Quarta-feira, 30 de Novembro de 2011
Os cavalos também se abatem
Parece-me que entendi melhor quando a barbárie se instala numa sociedade. Não, não é quando ela se manifesta: é quando não é estranhada, quando se torna normal, quando ninguém a impede de alastrar, quando se olha para ela e se percebe que será em vão denunciá-la e que é uma ilusão combatê-la.
Não é preciso esforçarmo-nos muito para encontrarmos nos últimos anos, meses fortes indícios de retorno a esse estado primitivo da civilização. Se alguns são evidentes, outros passam despercebidos, arrancam-nos, até, um sorriso.
Um destes indícios são certos programas de televisão onde se manipulam, se expõem até ao tutano certas pessoas, como se fossem coisas, ou menos de que isso. Outras pessoas (muitas, a avaliar pelo horário de transmissão) assistem, envolvem-se, decidem...
Passei por um desses programas tipo big-brother e vi (não sei se verdade se encenação) um rapaz e uma rapariga envolvidos sexualmente. Estranhamente, (já) não estranhei; o que (ainda) estranhei foi o que se passou a seguir. E o que se passou a seguir foi esse momento, guardado em vídeo para a eternidade, ser mostrado, em estúdio, à rapariga e, como se adivinha, dissecado, comentado ao pormenor. De seguida, calhou a vez à mãe da rapariga. Próximo, bem próximo delas, outras pessoas apreciavam, riam, batiam palmas. Ouvi ainda dizer que a rapariga tinha estudos superiores, em direito, queria ser ou já era advogada.
Não pude deixar de me lembrar do filme Os cavalos também se abatem, de Sydney Pollack, baseado no romance They shoot horses, don't they?, da autoria de Horace MacCoy. Nesse filme de 1969, conta-se como na América, nos anos trinta, em plena grande depressão, os concursos de dança, tornados manipulação pura, atraíam. Percebi, ao ver o sofrimento extremo de Jane Fonda (é o sofrimento dela que tenho mais presente), que, com grande facilidade, pessoas podem transformar outras pessoas em não-pessoas. Estávamos nos finais dos anos setenta e eu pensei que aquela barbárie que o filme mostrava, com uma ligação à realidade, era distante de mais para se passar entre nós. Não era, afinal.