem-estar (primazia individual!) e não à obediência das regras da sociedade (um conjunto de preceitos ou valores, mandamentos de instituições estatais ou religiosas, etc.). Na verdade, em uma passagem (à página 53), fica bastante clara a reflexão de Rameau (Ele) sobre os princípios morais que “todos têm na boca e que ninguém pratica” e amplia que “quanto mais antiga a instituição de uma coisa, mas idiotismos terá”. Essa desagregação dos ditames morais e sua reafirmação são atacadas até o fim do diálogo, quando Ele já utiliza períodos para expressar claramente sua posição: “não há princípio moral em um inconveniente”.

Rameau representa uma espécie de ampla liberdade moral (consistiria num discurso totalmente amoral?), quando não pauta-se nas idiossincrasias criadas pela estagnação moral. Por este motivo é tão caracterizado pelo filósofo como obsceno, petulante, insensato, extravagante entre outras rotulações, justamente porque sua ação moral não prevê um estatuto de conveniências para a vida prática. Ao contrário, Rameau é impulsivo e indeterminado na medida em que se entrega ao jogo das dialéticas cotidianas.

A própria posição de Rameau nas discussões denota sua desconfiança com a instituição e afirmação da verdade. Observemos que no trecho a seguir a questão ganha dupla face quando explora tanto uma espécie de origem para a verdade, quanto uma aproximação a Sócrates para comentar o saber, o aprender e a verdade.


Eu - Ó louco, Arquíloco! (gritei) Como é possível que em tua cabeça idéias tão corretas se misturem com tanta extravagância?

Ele - Diabo, quem sabe?É o caso que as lança e elas ficam. Há nelas tanto, que quando não se sabe tudo, não se sabe bem. Ignora-se para onde uma coisa vai, de onde outra vem, onde esta ou aquela devem ser colocadas, qual deve passar primeiro, onde estará melhor a segunda. Ensina-se bem sem método? E o método, de onde nasce? (...) As razões dos fenômenos? Na verdade, seria preferível ignorar do que saber tão pouco e tão mal. Era justamente como me encontrava ao fazer-me professor de acompanhamento e de composição. Com que sonhais?

Eu – Sonho que tudo o que acabais de dizer é mais especioso do que sólido. Deixemos isso. Ensinastes, dizeis, o acompanhamento e a composição?

Ele – Sim.

Eu – E não sabíeis absolutamente nada?

Ele – Palavra de honra que não. E é por isso que havia piores do que eu: os que acreditavam saber alguma coisa (...) (O Sobrinho..., página 52)

Neste trecho podemos observar indícios claros de uma postura cética em Rameau quando se pronuncia que “ignora-se para onde uma coisa vai [conseqüência?], de onde outra vem [causa?] (...)” ou ainda melhor ao afirmar que “na verdade seria preferível ignorar do que saber tão pouco e tão mal”. A desconfiança cética toma-se na esfera do conhecimento.



A INVERSÃO GERAL DA ORDEM


O rompimento com a “meta-física” do referido texto diderotiano desestabiliza as dicotomias freqüentes do discurso filosófico: Rameau deixa “aos palermas a viagem pelo nevoeiro” afinal ele é “terra-a-terra”. O devaneio “meta-físico” é atacado ferozmente e a natureza também é presa pela desconfiança.

A natureza comete “lapsos estranhos” (mais indícios de desconfiança, descrença, suspensão) e o mundo social também é criticado. Rameau não se intromete, mas reflete que há “homens que regurgitam tudo, enquanto outros, dotados de um estômago tão inoportuno quanto o deles, não têm o que pôr entre os dentes”. Crítica social? Incômodo político? Melhor... reflexo da disposição viva para análise da “terra”.

As divisões desestruturadas pelas incansáveis contestações de Rameau tendem a descontrolar o esforço sistemático de confiança na razão do personagem Diderot: a transformação realizada por Diderot do discurso teórico em metáforas literárias em O Sobrinho de Rameau discute nesta forma alegórica a discussão premente da inconsistência (inconfiabilidade) nos pressupostos finalistas da racionalidade. Romano salienta que “ser e nulidade dissolvem-se no dever-ser, no devir” e esta afirmação corrobora a passagem de contestação de Rameau:

Ele – Mas se a natureza é tão poderosa quanto sábia, por que não os fez tão bons quanto grandes?

Eu – Mas não vedes que com tal raciocínio inverteis a ordem geral, e que, se neste mundo tudo fosse excelente, nada seria excelente?

Ele – Tendes razão. O ponto importante é que vós e eu sejamos, e que sejamos vós e eu. Que tudo o mais se arranje como puder. A melhor ordem das coisas, em minha opinião, é aquela onde eu deveria estar, e dane-se o mais perfeito dos mundos, se eu não estiver nele. Prefiro ser, e mesmo ser um argumentador impertinente, do que não ser. (O Sobrinho..., página 45)


No trecho a desconfiança na natureza provoca a “inversão da ordem geral” e garante o ponto principal da inversão diderotiana. Romano comenta que “o mundo onde eu deveria estar é a “melhor” ordem, ou seja, “vous” e “moi” estão ao mesmo tempo em permanente equivalência” garantindo que não se tenha a estipulação exterior de uma verdade.

A alteração dos predominantes – propõe o texto – gera o desconforto, a desestabilidade do embasamento teórico na Razão. O contrário da Razão do personagem de Diderot figura-se na loucura de Rameau: a Não-Razão. Esta loucura, tão infame e tão presente, é justamente o “melhor papel”. Da Razão, o que poderia se poderia esperar?: “Parece que aí dentro há alguma coisa [os punhos quase quebrando a testa], mas, por mais que esmurre e sacuda, não sai nada!”, diz Rameau desolado. Mas sua convicção é mais viva: “(...) a coisa muda de figura quando se trata de sentir, de elevar-se, pensar e pintar com cores fortes (...)”, é a posição empirista que reclama notoriedade.

Deste modo, a inversão dos valores (inversão dos mundos) e a crítica ao racionalismo se entrelaçam e como coloca:


Ele – (...) num assunto tão controvertido como o dos costumes, nada há que seja absoluta, essencial e geralmente verdadeiro ou falso, mas que se deve ser aquilo que o interesse deseja que sejamos: bom ou mau, sábio ou louco, decente ou ridículo, honesto ou vicioso. Se, por acaso, a virtude tivesse conduzido à fortuna, eu teria sido virtuoso ou simulado a virtude como um outro qualquer. Quiseram-me ridículo, assim me fiz. Quanto aos vícios, a despesa ficou por conta da natureza. Quando digo vicioso, digo-o apenas para falar vossa língua, pois, se viéssemos a nos explicar, poderia ocorrer que chamásseis de vício o que chamo de virtude, e virtude o que chamo de vício. (O Sobrinho..., página 63-4)

Assim, Rameau subverte posições e dançante, ri da Razão amofinada nos pressupostos teóricos e suposições gigantes de intelectualidade. Sua filosofia não é romanesca, de alma singular, é simplesmente a sabedoria de Salomão: “beber bons vinhos, saborear petiscos delicados, rolar sobre belas mulheres, repousar em camas macias”.

E ri na face da pretensa verdade, afinal nada mais útil que a mentira. E ri, pois “ri melhor quem ri por último”, dança porque ignora o abismo das profundezas e descrê numa verdade impossível.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



DIDEROT, Denis. O sobrinho de Rameau. In DIDEROT, Denis. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.


GUINSBURG, Jacó. Denis Diderot. São Paulo: Revista USP. Dezembro / Janeiro / Fevereiro: 1990.


ROMANO, Roberto. Diderot, Penélope da Revolução. São Paulo: Revista USP. Março / Abril / Maio: 1989.