quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Com o andar das coisas, as duas aulas, republicadas abaixo e proferidas por mim na Pós Graduação da Unicamp, serão muito úteis nos próximos tempos, conturbados, do Brasil.

 

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SOBRE A DITADURA, CURSO DE 2008

domingo, 17 de agosto de 2008
Curso do segundo semestre de 2008 na Graduação de Filosofia, Departamento de Filosofia, IFCH. Unicamp
Prof. Roberto Romano
Nota aos alunos: como dito em aula, os textos abaixo são “manuscritos”e não têm o estatuto de acabamento necessário à citação e publicação. Trata-se de um “aide mémoire”das aulas. A eles também faltam os comentários que o professor adianta em classe e determinações da ordem estilística.Como, ademais, o docente é pouco iluminado em termos de digitação eletrônica, ele não possui saberes para levar ao texto do Blog certos elementos relevantes, como por exemplo, os cuidados com a forma final. Enfim, que os apontamentos ajudem um pouco os estudantes na tarefa de estudar o tema da ditadura de um modo mais próximo da essência daquele fato jurídico político.
A ditadura, Primeira Parte
Prolegomena
A ditadura é invenção romana, como também o município. A palavra “município” teve duas acepções diferentes em Roma. De modo geral o vocábulo foi usado para designar uma cidade de constituição romana na Itália e nas províncias, em oposição a Roma. Mas ele também foi usado para designar um direito público, categoria especial das cidades itálicas e provinciais. Município deriva de municeps, como principium deriva de princeps. No início, municipes não eram eleitores nem elegíveis. Municipium na Lei Julia designa exclusivamente as cidades itálicas. No império, o termo é empregado para designar as cidades itálicas e as provinciais. Nos inícios do Estado romano municipium já se emprega não no sentido comum de cidade, mas para designar uma condição de direito público. Municipes são os habitantes itálicos que, sem serem romanos, têm direitos de gestão própria e são assimilados aos romanos nas munera publica, sem o direito de votar e ser votados para os cargos mais importantes de Roma. Eles teriam uma espécie de “naturalização incompleta”: serviam nas legiões romanas e não como os socii, foederati nos corpos auxiliares armados. E pagavam impostos nas mesmas condições dos romanos. Considerada a desconfiança diante dos estrangeiro, o estatuto de municipe era uma deferência romana para com os habitantes sem cidadania. Dessa condição, muitos municipes seguiam para adquirir a cidadania plena. Quanto à administração, a condição de cada municipio era regulamentada pelo Senado ou pelo povo romano, sendo que a autonomia poderia ser concedida ou retirada, conforme o jogo político e militar. Municipios leais mantiveram sua condição. Quando sem autonomia, as cidades eram privadas de assembléia popular, de senado, de magistrados, sendo administradas pelos praefecti, delegados do povo romano, ou pelo pretor. Assim, elas tinham o nome de praefecturae. Os habitantes das praefecturae não perdiam sua qualidade de cidadãos de Roma, mas a coletividade deixava de ser, administrativamente, independentes e com vida própria. Ela era sujeita ao Senado e ao povo de Roma. Em geral os poderes públicos municipais se compunham de 1) dos comícios 2) senado 3) Magistrados. À diferença das coloniae, que de fato ou por ficção derivavam da própria Roma, os municipes tinham ainda suas raizes em seu próprio passado longinqüo. Esta dimensão dupla (pertencer a Roma e pertencer a si mesmo, ao seu próprio pretérito) é única no mundo antigo. Só Roma a conheceu. Na Grécia ela foi ignorada. Roma antecipou a noção de um Estado não confundido com uma cidade, mas congregando multiplas cidades controladas pelo poder romano. A hegemonia de Roma administra um agregado de comunidades urbanas subordinadas, mas com vida própria e valores idem. Assim, existiram municipios em toda a Europa romana até a queda do Império.
Roma usava dois métodos para com as cidades italianas. O primeiro é a sua extinção pura e simples como entidades autônomas, sua anexação. O segundo era a federalização. O foedus que liga as urbes a Roma se diferencia em várias categorias. As mais favorecidas eram as cidades que eram tratadas em pé de igualdade e com Roma concluiram um foedus aequum (Nápoles, entre outras) e na Grécia Heracleia da qual Cicero menciona o foedus aequissimum, ou singulare. Aquelas coletividades guardam seus direitos, incluindo a cunhagem de moeda, as instituições, magistraturas, tribunais, etc. Quando instalados em Roma, os seus cidadãos podem pedir cidadania. Depois dessas, vem as que tiveram um foedus non aequuum. As cidades não guardam autonomia devido ao artigo da lei romana segundo o qual o povo romano conserva a majestade. (Cicero, Pro Balbo). E depois dessas, as cidades nas quais o pacto federativo era mais de clientela, protetorado, a maioria das coletividades entram nesse caso. Em todos os casos, no entanto, a federação é bastante falha, visto que se impunha a superioridade militar de Roma nos quesitos de ordem externa ou interna. (1) Essa marca do Estado romano está presente na ditadura e no império, e perdura até a queda, tanto no Ocidente quanto no Oriente.
A mesma ausência de “município”, na Grécia, ocorre para a ditadura. A palavra é ignorada em grego, salvo como tradução literal do termo romano. É preciso notar que desde a época mais recuada são bem conhecidas as formas de poder pessoal, uma das notas da ditadura. O termo “tirano”, não presente na Ilíada, enuncia um poder com as marcas de pessoalidade. “Ter muitos chefes nada vale; que um só seja o chefe, que um só seja o rei”. Como os gregos são conhecidos pelo paradoxo, na mesma Ilíada é dito que em situações críticas vale mais que sejam dois e não um só a assumir o comando. (2) Na Grécia arcaica (até o final do século VI AC) existiram chefes nomeados vitaliciamente ou por tempo limitado, tendo em vista resolver crises. Tais líderes eram chamado aisymnetas (comandantes) que dispunham de poderes excepcionais, espécies de tiranos eleitos e acusados de agir com arbítrio e injustiça. O nome de basileus era dado ao rei, o qual detinha maior ou menor força, de acordo com as cidades.
O tirano de início é um basileus, o que possui amplos poderes, mas nem por isso visto como usurpador ou bandido. A evolução deste sentido ao de péssimo governante é feita em pouco tempo. Os primeiros usos do título de tirano com conotação negativa (algo debatido até hoje, se mesmo negativa ou não) vem de Arquíloco, datado hoje como do século VII em vez do século VIII, num poema mal conservado (Fragmento 15, da edição de Lasserre-Bonnard, Ed. Les Belles Lettres). (3) Os séculos VI e VII são férteis em governos tirânicos e populares, contrários ao poder nobre. Por volta de 430, na peça Édipo Tirano, Sófocles não emprega ainda o termo no sentido totalmente pejorativo. Em Heródoto, na segunda metade do século V, temos a questão da tirania. O historiador relata um debate sobre o poder efetivado na corte persa. Com a morte de Cambyses, sete nobres discutem o regime a estabelecer. Com a vitória da monarquia, ela é entregue a Darius. Mas são discutidas a monarquia, a aristocracia e o regime popular, com seus pró e seus contra. (Heródoto, III, 80ss). () O adversário da monarquia diz que a pessoa nela investida não precisa prestar contas a ninguém e se torna próspera e orgulhosa, abusa do poder e ordena execuções sem julgamento, usa as propriedades dos governados segundo seu capricho, viola as leis e a moral. O poder absoluto leva à tirania, máxima injustiça. O regime adequado seria a democracia, na qual os integrantes política recebem tratamento isonômico. (4) Contra semelhante requisitório, o defensor do poder absoluto diz que se o titular é bom, tal governo é o mais adequado. Ele é mais eficaz porque nele o segredo de Estado tem mais garantias (o seu titular é um só). Solon recusa a tirania que lhe foi ofertada, a considera ausência da lei, injustiça. A tirania, no seu entender, é como uma praça forte que protege, mas aprisiona quem a comanda. Solon aceitou ser árbitro por tempo limitado. (5)
Em Esquilo a tirania se identifica parcialmente à barbárie dos persas vencidos em Salamina (Os Persas, 480) ou dos egipcios (As Suplicantes, 472). Prometeu encadeado é o campeão da humanidade por lutar contra Zeus, tirano que impõe sua vontade arbitrária. Em Sete contra Tebas, o rei é legítimo, mas ele, Eteócles, deseja guardar o poder por tempo maior do que o legal e não pretende ceder o comando ao seu irmão, conforme a alternância prevista em termos jurídicos. A imaginação teatral, ligada ao fato tirânico, se radicaliza com Eurípides (As Fenícias) o qual coloca na boca de Eteócles a confissão do ardor pelo poder exclusivo : “Subiria aos astros, o lugar onde eles se elevam ao céu, desceria à terra, se fosse capaz, para manter em minhas mãos o poder soberano, a maior divindade”. E adiante: “Se é preciso ser criminoso, que seja pelo poder soberano, o mais belo motivo dos crimes”. (As Fenícias, 504, 524). (6)
Se não existe ditadura na Grécia, é possível enunciar que a noção e a prática da tirania se aproxima daquele conceito. A questão do tempo de mandato, a substituição da realeza pela magistratura que não presta contas, como o rei, é imposta por um golpe de força ou astúcia, diminui a sua legitimidade. Um exemplo modelar da tirania ilegítima, desenhado por Platão na República, se tornou o grande paradigma da tirania até os nossos dias. Trata-se do anel de Giges, o pastor lídio. É bom recordar que a primeira notação sobre tirania, como foi enunciado acima, é de Arquíloco. E tal notação é referida a Gyges. “Um dia, durante violenta tempestade acompanhada de abalo sísmico o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do local onde apascentava o seu rebanho. Cheio de assombro Giges desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a fábula enumera, surgiu um cavalo de bronze, oco, perfurado com pequenas aberturas; tendo-se debruçado sobre uma, percebeu dentro um cadáver de estatura maior, parece, que a de um homem, e que trazia na mão um anel de ouro, do qual ele se apoderou (…). Ora à reunião habitual dos pastores que se realizava cada mês para informar o rei do estado de seus rebanhos, ele compareceu com o anel no dedo. Tendo tomado assento no meio dos outros, voltou por acaso o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente tornou-se invisível ) aos seus vizinhos, que começaram a falar dele como se tivesse partido. Espantado , (7) manejou de novo o anel com hesitação, voltou o engaste para fora e, assim fazendo, tornou a ficar visível. Dando-se conta do fato, repetiu a experiência para verificar se o anel possuía realmente semelhante poder, o mesmo prodígio reproduziu-se: virando o engaste para dentro, ficava invisível; para fora, visível. Desde que se certificou disso, agiu de modo a figurar entre os mensageiros que se dirigiam para junto do rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, tramou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.”. (8)
A história narrada no interior da República marca os lados da visibilidade e da invisibilidade do poder e da justiça. Na divisão dos campos opostos ocorre a maravilha, o espanto. Todos os elementos narrados pelo escritor Platão no personagem Giges, encontram-se na história dos golpes de Estado e das ditaduras, após o final da república romana e o nascimento do império. Até os nossos dias, os mais importantes pensadores políticos se aplicam a captar os sentidos da história de Giges, entre eles, o republicano Jean-Jacques Rousseau. (9) Entre a modernidade e os tempos antigos, o cristianismo apurou a noção de tirania.
As duas fontes éticas do Ocidente —judaica e grega— trazem o problema do tirano e do tiranicídio. No Antigo Testamento Moisés mata um egípcio e começa a libertação do povo hebreu. Aod aniquila o usurpador Eglon, rei de Moab, que domina os israelitas (Juízes, 3, 14-23). Joab destrói Absalão, que destrona Davi (Samuel, 2, 18, 14). Joab é morto por Salomão, em virtude do testamento de Davi (Reis, 1, 2). O tirano Joram, rei de Israel, foi morto por uma flecha de Jehu. Este último fez executar Ocosias, rei de Judá, com a rainha Jezebel, mãe de Joram (Reis, 2, 9). O Sumo Sacerdote Iaoiada ordena a morte de Atália, mãe de Ocosias (Reis, 2, 11). Judite mata Holofernes, general de Nabucodonosor, rei dos Assírios, para salvar o povo. (Judite, 12). (10)
Na experiência grega, além da história de Giges, o tirano é chamado lobo sanguinário por Platão (11) que prevê a sua morte nas mãos dos adversários. Aristóteles define o tirano como pernicioso ao coletivo. (12) Cicero discute a tirania, e afirma que o tirano gera ódio e sempre acaba morto de maneira violenta. (13) O escritor discute o peso do tiranicídio, em relação aos valores éticos : “Com frequência as circunstâncias tornam o que se costuma considerar torpe, como não torpe. Existe crime maior do que matar um homem, ou um amigo? No entanto, seria mesmo um criminoso quem matou um tirano, mesmo sendo ele amigo? Tal não é a opinião do povo romano. Entre as belas ações, ele considera aquele ato como o mais belo” (14) Pode ser encontrada em Seneca uma atitude próxima. “Se a cura (do tirano) é desesperada, com um só gesto farei um ato benemérito para todos e de restituição, para ele. Para naturezas como a sua, deixar a vida é o único remédio, a melhor escolha é ir embora, quando não é mais possível voltar a si mesmo”. (15)
O Novo Testamento, por sua vez, segue a linha do Velho, proíbe o assassinato. E São Paulo é explícito no que se refere aos governantes. “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores(ἐξουσίαις, potestatibus): porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor (φόβος) quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo também pagais tributos: porque são ministros de Deus, atendendo constantemente a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (Romanos, 13: 1-7).
O termo ἐξουσίαις, cuja tradução para o latim é potestatibus, tem o significado do sublime (Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit) o que gera medo (φόβος) pela sua própria magnitude e transcendência, que ultrapassam os limites dos homens finitos : poder, no sentido exato, só o divino (οὐ γὰρ ἔστιν ἐξουσία εἰ μὴ ὑπὸ θεοῦ; non est enim potestas nisi a Deo). Temos a reiteração da temática, já trazida no livro de Jó (16) da incomensurabilidade entre poder divino e humano, de onde nasce o símile do Leviatã. Tomás de Aquino fala, a propósito, do Leviatã como “excesso de grandeza”, o que vai além de todo poderio ou astúcia humanos. (17)
Lutero, para falar do medo trazido pela justiça divina, usa o termo Furcht (terror, pavor). A versão inglêsa do Rei Tiago traz claramente o vocábulo terror. A palavra latina é aparentemente mais branda: timor. Cicero afirma que o medo é política ruim, pois instaura a tirania. No caso de Paulo, o sublime divino é fonte do medo e as autoridades trazem o medo aos homens que optam pelo mal, nada podem contra os que agem bem.
Padres da Igreja, como Tertuliano e Lactâncio escrevem que embora o tirano seja detestável a sua punição é reservada a Deus, e apenas a Ele. O cristão deve morrer pela sua causa e não matar (Vincimus, cum occidimur, Apologeticum). Finalmente : “Orate (…) pro regibus et pro principibus et potestatibus, ut omnia tranquilla sint vobis!” (18) Mesma atitude na Cidade de Deus. Mas Agostinho introduz algumas concessões no tocante ao tiranicídio. Uma autoridade pública, face à maldade do culpado, pode matar. Não convêm aos particulares exercer tal decisão e ato. Se não é conveniente, não significa no entanto não ser possível ou justificável. Se Deus manda uma pessoa privada matar o péssimo dirigente, ela deve obedecer.
O grande nome das doutrinas eclesiásticas, quando se trata do tiranicídio, é João de Salisbury. O seu monumento sobre o problema é o Policraticus (1159). No livro 3, capítulo 15 daquele tratado, o autor se ocupa com o tirano por usurpação que tomou o poder por astúcia e violência. “Devemos viver de um modo com o amigo, de outro com o tirano. De qualquer modo, não convêm adular o amigo, mas é lícito acariciar (mulcere) (19) as orelhas do tirano. Pois é permitido lisonjear a quem é permitido matar. Não apenas é lícito matar o tirano como é eqüitativo e justo. Quem toma o gládio é digno de matar pelo gládio. Mas por ´tomar´ se entenda : quem o usurpa por sua própria temeridade ou recebe de seu senhor o poder de o utilizar. Quem recebe de Deus o poder conserva as leis, é servidor da justiça e do direito. Quem o usurpa rebaixa os direitos, submete as leis à sua vontade”. Não só o tirano usurpador pode ser morto, mas também o legítimo cujo exercício vai contra a lei e a justiça. O tirano “oprime o povo de modo violento (…) a lei é dom divino, forma de equidade e justiça, imagem da vontade divina, guardiã da salvação, fortaleza dos povos, regra das magistraturas, exclusão e termo dos vícios, pena contra a violência e toda injustiça (…) O príncipe combate pelas leis e pela liberdade do povo, o tirano acha que nada se faz se não se rejeita as leis e não se leva o povo à servidão. O principe é imagem da divindade mas o tirano figura a força contrária, a perversidade diabólica”.
No capítulo 20 do Policraticus, Salisbury narra os tiranicídios bíblicos. Integram sua lista os reis legítimos como Joram e Ocosias, bem como César e demais imperadores romanos. O governante é tirânico? Deve ser morto. Ao violar as leis divinas ele se torna culpado de lesa majestade divina. “Dos crimes de lesa majestade nenhum é mais grave do que o cometido contra o próprio corpo da justiça”. Retornamos ao início dessas considerações, com o preceito paulíneo da obediência à autoridade. A mais sublime dentre todas as autoridades é Deus. Ferir a lei de morte é tentar assassinar o divino. Não existe crime pior. (20)
Em Tomás de Aquino nota-se forte hesitação no tratamento do tiranicídio. No Segundo livro dos Comentários sobre as Sentenças de Pedro Lombardo (entre 1254 e 1256), os tiranos de usurpação podem ser mortos. O mesmo não é dito sobre os de exercício. Ninguém é obrigado a obedecê-los, e mesmo é preciso não acatar suas ordens em algumas ocasiões. Em geral, no entanto, deve-se obedecer o governante. O referido dever é “causado pela ordem de comissão, que tem uma virtude obrigatória, não apenas no plano temporal mas também no espiritual, em consciência como diz o Apóstolo (Romanos, 13), segundo o qual a comissão desce de Deus (…) logo segundo o que é de Deus, obedecer a tais prepostos é dever do cristão, mesmo que a comissão, ela mesma, não seja de Deus”.
Se o rei é um comissário divino, deve ser obedecido. (21) A idéia do comissariato será substituída na modernidade por símiles como o empregado por Blaise Pascal na Carta sobre a Condição dos Grandes. Os príncipes e dirigentes são como o náufrago que aparece nas praias de uma ilha distante. Ele se parece com o príncipe efetivo, mas não é ele. Assim, precisa agir como se fosse legítimo, mas sabe que a qualquer instante o soberano real pode surgir. (22) Segundo Aquino, o comissário pode abusar de sua missão de duas maneiras: fazer o contrário do que ela autoriza (exemplo, um pecado) ou obrigar os dirigidos à prática de algo alheio à sua comissão (exemplo, querer impostos indevidos). O governado pode obedecer, ou não. Se o tirano insiste os cristãos devem sofrer o martírio, mas nada é dito sobre matar o governante injusto.
Já no Regime dos Príncipes, escrito entre 1265 e 1266 (do qual com alguma certeza os livros primeiro e segundo são do filósofo, incluindo o capítulo quarto) a doutrina do tiranicídio é mais clara (ela é exposta no primeiro). Alí desaparece a distinção entre as tiranias (usurpação e exercício) e Aquino retoma Aristóteles : “Como o regime do rei é o melhor, o regime do tirano é o pior”. E logo após : “Um regime torna-se injusto se, ao desprezar o bem comum da multidão, busca o bem privado do governante. Por tal motivo, quanto mais um regime se afasta do bem comum, mais ele é injusto (…) Na tirania, se afasta mais do bem comum, pois nela se procura o bem de um só, logo o regime do tirano é o mais injusto”. (Capítulo 3). Com base em Aristóteles, mas também por recolher alguma lembrança do injusto platônico, Aquino diz que o tirano é como o lobo que não garante a segurança dos governados e persegue os bons cidadãos, favorece as quadrilhas reunidas para delinqüir, impede a amizade, propicia a discórdia. Ele em nada difere de uma fera. “Si (…) regimen iniustum per unum tantum fiat qui sua commoda ex regimine quaerat, non autem bonum multitudinis sibi subiectae, talis rector tyrannus vocatur, nomine a fortitudine derivato, quia scilicet per potentiam opprimit, non per iustitiam regit: unde et apud antiquos potentes quique tyranni vocabantur” .“ Se (…) o regime é exercido injustamente por um homem só e ao governar ele busca ganho para si mesmo e não o bem da comunidade a ele sujeita, tal dirigente é chamado tirano que significa ‘força’ porque ele oprime com poder, e não governa com justiça”. (23) Aquino, neste passo, cita Isidoro de Sevilha (Etymologiae 9:3, PL 82:344), cuja etimologia não é correta.
Tomás de Aquino possui dois pilares, em sua discussão teórica sobre a ordem pública. O primeiro é Dionísio, o Pseudo-Areopagita, o segundo é Isidoro de Sevilha. Aquino expõe a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político.() Essa doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus encontra- se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador : “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não apenas no ser, mas também no conhecimento”.() Há, neste sentido, uma via para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade se ilumina, quanto mais distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de pensamento social este imaginário metafísico.() É impossível quebrar a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa. () A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens sobre o poder divino.
Há um heliotropismo essencial no pensamento católico onde a hierarquia insere-se com perfeição. Embora cada ser tenha o seu lugar natural, os homens possuem o livre arbítrio (algo que trouxe lutas penosas para a Igreja, desde Agostinho até Jansenius e Pascal). Assim, retoma-se na Igreja a tese de Platão de que “o divino não é culpado” pelos nossos males. O mal não pode ser atribuído ao Absoluto. “Deus”, afirma Tomás de Aquino, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologia, 1 q. 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta o símile entre os últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa precisamente do excesso de luz”. Os homens não nasceram para a lamentável escuridão e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “como a suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto mais se une ao princípio”. Assim, “os bem aventurados vêem a essência divina” (Summa 1 q. 12 a 1).
Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda (a que trouxe maiores violências no debate cristão, sobretudo entre os jansenistas e calvinistas) é explicitada por Tomás de Aquino: “é indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência eterna.() A igualdade entre eles não é possível, visto que em cada um dos indivíduos humanos há uma relação especial com Deus mediata pela cooperação de cada um deles com a Graça divina, o que indica uma proximidade maior ou menor entre a consciência e Deus. () Para que possa existir visão divina, a luz deve ser percebida segundo graus, não de imediato. A doutrina sobre o poder político exige a tese dos graus de visibilidade contemplativa, o que prepara o óbice maior que se instala entre o pensamento católico e as modernas idéias democráticas sobre a igualdade, onde o divino transcendente é posto fora do trato político ou, como dizia Laplace a Napoleão Bonaparte quando este ao folhear o texto sobre a Mecânica Celeste, perguntou ao cientista sobre Deus: “Je n’ ai pas eu besoin de cette hypothèse”.
O segundo pilar do pensamento político de Aquino, se deixarmos de lado os seus maiores apoios, Aristóteles e Platão, é Isidoro de Sevilha, sobretudo quando se trata da análise da lei e da tirania. O debate sobre a lei é feito a partir das Etimologias (2:10; 5:3, PL 82: 130 e 5:21, PL 82:203). () A lei é fundamentada na razão e composta não tendo em vista a vantagem privada mas o bem comum dos cidadãos. O alvo final da vida humana é a felicidade, ou beatitude, a lei deve satisfazer o bem dos indivíduos tendo em vista o bem comum, no Estado. A passagem fundamenta-se também em Aristóteles (Ética, V, 7: 8, 1151a 16) () e (Física 2: 9, 200a 22). ()
Qual deve ser o legislador ? O povo ou homens superiores? Para o debate, Aquino cita Isodoro, ainda nas Etimologias (5:10, PL 82:200) : “lei é um ordenamento do povo pelo qual algo é sancionado pelos de alto nascimento em conjunção com os comuns”. Todos possuem a lei em si mesmos e todos têm interesse na lei. Mas as pessoas privadas não podem compelir as demais à virtude, tal poder está presente na comunidade ou na pessoa cujo dever é aplicar punições e, portanto, a lei pertence a ela apenas. Ademais, a promulgação da lei é essencial na ordem pública? Sim, responde Aquino, porque os não presentes no ato da instauração legal têm obrigação de saber a lei. Quando a lei é promulgada por escrito, é como se ela tivesse sua promulgação refeita no passado, no presente e no futuro, de modo contínuo. É por tal motivo que Isidoro diz que “a lei deriva de ‘ler’(legendo) porque ela é escrita” (Etimologias 2: 10, PL 82:130). Se alguns homens são inclinados para este ou aquele modo de ser e desejam honras, riquezas, prazeres, como definir a lei da natureza, visto que Isidoro indica que “o direito natural (ius naturale) é comum a todas as nacões” ? (Etimologias 5:4, PL 82:199). Assim como a verdade é a mesma em todos os homens mas não é igualmente conhecida por todos, também a lei da natureza é idêntica para todos, mas é recebida e praticada de modos diversos.
Qual o alvo das leis? Segundo Isidoro, citado por Aquino, “as leis foram feitas para que a audácia humana pudesse ser colocada em limites pelo medo delas, para que a inocência fosse protegida no meio dos desordeiros, e que o pavor da punição restringisse os perversos de produzir danos” (Etimologias 5:20, PL: 82:202). Neste passo, Aquino cita com maior vigor Aristóteles, quando se trata do papel punitivo das leis. “Como o Filósofo diz na Retórica 1 ( 1:1, 1354a31), ‘é melhor que todas as coisas sejam reguladas por lei do que deixadas à decisão dos juízes’e isto por três razões. Primeira, porque é mais fácil encontrar poucos homens sábios capazes de encontrar leis sábias do que os muitos para julgar cada caso individual corretamente. Segundo porque os que estabelecem leis devotam muito tempo ao que faz a lei enquanto o juizo de cada caso singular deve ser dado logo que o caso ocorre; mas é mais fácil para o homem ver o que é direito tomando em consideração muitos exemplos, em vez de um só caso. Terceiro, porque os legisladores julgam termos em geral, com o futuro em mente, mas os juízes o fazem em relação ao presente, tratam com o que pode afetá-los pelo amor ou ódio ou ambição de algum tipo, e assim seu julgamento pode ser distorcido. Dado que a ‘lei animada’ dos juizes não se encontra em muitos homens, e porque ela pode ser distorcida, foi preciso, sempre que possível, que a lei determinasse como deveria ser o julgamento, e para muito poucas matérias se confiasse na decisão dos homens”. O direito positivo deve ser contrastado com o natural, como diz Isidoro (Etimologias, 5:4, PL 82:199).
Aquino se dirige ao próprio conceito de lei, enunciado por Isidoro, se perguntando se é apropriada descrição da lei inscrita nas Etimologias. Citação de Isidoro : “a lei deve ser franca, justa, possível, seguir a natureza e o costume da terra, capaz de ser aplicada em tempo e espaço determinados, necessária, útil, expressa com clareza, que ela não contenha alguma provisão temível pela sua obscuridade; seja composta não para vantagem privada, mas para o benefício dos cidadãos”(Etimologias, 5: 21, PL 82: 203). Aquino explica cada um dos termos expressos por Isidoro, inclusive a idéia de que o homem é útil para o homem, base da política. ()
O autor da Summa se dirige, então ao problema da tirania e dos outros regimes. A lei humana pode ser dividida segundo as formas de governo. Aquino cita Aristóteles na Política (3: 5, 1279a26) e divide os regimes em monarquia, aristocracia, oligarquia, democracia, e “também existe a tirania, inteiramente corrompida e à qual nenhum tipo de lei corresponde”. Tudo o que existe por força de um fim deve necessáriamente ser adaptado ao citado fim. Sendo o fim da lei o bem comum, “porque, como diz Isidoro, ‘a lei não deve ser composta para vantagem privada mas para o benefício comum dos cidadãos’( Etimologias, 2:10, 5: 21, PL 82: 131, 203), ela deve se adaptar ao bem comum. Se a lei é injusta, no entanto, “a ordem divinamente ordenada dos poderes não se aplica, e portanto um homem não é obrigado a obedecer a lei em tais casos, se pode resistir (resistere) , assim o fazendo sem escândalo ou alarma pior”.
Se possível, no entanto, é melhor tolerar o tirano. Caso os revoltados fracassem, ele pode se tornar ainda mais feroz. Mesmo se a tirania é insuportável não vale a pena o tiranicídio. O remédio aceito pelo doutor da Igreja é a revolta regulada por representantes legítimos do povo. “Parece que se deva proceder contra a selvageria dos tiranos, não pela presunção privada de alguns, mas por autoridade pública” como uma assembléia do povo ou como o Senado romano, que destituirá o tirano. Segundo a Suma Teológica é preciso obedecer as autoridades, quando ocorrem abusos que trazem rebeliões. Ao retomar Aristóteles e dizer que a “tirania é ordenada para o bem próprio do governante, com prejuízo da multidão” (IIa II ae, q. 42) ele condena a sedição como oposta à justiça e ao bem comum. Ora, o regime tirânico não é justo, pois não se ordena ao bem comum, mas ao proveito do dirigente. Logo, “a derrubada desse regime não tem o caráter de sedição”. () A sedição pode não ser pecado. E matar o tirano? Na questão 64, artigo 2 da Suma ao discutir se é lícito matar bandidos, ele afirma com apoio em Êxodo, 22 que “não suportarás que os bandidos vivam”. Assim, “se algum homem é perigoso para a comunidade e seu corruptor por causa de algum pecado, que seja morto elogiadamente e com vantagem, para que o bem comum seja conservado. Com efeito, pequena porção de fermento corrompe toda a massa”.
Uma pessoa privada pode matar o bandido? Responde o santo: “é licito matar um malfeitor, na medida em que o ato é ordenado para a salvação da comunidade; como pertence ao médico arrancar o membro apodrecido, quando foi-lhe confiada a saúde do corpo inteiro. O cuidado do bem comum e confiado aos notáveis com autoridade pública. E apenas a eles é confiado matar os malfeitores, não às pessoas privadas”. No final, chega-se à sugestão, não dita explicitamente pelo autor, de que as pessoas privadas podem matar o malfeitor e o tirano, desde que receba uma ordem divina, a missão, tal como ela se apresenta à sua consciência.
Bartolo da Sassoferrato (1314-1357?) professor de direito em Pisa (entre 1339-1350) se ocupa dos tiranos que assolam as cidades italianas, cujos regimes republicanos deslizam para o despotismo oligarquico ou individual. Hodie Italia est tota plena tyrannis, diz ele no De regiminis civitatis. () Bartolo foi dos primeiros a sistematizar o campo do direito público nas cidades, o que lhe permitiu uma vista sinoptica da ordem jurídica e política. Ao mesmo tempo, teve conhecimento direto dos problemas mais amplos da Europa, por ter sido embaixador de Perugia junto a Carlos 4º.
Bartolo, como Aquino, distingue duas formas de tirania. A primeira, por defectu tituli, por problemas de origem na legitimidade. A segunda, tem a indicação de Ex parte exercitii, o desempenho no cargo. O pensador usa os sinais fornecidos por Plutarco para o reconhecimento do tirano. Este último assassina os melhores homens da cidade e chega a matar seus parentes mais próximos, impede os estudos e os sábios, proíbe reuniões particulares, semeia espiões entre a cidadania, empobrece os contribuintes para que eles fiquem ocupados com dívidas, guerreia o países estrangeiros, é mantido por um grupo de mercenários, adere a um partido político e inviabiliza os demais. (De Tyrannia, capitulo 8º).
Segundo Bartolo, o tirano pode ser responsabilizado pelos ordenamentos legais do Império, passível de ser punido com penas previstas no direito romano. Quem divide a cidade, por exemplo, pode ser castigado com a Lex Julia Majestatis () e assim por diante. Se o imperador não pune o tirano, os magistrados da cidade podem processá-lo e chegar à sua condenação por exílio ou morte. Mas o escritor não autoriza as pessoas privadas a cometer o tiranicídio.
No século 14 o Concílio de Constança foi encarregado de várias tarefas espinhosas, entre elas, a de resolver o cisma papal e o problema da sede pontifícia em Avinhão, analisar as doutrinas de João Wyclif, Jan Hus e sectários. O Concilio condenou o assassinato do tirano devido ao caso do Duque de Orleans (23/11/1407). O confesso mandante do crime, João Sem Medo, queria se desembaraçar do concorrente no Conselho de Estado. Defendido pelo causídico João Pequeno em 08/03/1408, seu pleito se baseia nos seguintes pontos : é lícito matar o tirano, e louvável. O Duque de Orleans era um tirano, amigo do diabo e de feiticeiros, a diaba Venus o presenteou com um talismã para se fazer amar por ele, etc. () Além de tudo o defunto era desleal, traidor, inimigo do povo. Assim, foi lícito matar o tirano. O assassino foi absolvido, os honorários de João Pequeno dobrados.
Quando o novo duque de Orleans entra em Paris e João Sem Medo precisa fugir, o chanceler Gerson de Notre Dame denuncia as teses de João Pequeno. Em 30/11/ 1413 uma espécie de concilio jurídico e teológico extraiu da defesa feita por João Pequeno nove proposições erradas. Finalmente, o tribunal condenou a sua apologia do tiranicídio, em nome do arcebispo de Paris e do Inquisidor da Fé. João Pequeno apela ao papa João 23º. Este submeteu o apelo ao Concilio de Constança. Assim, o processo sobre o tiranicídio adquire estatuto próximo ao da heresia de Hus. O Concilio condena as primeiras teses de Pequeno, selecionadas por Gerson, em especial a que enunciava ser lícito matar o tirano sem esperar sentença ou mandato judicial.
Roland Mousnier resume do seguinte modo as teses jurídicas e religiosas sobre o tiranicídio : () “Nenhum particular pode, por seu movimento próprio e sem juízo prévio por magistrado competente matar o tirano de exercício ou o de usurpação. Mas Deus sempre pode, ao seu arbítrio, confiar a um homem privado a missão de executar o tirano e por tal mandato o escolhido por Deus tem o dever de cumprir sem que exista julgamento e sem por isso se transformar em assassino. Contra os tiranos de usurpação a revolta é permitida sem que se possa qualificar os atos como sedição. Mas quanto ao tirano de exercício apenas os magistrados ou depositários legítimos da autoridade pública, príncipes, senhores, governos, representantes dos povos consultados, podem se rebelar, recusar obediência, pegar em armas, deter o governante, o julgar e depor, exilar, condenar à morte quando necessário. Contra o usurpador, que gera a guerra civil, todo cidadão pode se levantar numa guerra justa”. ()
Na Renascença os tiranicidas têm melhor imprensa. () Maquiavel (), Erasmo, com seu lamento : O Brutorum genus jam olim extinctum.() As advertências contra a tirania encontram-se espalhadas pelos textos erasmianos. Por exemplo, no tratado sobre a Educação do Príncipe Cristão. Após descrever a pintura do bom governante o autor se refere à “terrível fera, repulsiva besta, formada por um dragão, lobo, leão, serpente, urso, e monstros semelhantes; com seiscentos olhos espalhados sobre seu corpo, dentes por toda parte, temível em todos os seus ângulos, com anzóis em todas as suas unhas; nunca satisfeita a sua fome, nutrido por entranhas de seres humanos e pelo sangue dos homens; nunca adormecida, sempre ameaçadora para a vida e os bens dos cidadãos; perigosa para todos, especialmente para os bons; um tipo de maldição fatal para o mundo inteiro, sobre ela, todos os interessados pelo bem estar político tem sentimentos de execração e de ódio. Tal fera não pode ser limitada devido à sua monstruosidade e não pode ser derrubada devido ao desastre que tal ato traria para a cidade, porque sua malícia se fortalece com armas e riqueza. Esta é a pintura do tirano, nada pior pode ser descrito. Monstros desse genero foram Cláudio e Calígula. Os mitos nos poetas também mostram Busiris, Penteu, Midas, cujos nomes hoje são objeto de ódio para toda a raça humana”. ()
Lutero, adversário do tomismo em todos os assuntos, () interdita o tiranicídio, sobretudo se praticado por um particular. Calvino, na Instituição Cristã (tanto na de 1541 quanto em 1560) () define: como todo poder vem de Deus é preciso obedecer a autoridade civil, mesmo tirânica. O pensador não distingue entre tirania por usurpação e por exercício. “Conhecemos por suas palavras a grande obediência exigida por Nosso Senhor para que este tirano perverso e cruel (Nabucodonosor) fosse honrado, não por outra razão, mas porque ele possuía o reino. Aquela posse apenas mostrava que ele tinha sido posto no trono por ordem de Deus e por tal ordem, elevado à majestade real, que não é lícito violar”. Calvino cita o livro de Jó (28) e relembra Davi que recusa atentar contra Saul, tirano mas ungido pelo Senhor. O cristão, diante de um tirano, deve examinar sua própria consciência, para ver os pecados pelos quais Deus assim o castiga. Se o principe deseja impor algo contrário à lei divina, no entanto, é preciso resistir até o martírio. “São Pedro nos ensina que é ´preciso mais obedecer a Deus do que aos homens´, mesmo com o risco de morte”. As pessoas privadas não podem se levantar, salvo se recebem missão especial de Deus, contra o tirano. “Algumas vezes Ele suscita manifestamente alguns de seus servidores e os arma com o seu mandamento, para punir uma dominação injusta e livrar da calamidade o povo iniquamente afligido.” O assassino, mesmo que não tenha consciência de alguma tarefa religiosa e possua outros alvos pessoais, pode servir de instrumento divino.
Chegamos ao calvinismo político que afasta todas as dúvidas quando se trata do reino francês, dividido entre papistas e huguenotes, nomes insultuosos que sempre aparecem nas guerras civis ou religiosas. Em 1573 na luta religiosa que estraçalhou a França surge o libelo O direito dos magistrados sobre seus súditos. () Pouco antes, em 1572, ocorrera a noite de São Bartolomeu. Em 1584 sobe ao trono um protestante, o Bourbon Henrique de Navarra, com o título de Henrique 4º. O Direito dos magistrados, apresenta a situação da desobediência quando esta passa de passiva a ativa, quando o poder contradiz os mandamentos divinos. O metron da ordem política só pode ser o divino, jamais humano, porque “nenhuma vontade a não ser a divina é perpétua e imutável, regra de toda justiça”. O tom platônico desse enunciado mostra que ele pode ser incluído na linha de Agostinho e não na vertente tomista.
Mas o escrito dá um passo a mais e sanciona as doutrinas sobre o tiranicídio. Ele autoriza o particular à execução do governante tirânico e inimigo das ordens divinas, caso os magistrados deixem de cumprir seu dever. Há um contrato entre povo e soberano. Como o Estado está acima do soberano a soberania não lhe cabe totalmente. Ele depende dos magistrados comuns que não “dependem propriamente do soberano, mas da soberania” a quem o rei presta um juramento de fidelidade. “É evidente que existe uma obrigação mútua entre o rei e os funcionários (officiers) de um reino, segundo a qual o seu governo não é posto nas mãos reais, mas apenas o soberano grau deste governo, como também os funcionários (officiers) tem, cada um, parte segundo o seu grau”.() O rei é um magistrado, como os demais, apenas o seu posto está acima dos outros. Os magistrados inferiores, quando o superior tomba em tirania, têm o dever de salvaguardar as leis. “Eles são obrigados (mesmo com uso de armas, se possível) de se levantar contra uma tirania manifesta, para a salvação dos que são postos sob sua guarda, até uma comum deliberação dos Estados”. Como afirma Roland Mousnier, isto vai muito além de Calvino.
Se há contrato, este se baseia no direito natural e divino, e não pode ser quebrado pelas partes. O tirano rompe o contrato, o que lhe retira a garantia no governo. O povo, portador da soberania, merece sempre a resposta certa ao quesito da responsabilidade do governante face ao contrato fundamental. Se rompe o contrato, o príncipe torna-se tirano e pode ser destituído ou morto.
Outro documento relevante dos monarcômacos franceses é o livro Vindiciae contra tyrannos, surgido em 1581 de maneira anônima. Ele foi atribuído a Teodoro de Beza, François Hotman, Buchanan, Hubert Languet. Sua importância foi enorme, tanto na França quanto na Europa. Mas não vai muito além do que aparece no Direito dos Magistrados. Ele avança, no entanto, no campo do contrato. Da Biblia é extraída a noção de um duplo contrato. Em primeiro, o contrato entre povo e rei, Deus garante este acordo, pois o povo é o propriedade divina. Depois, um segundo contrato entre rei e povo, para que o último obedeça bem se for bem dirigido. Daí nascem os direitos populares para exigir prestação de contas do rei, lhe resistir, depor. Depois, o livro inova no que se relaciona ao direito de resistência. Se o povo aprova o tirano que ignora a lei e a desrespeita, uma cidade apenas, um só magistrado, um só par do reino tem o direito de se levantar contra a tirania. A verdade não é quantitativa, um só pode ter razão contra muitos, estar no legítimo direito contra muitos, estar com a verdade contra muitos, e ser o único a defender a liberdade e a fé, contra muitos. Em plano ordinário, no entanto, não cabe ao particular exercer a vingança, a menos que Deus ordene sua missão.
João Althusius, em 1603, na Politica methodice digesta segue o plano geral da Vindiciae contra tyrannos. Temos nesse ponto um elemento estratégico de ordem jurídica, a suposta ou efetiva personalidade soberana do povo, com a idéia do contrato pelo qual o mesmo povo entrega o seu poder originário ao governante. Para a famosa transferência de poder, no entanto, o povo deveria possuir uma “subjetividade” comum. Se tal asserção for verdadeira, o povo jamais transfere totalmente seu direito ao dirigente, ele guarda para si a maiestas. Mesmo os defensores do absolutismo guardam a noção de que existe um contrato a ser cumprido pelo povo. Se o povo é cobrado pelo contrato, é porque ele teria alguma personalidade original. A personalidade do povo só poderia ser coletiva, o que traz problemas para a própria noção de persona capaz de decisões e de responsabilidade. O costume, trazido do direito romano, de chamar o povo de universitas, communitas, corpus, para explicar a personalidade popular como uma unidade incorporada, foi assumida pelos monarcômacos, como na Vindiciae contra tyrannos e nos textos de Althusius.
Althusius não pode aceitar as teses dos escritores católicos, como aliás nenhum de seus pares protestantes, de uma personalidade coletiva superior e anterior, ontológica e lógicamente, aos indivíduos. Tal é o ponto grave dos monarcômacos. Como vimos, embora neguem às pessoas privadas o direito de executar o tirano, quase sempre chegam ao indivíduo ou grupo que, por ordem expressa de Deus, podem justiçar o péssimo governante. Além disso, como também vimos, o indivíduo, em casos excepcionais, tem maior acesso ao verdadeiro do que a massa. Se a lógica aqui presente for levada ao máximo (e nas guerras ou revoluções do tempo ocorreu tal fato) os direitos coletivos são os direitos dos indivíduos somados. Althusius pensa numa conexão social, numa “parceria” dos indivíduos, que gera o Estado. Temos a noção de uma consociatio, corpus symbioticum. De modo artificioso retorna o peso do coletivo sobre os átomos sociais, a autoridade da comunhão política sobre os seus integrantes.
Importa insistir sobre a visão da soberania popular em autores protestantes como Althusius, que no mesmo ato se liga ao campo do federalismo. Dos indivíduos aos Estado e deste às federações, existem graus de autonomia e dignidade, sempre com o instrumento da consociatio. A sua política pode ser dita uma teoria rigorosa de muitas associações. Todas as instâncias sociais, no entender do escritor, surgem de associações. Dentre elas, são indicadas cinco species consociationis : a família, a de camaradagem (Genossenschaft), a comunidade local (Gemeinde), a província e o Estado. Cada uma das superiores resulta das inferiores e são elas, não os indivíduos diretamente, que entram no contrato que gera as mais elevadas. Elas possuem um direito que vai além dos indivíduos, direitos que não podem ser violados tanto pelas associações superiores, quanto pelos próprios grupos inferiores ou individualidades. Se tal é o ponto, é possível aceitar que um grupo ou indivíduo, sem licença das respectivas associações (inferiores ou superiores) decrete que tal instância é tirânica e mate os seus titulares? () Se uma instância associada, ou grupo ou indivíduo no seu interior, abusa de suas prerrogativas, nota-se que a qualificação de “tirania” lhe cabe. Mas o indivíduo privado ou grupo que se arroga a executar uma justiça não escrita, e matar quem imagina (ou de fato é) tirânico, não é também algo contra o direito e tirânico?
No capítulo 38 da Politica Althusius analisa os abusos do poder estatal, a tirania e os meios para afastar semelhantes males. Como defensor das associações, ele sublinha a soberania popular como algo inalienável e reforça o veto contra toda e qualquer tentativa de subtraí-la aos seus legítimo proprietários. Tirano, para ele, em sentido rigoroso, o governante legítimo que viola o direito e trai seu dever. Assim, retoma a distinção já mencionada entre tyrannus absque titulo e tyrannus quoad exercitium. Só que para ele o pretenso tyrannus quoad exercitium é apenas e simplesmente o inimigo público. E aí temos a concessão de Althusius às doutrinas anteriores, protestantes e católicas, sobre o tiranicídio: qualquer particular tem o direito de executar a sentença contra o tirano. (Cf. Politica, § 27).
Quem é o verdadeiro tirano? O que “violando tanto a palavra quanto o juramento, começa a abalar as bases e afrouxar os laços do corpo associado da comunidade. O tirano pode ser um monarca ou poliarca que, em decorrência da avareza, soberba ou perfídia, extingue ou destrói os bens máximos da comunidade, quais sejam, sua paz, virtude, ordem, lei e nobreza”. () Com tais critério, Althusius fixa o jus resistentiae et exauctorationis, contra o tirano. Tal direito resulta de doze princípios, extraídos da essência do contrato, do ofício e do mandato, do conceito de soberania popular, do direito natural e da palavra divina (§§ 28-43), da história civil e religiosa (§§44-45). O referido direito é atribuído ao povo apenas, coletivamente, e em seu nome, aos Eforos. Os privados cidadãos têm direito apenas à resistência passiva e, caso exista ameaça direta contra suas vidas, bens, liberdades, o direito de legítima defesa concedido pelo direito natural (§§ 65.68). () Os Eforos, coletivamente, têm a prerrogativa (caso verifiquem um comportamento tirânico) de advertir o governante pacificamente. Caso ele não se emende, eles podem cassar o seu mandato com violência ou mesmo condenar a morte. (§§ 53-64). Em caso de evidente tirania, as associações podem romper o contrato e se retirar das entidades federadas (§§ 42-52). ()
O ponto crucial do problema inteiro gira ao redor do estatuto da indivíduo no campo coletivo. Quais os limites do primeiro e do segundo? Quem é fonte dos direitos e da ação política? Quando a tirania do Todo suscita a resistência legítima ? Todas essas questões, suscitadas pelos monarcômacos protestantes, são refletidas de maneira inversa nos monarcômacos do catolicismo. O ponto mais grave, no meu entender, reside na tese de que não raro os átomos sociais e políticos, os indivíduos, podem estar na posse do direito efetivo, quando a maioria se deixa controlar por tiranias mentirosas e anti- jurídicas. Basta recordar os totalitarismos do século 20 : quem tinha razão e estava na verdade, as massas animalizadas pela propaganda nazista, estalinista, fascista, ou os poucos cidadãos que aceitaram ir para a morte, sem disto precisar por eram “arianos” ou porque simplesmente poderiam calar e cooperar com o Estado?
Para os monarcômacos católicos tirano é todo governante que não aceita os ditames da Igreja no campo da soberania, da ética, da ordem pública. Se abrirmos os textos dos monarcômacos do catolicismo, veremos que a grande maioria fazem epikéia do 5 mandamento, “não matarás”. Se é legítimo matar o invasor de sua pátria, um bandido que penetra sua casa, é permitido matar o tirano de usurpação , pois o que ele faz contra a república é uma guerra injusta e fora da lei. Assim, todo cidadão, parte da autoridade coletiva, pode executar o governante tirânico.
Manuel de Sá, jesuíta, nos Aphorismi confessiorum (1593) aprovado pela Faculdade de Teologia de Paris em 1609, diz que o governante tirânico de “uma senhoria justamente adquirida não pode ser dela despojado, a não ser por um julgamento público, sentença pronunciada. Daí, cada um pode ser o executor. Ele também pode ser deposto pelo povo, mesmo se este último jurou obediência perpétua caso, advertido, ele não se corrija. Mas todo membro do povo pode matar quem ocupa tiranicamente o poder, se não há outro remédio, pois ele é o inimigo público (publicus hostis)”. João Mariana, no De rege et regis institutione (1598) pergunta se é lícito matar o tirano. Sua resposta é uma longa discussão escolástica pelo sim e pelo não, ressaltando o sim em caso de atentado à religião.
Outro monarcômaco relevante é Georg Buchanan (1506-1582). Em 1549 o autor foi preso pela Inquisição de Portugal, pelo seu ensino considerado herético na Universidade de Coimbra. Após abjurar sua pretensa heresia, ele é solto e retorna para a França. O De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579), põe os fundamento da responsabilização (accountability) dos governantes face aos governados e da lei e desenvolve a doutrina da soberania popular, o que exige a tese da resistência legal aos tirano. Ele foi peça central na queda de Maria, rainha da Escócia (1567) e se tornou tutor de Tiago 6º da Escócia, futuro Tiago 1º da Inglaterra). Buchanan, pode-se dizer, foi dos primeiros a usar a retórica na tarefa pouco nobre de aniquilar os inimigos políticos. Foi o que ele fez com Maria, a quem acusou de assassina, adúltera, tirana prostituta. no libelo intitulado Detectio Mariae Reginae Scotorum (1571) () e desenvolvido mais amplamente na história da Escócia por ele publicada : Rerum Scoticarum Historia (1582).
No De Jure Regni apud Scotos, aparece o elemento causador do tiranicídio : a opressão do povo e sua revolta. () As fontes de Buchanan encontram-se em Erasmo, Aristóteles, Cícero. O núcleo do diálogo é a diferença entre monarquia e tirania, com a tese da superioridade do povo face aos dois tipos de poder. Para tal tarefa, o autor assume a famosa narrativa das origens, encontrada em Platão, nos estoicos e usada em grande quantidade no século 18, em especial por Rousseau. Ninguém pode dizer que tal narrativa pretende ser efetivamente histórica. Ela é uma idéia diretora para explicar, com algum fundamento racional, o sentido da vida humana em coletividade. Os homens, diz o autor, viviam de modo selvagem e bruto, isolados em cavernas. O sentimento da utilidade e o instinto social os aproximou. O instinto social, como em Cícero, é dado por Deus e com ele torna-se possível construir a civitas segundo as normas do bom e do justo. Quem mais perto chega do justo e do bom é imagem divina entre os seus iguais (Plane Deo similimum). Ele será o chefe, o guia, o médico que conserva a integridade física e a saúde da reunião humana. Justiça, portanto, é guardar a saúde do corpo social, assegurar a prosperidade das suas partes e a coesão voluntária do todo. O rei aparece com tal múnus. Mas a simples eleição do rei nada garante em termos de justiça. Ela é um sinal de excelência, não a própria excelência : “natura, non suffragiis regem esse” . A eleição não gera um rei, nem um médico competentes. Mas como o diploma confere ao médico o seu direito, a eleição confere ao líder a licença para governar. Diploma ou eleição constituem formas de reconhecimento, não o saber ou o poder reais. Para evitar abusos, mesmo dos que são prudentes ao serem eleitos (ou diplomados), existe a lei, freio dos desejos de quem governa (Legem ei velut collegam aut potius moderatricem libidinum adjiciemus). As leis, diz o autor, “foram criadas com tal fim pelos povos e os reis são constrangidos a governar não segundo seu arbítrio mas segundo o direito que o povo tinha estabelecido para eles”. Mesmo um rei bom não pode dispensar a lei. Buchanan pensa numa colaboração dos poderes, do povo, magistrados e rei, não os procedimentos cortesãos e nem o tumulto dos comícios. No seu entender, os deputados deliberam o texto de uma lei com os conselheiros do governo, depois submetem sua decisão preliminar (προβουλευµα) à aprovação do povo. A lei é mais poderosa do que o rei, o povo é mais poderoso do que a lei (Est enim velut parens, certe auctor legis ut qui eam, ubi visum est, concedere aut abrogere potest). O contrato entre povo e governante não retira do primeiro sua majestade, pelo contrário.
Nesse ponto surge a distinção entre rei e tirano. O tirano segundo o título pode até ser suportado, se o governo segue a lei e a justiça. Mas o de exercício, que viola a lei, devem ser “declarados inimigos públicos e considerados como sátiros, macacos e ursos, fúrias ou Kakodemônios”. Quando o governante viola a legalidade, rompe o contrato que estabeleceu com o povo. Assim, “o povo, de quem nossos reis ganham os seus direitos, é superior aos reis, e o conjunto dos cidadãos tem sobre eles o mesmo poder que eles têm sobre um de seus membros”. Nada vai contra a deposição de um tirano, mesmo que ele seja disfarçado. Buchanan analisa a Carta aos Romanos de maneira inusitada : São Paula falaria de um soberano legítimo e não de um tirano a ser obedecido. A carta a Tito fala em obedecer o que é bom e à Timóteo pede que se reze pelos reis e magistrados. Mas o que impede matar os reis péssimos e ao mesmo tempo por eles orar? O apóstolo falava de reis pagãos, que não tinha conhecimento da lei divina. Os reis cristãos ficam sem desculpa quando agem como tiranos. ()
O retrato acima, do povo e do rei, no entanto, precisa ser melhor precisado nos textos de Buchanan. Nem sempre o rei é o tirano por ele execrado (falando-se em termos históricos, na Escócia da qual ele faz a teoria) e pouco tem de “popular” o “povo” por ele evocado. Trata-se na verdade da nobreza sediciosa e que exigia privilégios, auto-nomeada “povo”. No entanto, sob tais nomes e com tal lógica, as idéias de Buchanan se espalharam pela Europa e abriram vias para a defesa da soberania popular, contra o arbítrio dos reis. o De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579) () no qual defende a responsabilização dos governantes e a soberania popular. O texto mostra que o assassinato pode ser justificado como ato virtuoso. A radicalidade com a qual Tiago 1º defende o direito divino dos reis, com muita probabilidade é devida à virulência das teses de Buchanan. Aluno de Buchanan, Tiago apreciou as lições de grego, de latim, de humanidades adquiridas com o mestre. Mas renegou o quanto pode a tese da soberania popular e do tiranicídio, especialmente nos livrinhos The True Law of Free Monarchies (1598) e Basilikon Doron. () Os textos de Buchanan foram importantes para toda a história política da Inglaterra, sobretudo na revolução do século 17 e do período dominado por Cromwell.
O texto mais célebre da modernidade, ao se tratar dos monarcômacos, intitula-se Killing no Murder. () Ele se dirige contra Oliver Cromwell, o Lord Protector da Inglaterra ou mero ditador no entendimento de muitos. O regime do protetorado aparentemente se instalou em 1653 sem comoções graves. Mas as duas supressões do Parlamento anteriores (a de abril e dezembro de 1653) mostram grave crise política. A Constituição imposta (The Instrument of Government) mostrava tudo, menos reverência para o princípio da representação do poder. O regime instalado era mais presidencial do que parlamentar. Sob a rubrica de “uma só pessoa e um só parlamento”, o autoritarismo aparecia sem muitos cosméticos. A prática de Cromwell face ao Parlamento se reduzia a visitas esporádicas, nas quais o governante falava longamente, sempre no costume dos ditadores que adoram alugar orelhas de parlamentares imaginados impotentes. Os Levellers tinham perdido sua força e seus projetos de mando constitucional tinham se atenuado ao máximo. Como sempre ocorre em regimes autoritários de lavra cristã, Cromwell também acreditou num contrato (Covenant) entre Deus e o povo inglês, no qual ele, o governante, seria o intermediário sacrossanto. Entre as proclamações demagógicas e o próprio Cromwell, no entanto, a modéstia carateriza os seus atos e falas. Para o povo, ele seria um quase Moisés. Para si mesmo, não passaria de um guarda de propriedade (Constable), para um povo rude e indisciplinado. Ditadores costumam parecer modestos…
Modestos, mas a sua tarefa consiste “apenas” em negar ou trair os ideais da revolução que os levam ao poder. No caso de Cromwell, tratava-se de recusar as “bravatas” da luta contra a censura, do exército politizado e sem hierarquias nobres, do nivelamento político democrático, reforma agrária, respeito ao misticismo religioso (Quakers), justiça contra o rei e magistrados não responsáveis (accountability). Em suma: a ditadura foi efetuada para acabar com as exigências de mudanças na ordem pública.
Entre os antigos Levellers (os niveladores) vários se indignam com o “realismo” do ditador e de seus amigos. Um deles era o jurista Wildman, preso em 1654 e solto no ano seguinte. Seu amigo Edward Sexby, soldado revolucionário e agitador, servira como espião e organizador de rebeliões na França, a serviço da Inglaterra. Na mesma operação, ele apresenta aos rebeldes franceses um “agreement” que seria cópia do programa dos niveladores. O que suscita a cólera de Cromwell, naturalmente. A partir daí, com Wildman, passa liderar planos contra o ditador. Do estrangeiro, ele começa a campanha para abater “o usurpador”. As tratativas com o rei destronado, no exílio francês, não foram adiante, porque Sexby insiste nos preceitos democráticos. O rei, como previsível, nada aceita que possa lessening the power of the crown and devolving an absurd power to the people. Cromwell, no Parlamento em 1656 denuncia Sexby num de seus longos discursos como a wretched creature, an apostate from religion and all honesty.
Os ocupantes das cadeiras parlamentares, beneficiados materialmente pela Revolução, não aceitaram pregações como as de Sexby. Eles na verdade queriam uma legitimidade nova para Cromwell, o que garantiria suas propriedades e a situação política de “segurança”. Não apenas de satisfeitos se compunha o clima político. Muitos setores não aceitavam o controle do ditador. Assim, Sexby imagina mover os defensores da realeza contra o governante e assim captar todas as insatisfações levantadas em seu protetorado. E surge o Killing no Murder em 1657. Preso, Sexby com muita probabilidade foi torturado e confessou, mas sem deixar suas convicções.
O primeiro arrazoado do texto gira ao redor da questão clássica: Cromwell é tirano ? Como sempre, Aristóteles e Cícero são fonte analítica. Mas a fonte maior, no passo, encontra-se em Maquiavel : “Tiranos efetivam seus fins muito mais por fraude do que pela força. Nem virtude nem a força (diz Maquiavel no Príncipe, cap. 9) são necessárias para aquele alvo, tanto quanto una Astutia fortunata, uma astúcia com sorte: a qual, diz ele (Principe, 2 capitulo 13) sem a força foi sempre considerada suficiente, mas nunca a força sem ela. E num outro lugar (Capítulo 18) ele diz que o caminho é Aggirare li cervelli de gli huomini con Astutia, etc.” Daí, a indicação de que Sua Alteza, o protetor, usa os artifícios maquiavélicos para conseguir seus alvos. ()
Além disso, é marca dos tiranos abaixar os bons. Eles, como diz Aristóteles, “purgam” as assembléias em sentido negativo (a fonte mais antiga disso é Platão, na fenomenologia do tirano feita na República, livro 8), e nelas só deixam quem não possua inteligência (Wit) interesse ou coragem para se opor aos seus desígnios (Aristóteles, Política, 5, cap. 11). Eles não suportam assembléias e colocam em toda parte espias e delatores e não saem do palácio sem guarda de corpo. Eles declaram guerras para divertir o povo e mante-lo ocupado. Eles mantêm aduladores. E coisas detestáveis, eles exigem que seus subordinados as cometam. Eles fingem cuidar do povo. Mas vendem as coisas santas, na religião e em outros domínios. Eles fingem receber inspiração divina. Eles pretendem, assim, amar a Deus e fingem que oráculos divinos conduzem sua ação. Todas essas marcas são encontráveis, diz Sexby, em Cromwell. ()
A segunda série de razões gira ao redor de outra questão clássica: é legal matar um tirano? Os juízos variam, afirma Sexby. Alguns acham que os tiranos são abortos, para a cura dos quais apenas a nossa paciência é eficaz. Outros acham que eles devem ser questionados pela suprema lei da salvação popular. Eles são responsáveis (answerable) diante dos povos, por quebrarem a fé pública. Ninguém, no entanto, “em boas condições de pensamento”, torna a pessoa privada juízes nos casos de tirania. Mas o próprio tirano é um caso de vida particular, não pública. Se o governante não assegura a felicidade e a segurança públicas, ele não é mais diretor da ordem pública, mas age nela como privado. Para ser legítimo, o governante deve ser parte da Civitatis, porque toda parte se subordina ao todo ao mandar ou obedecer. O tirano nunca se subordina. Só existe civitas quando o coletivo é como se fosse só homem. Sexby cita Sófocles em latim : Non est civitas quae unius est viri. Como o tirano não é parte da Comonwealth “mas se coloca acima da lei, não existe razão para que ele seja protegido pelas leis, pois não as reconhece. Deve ser considerado uma fera, nada mais. E seguem-se exegeses bíblicas e fontes antigas para validar a tese da tirania de Cromwell.
Terceira série de arrazoados: após mostrar o que é um tirano e indicar suas marcas, vem a questão de saber se é vantajoso para o coletivo a sua destituição. E Buchanan cita muitas autoridades sobre o assunto. Dos trechos recolhidos, o mais cortante é o de Maquiavel : quem apoia a tirania, deve matar Brutus. Um tirano, diz Platão, deve afastar toda pessoa virtuosa. E se com o tirano não é possível viver em paz, felicidade, segurança, etc., é saudável e vantajoso acabar com ele.
Os monarcômacos, dos quais dei apenas alguns exemplos, colocam o direito de resistência no centro de todo o seu sistema político. () Mas devido à substituição da soberania principesca ao povo, o seu problema passou para o campo mais amplo, da transgressão dos limites do Estado. Todos os direitos que eles atribuem ao povo contra e acima do tirano seriam consequências, não limites da soberania. O que se deve pensar de um poder sem limites, inclusive e sobretudo se tratamos de um soberano coletivo? Não irei analisar aqui as teses de Hobbes e da modernidade. Importa dizer que o impulso para definir limites aos soberanos principescos ajudou e muito na edificação das democracias ocidentais, como a inglêsa, a norte-americana e a francesa. Com a Revolução de 1917 na Rússia, encerra-se a eficácia da doutrina com o Estado totalitário. Doravante, no mundo, os satélites da URSS agiram como se assumissem o principio da resistência à tirania, mas logo que atingiram o poder, impuseram tiranias ainda piores do que as derrubadas por eles. O nazi-fascismo levantou contra seu programa de horrores a resistência de alemães, franceses, italianos, gregos. Mas logo que a Segunda Guerra foi vencida, o único foco de resistência encontrou-se na luta contra os países colonialistas. E logo após muitos movimentos de libertação, no poder, instauraram tiranias sangrentas que até hoje matam milhares e milhares de pessoas humanas. Nas consciências terroristas de hoje, há uma tintura das doutrinas sobre a resistência à tirania. Mas na verdade trata-se de tiranos que usurpam o título de resistentes, e também exercem a tirania de modo exacerbado.
1 Léon Homo: L’ Italie primitive et les débuts de l ‘imperialisme romain (Paris, Albin Michel, 1925), 272 ss.
2 Ilíada, II, 204- 205 e X, 224 : (II, 204-205);; “Dois que marcham juntos, um provê ao outro como seja melhor… (Iliade di Homero, Torino, Einaudi, 1950). Para toda a análise que segue, cf. Raymond Weil, ”De la tyrannie dans la pensée grecque”, in Duverger. M. : Dictatures et Légitimités (Paris, PUF, 1982), pp. 29 ss.
3 “Die älteste erhaltene Verwendungen des Tyrannis-Begriffes findet in den literarischen Zeugnisse der archaischen Zeit bei Archilocos von Paros , der die Mitte des 7. Jarhunderstes v.Chr. gelebt haben dürfte . Der Iambograph lässt in einem Vielzeiler einem Handwerker namens Charon sagen (…) [eu traduzo os versos,RR] “Não desejo a riqueza de Gyges, nem emulei ou me arrependi diante dos decretos divinos, nem desejei seguir os grandes tiranos, diante dos quais os meus olhos permanecem fechados” in Loretana de Libero, Die archaische Tyrannis (Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1995) p. 24. Cf. também Pedro Barceló: Basileia, Monarchia, Tyrannis, Untersuchungen zu Entwiclung und Beurteilungen von Alleinherrschaft im vorhellenistischen Griechenland (Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1993). Também: Parker V.. : “Tyrannos. The semantics of a political concept from Archilochus to Aristotle” Hermes ( Steiner Verlag, Stuttgart,) 1998, vol. 126, no 2, pp. 145-172.
4 ‘After the tumult quieted down, and five days passed, the rebels against the Magi held a council on the whole state of affairs, at which sentiments were uttered which to some Greeks seem incredible, but there is no doubt that they were spoken. Otanes was for turning the government over to the Persian people: “It seems to me,” he said, “that there can no longer be a single sovereign over us, for that is not pleasant or good. You saw the insolence of Cambyses, how far it went, and you had your share of the insolence of the Magus. How can monarchy be a fit thing, when the ruler can do what he wants with impunity? Give this power to the best man on earth, and it would stir him to unaccustomed thoughts. Insolence is created in him by the good things to hand, while from birth envy is rooted in man. Acquiring the two he possesses complete evil; for being satiated he does many reckless things, some from insolence, some from envy. And yet an absolute ruler ought to be free of envy, having all good things; but he becomes the opposite of this towards his citizens; he envies the best who thrive and live, and is pleased by the worst of his fellows; and he is the best confidant of slander. Of all men he is the most inconsistent; for if you admire him modestly he is angry that you do not give him excessive attention, but if one gives him excessive attention he is angry because one is a flatter. But I have yet worse to say of him than that; he upsets the ancestral ways and rapes women and kills indiscriminately. But the rule of the multitude has in the first place the loveliest name of all, equality, and does in the second place none of the things that a monarch does. It determines offices by lot, and holds power accountable, and conducts all deliberating publicly. Therefore I give my opinion that we make an end of monarchy and exalt the multitude, for all things are possible for the majority. Such was the judgment of Otanes: but Megabyzus urged that they resort to an oligarchy. “I agree,” said he, “with all that Otanes says against the rule of one; but when he tells you to give the power to the multitude, his judgment strays from the best. Nothing is more foolish and violent than a useless mob; for men fleeing the insolence of a tyrant to fall victim to the insolence of the unguided populace is by no means to be tolerated. Whatever the one does, he does with knowledge, but for the other knowledge is impossible; how can they have knowledge who have not learned or seen for themselves what is best, but always rush headlong and drive blindly onward, like a river in flood? Let those like democracy who wish ill to Persia; but let us choose a group of the best men and invest these with the power. For we ourselves shall be among them, and among the best men it is likely that there will be the best counsels. Such was the judgment of Megabyzus. Darius was the third to express his opinion. “It seems to me,” he said, “that Megabyzus speaks well concerning democracy but not concerning oligarchy. For if the three are proposed and all are at their best for the sake of argument, the best democracy and oligarchy and monarchy, I hold that monarchy is by far the most excellent. One could describe nothing better than the rule of the one best man; using the best judgment, he will govern the multitude with perfect wisdom, and best conceal plans made for the defeat of enemies. But in an oligarchy, the desire of many to do the state good service often produces bitter hate among them; for because each one wishes to be first and to make his opinions prevail, violent hate is the outcome, from which comes faction and from faction killing, and from killing it reverts to monarchy, and by this is shown how much better monarchy is. Then again, when the people rule it is impossible that wickedness will not occur; and when wickedness towards the state occurs, hatred does not result among the wicked, but strong alliances; for those that want to do the state harm conspire to do it together. This goes on until one of the people rises to stop such men. He therefore becomes the people’s idol, and being their idol is made their monarch; and thus he also proves that monarchy is best. But (to conclude the whole matter in one word) tell me, where did freedom come from for us and who gave it, from the people or an oligarchy or a single ruler? I believe, therefore, that we who were liberated through one man should maintain such a government, and, besides this, that we should not alter our ancestral ways that are good; that would not be better.” Having to choose between these three options, four of the seven men preferred the last. Then Otanes, whose proposal to give the Persians equality was defeated, spoke thus among them all: “Fellow partisans, it is plain that one of us must be made king (whether by lot, or entrusted with the office by the choice of the Persians, or in some other way), but I shall not compete with you; I desire neither to rule nor to be ruled; but if I waive my claim to be king, I make this condition, that neither I nor any of my descendants shall be subject to any one of you.” [3] To these terms the six others agreed; Otanes took no part in the contest but stood aside; and to this day his house (and no other in Persia) remains free, and is ruled only so far as it is willing to be, so long as it does not transgress Persian law” (Herodotus, Perseus Project).
5 “But the rule of the multitude has in the first place the loveliest name of all, equality, and does in the second place none of the things that a monarch does. It determines offices by lot, and holds power accountable, and conducts all deliberating publicly. Therefore I give my opinion that we make an end of monarchy and exalt the multitude, for all things are possible for the majority. Cf. Loeb Classical Library, Herodotus, II, Books III-IV, translated by A.D. Godley, pp.107 ss.

6 Para uma análise antiga, mas cheia de informações sobre a tirania, cf. P. N. Ure : The Origin of Tyranny (Cambridge University Press, 1922).
7 Sigo as análises de Raymond Weil, citadas. “If we could all agree on what is “fair” and what is “wise” There would be nothing for men to argue and debate about. “Fairness” or “equality” are not things, they are simply words . Because we have a word for it, that does not prove a thing exists. I shall speak frankly, mother, and hold nothing back. I would climb the star-studded vault of heaven,Or descend to the black pit of hell, if I could do just this:Possess total power. Power to me’ s a goddess, tall, and beautiful and out of reach. She’s what I want, mother, and I can’t bear To think of handing her on to someone else. I want to keep her for myself. I would not be a man, if I threw away The greater share to take the lesser. I should look a fool if this man got what he wanted By marching in with his army and laying waste my land.It would be a disgrace to Thebes to surrender to fear,And hand the sceptre that is mine to a terrorist to wield.He must not be allowed to influence Our conference by threats of violence:Words kill quarrels, not swords and blood.If he just wants to live here in Thebes – that’s fine. But if he wants my power, there is no way I’ll let my mistress go without a fight. When I can be master, why should I be his slave?Let’s have the flames, let’s have the clash of steel, Yoke up the horses, let chariots crowd the plain: I shall not give my royal power to him! Most men have many vices: I have one -I worship Power. Wrong in her defence I don’t call wrong at all. Outra tradução inglesa: “If all were at one in their ideas of honor and wisdom, there would be no strife to make men disagree; but, as it is, fairness and equality have no existence in this world beyond the name; there is really no such thing. I will tell you this, mother, without any concealment: I would go to the rising of the stars and the sun, or beneath the earth, if I were able so to do, to win Tyranny, the greatest of the gods. Therefore, mother, I will not yield this blessing to another rather than keep it for myself; for it is cowardly to lose the greater and to win the less. Besides, I am ashamed to think that he should gain his object by coming with arms and ravaging the land; for this would be a disgrace to Thebes, if I should yield my scepter up to him for fear of Mycenaean might. He ought not to have attempted reconcilement by armed force, mother, for words accomplish everything that even the sword of an enemy might effect. Still, if on any other terms he cares to dwell here, he may; but that I shall never willingly let go. Shall I become his slave, when I can rule? Therefore come fire, come sword! Harness your horses, fill the plains with chariots, for I will not give up my tyranny to him. For if we must do wrong, to do so for tyranny is the fairest cause, but in all else piety should be our aim.”
8 Trata-se de um espanto diante da maravilha diametralmente oposto ao da natureza filosófica, tal como pensada por Platão no Teeteto: “Theodorus seems to be a pretty good guesser about your nature. For this feeling of wonder shows that you are a philosopher, since wonder is the only beginning of philosophy, and he who said that Iris was the child of Thaumas1 made a good genealogy. Hes. Theog. 750. Iris is the messenger of heaven, and Plato interprets the name of her father as “Wonder” e na República 5, 475c.
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10 Jean-Jacques Rousseau, Revêries du promeneur solitaire, VIème Revêrie : Si ma figure et mes traits étaient aussi parfaitement inconnus aux hommes que le sont mon caractère et mon naturel, je vivrais encore sans peine au milieu d’eux; leur société même pourrait me plaire tant que je leur serais parfaitement étranger. Livré sans contrainte à mes inclinations naturelles, je les aimerais encore s’ils ne s’occupaient jamais de moi. J’exercerais sur eux une bienveillance universelle et parfaitement désintéressée: mais sans former jamais d’attachement particulier, et sans porter le joug d’aucun devoir, je ferais envers eux librement et de moi-même, tout ce qu’ils ont tant de peine à faire incités par leur amour-propre et contraints par toutes leurs lois. Si j’étais resté libre, obscur, isolé, comme j’étais fait pour l’être, je n’aurais fait que du bien: car je n’ai dans le coeur le germe d’aucune passion nuisible. Si j’eusse été invisible et tout-puissant comme Dieu, j’aurais été bienfaisant et bon comme lui. C’est la force et la liberté qui font les excellents hommes. La faiblesse et l’esclavage n’ont fait jamais que des méchants. Si j’eusse été possesseur de l’anneau de Gygès, il m’eût tiré de la dépendance des hommes et les eût mis dans la mienne. Je me suis souvent demandé, dans mes châteaux en Espagne, quel usage j’aurais fait de cet anneau; car c’est bien là que la tentation d’abuser doit être près du pouvoir. Maître de contenter mes désirs, pouvant tout sans pouvoir être trompé par personne, qu’aurais-je pu désirer avec quelque suite? Une seule chose: c’eût été de voir tous les coeurs contents. L’aspect de la félicité publique eût pu seul toucher mon coeur d’un sentiment permanent, et l’ardent désir d’y concourir eût été ma plus constante passion. Toujours juste sans partialité et toujours bon sans faiblesse, je me serais également garanti des méfiances aveugles et des haines implacables; parce que, voyant les hommes tels qu’ils sont et lisant aisément au fond de leurs coeurs, j’en aurais peu trouvé d’assez aimables pour mériter toutes mes affections, peu d’assez odieux pour mériter toute ma haine, et que leur méchanceté même m’eût disposé à les plaindre par la connaissance certaine du mal qu’ils se font à eux-mêmes en voulant en faire à autrui. Peut-être aurais-je eu dans des moments de gaieté l’enfantillage d’opérer quelquefois des prodiges: mais parfaitement désintéressé pour moi-même et n’ayant pour loi que mes inclinations naturelles, sur quelques actes de justice sévère j’en aurais fait mille de clémence et d’équité. Ministre de la Providence et dispensateur de ses lois selon mon pouvoir, j’aurais fait des miracles plus sages et plus utiles que ceux de la légende dorée et du tombeau de saint Médard.Il n’y a qu’un seul point sur lequel la faculté de pénétrer partout invisible m’eût pu faire chercher des tentations auxquelles j’aurais mal résisté, et une fois entré dans ces voies d’égarement où n’eussé-je point été conduit par elles? Ce serait bien mal connaître la nature et moi-même que de me flatter que ces facilités ne m’auraient point séduit, ou que la raison m’aurait arrêté dans cette fatale pente. Sûr de moi sur tout autre article, j’étais perdu par celui-là seul. Celui que sa puissance met au-dessus de l’homme doit être au-dessus des faiblesses de l’humanité, sans quoi cet excès de force ne servira qu’à le mettre en effet au-dessous des autres et de ce qu’il eût été lui-même s’il fût resté leur égal.Tout bien considéré, je crois que je ferai mieux de jeter mon anneau magique avant qu’il m’ait fait faire quelque sottise. Si les hommes s’obstinent à me voir tout autre que je ne suis et que mon aspect irrite leur injustice, pour leur ôter cette vue il faut les fuir, mais non pas m’éclipser au milieu d’eux. C’est à eux de se cacher devant moi, de me dérober leurs manoeuvres, de fuir la lumière du jour, de s’enfoncer en terre comme des taupes. Pour moi qu’ils me voient s’ils peuvent, tant mieux, mais cela leur est impossible; ils ne verront jamais à ma place que le Jean-Jacques qu’ils se sont fait et qu’ils ont fait selon leur coeur, pour le haïr à leur aise. J’aurais donc tort de m’affecter de la façon dont ils me voient: je n’y dois prendre aucun intérêt véritable, car ce n’est pas moi qu’ils voient ainsi.Le résultat que je puis tirer de toutes ces réflexions est que je n’ai jamais été vraiment propre à la société civile où tout est gêne, obligation, devoir, et que mon naturel indépendant me rendit toujours incapable des assujettissements nécessaires à qui veut vivre avec les hommes. Tant que j’agis librement je suis bon et je ne fais que du bien; mais sitôt que je sens le joug, soit de la nécessité soit des hommes, je deviens rebelle ou plutôt rétif, alors je suis nul. Lorsqu’il faut faire le contraire de ma volonté, je ne le fais point, quoi qu’il arrive; je ne fais pas non plus ma volonté même, parce que je suis faible. Je m’abstiens d’agir: car toute ma faiblesse est pour l’action, toute ma force est négative, et tous mes péchés sont d’omission, rarement de commission. Je n’ai jamais cru que la liberté de l’homme consistât à faire ce qu’il veut, mais bien à ne jamais faire ce qu’il ne veut pas, et voilà celle que j’ai toujours réclamée, souvent conservée, et par qui j’ai été le plus en scandale à mes contemporains. Car pour eux, actifs, remuants, ambitieux, détestant la liberté dans les autres et n’en voulant point pour eux-mêmes, pourvu qu’ils fassent quelquefois leur volonté, ou plutôt qu’ils dominent celle d’autrui, ils se gênent toute leur vie à faire ce qui leur répugne et n’omettent rien de servile pour commander. Leur tort n’a donc pas été de m’écarter de la société comme un membre inutile, mais de m’en proscrire comme un membre pernicieux: car j’ai très peu fait de bien, je l’avoue, mais pour du mal, il n’en est entré dans ma volonté de ma vie, et je doute qu’il y ait aucun homme au monde qui en ait réellement moins fait que moi.” Gallica, coleção Bibliopolis http://www.bibliopolis.fr

 
11 Em toda a sequência, até aviso em contrário, as considerações redigidas aqui vêm do clássico livro de Roland Mousnier: L´ assassinat d´ Henry IV. Le problème du tyrannicide et l ´affermissement de la monarchie absolue (Paris, Gallimard, 1964). As fontes históricas são tratadas naquele escrito com mão de mestre, bem como a sua leitura no mundo europeu, em especial no século 17 francês. Ampliei a citação de fontes, não incluídas por Mousnier, para deixar mais evidente o problema do tiranicídio nos exercícios filosóficos.


12 “Não tem o povo o hábito invariável de pôr à sua testa um homem cujo poder ele nutre e torna maior? É de seu hábito, concordou. É portanto evidente que, onde quer que o tirano medre, é na raiz deste protetor e não alhures que ele se entronca. É absolutamente evidente. Mas onde começa a transformação do protetor em tirano ? Não é, evidentemente, quando se põe a fazer o que é relatado na fábula do templo de Zeus Liceu, na Arcádia? O que diz a fábula? indagou. Que aquele que provou entranhas humanas, cortadas em postas junto com as de outra vitimas, é inevitavelmente transmudado em lobo. Não ouviste contá-la ? Sim. Do mesmo modo, quando o chefe do povo, seguro da obediência absoluta da multidão, não sabe abster-se do sangue dos homens de sua própria tribo, mas, acusando-os injustamente, conforme o processo favorito dos de sua igualha, e arrastando-os perante os tribunais, se mancha de crimes mandando tirar-lhes a vida, quando, com lingua e boca ímpias, prova o sangue de sua raça, exila e mata acenando com a supressão das dívidas e uma nova partilha das terras, então, não deverá um tal homem necessariamente, e como que por uma lei do destino, perecer pela mão de seus inimigos, ou tornar-se tirano, e de homem transformar-se em lobo?” (A República, 8, 565 c – 566 a). Cito na tradução de J. Guinsburg (São Paulo, Perspectiva, 2006), pp. 332-333.
13 “A corrupção da realeza é a tirania. Ambas são governos monárquicos, mas diferem profundamente. O tirano visa apenas seu interesse pessoal e o rei se preocupa com o de seus dirigidos …o tirano só busca o seu próprio bem. Sem dúvida, a tirania é o pior dentre os governos. Da monarquia se desliza para tirania, corrupção da monarquia, e um rei péssimo se transforma em tirano” (Etica a Nicômaco, 8, 10). A realeza se fundamenta no consentimento dos governados e na lei. A tirania é um desvio dessa prática. “A tirania é monarquia absoluta que, sem responsabilidade e só no interesse do tirano, governa homens que valem tanto ou mais do que ele, esta monarquia nunca se ocupa com os interesses particulares dos governados. Assim, ela existe apesar deles, pois não existe um só homem livre que suporte voluntariamente tal poder”. (Política, 6, 3 e 6, 2). Cf. Aristotle Politics Loeb Classical Library, Volume XXI, trad- Rackham, H. (Cambridge, Harvard University Press, 1990) pp. 324 e ss.
14 “Omnium autem rerum nec aptius est quicquam ad opes tuendas ac tenendas quam diligi nec alienius quam timeri. Praeclare enim Ennius ‘Quem metuunt oderunt; quem quisque odit, perisse expetit’. Multorum autem odiis nullas opes posse obsistere, si antea fuit ignotum, nuper est cognitum. Nec vero huius tyranni solum, quem armis oppressa pertulit civitas ac paret cum maxime mortuo interitus declarat, quantum odium hominum valeat ad pestem, sed reliquorum similes exitus tyrannorum, quorum haud fere quisquam talem interitum effugit. Malus enim est custos diuturnitatis metus contraque benivolentia fidelis vel ad perpetuitatem. Sed iis, qui vi oppressos imperio coercent, sit sane adhibenda saevitia, ut eris in famulos, si aliter teneri non possunt; qui vero in libera civitate ita se instruunt, ut metuantur, iis nihil potest esse dementius. .” De officiis, II, 7, 23-26. Segue a tradução mais ampla do trecho, feita por Walter Miller : “Whom they fear they hate. And whom one hates, one hopes to see him dead.” And we recently discovered, if it was not known before, that no amount of power can withstand the hatred of the many. The death of this tyrant whose yoke the state endured under the constraint of armed force and whom it still obeys more humbly than ever, though he is dead, illustrates the deadly effects of popular hatred; and the same lesson is taught by the similar fate of all other despots, of whom practically no one has ever escaped such a death. For fear is but a poor safeguard of lasting power; while affection, on the other hand, may be trusted to keep it safe for ever. But those who keep subjects in cheek by force would of course have to employ severity — masters, for example, toward their servants, when these cannot be held in control in any other way. But those who in a free state deliberately put themselves in a position to be feared are the maddest of the mad. For let the laws be never so much overborne by some one individual’s power, let the spirit of freedom be never so intimidated, still sooner or later they assert themselves either through unvoiced public sentiment, or through secret ballots disposing of some high office of state. Freedom suppressed and again regained bites with keener fangs than freedom never endangered. Let us, then, embrace this policy, which appeals to every heart and is the strongest support not only of security but also of influence and power — namely, to banish fear and cleave to love. And thus we shall most easily secure success both in private and in public life. Furthermore, those who wish to be feared must inevitably be afraid of those whom they intimidate. What, for instance, shall we think of the elder Dionysius? With what tormenting fears he used to be racked! For through fear of the barber’s razor he used to have his hair singed off with a glowing coal. In what state of mind do we fancy Alexander of Pherae lived? We read in history that he dearly loved his wife Thebe; and yet, whenever he went from the banquet hall to her in her chamber, he used to order a barbarian — one, too, tattooed like a Thracian, as the records state — to go before him with a drawn sword; and he used to send ahead some of his bodyguard to pry into the lady’s caskets and to search and see whether some weapon were not concealed in her wardrobe. Unhappy man! To think a barbarian, a branded slave, more faithful than his own wife! Nor was he mistaken. For he was murdered by her own hand, because she suspected him of infidelity. And indeed no power is strong enough to be last ing, if it labours under the weight of fear. Witness Phalaris, whose cruelty is notorious beyond that of all others. He was slain, not treacherously (like that Alexander whom I named but now), not by a few conspirators (like that tyrant of ours), but the whole population of Agrigentum rose against him with one accord. Again, did not the Macedonians abandon Demetrius and march over as one man to Pyrrhus? And again, when the Spartans exercised their supremacy tyrannically, did not practically all the allies desert them and view their disaster at Leuctra, as idle spectators? I prefer in this connection to draw my illustrations from foreign history rather than from our own. Let me add, however, that as long as the empire of the Roman People maintained itself by acts of service, not of oppression, wars were waged in the interest of our allies or to safeguard our supremacy; the end of our wars was marked by acts of clemency or by only a necessary degree of severity; the senate was a haven of refuge for kings, tribes, 27 and nations; and the highest ambition of our magistrates and generals was to defend our provinces and (27) allies with justice and honour. And so our government could be called more accurately a protectorate of the world than a dominion” Cicero De officiis, trad, Walter Miller (New York, The Macmillan Co. 1948), pp. 168 e ss.
15 “Saepe enim tempore fit, ut quod turpe plerumque haberi soleat, inveniatur non esse turpe. Exempli causa ponatur aliquid, quod pateat latius. Quod potest maius scelus quam non modo hominem, sed etiam familiarem hominem occidere? Num igitur se adstrinxit scelere, si qui tyrannum occidit quamvis familiarem? Populo quidem Romano non videtur, qui ex omnibus praeclaris factis illud pulcherrimum existimat.” De officiis, III, 4, 19.
16 De beneficiis, 7, 19. Cautela, no entanto, com tais linhas. Elas não correspondem ao pensamento do estoico Seneca. Leia-se a meditação seguinte: “Esta é uma questão usual levantada sobre Marcos Brutus : deveria ele aceitar ter sua vida poupada pelo divino Júlio quando Brutus desejou matar César ? (…) Considero que se em outras ocasiões Brutus agiu como grande homem, errou neste caso particular e não agiu segundo os princípios estoicos”. De beneficiis, ed. C. Hosius (Lipsiae: Ed. Teubner, 1900). Para uma análise do trecho, cf. M. Piccolomini (South Illinois University Press, 1991), pp. 27 e ss. Para outro comentário do problema, cf. M. T. Griffin : Seneca, a philosopher in Politics (Oxford, Clarendon Press, 1992), pp. 189 e ss.
17 A apresentação de Jó, no livro, já traz a sua marca de temente a Deus. Ele é dito θεοσεβής, reverente e temente a Deus (a versão do rei Tiago traz o termo Fear, para medo), alguém que foge do mal. A encruzilhada diante do divino e do mal é a mesma apresentada por Paulo em Romanos.
18 “O diabo na Figura do Leviatã” capítulo do livro de Tomás de Aquino sobre o livro de Jó. Cf. Job, um homme pour notre temps. De Saint Thomas d´ Aquin, exposition littérale sur le livre de Job (Paris, Tequi, 1980).
19 Apologeticum, 31, 1. Acessado em Ad Fontes Academy [http://www.thelatinlibrary.com] no dia 30/03/2008, as 11h05 AM.
20 De mulceo, verbo transitivo que significa apalpar, afagar com as mãos, acariciar, ameigar.
21 Uso a excelente tradução de M. A. Ladero, M. Garcia, T. Zamarriego : Policraticus (Madrid, Editora Nacional, 1984). Para o pensamento de Salisbury, cf. Roberto Romano:“´Lembra-te de que és homem´. Governantes e Juízes no Policraticus de Jean Salisbury”. Revista Justiça e Democracia. Número 1, Primeiro Semestre de 1996. Páginas 153-161.
22 Não há espaço, aqui, para analisar os nexos entre a idéia de comissão, ou poder comissário, nas doutrinas jurídicas medievais, tanto laicas quanto religiosas. Mas é correto pensar que a idéia de Tomás de Aquino, neste passo, está inserida no plano mais amplo do direito ligado aos poderes. Uma tarefa fascinante e arriscada, dados os problemas óbvios trazidos pelo autor, é comparar a noção de autoridade delegada, comissária, em Tomás de Aquino da exposta por Carl Schmitt no cinzento livro A ditadura. Se possível, voltarei ao ponto.
23 Cf. Trois Discours sur la condition des grands, Premier Discours.
24 De regno ad regem Cypri, in Corpus Thomisticum : http://www.corpusthomisticum.org; Cf. também Scripta super libros sententiarum II, Dist. 44, quaest. 2 43 articulus 2: “ Utrum Christiani teneantur obedire potestatibus saecularibus, et maxime tyrannis”.
25 O que segue é citação de meu artigo “A Igualdade, considerações críticas”, publicado no Foglio Spinoziano (Itália). http://www.fogliospinoziano.it/ARTICOLI.htm Na mesma home page, cf. outro texto meu, “Democracia e Direito Natural”. Os dois escritos têm como alvo discutir o pensamento de Spinoza.
26 Tal certeza foi enunciada por Jacques Maritain em Distinguer pour unir, les degrés du savoir. Cf. Roberto Romano, “Maritain filósofo dos matizes” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara, 1987), pp. 141 e ss.
27 Estudo há bom tempo esta doutrina hierárquica. Considero os seus detalhes desde a minha tese de doutoramento sobre a Igreja e a política (Cf. R. Romano, Brasil: Igreja contra Estado, SP, Kayrós, 1979). Desde Lorenzo Valla, o estudo de Dionisio foi modificado, a partir do seu próprio nome. Com as análises filológicas de Valla, some a lenda que envolve a suposta presença de Dionisio no areópago, quando Paulo pregou aos gregos. Uso a edição dirigida por Maurice de Gandillac, Oeuvres complètes du Pseudo-Denys, l´ Aréopagite (Paris, Aubier, 1943), e também a edição magistral da Hierarquia Celeste (Cf. Roques, René, Heil, Günter, et Maurice Gandillac : Denys l ´Aréopagite, L´ Hierarchie céleste, Paris, Cerf, 1958). Para uma síntese do problema, cf. P. Tillich : A History of Christian Thought. From its Judaic and Hellenistic Origins to Existentialism (NY, Touchstone Book, 1967).
28 Ainda hoje um livro sugestivo é o escrito por Arthur O. Levejoy: The Great Chain of Being (Cambridge, Harvard University Press, 1936 e 1964). Para o assunto tratado neste ponto de minha exposição, cf. o capítulo III, “The chain of being and some internal conflicts in medieval thought”, pp. 67 e ss.
29 Um dos comentários mais belos sobre o assunto foi realizado por Erich Auerbach sobre a Divina Comédia. A unidade daquele poema que sintetiza o pensamento ético cristão, “descansa sobre o tema geral, sobre o status animarum post mortem; este deve ser, como sentença divina final, uma unidade perfeitamente ordenada, tanto como sistema teórico, quanto como realidade prática e, portanto, também como criação estética; deve representar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pura e atual do que o mundo terreno, ou algo que nele acontece, pois que o Além, ainda que inacabado até o Juízo Final, não apresenta, na medida em que o faz o mundo terreno, desenvolvimento, potencialidade e provisoriedade, mas é o ato completo do plano divino. A ordem unitária do Além, assim como Dante no-la apresenta, é tangível da maneira mais imediata como sistema moral, na repartição das almas nos três reinos e suas subdivisões: o sistema segue em tudo a ética aristotélico-tomista”. Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis. A representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, pp. 161-162.
30 Uma análise mais ampla desta problemática é feita por mim em trabalho já antigo : Cf. “Lux in Tenebris. Franciscanos e Dominicanos, utopia democrática”, in Lux in Tenebris. Meditações sobre Filosofia e Cultura. São Paulo, Unicamp Ed., 1987, pp. 31 e ss.
31 Scriptum super Sententiis II, Distinctio 44, questio 2, articulus 2 in Corpus thomisticum : http://www.corpusthomisticum.org/snp2044.html e também Summa theologiae IIa IIae 104: De obedientia.
32 Cf. Etica a Nicômaco V, vi. 9– vii. 3 e ss in Aristotle Loeb Classical Library, volume XIX, translated by H. Rackham p. 295 ss. “But we must not forget that the subject of our investigation is at once Justice in the absolute sense and Political Justice. Political Justice means justice as between free and (actually or proportionately) equal persons, living a common life for the purpose of satisfying their needs. Hence between people not free and equal political justice cannot exist, but only a sort of justice in a metaphorical sense. For justice can only exist between those whose mutual relations are regulated by law, and law exists among those between whom there is a possibility of injustice, for the administration of the law means the discrimination of what is just and what is unjust. Persons therefore between whom injustice can exist can act unjustly towards each other (although unjust action does not necessarily involve injustice): to act unjustly meaning to assign oneself too large a share of things generally good and too small a share of things generally evil. This is why we do not permit a man to rule, but the law, because a man rules in his own interest,and becomes a tyrant; but the function of a ruler is to be the guardian of justice, and if of justice, then of equality. A just ruler seems to make nothing out of his office; for he does not allot to himself a larger share of things generally good, unless it be proportionate to his merits; so that he labors for others, which accounts for the saying mentioned above,1 that ‘Justice is the good of others.’ Consequently some recompense has to be given him, in the shape of honor and dignity. It is those whom such rewards do not satisfy who make themselves tyrants.Cf. texto diverso no Site Perseus.
33 Física in Opere 3, trad. Antonio Russo (Bari, Laterza, 1973), p. 49.
34 Cf. B. Nicholas, An Introduction to Roman Law (Oxford, 1992) e sobretudo R. W. Dyson : Thomas Aquinas (Cambridge University Press, 2002) . Questia.
35 …regimen tyrannicum non est justum: quia non ordinatur ad bonum commune, sed ad bonum privatum regentis, ut patet per Philosophum, in tertia Polit. et in VIII Ethic. et ideo perturbatio hujus regiminis non habet rationem seditionis.
36 Cf. R. W. Carlyle and A. J. Carlyle : A History of Medieval Political Theory in the West (William Blackwood & Sons Ltd, Edinburgh and London, 1936). “For to Bartolus tyranny is not only a corrupt form of government, but it is the worst of all corrupt governments. The government of a few, or of the multitude, is corrupt when they pursue their own advantage, but it is not so far removed from a government for the common good as that of the one man. 1 We may put it in concrete terms, the Italian oligarchy or democracy was not so really corrupt and evil a thing as the Italian tyranny. Bartolus adds that the corrupt oligarchy or democracy tends to develop into a tyranny, as they had seen in their own day, for ” Italy is full of tyrants.” 2 This treatment of tyranny by Bartolus is of importance, and we must consider it not only in the ‘ De Begimine Civitatis,’ but also in another treatise, entitled ‘ De Tyranno.’ We have just seen that Bartolus derives from Egidius Colonna and Aristotle the conception of the tyrant as one who governs for his own profit and not for the good of the community. In the treatise, ‘ De Tyranno,’ he derives from S. Isidore, directly or indirectly, the description of the tyrant as that wicked king who exercises a cruel rule over his subjects ; [" Sicut enim rex, seu boni, quia ex eo quod plures sunt, ali- imperator Romanorum est Justus et quid sapit de natura communis boni. verus et universalis : ita si quis ilium Sed si unus est tyrannus otiam recedit locum vult injuste obtinere, appellatur a commuui bono. Praeterea, sicut proprie tyrannus."] from S. Gregory the Great he takes his description of the tyrant as one who governs the commonwealth but not lawfully (non jure), 4 and he applies this to the case of the King or Emperor of the Romans ; if any man seeks to obtain that place unjustly he is properly called a tyrant. 5 In another place Bartolus says : ” The tyrant may be either manifest ‘ or ‘ veiled,’ ” but, what is more important, he may be a tyrant, ” ex defectu tituli ” or ” ex parte exercitus.” The distinction is important, though it was not new ; Aquinas had pointed it out in his commentary on the ” Sentences.” . When he comes to the question of tyranny ” ex parte exercitus,” he first says in general terms that the tyrant is he who does tyrannical things that is, things directed to his own advantage and not that of the community, and then cites from a work, which he attributes to Plutarch, ‘ De Regimine Principum,’ an enumeration of such actions. What is the remedy against the tyrant. If he has a superior, it is for the superior to depose him ; but Bartolus interpolates the observation that there may be occasions when the emperor or Pope may maintain such tyrants in their position for some grave and sufficient reason. 4 In another work he seems clearly to indicate that the tyrant may rightfully be deposed, and he cites a passage from Aquinas, to which we have often referred, that it is not sedition to resist the tyrant.”
37Ad Legem Juliam Majestatis no Digesto, 48 tit. 4 s1 : “crimen illud quod adversus Populum Romanum vel adversus securitatem ejus committitur”. Cf. William Smith e outros : Dictionnary of Greek and Roman Antiquities, verbete “Majestas”( New York, Harper & Brothers, 1847), pp. 609 ss : “A frase majestas publica no Digesto equivale à majestas populi Romani. No período republicano o termo majestas laesa ou minuta era mais comumente aplicado a casos como traição geral ou render o exército ao inimigo, excitar sedições, e geralmente pela péssima conduta administrativa, que lesava a majestas do Estado.” Cf. Lauterpacht, H.(Ed.) : International Law Reports, 8 in Annual Digest and Reports of Public International Laws Cases, 1935-1937, (Cambridge University Press, 1937), pp. 88 ss : “Os Pandecta que tratam com a Lex Julia Majestatis (Dig. 48, 4), na lei I deste título, que Ulpiano define como Majestatis crimen como segue: quod adversus populum Romanum vel adversus securitatem ejus committitur. Por securitatem, diz Godofredo, seguindo os primeiros comentadores, devemos entender a segurança e tranqüilidade do Estado (…) perduellio era um ramo do crimen majestatis que cobria toda ofensa contra a dignidade, autoridade ou poder do estado. E este elemento se liga a tal ponto, porque não pode existir crimen majestatis onde a autoridade em questão não tem majestas. Perduellio só pode ser cometido contra um dirigente que possui majestas”. Perduellio é o mau guerreiro, inimigo do país em geral. Quando a palavra hostis perdeu seu sentido primitivo de “estrangeiro” ele se tornou sinônimo de perduellio, mas esta última palavra designa o inimigo interior, hostis o externo. Sob o império, o crime de lesa majestade abarcou o de perduellio. (Dic. Saglio e Daremberg, verbete Perduellio). Uma correta tradução de texto essencial de Bartolo encontra-se na página da internet dedicada aos escritos medievais cujo título é Medieval Sourcebook. Alí, pode-se ler o livro de Bartolo designado, em inglês, Treatise on City Government, c. 1330. Com esta fonte é possível deduzir o que pensa Bartolo da tirania e da maneira mais eficaz de eliminá-la. Endereço da página : http://www.fordham.edu/halsall/sbook.html
38 As acusações de feitiçaria dirigidas aos adversários políticos são comuns na época. Ainda no Ricardo 3º de Shakespeare, o tirano acusa seus oponentes reais ou imaginários de feitiçaria contra ele. Em Macbeth o jogo cênico e do destino é regido por bruxas. A bibliografia sobre bruxas é imensa. Basta citar alguns textos e nomes significativos da pesquisa acadêmica, independentemente de suas posições teóricas ou ideológicas: MARWICK, M. (org.). Witchcraft and sorcery (Middlesex, Penguin Books, 1982) e também Trevor-Roper , H.R. : The european witch – craze of the sixteenth and seventeenth centuries (Hamondsworth, Penguin, 1990).
39 Reitero que as enunciações até este passo são extraídas de Mousnier. Apenas ampliei o tema com alguns comentários ou indicação de fontes.
40 Mousnier, op. cit. pp. 70-71.
41 A. Douarche : De tyrannicidio apud scriptores XVI saeculi (Tese de Letras, Paris, 1888); Lossen, Die Lehre vom Tyrannenmord.
42 Discorsi, 3, 6. “Delle congiure”. Texto ambiguo no qual ao mesmo tempo o autor descreve os motivos e as formas, nas tentativas de tiranicídio, mas alerta contra o seu perigoso para os sediciosos. “ Un’altra cagione ci è, e grandissima, che fa gli uomini congiurare contro al principe; la quale è il desiderio di liberare la patria, stata da quello occupata. Questa cagione mosse Bruto e Cassio contro a Cesare; questa ha mosso molti altri contro a’ Falari, Dionisii, ed altri occupatori della patria loro. Né può, da questo omore, alcuno tiranno guardarsi, se non con diporre la tirannide. E perché non si truova alcuno che faccia questo, si truova pochi che non capitino male; donde nacque quel verso di Iuvenale :Ad generum cereris sine caede et vulnere pauci descendunt reges, et sicca morte tiranni (Satirae, 10, 112-113: ”A morada de Ceres (Plutão) são poucos os reis que descem sem feridas mortais, ou os tiranos por morte incruenta”. Cf. Niccolò Machiavelli Discorsi sopra la prima decada di Tito Livio, in Il Principe e Discorsi (Milano, Feltrinelli, 1973), pp. 390 ss.
43 Adagia, chiliadis primae, centuria secunda.
44 Uso a tradução de Lester K. Born : The Education of a Christian Prince (New York, Columbia University Press, 1936), pp. 162 ss. Erasmo encontra boa parte de sua inspiração no pequeno escrito de Plutarco, Ad principem ineruditum (Para um principe sem erudição).in Loeb Classical Library, Plutarch´ s Moralia, X, trad. H.N. Fowler, pp. 52 ss.
45 Ver Contra Henricum regem Angliae. trad. E. S. Buchanan (New York, Charles A. Swift, 1928).
46 Institution de la religion chrétienne, livro IV, cap. 20, “Du gouvernement civil”. Jean Daniel Benoît ed., (Paris, Vrin, 1957).
47 Du droit des magistrats sur leurs subiets. Traité tres necessaire en ce temps pour aduertir de leur deuoir, tant les Magistrats que les Subiets : publié par ceux de Magdebourg l ´an M.D.L & maintenant reueu & augmenté de plusieurs raisons & exemples. 1575. (Paris, Editions D´ Histoire Sociale, 1977). Fac similar.
48 O termo é dos mais difíceis de serem traduzidos para a nossa lingua. É possível encontrar em traduções de filmes, reportagens e mesmo em livros acadêmicos a palavra “oficial” para explicar a palavra inglêsa e francesa. A palavra “funcionário” seria a mais adequada, mas ela obnubila os matizes hierárquicos do termo, no Estado e na Igreja. No caso, o texto fala com clareza de funcionários de alta situação, não de subordinados. A magistratura maior é a do rei, mas ele pode ser pensado como “primeiro entre os iguais”. Max Weber é uma rica fonte teórica e histórica para o exame desse passo.
49 Cf. Gierke, Otto : Natural law and the theory of society 1500 to 1800 (Boston, Beacon Hill, Beacon Press, 1960), pp. 70 ss.
50 Uso aqui a tradução brasileira, infelizmente não integral :Joahnnes Althusius, Política (Rio, Topbooks, 2003), pp. 349 ss.
51 “…quando a força manifesta é utilizada pelo magistrado contra pessoas privadas, é permitido que elas defendam suas vidas pela resistência, pois, nesse caso, as leis que constituem os reis e o direito natural (jus naturale) armam essas pessoas contra o magistrado que usa a força contra a vida”. Ed. brasileira citada, p. 356.
52 Sigo literalmente o ainda hoje instigante exame de Althusius, feito por Otto Gierke, no clássico Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche, contributo alla storia della sistematica del diritto (Torino, Einaudi, 1974). O livro inteiro é útil para o estudo dos monarcômacos.
53 George Buchanan, De Maria Scotorum regina, totaque eius contra regem coniuratione, foedo cum Bothuelio adulterio, nefaria in maritum crudelitate & rabie, horrendo insuper & deterrimo eiusdem parricidio: plena, & tragica planè historia. [By George Buchanan] (Actio contra Mariam Scotorum reginam … [By Thomas Wilson] – Literae reginae Scot. ad comitem Bothuelium scriptae). [London] : [publicado por John Day], [1571] e George Buchanan, Ane detectioun of the du*inges of Marie Quene of Scottes, touchand the murder of hir husband, and hir conspiracie, adulterie, and pretended mariage with the Erle of Bothwell. And ane defence of the trew lordis, mainteineris of the Kingis graces ctioun [sic] and authaoritie [sic]. Translated out of the latine quhilke was written by G.B. [i.e. George Buchanan]. [London] : [John Day], [1571].
54 As notas seguintes são extraídas do excelente trabalho, já antigo mas importante em nossos dias, de Paul Mesnard : L´ Essor de la Philosophie Politique au XVIe Siècle (Paris, Vrin, 1977), pp. 355 ss.
55 A tese de que o catolicismo político e jurídico ajudou poderosamente a formação moderna da ordem democrática é algo que merece reflexões. Como diz um comentador do assunto, “The first great influence of the church for democracy, which in general was spread over the three centuries after Christ, had been the teachings of the early Christians in the face of persecution. How antagonistic these teachings were to the Roman Empire may be gathered from a review of the systematic persecution of those who placed obedience to God before the law of Rome. Such persecution had resulted only in the quickened absorption of Christian principles throughout the Roman world, and it would be difficult to overvalue such spread of Christianity as the seed from which future democratic government was to grow. But even after the identification of the Church with the Empire, and the acquisition of temporal power by the Church itself, whereby it became in part responsible for the obedience of its members to the state, the Catholic Church made its second great contribution to the growth of democratic ideas, i.e., the political pholosophy of individual teachers who remained within the fold of the Church. The support which Iraeneus, Tertullian, Ambrose, Gratian, Chrysostom, Lactantius, and Isidore of Seville gave to the Stoic conception of natural law, the vigor with which Thomas Aquinas, Suarez, and Bellarmine defended the power of the people to depose a king, and the influence of Ivo of Chartres and his successors in rationalizing English civil law,–all these forces did service to the cause of democratic development which can hardly be calculated. Milton frequently refers to the church fathers as authorities for his republican principles. If, as Gooch and Borgeaud say, democracy is the child of the Reformation, not of the comparatively conservative reformers, she is the great grandchild of primitive Christianity, and the grandchild of the great Catholic political thinkers.” Don M. Wolfe : Milton in the Puritan Revolution (Thomas Nelson and Sons, 1941), p. 9.
56 George Buchanan, De iure regni apud Scotos, dialogus, authore Georgio Buchanano Scoto. [Edinburgh] : [Publicado por John Ross], 1579.
57 O Rei, segundo Tiago 1º é “ a manner or resemblance of Diuine power vpon earth,” ele pode, à similitude divina “make and vnmake their subiects: they haue power of raising, and casting downe: of life, and of death …. They haue power to exalt low things, and abase high things, and make of their subiects like men at the Chesse: a pawne to take a Bishop or a Knight, and to cry vp, or downe any of their subiects, as they do their money. . . . For to Emperors, or Kings that are Monarches, their Subiects bodies & goods are due for their defence and maintenance. . . . Now a Father may dispose of his Inheritance to his children, at his pleasure: yea, euen disinherite the eldest vpon iust occasions, and preferre the youngest, according to his liking; make them beggars, or rich at his pleasure; restraine, or banish out of his presence, as h *ee findes them giue cause of offence, or restore them in fauour againe with the penitent sinner: So may the King deale with his Subiects.” Speech in Parliament, 1609-10. Charles Howard McIlwain cita a passagem na sua Introdução às Obras de Tiago 1º, editadas eletrônicamente no Perseus Project. Cf. também The workes of the most high and mightie prince, Iames by the grace of God, King of Great Britaine, France and Ireland, Defender of the Faith, &c. Published by Iames [Montagu], Bishop of Winton, and Deane of His Maiesties Chappel Royall (London, Robert Barker and John Bill, 1616).
58 Cf. Wootton, D. (Ed.) : Divine right and Democracy, (Penguin, 1986) (com o texto do Killing No Murder); Coward, B. . Oliver Cromwell (Longman, 2000); Brailsford, H.N. : The Levellers and the English Revolution (Spokesman Books, 1976).
59 Theodore Calvin Pease: “Debate in the Council of the Army on the Agreement of the people” in The Leveller Movement: A Study in the History and Political Theory of the English Great Civil War (American Historical Association, 1916). p. 227 ss. Também W. Schenk : The Concern for Social Justice in the Puritan Revolution (Longmans, Green and Co., 1948), p. 72 ss.
60 Uso o texto original inglês publicado no livro de Olivier Lutaud: Des Révolutions d´ Angleterre à la Révolution Française. Le tyrannicide & Killing no Murder (Cromwell, Athalie, Bonaparte), (Haia, Martinus Nijhoff, 1973), pp. 374 ss. Há no mesmo volume, uma tradução francesa da época.
61 Otto Gierke : Giovanni Althusius…ed. cit. p. 234 ss.
62 Vem de praeire e significa o chefe que marcha à frente do exército. Primitivamente a palavra designa o consul e mesmo o ditador (praetor maximus). Cf. Dicionário Saglio, verbete Praetor, p. 628,
63 Cf. para a continuidade de choques semelhantes até os dias de hoje, no Estado democrático, o belo texto de Norberto Bobbio, “A Praça e o Palácio” in L’ Utopia capovolta.
64 Nome retomado por um autor de famoso manifesto contra a tirania, o livro Vindiciae contra tyrannos (1660) “The Vindiciae deals directly with the four great questions of the time. Are subjects bound to obey princes if they command that which is contrary to the law of God? Is it lawful to resist a prince who infringes the law of God, and ruins the Church, and, if so, who ought to resist him, by what means, and how far should resistance extend? Is it lawful to resist a prince who ruins the state, and, if so, to whom should the organisation of resistance, its means and limits, be confided? Are neighbouring princes bound by law to help the subjects of princes who afflict them either for the cause of religion or in the practice of tyranny? To the first question, the Vindiciae responds in the negative. It is clear from the authority of Scripture and the example of the martyrs that the commands of God merit obedience before any orders from an earthly prince. Nor is this situation altered by the fact that princes claim to rule by divine right. The earth is the possession of the Lord, and Kings reign only by his will; one must then obey them only to the degree that they obey the commands of their master. The King is a vassal like any other vassal; he is, therefore, bound by a contract. Should he break its terms, diffidatio ensues, as it would in any other case. The establishment of Kingship, in fact, clearly involves a double contract. There is a contract between God, on the one hand, and the King upon the other; there is a contract also between the King and the people. Clearly again, therefore, whatever binds the King binds the people also; and should the King fail in his duty, the people must not -forget its obligations. To obey its earthly master in preference to obedience from God is to invoke the punishment of heaven. For when men fail to obey the laws of God they are expelling him from his Kingdom. The King is instituted only to secure the better observance of those laws, and, when he fails, his sin ought not to involve popular acquiescence. That, indeed, is the true rebellion. It is as though men obeyed an officer rather than the express ordinance of the King himself. When subjects refuse to give their conscience into evil keeping, they obey the true source of right. For there are, as Cicero said, degrees of duty, of which the highest belongs to God, and the second only to one’s country; just as in the civil law treason, though it be a heinous crime, is inferior in wickedness to wrongdoing. Nor do the Apostles write otherwise. It is one thing to refuse obedience to a command which infringes the will of God. Whether one ought to organise resistance to a prince who seeks to infringe it and attack the Church seems, at first sight, a more difficult and complex question. Harold J. Laski:Vindiciae contra Tyrannos,Historical Introduction, in http://www.constitution.org/vct/vind_laski.htm

 

  CURSO SOBRE A DITADURA, PARTE 2.

Certos analistas indicam que O Príncipe não é novo na sua forma, ele nada mais seria do que o reaproveitamento dos antigos Espelhos do Príncipe. Os conteúdos também parecem extraídos daqueles manuais, como nos conselhos sobre as novas conquistas, o modo de administrá-las, os auxiliares a serem ouvidos, a diplomacia, etc. (1) O escrito rompe, no entanto, com a tradição medieval, porque nele a metafísica e a teologia são postas em segundo plano, e são substituídas pela tentativa de expor fatos humanos, em especial sob o ângulo histórico. Segundo Max Lerner, “Maquiavel escreveu uma gramática do poder, não apenas para o século 16, mas para as épocas seguintes”. Em todas as suas páginas estão contidos imperativos do governo, todos com a marca realista do poder. O elogio de Spinoza aos “políticos” cabe à forma e ao conteúdo do Príncipe. (2) 

Além do Príncipe, que mais serve como instrumento de parolagem mas é pouco lido ou examinado a fundo, Os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio definem o campo no qual é possível captar o pensamento de Maquiavel. Alí, fica bem claro o apreço do autor pela república, o respeito pela massa popular na comunidade política, a necessária unidade dos vários elementos que compõem o poder político, condição de sua permanência estável no tempo. Além disso, Maquiavel salienta a relevância dos legisladores que conduzem o coletivo e lhe garantem coesão mínima e alguma estabilidade. Depois, o uso da força militar com mobilização cidadã, para aumentar mais ainda a firmeza interna da comunidade. Last but not least, a importância da religião como elo dos indivíduos, grupos, massas no interior de um país. 

Maquiavel sintetiza a experiência política contemporânea, que não difere essencialmente das ocorridas no pretérito. As realidades por ele descritas mostram que os homens “na política, negócios ou na vida privada, não agem segundo suas proclamações de virtude; os líderes buscam rudemente o poder e o agarram tenazmente; as massas que devem ser coagidas na ditadura são expostas à adulação ou trapaça na democracia; engodo e rudeza existem em todo Estado; enquanto a arte de ser dirigido sempre foi relativamente fácil, a de governar a nós mesmos é monstruosamente difícil”. Lerner resume os dilemas da “ética na política” de modo saboroso: ideais são importantes na vida pública, se forem tidos apenas como normas. Mas considerados sob o aspecto de técnicas para conseguir e conservar o poder, eles são pouco eficientes. O líder bem sucedido opera com matizes do humor coletivo, suspeitas contra as táticas dos adversários, compromissos e concessões. Os profetas da religião aproximam a moral pública dos preceitos éticos. Savonarola, Cromwell, puritanos na Inglaterra ou América, “quando chegam ao poder, aprendem o jogo político”. Tal aprendizado dos religiosos não os conduz à democracia : “os imperialismos mais destruidores do mundo elevaram suas preferências ao pináculo dos imperativos morais e trabalham com plena confiança para impor tais imperativos aos outros”. (3) 

Sempre que se fala no Florentino surge a vexata quaestio dos meios e dos fins. “O pressuposto transcendental de toda ciência da cultura” disse um dia Max Weber, “é que somos seres culturais”. O mesmo pode ser afirmado em relação aos valores políticos. Nenhum ser humano vive e pensa de modo puramente objetivo, sem emitir juízos axiológicos. Todos agem e avaliam, no mesmo ato em que pensam com maior ou menor objetividade, se recorrem ou não aos esforços científicos. Um traço da prática política é a disciplina. Esta, só pode ser efetivada com base em valores partilhados. Para que vitórias sejam obtidas, no entanto, instrumentos técnicos e saberes devem ser adquiridos, o que requer procedimentos reiteráveis. Separar valores de sua objetivação impede perceber o núcleo dos atos políticos. O poder moderno exige, em vez da absolutização irracional do carisma, o trabalho disciplinado dos que obedecem como se fossem máquinas. O Príncipe é ininteligível sem a plebe, ambos se instalam em polos contrários da política moderna. Desde os condottieri italianos, o domínio do tempo e do espaço sociais cabe aos que sabem controlar a fortuna e a necessidade. 

Maquiavel distingue o reino do que deve ser do que é, rejeita o o primeiro pelo segundo. “Mas existe um terceiro : o do que pode ser (…) a medida de um homem é sua habilidade para expandir a esfera da sociabilidade possível”. (4) A busca incessante nos Dircorsi, é o modo de manter o coletivo coeso, com o máximo de liberdade possível para os indivíduos e grupos. É preciso, no entanto, notar em que sentido os dois elementos podem ser mantidos ao mesmo tempo. 

Um autor que marca a interpretação de Maquiavel, no trato entre os integrantes do corpo estatal e a segurança deste último, é Friedrich Meinecke. No seu entender, o politeísmo e uma visão secularizada dos valores definiam a política na antigüidade. A polis seria o elemento de valor mais elevado para todos os indivíduos e grupos. Coincidindo a ética dos átomos sociais e a do todo, não existiriam conflitos entre a política e a norma ética. Não existiria religião universal para restringir o exercício do Estado, pois a religião da cidade tenderia a favorecer o mando, com a glorificação do heroísmo. Com o declínio da polis, a competição sem peias entre individualidades a dissolve. O retrato de semelhante corrosão pode ser visto em Calicles ou no Gorgias platônicos. No caso da raison d’ État o seu exercício só poderia ser percebido em indivíduos poderosos no interior da sociedade, jamais como algo acima dela, como essencial à persona do Estado. A razão pertence ao vencedor da luta política, não é algo que planaria acima de todos, vitoriosos ou derrotados. 

Segundo Meinecke, Santo Agostinho fornece a chave derradeira da antiga forma de razão estatal, quando afirma : Remota justitia quid sunt regna nisi magna latrocinia. O cristianismo edifica uma percepção da moralidade universal, a ser obedecida inclusive pelo Estado, o que dissolve os valores seculares, como o heroísmo. Na Idade Média, a jurisprudência germânica somada à ética cristã, rebaixam o Estado. Este último existe na época, mas não tem a supremacia. A política e a razão de Estado foram ignoradas na Idade Média. 

No outono da Idade Média o Estado retoma forças e passa, com muitas dificuldades, à supremacia. A luta entre Igreja a papado acentua o poder de grandes governantes. Nomes como Frederico 2º e Filipe 4º abrem a lista dos poderosos contrários ao poder do Sumo Pontífice. O imperador Carlos 4º na Alemanha e o rei Luís 11º na França dão exemplos de uma arte racional e inescrupulosa de governar, cuja base era a sua pessoa. A própria Igreja, com a concentração do mando nas mãos do Papa, a suas formas administrativas e finanças, serve de modelo para o Estado nacional. Mas se aprofunda o conflito entre razão de Estado, num plano, a lei e a ética em outro. A razão estatal é vista como pecado contra a lei e como inimiga dos antigos costumes. Maquiavel rompe com essa atitude e assume o plano secular. Existem críticos, adianta Meinecke, que notam não expressar o Florentino opiniões sobre o real fim do Estado. Erradamente, eles deduzem que ele não refletiu sobre o assunto. Mas ele não fez outra coisa em toda a sua existência, que surge na confluência entre o colapso da política com o renascimento. 

A Itália de sua época, segundo ele mesmo diz no Príncipe (capítulo 20) vivia uma realidade de certo modo bilanciata definida por cinco Estados, cada um deles contido em seus limites pelos demais: Nápoles, os Estados pontifícios, Florença, Milão e Veneza. Para manter o equilíbrio da balança, o princípio é o divide et impera. As invasões espanhola e francesa após 1494, o declínio de Milão e Nápoles, as mudanças no governo de Florença, permitem a visão da política assumida por Maquiavel. Secretário da república até 1512, ele aprende as técnicas usadas pelas cidades estado, e recolhe as pedras essenciais para a edificação do seu pensamento. Mas é depois de 1512, com a derrota de seu partido e a subida dos Medicis, ele precisa buscar favores com os vitoriosos e deve refletir mais acuradamente sobre a diferença entre república e monarquia, e sobre a missão nova da última. Após 1513, ele escreve os Discorsi e o Príncipe.

O primeiro elemento importante em suas reflexões é a sua atitude diante da religião (Discorsi, II, 2). O cristianismo transforma os italianos em pessoas humildes, efeminadas, fracas. Este juízo contrasta com a sua percepção da antigüidade, na qual domina o glorioso heroísmo, síntese de grandezza dell’animo e fortezza del corpo. Ele rompe com a visão dualista do cristianismo, que deprecia os sentidos e impulsos mundanos. Os valores se concentram, para Maquiavel, na palavra virtù, conceito polifacetado que reúne aspectos éticos e naturais, coragem para efetivar atos heróicos, entre eles o de manter unido um Estado, preservar a sua existência, em especial quando se trata de repúblicas. Porque na Roma republicana, ele pensa, reside o grande seminário da virtude, a qual se divide em duas: a natural e a política e ambas concorrem para manter o Estado. A virtude pode vir de baixo, do povo, nas repúblicas, ou de cima, da nobreza, na monarquia. Existe uma ligação entre as duas virtudes e, portanto, entre monarquia e república. É assim que Meinecke explica a suposta inconsistência de Maquiavel em Florença. Ele escreve o Príncipe, é verdade, mas logo a seguir redige os Discorsi, os dois lados não são antitéticos para ele. 

O pensador mantêm as distinções entre bem e mal. Quando defende ações consideradas más pela moral cristã, nunca deixa de negar que elas recebem tal qualificativo na ética dominante. No capítulo 8 do Príncipe ele escreve, ao comentar o personagem Agatocles, que matar outro cidadão, trair amigos, ser desleal ou impiedoso constituem ações que não merecem o título de virtuosas, trazem domínio mas não glória. No entanto, em Agatocles, que age de tal modo, é indicado como alguém que possui grandezza dell’animo, grande virtude de um governante. Virtù é a fonte vital do Estado, do vivere politico. O maior choque sofrido pelos que analisam os escritos de Maquiavel ocorre na contradição entre virtù e moral cristã. Esta contradição, ele nunca eliminou. Virtù é ferocidade (ferocia), força natural desregrada, que deve ser conduzida ao plano de virtù ordinata, submetida à razão que favorece governantes e cidadãos. A virtù ordinata compreende a religião como instrumento que ajuda a manter o Estado (Discorsi, I, 11 e 12). (5) Religião, leis, assuntos militares são os fundamentos do Estado. Daí o ceticismo irreligioso que ele recomenda aos dirigentes, por saber que mesmo crenças baseadas em erros devem ser apoiadas para a manutenção do Estado.

Os termos complementares, Fortuna e Virtù (Príncipe, capítulo 25) devem ser captados pelos que desejam garantir a vida política. Deixar-se conduzir por uma suposta ação secreta da Fortuna (e quantas “mãos invisíveis” conhece o mundo político e social desde Maquiavel…) é falta de virtù. É possível edificar canais e barreiras contra a Fortuna, assegurar limites ao seu desenvolvimento. Só a metade de nossos atos são governados por ela, o resto depende de nós. “Onde os homens têm pouca virtude, a fortuna mostra o bastante a sua potência; e, porque ela é mutável, mudam as repúblicas e os próprios Estados; e mudam sempre, até que surja um amador da antigüidade que regule a Fortuna de tal modo que não seja preciso mostrar, a todo giro do Sol, o quanto ela é poderosa”. (6) A Fortuna deve ser vencida com muita dissimulação e cálculo, pois cada ocasião na vida exige um método para tratar com os obstáculos. Os homens integram a natureza e age segundo os ditames naturais. 

O termo Fortuna ocasiona muitas análises, no mínimo estranhas, sobre o pensamento do escritor. Fortuna personifica o caprichoso e fluido, não raro funesto mas também favorável, na vida individual e coletiva. Sem regra aparente, ela concede sucesso ou fracasso. (7) Fortuna se diferencia de Fatum, pois este último exprime uma lei diante da qual a mente se dobra. A Fortuna, quase sempre, é uma derrogação do Fatum, o que desafia a razão e pode causar revolta moral. A palavra latina traduz a grega Tiché, não existente em Homero e que surge no Hino a Demeter e na Teogonia. Em Tucídides, autor conhecido por Maquiavel, Tiché personifica a sorte de uma cidade ou povo (8) . “Depois de percorrer todo o mundo, Tiché corta suas asas e fixa residência no Capitólio”, diz Plutarco no tratado sobre A Fortuna dos Romanos, o que testemunha a boa sorte daquele povo. Importa para o pensamento político o fato de que Fortuna, personificação mesma do instável, se reúne a divindades outras como a Esperança (Spes) e ela encontra apoio em Fides, a que nunca varia. 

Não é com outro fim que Maquiavel, como boa parte de seus contemporâneos, aponta para a Fortuna como um eixo da ordem política, com a Virtù. A fluência dos eventos políticos deve ser controlada ao máximo, para que exista alguma estabilidade na ordem pública. Nesta última (e agora volto a Meinecke) cada inimigo aprende a usar as armas que se voltam contra eles. A Virtù deve fazer com que a Fortuna, maliciosa, opere em favor deste ou daquele dentre os contendores. Os métodos usados pelo inimigo, mesmo que eles sejam sujos, caso mostrem eficácia, não podem ser ignorados. Toda arma pode ser dirigida, com maior ou menor maestria, pelos contendores políticos. 

A Fortuna se diferencia do Fatum, a necessidade. Como a virtù pode ser ordinata, também a necessidade pode ser ordinata dalle leggi (Discorsi, I, 1). Mas para isso é preciso seguir a verdade das coisas, em vez da pintura que dela as pessoas se fazem. O indivíduo que deseja fazer apenas o bem, cai uma hora ou outra sob o domínio dos perversos. É preciso conhecer, portanto, o que não é bom e o que não é o bem. Esta é a lei da necessità. A mesma força que impele os principes de refrear o bem, em determinadas circunstâncias, também os leva a usar o que é bom. A necessidade salva e arruina. A pátria deve ser salva, mesmo com ignomínia: “quando se trata de salvar a pátria, não se deve deter um só átimo para considerar se algo é legal ou ilegal, gentil ou cruel, elogiavel ou vergonhoso; mas afastando toda outra consideração, deve-se ir até o fim, se alguém resolve salvar a vida do Estado e preservar sua liberdade”. 

“Maquiavelismo”. A palavra significa, grosseiramente, o realismo esperto e de má fé na ordem política, social, religiosa. Ela indica exatamente o que acabamos de ler em Maquiavel: para conseguir a salvação do povo, nada envergonha, a força decide a razão e o bem. Friedrich Meinecke (9) indica o diálogo entre os habitantes da ilha de Melos e os atenienses que os cercavam, como um dos marcos da razão de Estado e, como tal, do maquiavelismo. Pouco importa se o debate, encenado no livro quinto, capítulo 85 e seguintes na Guerra do Peloponeso existiu de fato ou se é invenção do magnífico escritor Tucídides, importa a figura espiritual da política que alí se vislumbra e pode também ser percebida com a máscara de Trasímaco, na sublime peça teatral intitulada A República, redigida por Platão. Fiquemos no episódio de Melos. O encontro entre os invasores e os líderes da ilha é feito, por receio de alarmar os habitantes de Melos, em segredo. Os governantes cercados tinham receio da brutalidade ateniense e de sua língua persuasiva. A democracia de Atenas não existiria sem retórica, demagogia, enganos, maquiavelismo diríamos. Os sitiados dizem claramente que, ao saber da superioridade bélica do seu adversário, este vinha para a conferência não como parte, mas como juiz implacável, porque detêm a força. Os atenienses replicam que os governantes de Melos deveriam, pelo conhecimento de sua fraqueza, tudo fazer para salvar a sua cidade da destruição. Recordemos o dito de Maquiavel: para salvar a pátria, nada é vergonhoso. Os governantes ameaçados, no entanto, tentam usar palavras contra a força. Os atenienses não aceitam a tese de que Melos está com a justiça e a legalidade, por ser apenas uma colônia de Esparta. E os arautos da democracia ateniense dizem que o debate sobre a justiça só existe quando a necessidade é igual para as duas partes. 

O termo usado por Tucídides, ananké, significa força, constrangimento, necessidade, inclusive as determinadas pelas forças naturais como Xenofonte (10) como também no sentido de necessidade lógica, como na Metafísica de Aristóteles (1064b33). Trata-se de uma palavra que, ao lado de Fortuna, é das mais usadas por Maquiavel ao longo de seus escritos. Volto a Melos. Os atenienses aconselham os sitiados a se render, pois desse modo eles, atenienses, conseguem lucros e os submissos salvam sua terra. E os atenienses arrematam, após um aguçada troca de palavras, nas quais os vocábulos operam como armas afiadissimas, e dizem que eles vencem devido à necessidade imposta pela natureza (dia pantos hupo phuseôs anankaias), e os deuses dão a vitória sempre ao mais forte, e sempre (es aiei) será assim. (11)

Leis morais nada podem contra a necessidade que se impõe quando se trata de salvar o povo. O lema é seguido por Cícero (12) e por Tácito (13). Micheline Triomphe adianta uma hipótese de trabalho muito sugestiva, quando se trata de analisar os vínculos entre interesse privado e pública, em Hobbes, com as relativas apropriações da lei. A liberdade, diz ela ao tomar o capítulo 21 do Leviatã como ponto de partida exegético, entra numa tensão dialética entre o conceito essencial em Hobbes, o de salus populi, e o enunciado onde se afirma que necessitas legem habet. As duas fórmulas supõem que no estado de natureza multiplicam-se os direitos, mas inexiste o direito. Entre o vazio do primeiro e a plenitude do segundo, ocorre o poder soberano, legibus solutus. A salus populi é a lei maior, a suprema lex da cadeia jurídica, não em ruptura com os elos anteriores, mas como sua condição de possibilidade. Ela valida, legitima, legaliza, as condutas que sem ela seriam indesculpáveis.

Aqui a autora entra no exame de um termo muito usado em Hobbes, a “desculpa”, nela notando o seu forte odor de razão de Estado. Trata-se de transgressão, mas sem culpa, não condenável em direito. Ela opera no plano dos particulares, no seu nexo com o mundo da inimizade. E Triomphe se pergunta se ela não vale também para o mundo dos governantes. No capítulo 27 do Leviatã (“Of crimes, Excuses, and Extenuations”) é posta por duas vezes o fato de uma forte transgressão : “Se um homem, por terror da morte da morte presente, é compelido a fazer algo contra a Lei, ele é totalmente desculpado; porque nenhuma Lei pode obrigar um homem a abandonar sua própria preservação. E supondo-se que tal lei fosse obrigatória; mesmo assim um homem teria razão pois, se não faço, eu morro agora; se faço, morro depois; logo ao fazer isto, há um termo de vida ganho; a natureza compele, portanto, a fazer”. E logo após, ele reforça o argumento: “Se um homem está destituído de alimento, ou outra coisa necessária à sua vida, e não pode preservar a si mesmo de outro modo, mas apenas cometendo algo contra a lei; como numa grande fome ele na qual ele arranca o alimento pela força, ou rouba, o que não pode obter por dinheiro ou caridade; ou em defesa de sua vida, joga longe a espada de um outro homem, ele é totalmente desculpado”. Nos dois casos uma situação extrema de perigo ou necessidade, leva à desculpa, em nome de certo tipo de salus, não de populi, mas de hominis. 

Em que consiste a “desculpa”? A extrema necessidade, que não é vista como algo que abole a lei. Esta permanece intocada e intacta, apenas é suspenso no tempo o seu caráter obrigatório, a desculpa opera como algo provisório. Trata-se de uma infração desprovida de falta. Isto não valeria para o soberano e para a sua razão? Se ele tivesse a necessidade imperiosa de agir para salvar o povo, não seria também desculpável? A mesma necessidade que criou a obrigação (para sair da guerra de todos contra todos) também cria o direito de suspender os direitos. O interesse dos particulares é o interesse público e vice-versa. 

Essa possibilidade não é nova no pensamento filosófico que se dedica à lei. Em Aristóteles (Ética, livro V, 10), lido por Tomás de Aquino, existe o instituto da epikéia, “uma parte da justiça tomada em sentido geral, porque é um tipo de justiça, como diz o Filósofo. É evidente que epikéia é uma parte subjetiva da justiça: e a justiça é predicada da justiça legal, desde que a justiça legal é sujeita à direção da epikéia. Assim, epikéia é o caminho para uma regulação mais elevada das ações humanas. A epikéia corresponde propriamente à justiça legal, e de um modo é nela contida sob ela, em outro a excede. Porque se a justiça legal denota que ela cumpre a lei, tanto no relativo à letra da lei, ou no relativo à intenção do legislador, que deve ser mais considerada, então a epikéia é a parte mais importante da justiça legal. Mas se a justiça legal denota meramente o que cumpre a lei com respeito à letra, então a epikéia é uma parte, não da justiça legal, mas da justiça em sua acepção mais ampla, e é dividida com e justiça legal, a excedendo. (…) Cabe à epikéia moderar algo, ou seja, a observância da letra da lei. Mas a modéstia, reconhecida como parte da temperança, modera a vida exterior do homem —por exemplo, no seu porte, roupa ou algo assim. Possivelmente o termo epikéia é aplicado no grego como similitude de todos os tipos de moderação”. (14)

Não digo que Hobbes siga Aquino e, muito menos, Aristóteles. Mas o que ele pensa, entra muito bem no campo da epikéia, ato de justiça efetuado para o interesse coletivo e particular, no qual se reconhece a intenção da lei, como norma elevada do que sua letra. (15).A epikéia liga-se à salvação da coisa pública, algo que segue com rapidez para a salus populi, como lei suprema do Estado, nas teorias da raison d´ État. Salus populi suprema lex esto (Cícero, De Legibus, 3.3.8). Decidir sobre o que salva o povo é discriminar o que pode ser útil à coletividade. Tal é a tarefa da justiça, alvo constante de Platão, de Aristóteles e dos escritores do helenismo, sejam eles estóicos ou epicuristas, gregos ou romanos. Segundo Cícero, certamente conhecido pelos autores do Renascimento, a justiça não se mede pela utilidade, nem mesmo por sua “conformidade com leis escritas e costumes nacionais” [obtemperatio scriptis legibus institutisque populorum], pois ninguém que pensa que eles são proveitosos poderia negligenciar as leis. Mas nada é mais louco do que a crença de que tudo é justo no que se encontra nos costumes ou leis dos povos. Seria verdade tal crença, mesmo se elas fossem criadas e postas em prática por tiranos? [Iam vero illud stultissimum, existimare omnia iusta esse, quae sita sint in populorum institutis aut legibus, etiamne si que leges sint tyrannorum?].

Para bem decidir, na salvação do povo, é preciso que os dirigentes e o próprio povo possuam virtude. No De Legibus Cícero adianta que “virtude”, a excelência própria de qualquer um ou de qualquer coisa, “é a razão completamente desenvolvida, e isto é certamente natural; pois tudo o que é honroso também é natural” [est enim virtus perfecta ratio, quod certe in natura est; igitur omnis honestas eodem modo] (DL, 1.16.44). (16) Cícero desconfia da razão dos que depositam fé nos costumes e leis dos povos. E se um tirano ditasse tais leis? 17Precisamos discutir um tanto o conceito de lei na Grécia. A significação da palavra νόμος, a lei, tem sido debatido. Ela é um outro nome para costume. Herodoto opera com o termo νόμος e νομίζειν. “o rei Dario durante seu governo perguntou aos gregos presentes em sua corte por qual soma de dinheiro eles concordariam em comer seus pais na morte. Eles replicaram que não fariam aquilo por nada. Dario, interroga os membros de um tribo indiana e lhes pergunta, na frente dos gregos, o quanto eles aceitariam para consumir seus pais no fogo. Eles gritaram horrorizados com a simples menção da coisa. As duas práticas são estabelecidas por nomos (νενόμισται) julgo que Pindaro estava certo quando no seu poema disse que o Nomos é rei de tudo”. A noção de lei era muito próxima à de costume. Em Hesíodo δίκη é o jeito pelo qual as coisas ocorrem e, portanto, o modo correto de fazê-las. Nomoi são as coisas que são e foram feitas habitualmente ( ενόμισται) e assim, feitas corretamente. Mas Heródoto escreve em tempos difíceis , de confronto com os persas, nas guerras, o que se liga ao ceticismo diante da lei escrita. Os gregos da liberação saúdam o Nomos como sua Carta de alforria, que os torna livres do governo arbitrário de um déspota . A nova geração começa a enxergar que o Nomos pode, ele próprio, ser tirano —uma série de costumes e convenções impostos aos homens que nem sempre concordam com eles. A idéia do νόμος como força liberadora se atenua quando a liberação é conquistada e o que era visto como salvaguarda de liberdade passa a ser visto como o oposto da liberdade. Surge o problema grave da política e da filosofia: como conciliar liberdade e lei? (18)

Segundo Marcello Gigante (19) antes dos textos hipocráticos a distinção entre natureza e nomos não se estabelecera. Os dois conceitos são autônomos. A physis liga-se à investigação natural (ser e devir) como em Parmênides ou Demócrito. Nomos pertence ao plano humano, definindo a ordem que deve imperar na sociedade, o costume. E Nomos, de Hesíodo a Píndaro, passando por Sólon (o legislador democrático) é uma norma divina de justiça. Há conexão entre nomos e physis. Nomos basileus é lei que preside homens e deuses. Gigante acentua uma idéia estratégica, segundo a qual o governante é a lei incorporada, nomos empsuchos. Para Ilaria Ramelli (20) Platão, ao recusar o relativismo sofístico na vida pública, funda a lei positiva na ética, que se baseia na metafísica. Como o sensível imita o inteligível, a lei positiva imitaria a natural. Ramelli se fundamenta na Carta Sétima (354e) onde pode ser lido que Deus é lei para o sábio. Como a lei é fundada na razão, o governante deve educar os dirigidos, não forçá-los. Dois problemas: como falar em “lei natural” em Platão, se antes do Demiurgo (leia-se o Timeu) não existe sequer natureza ordenada e esta recebe sua estrutura e ordem do trabalho técnico do referido demiurgo? Não forçar os governados é de fato uma tese platônica. Mas para os dirigir é preciso a mentira, o mito, etc. Questões difíceis que não podem ser descartadas a priori. Mas como, retomemos, conciliar a liberdade e a lei?

Maquiavel enfrenta o problema, sempre ao salientar o papel essencial das leis na ordem humana. Nos Discorsi, logo no início, ele afirma que “a lei civil é apenas a coleção das decisões, feitas por juristas antigos, as quais os juristas de hoje tabularam de modo ordenado para nossa instrução (Discorsi, I) (21. Em outra passagem ele afirma que “todos os escritores da vida civil [vivere civile] indicaram que ao constituir e legislar para uma república é preciso supor que todos os homens são péssimos (…) e que os homens só fazem o vem quando a necessidade os dirige para ele. Fala-se também que a fome e a pobreza torna os homens industriosos e as leis os torna bons”. (22) Ele considera a vida civil com base no governo das leis o mais elevado bem. A correta política se baseia na igualdade diante da lei (aequum ius) e acesso igual aos cargos com fundamento na virtude (aequa libertas). (23) O governante deve respeitar a lei, o melhor meio para assegurar o poder. O pressuposto, no entanto, encontra-se na existência do Estado como domínio, uma estrutura política com a prerrogativa jurisdicional sobre um povo e seu território. 

Maquiavel tratou de Estado em sentido próprio? As interpretações divergem. Viroli cita Fredi Chiapelli, segundo qual em O Príncipe a palavra “stato” denota a organização política de um povo sobre territórios, independente da forma de governo ou regime. Assim, Maquiavel seria um moderno em termos políticos. (24) Outros pensam que o Príncipe não tem o conceito de Estado como corpo abstrato que transcende os indivíduos que o compõem ou dirigem. (25)

Força ou lei? A disjuntiva pode ser mantida sem danos para a manutenção do Estado? “Deveis portanto saber como são os dois modos de combate: um com as leis (26) outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo das feras. Mas porque não basta, em muitas vezes, o primeiro não bastam convêm recorrer ao segundo. Logo, a um príncipe é necessário saber bem usar a fera e o homem. Esta parte é ensinada veladamente pelos escritores antigos, os quais escrevem como Aquiles, e muitos outros dentre os príncipes antigos, foram nutridos pelo centauro Quiron e sob a custódia de sua disciplina. Tal coisa nada mais quer dizer que eles tiveram como preceptor meia fera e meio homem, e que o príncipe deve saber usar uma natureza e outra; e sem uma delas seu poder não dura”. (27)

Nas linhas citadas pode-se constatar que Maquiavel recusa a antropologia política de Cicero. Este último escreve que, para garantir a autoridade política “de todos os motivos, nenhum é melhor adaptado para assegurar influência e mantê-la do que o amor; nada mais estranho ao fim referido que o medo”. E recomenda. “seja assumida tal prática, que apela para o apoio de todos os corações e não só para a segurança mas também para a influência e poder —banir o medo e inclinar ao amor. Assim conseguimos maior sucesso na vida privada e pública”. (28) Segundo Maquiavel, ao contrário do que afirma Cicero, os homens são “ingratos, volúveis, simuladores e dissimuladores, fogem do perigo, ávidos de ganho. Enquanto conseguires benefícios em seu favor , são devotos à tua pessoa, verteriam sangue em teu favor; ofereceriam suas propriedades, vidas, filhos (…) quando a necessidade os obriga. Mas quando estás em apuros, eles mudam”. Assim é mais prudente ao principe ser temido do que amado, se as duas coisas não podem existir ao mesmo tempo. “Os homens têm menor hesitação em ofender ou prejudicar um principe amável do quem um temível”.(29) Segundo Cicero “nenhuma crueldade pode ser útil, pois a crueldade é o que mais repugna a natureza humana, cujo caminho devemos seguir”. O contrário diz Maquiavel no capítulo 8 de O Príncipe. “Bem usada (a crueldade, RR) pode ser dita a que (se é lícito falar bem do mal) se comete numa só vez , porque necessária para se garantir o poder e depois nela não se insiste, mas transformada em medidas benéficas, tanto quanto possível, para os governados”.

Autores como Leo Strauss denunciam em Maquiavel algo já muito debatido, do século dezesseis ao dezoito, a passagem pelo mal. (30) Outros analistas afirmam que o pensamento de Maquiavel é uma ilusão, porque está sob o poder do mal. Como o mal, em termos metafísicos, não tem poder como causa do ser, o mal não tem poder sobre ações decisivas. “Como regra, maquiavelismo e injustiça política, se têm sucesso imediato, conduz os Estados e nações para a desgraça ou catástrofe em longo prazo (…) Se algum dia o maquiavelismo triunfar sobre a humanidade, só irá ocorrer porque todos os tipos de iniqüidade, fraqueza moral e adesão ao mal, ao operar numa civilização que degenera, a corrompeu previamente, ao preparar escravos prontos para homens sem lei”. (31)

Outros analistas tomam a via oposta. Luigi Russo afirma que “a descoberta científica mais importante de Maquiavel seria a necessidade do mal. Semelhante princípio passou para todo o pensamento posterior. Satanás é necessário à história deste mundo e o altar à divindade maléfica (…) tem sua razão de ser.”

Claude Lefort foi aluno de Merleau – Ponty e, por indicação do último, escreveu para a revista Les Temps Modernes. (32) Na revista, seus textos críticos eram assumidos com hesitações pelo editor maior, Sartre, conhecido pela sua alternância entre a crítica e a defesa do comunismo. Lefort editou o livro póstumo de Merleau – Ponty, Le visible et l´ invisible e também La prose du monde. A presença do mestre é evidente nos primeiros escritos de Lefort, publicados mais tarde no livro Les formes de l’ histoire (1978). Também foi importante nos trabalhos lefortianos a preocupação de Ponty pela pintura e letras, que aparecem em Sur une colonne absente (1978), cujo subtítulo é o seguinte : Écrits autour de Merleau – Ponty. Mas se existe presença, ela é transfigurada pela temática política de Lefort. Este usa a fenomenologia, mas para o seus próprios intentos. No entanto, foi Merleau – Ponty quem indicou a Lefort a leitura de Trotsky. Lefort tornou-se um militante da Quarta Internacional. Lefort criou, em companhia de Cornelius Castoriadis, uma fração na Quarta, chamada Socialisme ou Barbarie . 

O núcleo da fração, em termos de pensamento, era a crítica à burocratização da política operária, tanto em plano mundial quanto na França. A idéia central era recusar a ortodoxia marxista com base em Marx e na idéia de autonomia do proletariado, motor da revolução. Por não aceitar que o Partido pode dizer o que é certo ou errado (o históricamente necessário) levou Lefort à crítica de Trotsky, sobretudo a defesa trotskysta da URRS, apesar de Stalin. Depois das denúncias, feitas por Krushchov em 1956, durante o 20º Congresso do Partido da URSSS, Lefort escreve o “Stalinismo sem Stalin”, onde mostrava que as mudanças propostas apenas modificavam e não transformavam em profundidade a dominação stalinista, cujas raízes se encontram em 1917. Lefort faz tal análise com o uso de metodologia marxista. mostra que a ruptura do partido seguiu o rumo de constituir uma forma original de exploração de classe. Após as greves e protestos dos trabalhadores poloneses, também em 1956, ocorreram modificações na liderança partidária alí, a Revolução húngara, no mês seguinte, confirma a hipótese de uma classe operária autônoma. Lefort ainda pode pensar sua teoria como revolucionária porque ela estaria de acordo com os interesses e ações do proletariado que inaugura aquelas ações radicais. Ele explica a burocracia como uma nova classe dominante na URSS, com uso de categorias marxistas. Mas deixava em aberto a cegueira da classe operária e dos intelectuais no ocidente ao fenômeno. Porque seguiam o Partido, se nada os obrigava a tal atitude? 

A resposta levou Lefort para longe da crença de que o proletariado tinha uma vocação revolucionária. Em primeiro lugar, ele criticara virulentamente o artigo de Sartre, “Le communistes et la paix”, de 1952. Lefort mostra que Sartre não compreendeu corretamente a idéia de revolução proletária em Marx, e chama sua réplica com o seguinte título : “Da resposta à pergunta”, ainda mais demolidora. O problema não era filológico, embora Lefort se mostrasse superior a Sartre na leitura de Marx. Sartre não veria que a questão era filosófica. Lefort critica o “método dos intelectuais progressistas”. Como o Partido, que reivindica conhecer o melhor para o proletariado, os auto-denominados progressistas achavam que tal era a sua tarefa, quando os operários poloneses e húngaros afirmaram sua autonomia em 1956, para explicar a “necessária” repressão dos mesmos operários como fruto da história mundial, baseada na necessidade das quais a classe operária deveria ser consciente. É como se os intelectuais (e antes o Partido) fossem a boca da História, em vez de serem a voz crítica contra a injustiça e a opressão. O apelo à necessidade histórica faz com que os intelectuais progressistas não reconheçam as novidades surgidas no próprio campo histórico. Dez anos passam e após maio de 1968 Lefort publica no Le Monde um artigo com e reafirma a crítica contra a “ressurreição de Trotsky” (33)

Lefort partia da auto-organização proletária porque acreditava ainda na revolução. O stalinismo serve, neste momento, para ensinar ao proletários a confiar apenas em si mesmos. Mas ele vai mais adiante. No seu entender os próprios reunidos no grupo Socialisme ou Barbarie erravam ao proclamar o seu conhecimento do que seria melhor para os outros. Ele deixa o movimento em 1958, com um artigo “Organisation et Parti” (34) Mais tarde, em “O que é burocracia?” ele afirma que a crença na auto-organização era baseada na certeza ilusória de uma transparência perfeita entre motivos e ação, bem como numa racionalidade completa. Resta analisar a política na sua espessura, opacidade não passível de interpretações a priori. É o que foi empreendido em Le travail de l ´oeuvre: Machiavel (1972). 

Lefort analisa em primeiro lugar o nome e as representações de Maquiavel, e depois retoma oito tipos de interpretação sobre o maquiavelismo. Todas são insuficientes porque pretendem saber o que Maquiavel realmente afirma, imagina, ou deve ter afirmado. O trabalho da obra resulta de sua indeterminação (o que não significa arbitrariedade). Os escritos de Maquiavel iluminam justo porque não são unívocos. Unívocas são as doutrinas dos que mandaram no Partido, na URSS, ou nas pequenas seitas “revolucionárias” ligadas ao “marxismo leninismo trotskysmo”. Tal maneira de pensar conduz Lefort a publicar Un homme en trop (1976) um texto sobre um texto sobre o Arquipélo Gulag de Soljenitsyne. O homem em demasia, a que se refere o título, refere-se ao zek preso nos campos de concentração, a ser exilado de uma sociedade que deseja ser transparente a si mesma, ou para os seus dirigentes, eliminando os parasitas sob o comando do Egocrata que supõe possuir a visão da necessidade histórica, ou o poder de a imprimir no real.

Ao evocar a violência totalitária Claude Lefort comenta a simbiose que ocorre em sua gênese histórica: a máquina do partido —entidade impessoal e fria— une-se ao Líder carismático —encarregado de manter os vínculos orgânicos do fabuloso corpo social— e forma um bloco político duro como a rocha. O Partido vive pelo Chefe, todo instrumento precisa receber sua alma. Artificialismo burocrático e culto da personalidade correspondem-se no ícone do Egocrata. Stalin, Kim Il Sung, Mao, Fidel, Enver Hodja…a lista dos unificadores sociais é longa. “A instituição do totalitarismo implica o fantasma de uma sociedade sem divisão, una. Ele só aparece pela incessante produção-eliminação dos homens incômodos, parasitas, dejetos, nocivos. Mas o Um, quem o enuncia? E este resto, quem o elimina? É preciso um Outro, um Grande Operador. Inútil perguntar se a sua personalidade é o produto do culto ou vice-versa; ambos se constituem simultaneamente: são fenômenos sociais” (Lefort). E mais :no totalitarismo ocorre a “dissolução efetiva (ou melhor, efetivamente procurada) de todos os modos autônomos de socialização, sob a ação do poder de Estado.”. Na vida totalitária o poder só se torna invisível “com a contradição de tornar onipresente”. No sistema totalitário os intelectuais deixam exibir “o grande saber do Partido, mostram-se cada um deles como o seu reflexo; como bem diz Soljenitsyn, este saber os atravessa como se eles fossem um ser de cristal, eles são belos pensamentos”. 

Mas não é preciso viver no mundo totalitário “real” para servir como espelho do Partido e de sua ciência. Filósofos como Merleau Ponty, que viviam na França, assumiram essa tarefa abjeta. Em Humanisme et Terreur (35) ele apresentou críticas a Trotsky e recorda Maquiavel em vários trechos. Desde o início de suas considerações o filósofo opõe o ser ao aparecer na vida política. As democracia liberais parecem adeptas da paz, da lei, da justiça. Mas elas são guerreiras, colonialistas, violentas. Marx teria fornecido a receita para se desmascarar as formas liberais, quando se recusou a entender os regimes que se proclamam adeptos do liberalismo pelo que redigem suas Constituições. A conclusão marxista, aparentemente assumida por Merleau Ponty, é a seguinte : “um regime nominalmente liberal pode ser realmente opressivo. Um regime que assume sua violência poderia guardar mais humanidade verdadeira”. Fica a suspeita: o que poderia ser um regime violento (com polícia secreta, torturas e banimento de opositores, campos de concentração, assassinatos feitos por razão de Estado) humano e mais, verdadeiramente humano ? Não raro é preciso aceitar o sentimento negativo de comentadores, sobre a honorabilidade muito duvidosa de livros como o publicado por Merleau Ponty em 1947. (36)

O liberalismo significaria mistificação. Se ele é assim, como compreender o comunismo sem abandonar as lentes distorcidas das formas liberais? A técnica de leitura só pode ser encontrada na hermenêutica. Urge buscar as razões do comunismo fora das ideologias suas inimigas. O melhor é descrever a consciência dos próprios comunistas para captar a lógica de sua violência. O primeiro ensaio de Humanisme et Terreur analisa a denúncia de Arthur Koestler no livro O Zero e o Infinito (Darkness at Noon) (37) Para compreender o comunismo, tal como ele se efetivou sob Stalin, é importante seguir os que, no mesmo campo, se levantaram contra o Partido, é preciso compreender Bukarine, analisar o seu caso com o método fenomenológico. Trata-se então de estabelecer o essencial, sem a jaula dos acontecimentos históricos ou das intenções subjetivas dos agentes. Bukarine, diz Merleau Ponty, deve ser estudado como Koestler faz com o personagem militante de seu romance, Victor Salmanovitch Rubachev. Este homem imaginado por Arthur Koestler com os materiais das personalidades efetivas de Nicolau Bukarine, Karl Radek, Ivan Smirnov,é preso e convidado a confessar suposta traição com potências estrangeiras e de tentar o assassinato do número 1 do regime Durante sua prisão, ele é conduzido a pensar em si mesmo, na sua subjetividade tolhida pelo partido.

Rubachov era um comunista exemplar e, como tal, ajudara a fazer expurgos, definir obrigações dos militantes, cumpria ordens como ninguém. Mas se dispõe a lutar contra a ditadura que ele mesmo ajudou a instaurar. Pede a repressão que um amigo seu, Ivanov, dobre o seu intento. A técnica de usar um amigo para convencer prisioneiros foi conhecida por Koestler a partir de casos reais. Entre outros, o de Serguei Mratchkovsky em 1936, quando ocorreu o processo contra os trotskystas e os supostos adeptos de Zinoviev. Preso, Mratchkovsky resistiu 90 dias de interrogatório. Depois de três dias em conversa com Sloutsky que o admirava e servira sob suas ordens na guerra civil contra os brancos, ele capitula e confessa “para o bem do partido”. (38)

O caso Bukarine, escreve Merleau Ponty, joga luz plena na teoria de na prática da violência comunista, exercida por Bukarine sobre si mesmo, o que leva à sua própria condenação. É preciso, repete Ponty, de ver Bukarine não com os olhos dos outros, mas com os seus, com a sua consciência. O filósofo julga insuficiente a explicação narrada em O Zero e o Infinito. Rubachev é contra o partido porque não suporta a nova política da agremiação, a sua disciplina desumana. A revolta de Rubachev é moral. Como a sua moral foi a de sempre obedecer o partido, ele capitula sem restrições. A defesa de Bukarine nos processos de Moscou, no entanto, desce mais fundo do que propõe a alternativa entre moral e disciplina. 

Do início ao fim do processo Bukarine é alguém que não defende a honra pessoal, mas a revolucionária. Ele recusa a acusação de espionagem e sabotagem contra o Estado. Se capitula, não é por disciplina mas porque reconhece uma ambigüidade em sua conduta política, o que o condena. Ser contra o partido em instantes graves é enfraquecê-lo objetivamente, debilitar a revolução, destruir ganhos reais ou imaginários de 1917. Merleau Ponty deseja “compreender” Bukarine, o sentido de suas ações. Mas tal sentido depende, como no caso de todo ser humano, de uma conjuntura não inteiramente passível de ser conhecida. Em crise, quando o chão afunda, “a liberdade de cada um ameaça mortalmente a dos outros, a violência reaparece”. 

A violência comunista não pode ser compreendida segundo a optica liberal, afirma Merleau Ponty. É possível perguntar ao filósofo: “ e porque não”? Mas o escritor está mais preocupado em colher o comunista. Pelo menos é a sua desculpa, pois na verdade o que ele faz é justificar as ações dos camaradas, como o fará Sartre em data próxima. Na tarefa de circunscrever a prática comunista, Ponty apresenta duas questões. A primeira pode se enunciar do seguinte modo: a violência no comunismo de 1947 teria o mesmo sentido que lhe reconhecia Lenine, nos inícios da Revolução ? A segunda pergunta tem a forma seguinte : o comunismo é igual às suas intenções igualitárias ?

A resposta do filósofo tem na escrita de Maquiavel o seu ponto de partida. “A astúcia, a mentira, o sangue derramado, a ditadura se justificam se tornam possível o poder do proletariado e nesta medida apenas. Em sua forma, a política marxista é ditatorial e totalitária” (HT, p. XIV). E vem a pergunta obscena de Merleau Ponty. A violência é de quem, dos dirigentes partidários ou das massas ? E a justificativa da pergunta é ainda mais grave, em termos éticos : “Lenine pode insistir sobre a autoridade do partido, a qual guia o proletariado. Sem ela, o mesmo proletariado ficariam no sindicalismo e não iria à ação política. Ele atribui muito ao instinto das massas, pelo menos desde que o aparelho capitalista tenha sido quebrado. Ele chega a dizer, no início da revolução: ´não existe e não pode existir plano concreto para organizar a vida econômica. Ninguém o poderia fornecer. Só as massas são capazes disso, graças à sua experiência’”. Que Merleau Ponty tenha chegado ao recorte mentiroso acima, é algo a ser entendido em outro lugar. Mas a existência de tais recortes textuais recorda muito a técnica comunista de recortar fotos e eliminar pessoas incômodas ao regime, deixando apenas os sobreviventes na luta pelo poder. 

Vejamos. Na época do trecho citado por Merleau Ponty, com pleno conhecimento de causa, Lenine tinha pronta a doutrina, que logo se efetivou na prática, da ditadura proletária. Para ele, as leis fundamentais do marxismo são do mesmo tipo das leis naturais. O marxismo seria uma ciência que apresenta leis necessárias. Não seria preciso, por exemplo, para dar o golpe que instauraria a ditadura proletária, de nenhuma legitimidade popular, institucional ou das massas. A sua preocupação, quando produziu o trecho indicado, era mostrar que a política bolchevista estava de acordo com os princípios (leis…) marxistas. Se tal era o seu fito no plano doutrinário, no prático ele seguiu à risca a teoria.

Em julho de 1918 ele manda fuzilar ou deportar centenas de prostitutas que levam os marinheiros para os bares e antigos oficiais para prevenir uma sublevação em Nijni Novgorod. (39) Em agosto, ele exige a abertura de um campo de concentração para aplicar “o terror de massa” sobre padres, guardas brancos, kulakes. (40). Em dezembro do mesmo ano ele se queixa de Maria Spiridonova, líder dos socialistas revolucionários de esquerda, o que resulta na internação psiquiátrica da mesma pessoa, talvez uma das primeiras da longa lista de internados pelo regime, até a sua falência. (41) Sobretudo, Lenine é o chefe que assimila o civismo e o policialesco : “o bom comunista é também o bom techkista”.(42) E também a elaboração do artigo 58 do Código Penal, que justifica o terror, por Lenine em 1922 (43) E as medidas de sempre em regime despótico: supressão da liberdade de imprensa, de associação, de reunião. “A ditadura é um poder que se apoia diretamente na violência e não é ligada por nenhuma lei. A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que não é ligado por nenhuma lei”. (44) Finalmente, a ditadura tem o condão de compensar o atraso das forças produtivas russas. Assim o golpe de Estado bolchevique se justifica, não se legitima porque esperar o Congresso dos Sovietes “é uma ilusão constitucional”. (45) Comenta D. Colas : “A maioria do povo seguirá e segue os bolcheviques. Pois o partido cria a legitimidade que lhe convêm, ao transformar o espírito das massas, não pelo discurso mas pela passagem ao ato. ´A resolução inflexível ´do partido modifica o que pensam os indecisos”. (46) Nada de vãs palavras, inscritas nas falas das pessoas ou nas leis. A solução correta e científica, segundo Lenine, encontra-se na força: “seria nossa perda, seria puro formalismo esperar o voto indeciso de 21 de outubro; o povo tem o direito e o dever de decidir tais questões não por votos mas pela força; o povo tem o direito e o dever, nos momentos críticos da revolução, de guiar seus representantes, até os melhores, em lugar de os esperar”. (47)

E, como ainda analisa D. Colas, “o modo de acesso ao poder comanda o seu modo de exercício”. A repressão violenta dos “inimigos” internos se baseia na premissa de que todo e qualquer regime política tem como base a opressão dos vencidos. Em O Estado e a Revolução, a antiga máquina opressiva do Estado burguês é desmantelada pela ditadura proletária. Mas com a instalação ditatorial, o Estado não tende a ser dissolvido, pelo contrário. A culpa? O proletariado está preso nas malhas do atraso feudal, das camadas pequeno burguesas, cuja figura maior é o kulak, vampiro que esfaima as cidades e que é preciso eliminar. (48) Em 1918 ainda, ele responde as críticas dos mencheviques e comunistas de esquerda sobre o seu autoritarismo ditatorial, críticas nas quais recordam César e Napoleão 3º. No texto “As tarefas imediatas do poder dos sovietes” (49) ele mostra que não há incompatibilidade entre ditadura pessoal, mesmo em política, e a natureza do poder soviético. A ditadura pessoal, com frequência, foi na história “a expressão, o veículo, o agente da ditadura das classes revolucionárias”. A ditadura jacobina foi compatível com a democracia burguesa. E chega a negativa do que afirmara O Estado e a Revolução: como não se definem como anarquistas, os soviéticos aceitam os constrangimentos do Estado para ir do capitalismo ao socialismo. Não há, pois, contradição alguma entre a democracia soviética e a ditadura com recurso ao poder pessoal, ditatorial. (50) 

A tese sobre a ditadura pessoal se baseia, por sua vez, na premissa do controle volitivo sobre todo e qualquer processo de ação coletiva. A ditadura é uma técnica e organiza o político de maneira eficaz. A ditadura continua, no Estado, o que se efetiva nas fábricas : “é preciso dizer que toda grande indústria mecânica, que constitui justamente a fonte e a base material de produção socialista exige uma unidade rigorosa de vontade, absoluta, que regula o trabalho comum de centenas, de milhares e dezenas de milhares de homens” (51) A fábrica, com sua disciplina centralizadora, é o modelo proposto por Lenine para o partido e para Estado ditatorial. Trata-se do imaginário mecânico que opera no pensamento de Lenine, a todo vapor. (52) Segundo o líder bolchevique, a organização multiplica a força. Ao se organizar e organizar o social, o militante “adquire uma vontade única do milhar, da centena de milhares ou do milhão de militantes de vanguarda, que se torna a vontade da classe”. (53 ) Ainda em O Estado e a Revolução, a ditadura teria por alvo, nos primeiros tempos, fazer da sociedade “um só escritório, uma só fábrica”. Ela deve ser exercitada pelo partido que tem o mesmo fim, o funcionamento de uma usina política. (54)

A organização é tudo. A massa e o proletariado são movidos pelo partido. É o que se diz, mais propriamente: massa de manobra. Não se pode justificar, portanto, a citação truncada de Merleau Ponty, segundo a qual os dirigentes comunistas aprenderiam algo com a massa, devido à “experiência” dessa última. Ponty não poderia deixar de conhecer as posições de Lenine e companheiros. Se as desconhecia, seu livro “Humanismo e Terror” é irresponsável. Se conhecia, ele foi cúmplice. “Sem a organização a classe operária é zero”, afirma Lenine para quem quiser ouvir, inclusive os filósofos da Rive Gauche parisiense. (55) E comenta ainda Colas : “O partido encontra-se assim na posição de um demiurgo em relação à classe”. É natural, para aquele tipo de pensamento a equação seguinte : classe proletária=Partido=poder soviético.(56) Um pequeno problema, indica Colas: que fazer com os operários empíricos, como os contrários ao golpe de outubro, e com os insurgentes de Kronstadt e tantos mais? Como a ditadura não é feita para reunir os inimigos em aliança, mas para os eliminar, a mesma receita vale para os refratários, mesmo se eles pertencem ao proletariado, em nome de quem a ditadura foi instituída. Trata-se de elevar o operário empírico ao conceito, à teoria elaborada por Lenine, o ditador. Se os tipógrafos se erguem contra o “seu” poder, eles devem ser eliminados como…insetos.

E vem o pior, o que une Lenine e os fascismos nas suas campanhas pela “depuração”. No caso do nazismo, tratava-se de depurar a raça branca dos supostos parasitas (judeus, ciganos, homossexuais e outros); no caso de Lenine, trata-se de depurar a classe em si, a empírica, de todos os que a impedem de se tornar “para si”, submetida à disciplina e à liderança dos ditadores, os camaradas dirigentes, e do ditador supremo, ele mesmo. Assim, os tipógrafos que se levantaram contra o partido são ditos, por Lenine, “insetos nocivos” a serem eliminados da Rússia. No texto “Como organizar a emulação?” ele lista todos os piolhos e assemelhados que devem desaparecer : os ricos, os vagabundos, os operários que não se submetem ao partido, os intelectuais histéricos. Todos esses setores são apenas sujeira que deve ser limpa. O meio de fazer tal limpeza encontra-se nos fuzilamentos, nas deportações, nos trabalhos degradantes. A ditadura, finaliza Colas o seu trabalho essencial, deve limpar (cistka) as instituições feudais. A ditadura leninista repousa sobre a destruição do outro, ela pretende possuir o monopólio da verdade. A “legitimação” é fornecida pela força, pelo terror institucionalizado em proveito do partido. 

Podemos retornar às falas de Merleau Ponty sobre a violência comunista. O leninismo rompe com a moral universal, a burguesa, em nome da da moral universal proletária. E aqui, diz Merleau Ponty afirma, Maquiavel falha. Nesta moral diferente nem todos os meios são bons. Por exemplo, não se pode usar da astúcia sistemática com o proletariado. Novamente precisamos interromper, estupefatos, a leitura de Humanismo e Terror. Não mesmo? Não se pode usar de astúcia com o proletariado? Mas vejamos o argumento do filósofo. Esconder o jogo verdadeiro do proletariado (em outras palavras, seguir a raison d´ État…) diminuiria a consciência de classe e a vitória proletária fica comprometida. O raciocínio, como dizem os compatriotas de Ponty, é “tiré par les cheveux”. Seria genial, não fosse a má fé do escritor, a imagem que segue o juízo acima. Merleau Ponty usa o símile da música para ilustrar a “impossibilidade” do uso permanente e profundo da astúcia. Ele recorda Rameau e diz que a consciência de classe e o proletariado são a baixa fundamental da política marxista. Ela pode se afastar por modulações, segundo as circunstâncias. Mas a modulação muito ampla ou longa destruiria a tonalidade. 

Recordemos: para Rousseau, o som fundamental serve como fundamento do…. acorde ou do tom. Baixa fundamental serve de fundamento para a harmonia. Das quatro partes da música acima das outras, ela é a mais baixa de todas (donde o nome, baixa). É a mais importante das partes, sobre ela se estabelece o corpo da harmonia. Lugar comum entre os artistas : quando a baixa é boa, raramente a harmonia é ruim. E Rousseau expõe então o sistema de Rameau, que julgou ter teorizado a música a partir da baixa fundamental. Em plano oposto, Rousseau, sem desprezar a harmonia, é favorável à melodia. Não apenas Rousseau, mas seus amigos/inimigos da Enciclopédia negam a Rameau a sua postulação, sobretudo quando ele pretende demonstrar o fundamento da música, como se esta fosse a base das matemáticas, das ciências, da moral… D´ Alembert critica Rameau e Diderot faz dela a cabeça de turco para destruir a idéia de razão anterior ao pensamento das Luzes. O Sobrinho de Rameau mostra que os indivíduos humanos são desiguais e iguais ao mesmo tempo. (57) O ponto mais grave é a crítica de Rousseau, em se tratando de música: se esta “só pinta pela melodia, e dela tira toda sua força, segue-se que toda música que não canta, por mais harmoniosa que ela seja, não é música imitativa e não pode emocionar nem pintar com belos acordes, logo cansa os ouvidos e deixa o coração frio…”. (58) Em tal sentido, e só nele, haveria um nexo entre a baixa fundamental e o operariado. Este último, cansado da “harmonia” imposta pelo partido, logo se cansa e ganha um coração frio diante da revolução. Mas não nos enganemos: os campos de concentração, as prisões, os fuzilamentos, a tortura, logo colocarão seus ouvidos no compasso da música que emana do Kremlin. Fica apenas o tom desafinado das justificativas produzidas por Merleau Ponty para ajustar sua consciência à ordem (ou pauta?) do dia. 

Como o argumento musical não funciona (e Ponty não é um energúmeno diretamente a serviço do partido, percebe a enormidade cometida) o texto de Humanismo e Terror indica que, ao contrário da sinfonia proletária, ocorre de fato na orquestra do maestro Lenine (e dos que o sucederam) a imobilização que originou a “renúncia” à liberdade revolucionária do proletariado, nos sovietes e no partido. Com o fato, deu-se também a renúncia à “apropriação humana do Estado”. E como isso foi efetivado? De maneira muito polida : Lenine “convidou gentilmente” diz Ponty, intelectuais como Gorki ao exílio…Apenas ao exílio…na soma do filósofo falta muita coisa.

O fantasma do liberalismo persegue Merleau Ponty. Como criticar a violência comunista, sem cair nos engodos liberais? “Não temos o direito de defender os valores de liberdade e consciência se não estivermos seguros ao fazê-lo, de que servimos os interesses de um imperialismo e nos associar às suas mistificações”. Numa penada, o escritor paga o lip service ao anti- imperialismo à serviço da URSS (estamos em 1947…), ataca o pensamento liberal e o confunde com a política de uma grande potência, sem maiores cuidados hermenêuticos. Se os liberais que defendem os EUA têm seus defeitos, de outro lado os comunistas “não consentem no diálogo, a não ser que os outros sejam mudos”, diz Ponty. “Na ordem cultural eles exigem que os intelectuais não comunistas sejam ou adversários ou ´inocentes úteis´. Quando pensam defender ´a causa´, sentem-se no direito de atacar a moral dos adversários. Os intelectuais comunistas não participam de ações comuns das quais não tenham a direção”. Eles defendem a URSS e atacam quem diga que nela, ou nos satélites, as coisas vão mal. Quando atacado, o comunista no Ocidente sente-se e se proclama “caluniado”. Mas que se lembre : a “nossa moral” é diferente da moral “deles”, os burgueses. Ora, acrescenta Ponty, o homem público não pode se queixar, porque se propõe a dirigir a vida dos outros. E não pode se lamentar também se a sua imagem é inexata, segundo o seu próprio juízo. Como Diderot dizia do artista no palco, é preciso que o homem público seja frio, domine as emoções. O ator “quente” rápido se cansa e deixa de convencer o público. O ato político, por si mesmo, é impuro porque é ato de um sobre o outro e ato de muitos. Nenhum político pode dizer que é inocente. Governar é prever. O político não pode se desculpar com o imprevisto. Ora, existe o imprevisível, eis a tragédia. Uma pitada de Maquiavel, com o Fatum e a fortuna, permitem a Merleau Ponty resolver o problema do plano “científico” comunista, na verdade a ditadura, e o movimento ondulatório das massas, do proletariado “em si” que se recusa a se elevar ao “para si” do Partido. 

Não existe ciência do futuro, diz nosso autor. Os que seguem o partido podem ter muita virtù mas também podem ter muito apego à URSS, muito sadismo policial, inveja, servilismo diante do poder, alegria miserável de ser forte. Sempre se diz que a política é a arte do possível. O que não suprime a iniciativa das pessoas: como não sabemos o futuro, nos resta, após tudo bem pesado, empurrar o não conhecido para a nossa parte. Merleau Ponty então discute, com as lentes de Raymond Aron, as posições de Max Weber. Entre a moral da responsabilidade que julga não segundo os intentos, mas de acordo com a consequência dos atos, e a moral da “fé” ou da consciência, que põe o bem no respeito incondicional dos valores, quaisquer que sejam as consequências, Weber recusa escolher, sacrificar a moral da fé, pois não é Maquiavel. Mas também recusa sacrificar o resultado, pois sem ele o ato perde todo sentido. Há politeísmo de valores. Weber critica o realismo político mas também critica a moral da fé. A moral só pode ser o imperativo categórico ou o Sermão da Montanha. Tratar o semelhante, no entanto, como um fim e não como um meio é comando rigorosamente inaplicável em toda política concreta. Por definição, a política combina os meios e calcula as consequências. Dar a outra face é falta de dignidade se não for o ato de um santo. E santos não têm lugar na política. Esta é por essência imoral. Ela exige “um pacto com as potências do inferno porque é luta pelo poder e o poder leva à violência da qual o Estado possui o monopólio do uso legítimo”.

Podemos perguntar a Merleau Ponty: e quando começa o monopólio “ilegítimo” da força ? O filósofo diz que “jamais disse uma só palavra em favor das repressões abusivas”. E quanto à repressão “não abusiva”, existiria alguma? Mas Merleau Ponty sabia muito bem que repressões abusivas existiam na URSS, desde a era Lenine.

A partir daí, o filósofo analisa o livro de Arthur Koestler. Em primeiro plano, a tese de fundo: a honra, a desonra, a sinceridade e a mentira, tais palavras não têm sentido para o homem da história. Existem apenas traições objetivas e méritos objetivos. Assim, as massas não carregam mais o regime, elas o obedecem. Fazer oposição à ditadura do proletariado é trair o movimento revolucionário objetivamente. Por esse motivo Rubachov assina a confissão que o inculpa. A honra pessoal é noção burguesa, sem sentido no Estado socialista. A distinção entre subjetivo e objetivo, que ainda permite a oposição de Rubachov é ignorada pelas novas gerações dirigentes, policiais e outros funcionários do regime. Acabou a História. A razão, se posta livre em si mesma, é apenas “uma bússula avariada”.
Não é possível ignorar a noção de sentido ligado à razão e ao espaço. Imanuel Kant, apenas um autor burguês para os intelectuais comunistas, escreveu páginas estratégicas com o título de “Como orientar-se no pensamento?”. Kant explora as possibilidades geográficas, matemáticas e morais do problema. Muito a propósito, quando se fala na razão ensandecida do totalitarismo, as palavras grafadas por ele no final do texto. “…a liberdade de pensar torna-se também no sentido de que se opõe à pressão sobre a consciência moral; Quando, sem qualquer poder em matéria de religião, há cidadãos que se constituem tutores dos outros e, em vez de argumentos, sabem banir todo o exame da razão mediante uma impressão inicial sobre os ânimos, através de fórmulas de fé prescritas e acompanhadas pelo angustiante temor do perigo de uma inquirição pessoal.”. Que outra coisa seriam as “palavras de ordem” do Partido, que definem o campo da consciência militante, sobretudo quando pensamos nos processos de Moscou e em tantos outros processos similares, nas experiências comunistas ? 

De fato, assevera Kant mais à frente, “a liberdade de pensamento significa ainda que a razão não se submete a nenhumas outras leis a não ser àquelas que ela a si mesmo dá; e o seu contrário é a máxima de um uso sem lei da razão (…) a conclusão que daí se tira é naturalmente esta: se a razão não quer submeter-se à lei, que ela a si própria dá, tem de se curvar sob o jugo das leis que um outro lhe dá, sem lei alguma, nada, nem sequer a maior absurdidade, se pode exercer durante muito tempo. Por conseguinte, a consequência inevitável da declarada inexistência de lei no pensamento (…) é esta : a liberdade de pensar acaba por se perder e, porque a culpa não é de nenhuma infelicidade mas de uma verdadeira arrogância, a liberdade, no sentido genuíno da palavra, é confiscada”. (59) O gênio que abole as leis da sua própria razão, termina sem razão, sem lei, sem liberdade. Palavras proféticas, se pensarmos o quanto os intelectuais dirigentes do Partido se colocaram acima das leis jurídicas e lógicas, justo para abolir a liberdade de pensamento dos outros.

Mas precisamos retornar ao juízo de Merleau Ponty sobre o livro de Koestler. Ele afirma que em O Zero e o Infinito há pouco marxismo. Os homens, nos personagens descritos por Koestler, são apenas espelhos do que os envolve, o grande homem reflete do mais exato as condições objetivas para agir. A história, uma ciência rigorosa, faz do estadista o engenheiro que, em vista dos resultados, emprega instrumentos úteis. A sua lógica não é a viva, usual em Marx, que se exprime pelas necessidades objetivas e pelo movimento expontâneo das massas. É difícil encontrar em Marx comprovação desses enunciados de Merleau Ponty, sobretudo o que se refere às massas. O nosso filósofo não se aprofunda nesse ponto, e nos deixa com a nossa fome de verificação. É bom notar, no entanto, que tal lógica viva (o que faz recordar o recorte feito por Benedetto Croce sobre o que seria “vivo” e “morto” na filosofia hegeliana, some do cenário, quando Ponty publica a sua resenha sobre “A contradição de Trotsky”, de Claude Lefort. Naquele texto, Ponty assegura que o marxismo é um naturalismo, nada mais.

A lógica do marxismo em O Zero e o Infinito, diz Ponty, é a do técnico que só trata com objetos inertes e os maneja como quer. Assim, o erro é atenuado ao máximo, na máquina do partido. “Eu e tu podemos errar, mas não o partido” diz no livro de Koestler um burocrata militante. A história, argumenta o filósofo francês, deixa de ser marxista e se transforma numa força externa, cujo sentido é ignorado pelo indivíduo, ela é pura potência do fato. Diz Koestler : “ a história não conhece escrúpulos ou hesitações. Inerte e infalível, ela escorre para o seu alvo. A cada curva de seu curso ela deposita a lama que carrega e cadáveres afogados. A história conhece seu caminho. Ela não conhece erros”. Antes da mecanização absoluta do partido no Estado, a oposição tinha a múnus legítimo de discutir e apelar para as massas. Mas na crise ela deve apoiar incondicionalmente o regime. Koestler cita Maquiavel, o qual ensina que as palavras servem apenas para disfarçar os fatos, desculpar o disfarce se este é descoberto. Contra Maquiavel, recorda a palavra evangélica : seja o teu sim, sim, e não, não. O resto vem do diabo”.

O militante, segundo Koestler, por sistema e inventa post festum boas razões. Poderíamos dizer, com a escola freudiana, boas racionalizações. (60) Koestler afirma que no comunismo “o indivíduo é engrenagem de um relógio, montado para a eternidade e nada pode deter ou influenciar seu mecanismo. Ele é o signo da fatalidade econômica. O partido exigia que a engrenagem se revoltasse contra o relógio e mudasse o seu movimento”. Ora, o relógio foi remontado, o indivíduo deveria se submeter ou ser arrancado do mecanismo. Tudo deveria ser objetivo. (61)

Chegamos no ponto mais estranho da longa apologia efetiva por Merleau Ponty, em defesa dos comunistas. Falo do capítulo “O racionalismo de Trotsky” em Humanismo e Terror. Segundo nosso filósofo, tanto para o promotor que agia em nome do Estado soviético, quanto para Trotsky, os processos de Moscou não apresentam problemas de forma e de fundo. Para o promotor os acusados têm inequívoca ação que define sua culpa. Para o segundo, eles são inocentes. A lista oficial é grande : Zinoviev, Kamenev, Rykov, Bukarine, Trotsky compunham com Stalin o Bureau político de Lenine. Zinoviev e Kamenev fuzilados no processo de 1936, Rykov fuzilado depois de 1937, Bukarine fuzilado em 1938…Radek, também do Comitê Central, executado em 1937. Dos que figuravam no testamento de Lenine, só resta Stalin. Para Trotsky ocorreu a passagem da revolução para a contra revolução, após o Termidor soviético. Trata-se da diferença, anota Merleau Ponty, entre o partido idealizado e o de fato. O primeiro lidera as massas, o segundo as substitui e controla. O racionalismo de Trotsky o teria enceguecido: no seu cômputo havia razão em demasia.

Chegamos às considerações finais sobre os comunistas : “por método, o comunista se recusa a acreditar na palavra dos outros, a tratá-los como sujeitos racionais e livres. Como o faria, se eles são, como ele mesmo, expostos às mistificações ? Atrás do que eles dizem e pensam deliberadamente, ele quer encontrar novamente o que eles são, o papel que desempenham, talvez contra sua vontade, no choque de potências e na luta das classes. Ele precisa desmascarar as ilusões liberais. Para ele, Maquiavel conta mais do que Imanuel Kant. Engels dizia de Maquiavel que ele era o ´primeiro escritor moderno digno de ser nomeado´. Marx dizia da História de Florença que se tratava de ´uma obra de mestre´. Ele considerava Maquiavel, Spinoza, Rousseau e Hegel os descobridores das leis de funcionamento do Estado”. (62)

Depois da crítica edulcorada, as condições para o “diálogo” com os comunistas: “um grupo de homens só poderá receber determinada missão histórica —acabar a história e fazer a humanidade— se for capaz de reconhecer os outros homens como homens e por eles serem assim reconhecidos. Ora, quer se trate do principe, dos velhos, dos sábios, dos funcionários estatais, ou mesmo dos santos, o papel histórico desses homens ou grupos consiste inteiramente em dominar os outros pela força, ou pela suavidade. E se é por um sábio equilíbrio dos poderes que se define a civilização, esta civilização ainda é luta, violência, não reciprocidade”. Nada mais próximo dessas frases, do que a tese de Carl Schmitt : “o Estado é apenas uma guerra civil continuamente impedida por um grande poder” (63)

O mundo humano, segundo Merleau Ponty, é um sistema aberto ou inacabado e a mesma contingência fundamental que o ameaça de discórdia o subtrai à fatalidade da desordem e proíbe desesperar, com a condição de que se lembre : os aparelhos são homens. E que também se mantenha e se multiplique as relações entre homem e homem. O eterno humano, como bolha de sabão onda ou simples diálogo, encerra indiviso toda a desordem e toda a ordem do mundo. Nada que não tenha sido falado pelo poeta : skias onar anthro‚pos, “o homem é o sonho de uma sombra”.(64) Mas o poema diz o belo trágico, com muita verdade. Já o filósofo que louva, com a desculpa de “compreender” o desumano sistema totalitário, fica na sombra e descreve o sonho dos comunistas, pesadelo de seres humanos, aos milhões. 

No texto “Ao redor do marxismo” (65) Merleau Ponty diz que o próprio de Marx é admitir que há, ao mesmo tempo, uma lógica da história e uma contingência da história, que nada é absolutamente necessário. (66) Se abandonarmos a idéia teológica de um fundo racional do universo, a lógica da história é uma possibilidade entre outras. Talvez seja isso mesmo, o marxismo seria um sistema teológico invertido e pervertido com seus dogmas, sacerdotes, inquisição, autos da fé. Mas tal símile é tão sem sentido quanto o usado por Trotsky e seus amigos para designar o Termidor soviético. A própria leitura do 18 Brumário poderia advertir para semelhantes comparações que apenas mascaram os fatos. Usar termos jacobinos para a indicação dos crimes comunistas, é disfarce, ou melhor, é rasönnieren hipócrita. Nada mais.

A máquina do partido é onisciente… deixemos Merleau Ponty por enquanto e vejamos o que se passa no Partido Comunista brasileiro. Quando se tratava de reuniões partidárias, o militante de base era obrigado à atitude mental de “assimilar a palavra de ordem” emitida pela direção, a “linha justa”. Na auto biografia Vida de um Revolucionário, Memórias (67) Agildo Barata narra o processo “educativo” : “Nas raras vezes em que se discute, o objetivo da discussão é sempre o discutir para assimilar o pensamento da direção (…) ou melhor, não se discute, pedem-se esclarecimentos. Quando alguém diverge é imediatamente admoestado : ´você é o único que discorda, ou ´quer o camarada enxergar melhor que a direção?’ e o audacioso indagador chega a conformar-se, ´se sou só eu quem discorda, quem deve estar errado sou eu´”. (68)

O “argumento” dos camaradas para submeter o semelhante recorda o ataque de Albert Burgh a Spinoza (69) : “como ousareis negar a força da persuasão que a religião cristã extrai das miríades de homens entre os quais encontram-se milhares que, pela doutrina, o saber, a sutileza verdadeira e solidez da mente, a perfeição da vida nos ultrapassam e dominam….e que unanimemente afirmam que o Cristo, filho do Deus vivo, se fez carne, etc?”. Vale a pena ler a resposta de Spinoza a Burgh. O incrível, diz o filósofo, aconteceu : Burgh convertido ao catolicismo (tratava-se de um promissor estudioso das ciências) e ainda mais se transformou em militante da Igreja. Nela, já aprendeu a insultar os adversários com insolência. “Deplorais que eu tenha sido dominado pelo Príncipe dos espíritos malignos. Não vos atormenteis, peço-vos, e tomai fôlego! Quando estivestes na posse de vossa razão, admitíeis, salvo erro, um Deus infinito pela virtude do qual todas as coisas existem e se conservam. E agora que sonhais com um Príncipe inimigo de Deus, eis que tal Príncipe, contra a vontade divina, domina e engana a maioria dos homens (os bons são raros, com efeito) que Deus, por esta razão, entrega a este mesmo mestre que lhes inspira crimes para que recebam tormentos eternos. A justiça divina suporta, pois, que o diabo engane os homens impunemente, mas ela se opõe a que permaneçam impunes os infelizes enganados pelo demônio. Mesmo tais absurdos seriam suportáveis se adorásseis um Deus infinito e eterno e não o que Chatillon, na cidade chamada Tienem em flamengo, deu impunemente a comer para seus cavalos. E me lamentais, pobre infeliz! E tratais como quimera uma filosofia que desconheceis! Jovem insensato ! Quem vos perdeu a este ponto, que acreditais engolir e ter nas entranhas o ser soberano e eterno ? Quereis raciocinar no entanto, e me perguntais como sei que minha filosofia é a melhor dentre todas as que foram, são e serão ensinadas no mundo. É a mim que caberia vos apresentar a questão. Não pretendo ter encontrado a melhor filosofia, mas sei que conheço a verdadeira. Me perguntareis como o sei. Responderei : do mesmo modo que sabeis que os três ângulos de um triângulo igualam dois retos e ninguém dirá que não basta, por pouco que o cérebro seja sadio, e não sonhe com espíritos impuros que inspirem idéias falsas semelhantes às verdadeiras, pois o verdadeiro é índice de si mesmo, e do falso”. E Spinoza discute o número dos fiéis, doutores, místicos do catolicismo, mostra que outras religiões deles estão aglomeradas, etc. O critério externo (número, magister dixit, e outro semelhantes, nada prova.

Note-se que no final do trecho citado acima, há uma clara indicação do gênio malicioso (versutus et callidus) utilizado por Descartes que separa o cogito e a natureza. O cogito, assim, fica entre o demônio e o Deus enganador, ou o Deus veraz que está fora da natureza. A transcendência divina e a transcendência da direção partidária, no caso dos comunistas, tem a mesma função : fazer com que o militante, católico ou comunista, sintam medo do erro, do pecado, da tentação. No caso do católico, o medo da tentação mundana. No caso do comunista, o medo de tudo o que não for certo e seguro, de tudo o que não for dado nos dogmas do partido e de sua inumerável plêiada de doutores, confessores, mártires, místicos, etc..

Retornemos aos comunistas, por volta de 1947. Com o Informe Zdanov há uma transformação do discurso e da prática no partido. Em Varsóvia ocorre uma reunião para criar o Kominforn (Bureau de Informação dos Partidos comunistas e dos trabalhadores). Naquele ano, em setembro, o encontro ocorre em Szklarska Poreba. Os partidos deveriam decidir se compareceriam à Conferência do Plano Marshall (Paris, 1947). A sede inicial seria Belgrado, mas a Iugoslávia seria expulsa em 1948 devido a tensões entre Tito e Stalin, o clima não era favorável à sua hospedagem, portanto. O projeto do Kominforn era o de coordenar a ação dos partidos comunistas sob orientação soviética. Tal agrupamento foi dissolvido em 1956. Antes dele existe o Komintern (Kommunistische Internationale ) cuja existência vai de 1919 até 1943, produzida pela cisão com a Segunda Internacional. Stalin desconfia do Komintern . So ele só existiram dois congressos. (70) Claudin analisa a “degeneração” da doutrina marxista sob Stalin, para quem as necessidades da URSS deviam ser defendidas pelo Komintern, pois este seria um instrumento da diplomacia soviética e de seus satélites. Trata-se, como sempre, da pura raison d´ État russa com a máscara da revolução proletária. Antes de 1947 a política oficial comunista era de “aliança duradoura” com os países ocidentais e os seus governos. (71) Da grande aliança se passou à doutrina “dos dois campos opostos, o socialista e o capitalista” (Informe Zdanov, citado por Claudin).

Assim, se voltarmos ao problema de Bukarine, podemos agora olhar a carta que ele remeteu para Stalin em 10 de dezembro de 1937. Prefiro traduzir o documento segundo a versão francesa acessível na internet. (72)

“Estritamente confidencial .
10 de dezembro de 1937. Pessoal.
Peço a ninguém que leia esta carta sem a autorização de I.V. Stalin.
Para I.V. Stalin Iosif Vissarionovitch !
Eu te escrevo esta carta que, sem dúvida, é minha última carta. Peço-te permissão de escrevê-la, embora esteja preso, sem formalidades, tanto mais que esta carta a escrevo apenas para tua pessoa, e a existência ou não existência desta carta depende apenas de ti…
Hoje é aberta a última página de meu drama, e talvez de minha vida. Hesitei longamente antes de escrever e tremo de emoção, sentimentos aos milhares me submergem e me controlo com muita dificuldade. Mas é precisamente porque estou na beira do precipício que desejo te escrever esta carta de adeus, enquanto ainda é tempo, enquanto sou capaz de escrever, enquanto meus olhos ainda estão abertos, enquanto meu cérebro funciona. Para que não ocorra nenhum malentendido, desejo te dizer desde já que para o mundo exterior (a sociedade)
1- Nada retirarei publicamente- do que escrevi durante a instrução
2- Nada te pedirei quanto ao caso, e tudo o que dele resulta, não te implorarei nada que pudesse desviar o processo que segue seu curso. Mas é para a tua informação pessoal que escrevo. Não quero deixar esta vida sem ter escrito estas últimas linhas a ti dirigidas, pois estou atormentado por muitas coisas que deves saber :
1) Na beira do abismo da qual não existe retorno, eu te dou minha palavra de honra que sou inocente dos crimes que reconheci durante a instrução do processo.
2) Ao fazer meu exame de consciência, posso acrescentar, além de tudo o que já disse no Plenum (Plenum do Comitê Central em 23 de fevereiro de 1937, depois do qual Bukarine e Rykov foram presos) os seguintes elementos, a saber :
a) um dia, ouvi dizer da crítica feita por, me parece, Kouzmine (Vladimir Kouzmine, jovem economista próximo das idéias de Bukarin. Integrava um círculo de economistas que se reunia periodicamente nos inícios dos anos 30, ao redor de Bukarine. Numa dessas reuniões, em 1932 ou 1933, Kouzmine teria dito que era preciso eliminar Stalin fisicamente. Em 1933 a maioria dos “jovens economistas bukarinistas”, entre eles Kouzmine, foram presos pela Guepeou, executados em 1937-1938) mas algum crédito, por menor que seja, a tais propósitos é algo que nunca me veio à cabeça.
b) sobre esta reunião, da qual eu nada sabia (idem, no que é relativo à plataforma de Rioutine (Em março de 1932, Martemian Rioutine redigiu dois textos críticos sobre a política de Stalin desde 1929. Uma “plataforma política” intitulada “Stalin e a crise da ditadura proletária” e um apelo “A todos os membros do Partido”. Preso pela Guepeou, Rioutine foi condenado a pesada pena. Stalin queria que ele fosse condenado à morte, mas outros membros do Politburo foram contra, pois a medida não tinha sido aplicada até então a um dirigente comunista) Aikhenvald me disse algumas palavras na rua, post factum (“os jovens se reuniram, fizeram um relato”) – ou algo de tal gênero. É verdade, reconheço, que então escondi este fato, tive piedade dos “jovens”.
c) Em 1932, joguei jogo duplo com os meus “alunos”. Pensava sinceramente que ou eu os colocaria totalmente na via direta do Partido, ou os afastaria. Eis tudo. Acabo de purificar minha consciência até os menores detalhes. O resto não existiu ou se existiu eu nada sabia dele.
Disse toda a verdade no Plenum, mas ninguém acreditou. Agora, te repito esta verdade absoluta : nos meus últimos anos segui honesta e sinceramente a linha do Partido e aprendi, com meu espírito, a te respeitar e amar.
3) Se eu não tivesse outra “solução” além de confirmar as acusações e os testemunhos dos outros e desenvolve-los : de outro modo não se poderia pensar que eu “não jogava as armas”.
4- Afastadas as circunstâncias exteriores e a consideração 3 (acima), eis o resultado de minhas reflexões sobre tudo o que ocorre, eis a conclusão à qual cheguei :
Há a grande e audaciosa idéia de expurgo geral :
a) em relação à ameaça de guerra b) em relação com a passagem para a democracia. Tal expurgo inclui a) os culpados b) os potencialmente duvidosos. Ele não pode, evidentemente me deixar de lado. Uns são postos em condições de não prejudicar de um modo, outros de outro modo, os terceiros diferentemente. Desta maneira, a direção do Partido não assume risco algum, adquire uma garantia total.
Eu te peço, não penses que ao raciocinar assim comigo mesmo, te endereço alguma crítica. Amadureci, compreendo os grandes planos, as grandes idéias, os grandes interesses são mais importantes do que tudo o mais, e que seria mesquinho colocar a questão de minha miserável pessoa no mesmo plano desses interesses de importância mundial e histórica, que repousam antes de tudo sobre as tuas costas.
Eis o que mais me atormenta, o paradoxo mais insuportável:
5- Se eu estivesse absolutamente seguro de que visses as coisas como eu, então minha alma seria liberada de um peso terrível. Mas o que fazer ? Se é preciso, é preciso ! Mas acredite: meu coração sangra só com o pensamento de que tu possas acreditar na realidade de meus crimes, que possas acreditar, do fundo de tua alma, que sou verdadeiramente culpado desses horrores. Se tal fosse o caso, o que isto significaria ? Significaria que eu mesmo contribuo para a perda de uma série de pessoas (a começar comigo), que eu faço conscientemente o mal! Nesse caso, nada mais é justificado. E tudo se embrulha em minha cabeça, tenho desejos de gritar e bater minha testa nas paredes! Com efeito, nesse caso, sou eu o causador da perda dos outros. Que fazer ? Que fazer ?
6- Não tenho sequer um grama de ressentimento. Não sou cristão. Com certeza, tenho minhas idiossincrasias. Considero que devo expiar pelos anos em que realmente combati como oposição a linha do Partido. Sabes, o que mais me atormenta neste momento, é um episódio que talvez tenhas esquecido. Certo dia, provavelmente durante o verão de 1928, estava em tua casa e me dissestes : sabes porque sou teu amigo? Porque és incapaz de intrigar contra qualquer um. Concordo. E, logo depois, corro para a casa de Kamenev (“primeiro encontro”). Tu acreditarás ou não em mim, neste episódio que me atormenta, pois ele é o pecado original, é o pecado de Judas. Deus meu! Que imbecil, que menino eu era então então! E agora expio por tudo isso com o preço de minha honra e de minha vida. Por isto, perdoa-me Koba. Escrevo e choro. Nada mais me importa, e tu sabes muito bem : apenas agravo meu caso ao te escrever tudo isso. Mas não posso me calar, sem te pedir perdão uma última vez. É por isso que não estou indignado contra ninguém, nem contra a direção do Partido, nem contra os instrutores, e te peço ainda uma vez perdão, embora seja eu punido de tal modo que agora é trevas…
7) Quando eu tinha alucinações, eu te vi muitas vezes e certa feita Nadejda Serguievna ( mulher de Stalin, que suicidou em 1932). Ela se aproximou de mim e disse : “O que fizeram convosco, N.I. ? Direi a Iossif para que ele vos ajude”. Tudo era tão real que tive um sobressalto e quase te escrevi para…que me viesses ajudar ! A realidade se mesclava com a alucinação. Sei que Nadejda Serguievna jamais acreditaria que eu poderia pensar mal de ti, e não é por acaso que o inconsciente de meu “ego” infeliz a chamou em meu socorro. Quando penso nas horas que passamos em conversas…Meu Deus, porque não existe um aparelho que permita ver minha alma dilacerada, cortada pelos bicos de pássaros ! Se tivesses apenas podido ver como sou apegado interiormente a ti, não como todos esses Stetski et Tal (Alexis Stetski, redator chefe da revista Bolchevik et Boris Tal’, diretor do departamento de imprensa do Comitê central, redator chefe adjunto de Izvestia). Bem, perdoa-me por toda essa “psicologia”. Não existe mais anjo que possa desviar o gládio de Abraão! Que o destine se cumpra!
8) Permita, enfim, acabar com estes últimos pequenos pedidos :
a)Para mim seria mil vezes mais fácil morrer do que suportar o processo que me aguarda. Não sei como serei capaz de superar minha natureza, eu a conheço. Não sou inimigo do Partido ou da URSS, e faria tudo o que está em meu poder, mas, vistas as circunstâncias, minhas forças estão no nível mais baixo e sentimentos dolorosos afluem para minha alma. Deixando de lado todo sentimento de dignidade e vergonha, estou pronto a me arrastar de joelhos e te implorar que me evites esse processo. Mas sem dúvida, nada mais pode ser feito, e te peço, se ainda é possível, me permitir a morte antes do processo, e no entanto sei que, em tal ponto, és muito severo.
b) Se uma sentença de morte me espera, eu te peço, eu te suplico em nome de tudo o que é caro para tua pessoa, não me fuzilar, quero mesmo absorver veneno (dá-me a morfina, para que eu adormeça e não desperte). Este aspecto das coisas é para mim o mais importante, procuro palavras para te suplicar : politicamente, isso não prejudicará ninguém, ninguém ficará sabendo. Mas ao menos deixa-me viver meus últimos segundos como quero. Piedade! Como tu me conheces bem, compreendes o que desejo dizer. Às vezes, olho a morte com vista lúcida e sei bem que sou capaz de atos de bravura. E às vezes, este mesmo eu é fraco, tão alquebrado que de nada mais é capaz. Então, se devo morrer, quero uma dose de morfina. Eu te suplico.
c) Quero dizer adeus para minha mulher e meu filho. Quanto à minha filha, não vale a pena. Tenho piedade dela, seria muito duro. Quanto à Aniouta, ela é jovem e superará e depois tenho vontade de lhe dizer adeus. Peço poder encontrá-la antes do processo. Por que ? Quando meus próximos ouvirão o que confessei, eles são capazes de colocar um fim aos seus dias. Devo prepará-los, de certo modo. Penso que será melhor também no interesse do assunto, de sua interpretação oficial.
d) Se por acaso minha vida fosse poupada, gostaria (mas seria preciso que eu falasse com minha mulher) de ser exilado na América por X anos. Argumentos pró : eu faria campanha sobre os processos, conduziria uma luta mortal contra Trotsky, conduziria para nós largas camadas da intelligentsia, eu seria praticamente o anti Trotsky e levaria todo o negócio com formidável entusiasmo. Vós poderíeis enviar comigo um tchekista experiente, e, como garantia suplementar, poderíeis guardar na URSS a minha mulher como refém por seis meses, o tempo em que eu demonstraria, com fatos, como quebro a cara de Trotsky e Cia., etc. Se tens um átomo de dúvida sobre esta variante, exila-me mesmo por 25 anos em Petchora ou na Kolyma, num campo. Organizarei uma universidade, um museu zoológico, um jornal do campo. Numa palavra, liderarei um trabalho de pioneiro de base, até o fim dos meus dias, com minha família.
Para falar a verdade, não tenho muita esperança, pois o fato da mudança da diretiva do plenum de fevereiro é pesada de sentido (e vejo bem que o processo não ocorrerá amanhã).
Eis, portanto, meus últimos pedidos: (ainda: o trabalho filosófico, que ficou em casa, contem muitas coisas úteis) Iossif Vissarionovitch ! Perdeste comigo um dos teus generais mais capazes e mais devotados. Mas, bem, tudo passou. Recordo o que Marx escreveu sobre Barclay de Tolly, acusado por Alexandre Iº de o haver traído. Ele dizia que o imperador tinha se privado de um excelente colaborador. Com quanta amargura penso nisso ! Me preparo interiormente para deixar esta vida, e não ressinto, a seu respeito e ao Partido, a respeito de nossa Causa, nada mais que um sentimento de amor imenso, sem limites. Farei tudo o que é humanamente possível e impossível. Te escrevi sobre tudo. Sobre tudo, coloquei os pontos nos i. Eu me avancei, pois ignoro em qual situação estarei amanhã, depois de amanhã, etc.
Neurastênico como sou, talvez serei tomado por uma apatia total e absoluta, de tal modo que serei incapaz de mover o dedo mindinho. Mas agora, a cabeça pesada e com lágrimas nos olhos, ainda sou capaz de escrever. Minha consciência é pura diante de ti, Koba. Peço pela última perdão (um perdão espiritual). Eu te aperto nos meus braços em pensamento. Adeus pelos séculos dos séculos e não guardes rancor deste infeliz.
N. Bukarine
10 de dezembro de 1937.

Deixemos a miséria totalitária sob o comunismo e retornemos à raison d´ État e a Maquiavel. A carta de Bukarin endereçada a Stalin, não deixa um só instante o leitor sem a certeza de que ela se dirigia para o público mundial. Dois aspectos nelas podem ser notados, no relativo à propaganda. Bukarin exige sigilo na missiva, mas explica eventos mais do que conhecidos pelo Estado soviético e por seu ditador. Desse modo, fica evidente que o destinatário não era apenas o dono do poder estatal, mas a opinião pública do planeta. Mas o redator da carta também se oferece, no último apelo em favor de sua vida, para cumprir tarefa de propaganda e contra propaganda nos EUA, onde iria ampliar o campo favorável à URSS e eliminar o trotskysmo, seja em idéias seja em atos contra os defensores do “traidor”, mais tarde assassinado no México. Que os dois favores a Stalin não tenham se efetivado, isso de nada muda o sentido da alma militante de Bukarin, excelente exemplar do militante essencial, o que sacrifica a sua vida, honra, subjetividade em prol do Partido. A pedagogia da propaganda, que marca os militantes desde os seus primeiros passos nos movimentos a que defendem, não é algo novo na história do pensamento, da opinião pública e da razão de Estado modernos. Trata-se de uma técnica iniciada nos alvores do uso prático do invento de Guttenberg, mas potenciado ao máximo no século 17, em especial na França e na Europa que ela combatia e que a combatia por sua vez. 

Etienne Thuau no clássico sobre a razão de Estado (73) mostra que na França do século 17 existiam pelo menos três formas de pensamento político ligado àquela razão. Em primeiro lugar o partido ultramontano e católico que reunia os inimigos do Estado, quando este último era posto acima e independente da Igreja. Para eles, a raison d´ État era o símile do Inferno. Criticavam a política interna de Richelieu por considerá-la muito leniente em relação aos protestantes e demais formas de pensamento. E recusavam a política externa do mesmo estadista, porque ela ia contra a Espanha, o que enfraquecia o catolicismo na Europa e no mundo. Em segundo lugar vêm os humanistas, que tentavam apresentar limites ao partido ultramontano, mas que também sentiam dúvidas sobre o Estado e buscavam também estabelecer os limites para sua ação. Boa parte desses humanistas foram determinados, em suas doutrinas, pelos trabalhos de Grotius, que escreveu seu opus magnus na França, dedicando-o ao soberano francês. O terceiro, finalmente, unia os defensores de Richelieu e do Estado. Eles eram chamados “políticos” ou “maquiavélicos”. Após ter analisado os inimigos da razão de Estado, Thuau disseca os argumentos e as técnicas políticas do seguidores de Richelieu, os chamados integrantes da Statianorum secta (a seita dos que amam o Estado). 

Ainda Thuau apresenta uma noção estratégica, quando se trata de inspecionar o poder. Ao discutir a guerra dos panfletos ocorrida no governo de Richelieu, ela afirma que as propagandas, por definição, se estabelecem no campo maniqueu : se os publicistas teocráticos afirmam que a razão de Estado é infernal, os que defendem o poder laico acusam os religiosos como teólogos do diabo. Lúcifer muda de papel e de lugar, mas sempre é o patrono dos outros. Esta marca do maniqueísmo retorna em todos os períodos da história moderna e se corporifica nas mais diversas ideologias. 

Mais interessante ainda, no entanto, do que o fanatismo ideológico indicado por Thuau, é sua análise das palavras que povoam os discursos de governistas e das oposições, defendam eles qualquer doutrina. “Em política”, diz o autor, “o surgimento de palavras chave e de símbolos segue normalmente a ascensão de novas forças. A palavra ´Estado´, cristalizada nos séculos 16 e 17, marca particularmente a época de Richelieu. Ela permite à autoridade secular, desejosa de conseguir um poder absoluto e soberano, criar um símbolo revestido de personalidade abstrata e que ela pode opor à Igreja”. (74) Na busca desse poder, os adeptos do Estado querem regular a conduta humana, o que ameaça a tradição cristã, ética e religiosa. O estatistas vão além de tudo o que se pensou e se disse sobre os alvos do poder, na Idade Média. Eles almejam para o Estado, em tempo e espaço integrais, a conquista da potência, de modo compatível com o enunciado de Hobbes : “a search for power after power unto death”. (75) O tema já fora enunciado por Rohan : “As nações são governadas pelos Príncipes e os Príncipes pelos interesses”. (76)

Nenhuma das correntes indicadas acima enfrenta o Estado com tranqüilidade. Os sinais do Leviatã, apesar de todo o esforço hobbesiano para esclarecer a lingua do poder, afiança Thuau, é ambigüa no século 17, a idéia de razão de Estado, no meio das insanas lutas pelo poder europeu e mundial, é uma contradição para a maioria dos partidários de uma ou outra doutrina. A idéia de razão de Estado, acrescenta nosso autor, é um escândalo. 

No que se refere aos defensores do Estado, é evidente o seu caráter disperso, dadas as diferenças mantidas entre seus vários segmentos sociais e também ao caráter não sistemático dos libelos e livros por eles publicados. Na França não existiu um Descartes do estatismo, como na Inglaterra existiu um Hobbes do poder absoluto. Como em toda situação institucional ainda não decidida, nem os apologetas do Estado nem os seus opositores iam além das pessoas e de alguns princípios gerais. 

Thuau apresenta relevante um problema de ordem epistemológica : o que se julga uma insuficiência do pensamento político no século 17, a sua falta de sistema, não seria um pressuposto nosso, ou mesmo um preconceito? Afinal, porque um pensamento político deve ser sistemático? É clara, sob a pergunta do analista, o problema do século 20, era em que os sistemas se transformaram em Estados, cada qual com a sua razão e interesse, o nazismo e o fascismo com a raça e o comunismo com a história. No século 17 tais sínteses políticas, com suas doutrinas políticas, não tinham sido trabalhadas pelos sistemas filosóficos do tipo hegeliano. Mesmo no século 18, quando se afirma o sistema na filosofia, é difícil encontrar doutrinas políticas sistematizadas. O assim dito jacobinismo francês possui diferenças significativas em seus vários segmentos, o mesmo ocorrendo com os girondinos e os monarquistas que restaram após 1789. Uma inspeção no verbete “sistema” da Enciclopédia dirigida por Denis Diderot já mostra a dificuldade da coisa. (77)

Diderot e Jaucourt usam Condillac como pensador que levou a fundo a noção abstrata de sistema. Segundo Condillac existem três tipos de princípios abstratos em uso: as proposições gerais, exatamente verdadeiras em todos os casos, as proposições verdadeiras em seus lados mais notórios, e que são tidas como verdadeiras em todos os sentidos. E finalmente as relações vagas que se imagina entre coisas de natureza diferente. Os primeiros não conduzem a nada. Que um geômetra medite o quanto queira sobre tais máximas, o todo é igual a todas as suas partes. “Se não é dado a nenhum homem se tornar, após algumas horas de meditação, um Condé, Turenne, Richelieu ou Colbert, embora a arte militar, a política e as finanças tenham como todas as ciências seus princípios gerais, dos quais é possível em pouco tempo descobrir todas as consequências, porque um filósofo se tornaria de repente um sábio, um homem para quem a natureza não possui segredos, e isto pelo encanto de duas ou mais proposições ? Este único paralelo basta para fazer saber o quanto se enganam esses filósofos especulativos que percebem grande fecundidade nos princípios gerais. Os dois seguintes só conduzem a erros. É o que pretende provar o autor do tratado dos sistemas, pelos diferentes sistemas que ele percorre. Bayle, Descartes, Malebranche, Leibniz, o autor da ação de Deus sobre a criatura, Spinoza também, lhe fornecem exemplos do que ele escreve. Em geral o grande defeito dos sistemas abstratos é se girar sobre noções vagas e mal determinadas, sobre palavras vazias de sentido, sobre equívocos perpétuos. M. Locke compare engenhosamente esses fazedores de sistemas a pessoas que, sem dinheiro e sem conhecimento das espécies monetárias, contariam grandes somas com fichas que eles chamariam luízes, libras, centavos. Por mais cálculos que eles façam, suas somas seriam apenas fichas, por mais raciocínios que façam os filósofos com sistemas abstratos, suas conclusões serão apenas palavras. Ora,tais sistemas, longe de dissipar o caos metafísico, servem apenas para encantar a imaginação pela audácia das consequências consequências para onde conduzem e para seduzir o espírito pelas falsas aparências de evidência, para nutrir a cabeça dura que insiste nos erros mais monstruosos, para eternizar disputas, com o péssimo humor e arrogância com os quais eles as sustentam.(…) Não existe ciência nem arte das quais não se possa fazer sistemas: mas numas se propõe dar a razão dos efeitos; nas outras, prepará-los e fazê-los nascer. O primeiro objeto é o da física; o segundo é o da política”.

A Encyclopédie, ao rejeitar o ordenamento sistemático e, nele, as exposições de Spinoza, assume no entanto o ensino spinozano na exegese de Maquiavel. De fato, os autores afirmam que “maquiavélico é o homem que segue em sua conduta os princípios de Maquiavel, os quais consistem em buscar suas vantagens particulares por qualquer via. Existem maquiavélicos em todos os estados”.(Machiaveliste). A doutrina de Maquiavel seria uma “espécie de política detestável que pode ser traduzida em sua palavras, pela arte de tiranizar, da qual Maquiavel o florentino espalhou os princípios em suas obras. (…) Quando Maquiavel escreveu seu tratado do Príncipe, é como se ele tivesse dito aos seus concidadãos : leiam bem esta obra. Se vocês aceitarem um dia certo mestre, ele será como o desenho, eis a besta fera à qual vocês se entregarão. Assim, foi erro de seus contemporâneos se eles desconheceram o alvo, pois tomaram uma sátira por elogio. Bacon o chanceler não se enganou quando disse: este homem nada ensina aos tiranos, eles sabem muito bem o que devem fazer, mas instrui os povos sobre o que eles devem temer. Est quod gratias agamus Machiavello & hujus modi scriptoribus, qui apertè & indissimulanter proferunt quod homines facere soleant, non quod debeant “.(78)

Se as prevenções contra o sistema, no século 18, eram similares às expostas na Encyclopédie, no século 17, a era da razão de Estado, elas definiam o próprio modus operandi dos políticos. Quase todos eles, a começar de Richelieu segundo Thuau, desconfiavam muito dos sistemas, preferindo a via pragmática. (79) Antes de ser uma filosofia, o pensamento que defende o Estado, no período controlado por Richelieu é “um empresa de paz e guerra”, tanto no plano interno quanto no internacional. Na referida empresa, pela primeira vez na história moderna, a propaganda do poder real, ela sim, é feita de maneira sistemática. Luís 14º aproveitou o sistema engendrado pelos seus antecessores, sempre na tarefa de identificar Estado e figura do soberano. (80) Assim, Thuau discute a propaganda estatista no própria “assessoria de imprensa” que a idealiza e pratica.

Na “empresa nacional de paz e guerra” foi preciso gerar a propaganda com ajuda de “numerosos agitadores e treinadores de homens, ocupados em criar e fortificar o impulso nacional”. Semelhante tarefa, segundo Thuau é o “governo dos espíritos”. A “literatura” dos libelos, somada aos boatos (talvez seja daquele período o nascimento do “spin” e dos “spin doctors”) teve seu apogeu sob o cardeal ministro. Como recorda Thuau, a propaganda não foi desconhecida no mundo antigo, basta recordar o imperador Augusto que mobilizou escritores para glorificar o novo regime por ele estabelecido. (81) Mas Richelieu leva à perfeição prática e estratégica a técnica de propagar a imagem excelente de seu governo, seguindo o slogan “Governar é fazer acreditar”. (82) Empresa dogmática, apesar da ausência de sistema…

Pierre Bayle, crítico dos dogmatismos filosóficos e teológicos, defende posição contrária à de Richelieu, embora também seja partidário do poder absoluto real. Seu juízo sobre Luís XI, a réplica de Richelieu no passado, ou talvez o governante que preparou o absolutismo do qual o ministro de Luís XIII será o beneficiário, é matizado. Luís 11 ao mesmo tempo foi prudente, e apesar de humilhações conseguiu bons tratados para a França, sobretudo com a Inglaterra, e cruel para com seus inimigos e para com o povo francês. Bayle não assume atitude angélica, ou ortodoxa em termos políticos. Seu modo de raciocinar o aproxima de Maquiavel. Veja-se o artigo sobre Luís VII do Dictionnaire: “a devoção e a piedade são incontestavelmente as maiores de todas as virtudes. Um principe não é menos obrigado que um cidadão comum a possuí-las: e se ele mais ama observar os deveres do que conservar seus Estados, ele é perante Deus um dos maiores homens do mundo; mas é seguro, que segundo o andar das coisas humanas, nada é mais capaz de arruinar uma nação do que a consciência escrupulosa de quem a governa. Se os vizinhos fizessem como ele, seria possível esperar de sua piedade a mais felicidade que os povos poderiam usufruir; mas se enquanto eles praticam todas as astúcias da política, ele se enrijece para não fugir jamais das regras severas da moral e do Evangelho, ele e seus dirigidos serão infalivelmente a presa das outras nações, e todo mundo dirá que ele é mais vocacionado para a vida monástica do que para carregar uma coroa, e que ele faria bem de ceder seu lugar a um principe menos escrupuloso. Exeat aula qui volet esse pius.(83) (Lucano, livro VIII, 493). Esta máxima diz respeito principalmente a um chefe de corte”. 

Para encerrar o curso, importa discutir a última frase acima: “Esta máxima diz respeito principalmente a um chefe de corte”. Tal situação pode ser ocupada por um príncipe tradicional, herdeiro de sucessão dinástica, por um aventureiro que instaura novos regimes, como o império de Napoleão (tio e sobrinho), por um líder revolucionário como Cromwell, Robespierre ou Lenine. É muito extensa a bibliografia sobre os vínculos, reais ou imaginados, entre a Revolução Francesa e os Estados totalitários. Marx nota, no 18 Brumário de Luís Bonaparte que o Terceiro Estado, tanto nas suas formas girondinas quanto nas jacobinas, assume a máscara dos romanos, envolvidos no manto de Brutus e cobertos de virtude republicana. A mesma operação ocorre com o imaginário da Revolução alemã espartaquista e com os eventos na Rússia de 1917. Além disso, os eventos russos foram lidos com as figuras da própria Revolução Francesa, com o Terror, o Termidor e outras idealidades que seriam comuns aos dois momentos históricos. 

Mesmo após a dissolução da URSS, as figuras da Revolução Francesa continuam a exercer um fascínio teórico em autores relevantes do pensamento de esquerda. Eles desejam saber qual significado existe, no mundo de hoje para a política, quando tendem a desaparecer os sinais do socialismo e da república na ordem estatal, na vida acadêmica e na midia, fontes da chamada “opinião pública mundial”. É possível modificar a ordem política, econômica e societária a partir da queda do muro de Berlim e da abolição da URSS? 

Questões semelhantes tocam de modo direto no problema de Maquiavel, o da ordem política. Se os representantes do pensamento fascista, hoje na Europa, são os únicos a valorizarem a ação política —na esteira de Carl Schmitt— os social democratas e integrantes da esquerda assumem o realismo econômico como barreira intransponível, e se dobram ao Fatum, sem interrogar demasiado a Fortuna e, menos ainda, a Virtù. 

Autores como Zlavoj Žižek assumem a tarefa de justificar o Terror e a virtude, elementos indissociáveis no seu entender. No texto de introdução aos discursos de Robespierre, o autor constata que os “revisionistas liberais” tentaram “impor a idéia de que a morte do comunismo, em 1989, não poderia deixar de ocorrer num momento melhor escolhido: ela marcava o fim de uma época, começada em 1789, e o fracasso definitivo do modelo estatal-revolucionário aparecido pela primeira vez com os jacobinos”. (84) Os liberais desejam “1789 sem 1793 (…) querem uma revolução sem cafeína, que não teria o gosto de revolução”. A nossa era, liberal se for o caso, se caracteriza “pela multidão de opiniões e não mais por uma Verdade única”. A ditadura jacobina não entre nos gostos atuais, pois a Verdade que ela preconiza só pode ser imposta pelo terror. Nas palavras do Incorruptível, “o terror nada mais é do que a justiça pronta, severa, inflexível; ela é pois uma emanação da virtude; ela é menos um princípio particular do que uma consequência do princípio geral da democracia, aplicado às mais urgentes necessidades da pátria” (Robespierre, 05/02/1794). 

Žižek não comenta a palavra chave, no meu entender, do trecho mencionado acima : “emanação”. 85
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1 Cf. Max Lerner: “Machiavelli the Realist” in De Lamar Jensen (Ed.) : Machiavelli: Cynic, Patriot, or Political Scientist ? (D.C. Heath Ed., 1960), pp. 9-13.
2 At politici contra hominibus magis insidiari, quam consulere creduntur, et potius callidi, quam sapientes aestimantur. Docuit nimirum eosdem experientia, vitia fore, donec homines. Humanam igitur malitiam praevenire dum student, idque iis artibus, quas experientia longo usu docuit, et quas homines magis metu, quam ratione ducti exercere solent, religioni adversari videntur, theologis praecipue, qui credunt summas potestates debere negotia publica tractare secundum easdem pietatis regulas, quibus vir privatus tenetur. Ipsos tamen politicos multo felicius de rebus politicis scripsisse, quam philosophos, dubitari non potest. Nam quoniam experientiam magistram habuerunt, nihil docuerunt, quod ab usu remotum esset. (Tratado Político, I, §2. Uso o texto do site Hyper-Spinoza [http://hyperspinoza.caute.lautre.net/] acessado em 21/02/2008, 9:00 AM.
3 loc. Cit.
4 Lerner, op. cit.
5 “Numa (…) trovando uno popolo ferocissimo, e volendolo ridurre nelle obedienze civili con le arti della pace, si volse alla religione, come cosa al tutto necessaria a volere mantenere una civiltà, e la constituì in modo, che per più secoli non fu mai tanto timore di Dio quanto in quella republica, il che facilitò qualunque impresa che il Senato o quelli grandi uomini romani disegnassero fare.” (…) la religione introdotta da Numa fu intra le prime cagioni della felicità di quella città: perché quella causò buoni ordini; i buoni ordini fanno buona fortuna, e dalla buona fortuna nacquero i felici successi delle imprese. E come la osservanza del culto divino è cagione della grandezza delle republiche, così il dispregio di quello è cagione della rovina d’esse. Perché, dove manca il timore di Dio, conviene o che quel regno rovini, o che sia sostenuto dal timore d’uno principe che sopperisca a’ difetti della religione. E perché i principi sono di corta vita, conviene che quel regno manchi presto, secondo che manca la virtù d’esso”. Discorsi, I, 11, in Niccolò Machiavelli, Opere a cura di Corrado Vivanti (Torino, Einaudi/Gallimard, 1997), Volume I, p. 229 e
6 “Perché, dove gli uomini hanno poca virtù, la fortuna mostra assai la potenza sua; e, perché la è varia, variano le republiche e gli stati spesso; e varieranno sempre, infino che non surga qualcuno che sia della antichità tanto amatore, che la regoli in modo, che la non abbia cagione di mostrare, a ogni girare di sole, quanto ella puote”.(Discorsi, II, 30), ed. cit. p. 410.
7 Verbete “Fortuna”, Dictionnaire des Antiquités Grecques et Romaines de Ch. Daremberg e Edm. Saglio, Université de Toulouse Le Mirail, in http://dagr.univ-tlse2.fr/sdx/dagr/index.xsp, consultado no dia 29/02/2008, 09:16 AM.
8 Guerra do Peloponeso, IV, 18 : “Know it, by seeing this present misfortune fallen on us, who, being of greatest dignity of alla Grecians, come to you to ask that which before we thought chieflyin our own hands to give. And yet we are not brought to this through weakness nor through insolence upon addition of strenght, but because it succeeded not with the we had as we tought it should, which may as well happen to any other as to ouerselves. So that you have no reason to conceive that for your power and purchases fortune also must be therefore always yours” Tradução de Thomas Hobbes :The Peloponesian War (Chicago,University Press, 1991), p. 239.
9 Meinecke, Friedrich: Machiavellism: The Doctrine of Raison D’État and Its Place in Modern History (Yale University Press, 1957).
10 tisin anankais hekasta gignetai tôn ouraniôn (Mem. 1.1.11). O trecho refere-se a Sócrates, que evitava conversar sobre a natureza do suposto cosmos, sobre as leis que governam necessariamente os fenômenos celestes.
11 Uso o texto do Perseus Project, acessado em 09/03/2008, 10 AM. Sigo a tradução de Thomas Hobbes: The Peloponesian War with notes by David Grene (Chicago, University Press, 1989, pp. 364 e ss.
12 De officiis, III, 2 : “Panaetius igitur, qui sine controversia de officiis accuratissime disputavit quemque nos correctione quadam adhibita potissimum secuti sumus, tribus generibus propositis, in quibus deliberare homines et consultare de officio solerent, uno cum dubitarent, honestumne id esset, de quo ageretur, an turpe, altero utilene esset an inutile, tertio, si id, quod speciem haberet honesti, pugnaret cum eo, quod utile videretur, quomodo ea discerni oporteret, de duobus generibus primis tribus libris explicavit, de tertio autem genere deinceps se scripsit dicturum nec exsolvit id, quod promiserat”. Panécio nos dá a mais profunda discussão sobre os deveres morais. Ele classifica em três itens os problemas éticos que as pessoas costumam considerar e pesar : primeiro, se a questão analisada é moralmente certa ou errônea; segundo, se é expediente ou não; terceiro como uma decisão deve ser assumida, nos casos em que ela parece ser moralmente certa mas se choca com o que parece expediente. Tradução livre (RR).
13 Anais, XIV, 44.
14 Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIª IIae, q. 2 e 3. Ad primum ergo dicendum quod epieikeia correspondet proprie iustitiae legali, et quodammodo continetur sub ea, et quodammodo excedit eam. Si enim iustitia legalis dicatur quae obtemperat legi sive quantum ad verba legis sive quantum ad intentionem legislatoris, quae potior est, sic epieikeia est pars potior legalis iustitiae. Si vero iustitia legalis dicatur solum quae obtemperat legi secundum verba legis, sic epieikeia non est pars legalis iustitiae, sed est pars iustitiae communiter dictae, contra iustitiam legalem divisa sicut excedens ipsam. (…) Ad tertium dicendum quod ad epieikeiam pertinet aliquid moderari, scilicet observantiam verborum legis. Sed modestia quae ponitur pars temperantiae, moderatur exteriorem hominis vitam, puta in incessu vel habitu, vel aliis huiusmodi. Potest tamen esse quod nomen epieikeiae, apud Graecos, per quandam similitudinem transfertur ad omnes moderationes. Citado a partir do site Corpus Thomisticum (http://www.corpusthomisticum.org/sth3109.html, consultado no dia 12/10/200/, 20.30 PM.
15 Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, Livro V, 10 e ss. Na edição da Loeb Classical Library Aristotle, XIX, trad. H. Rackham (Cambridge, Cambridge University Press, 1990), pp. 312 e ss. Também Aristóteles, Retorica, Ed. W.D. Ross, (Oxford, Clarendon Press, 1959). O dicionário Little &Scott designa: epieikéia como “reasonableness”, “fairness”, “equity”
16 De Legibus, 1.15.42, in Cicero, De Re Publica ; tradução De Legibus por Clinton Walker Keyes, Loeb (1928;Harvard, Univ. Press, 1952). Cf. Ch. S. Ross, “Justifying Violence: Boiardo’s Castle Cruel” in Philological Quarterly, Vol. 73, 1994. O essencial é a referência aos textos platônicos e sua coerência doutrinal interna. No debate sobre o nexo entre a República e as Leis, Cícero afirma, no De Legibus (2.6.14) que as Leis definem um código legal apropriado ao regime descrito na República. Tal debate é antigo, tendo relação com outro, saber se o soberano de carne e osso é cria da lei, a qual seria o verdadeiro soberano, ou o contrário.Cf. V. Bradley Lewis. “Politeia kai Nomoi: on the coherence of Plato ´s Political Political Philosophy” in Polity, Vol. 31, 1998.
17[42] Iam uero illud stultissimum, existimare omnia iusta esse quae sita sint in populorum institutis aut legibus. Etiamne si quae leges sint tyrannorum? Si triginta illi Athenis leges inponere uoluissent, et si omnes Athenienses delectarentur tyrannicis legibus, num idcirco eae leges iustae haberentur? Nihilo credo magis illa quam interrex noster tulit, ut dictator quem uellet ciuium aut indicta causa inpune posset occidere. Est enim unum ius quo deuincta est hominum societas et quod lex constituit una, quae lex est recta ratio imperandi atque prohibendi. Quam qui ignorat, is est iniustus, siue est illa scripta uspiam siue nusquam. Quodsi iustitia est obtemperatio scriptis legibus institutisque populorum, et si, ut eidem dicunt, utilitate omnia metienda sunt, negleget leges easque perrumpet, si poterit, is qui sibi eam rem fructuosam putabit fore. Ita fit ut nulla sit omnino iustitia, si neque natura est ea quae propter utilitatem constituitur utilitate lia conuellitur.[43] Atqui si natura confirmatura ius non erit, uirtutes omnes tollantur. Vbi enim liberalitas, ubi patriae caritas, ubi pietas, ubi aut bene merendi de altero aut referendae gratiae uoluntas poterit existere? Nam haec nascuntur ex eo quod natura propensi sumus ad diligendos homines, quod fundamentum iuris est. Neque solum in homines obsequia, sed etiam in deos caerimoniae religionesque tollntur, quas non metu, sed ea coniunctione quae est homini cum deo conseruandas puto. Quodsi populorum iussis, si principum decretis, si sententiis iudicum iura constituerentur, ius esset latrocinari, ius adulterare, ius testamenta falsa supponere, si haec suffragiis aut scitis multitudinis probarentur.[44] Quodsi tanta potestas est stultorum sententiis atque iussis, ut eorum suffragiis rerum natura uertatur, cur non sanciunt ut quae mala perniciosaque sunt, habeantur pro bonis et salutaribus? Aut cum ius ex iniuria lex facere possit, bonum eadem facere non possit ex malo? Atqui nos legem bonam a mala nulla alia nisi natura norma diuidere possumus. Nec solum ius et iuria natura diiudicatur, sed omnino omnia honesta et turpia. Nam, communis intellegentia nobis notas res effcit easque in animis nostris inchoauit, honesta in uirtute ponuntur, in uitiis turpia. [45] Haec autem in opinione existimare, non in natura posita, dementis est. Nam nec arboris nec equi uirtus quae dicitur (in quo abutimur nomine) in opinione sita est, sed in natura. Quod si ita est, honesta quoque et turpia natura diiudicanda sunt. Nam si opinione uniuersa uirtus, eadem eius etiam partes probarentur. Quis igitur prudentem et, ut ita dicam, catum non ex ipsius habitu sed ex aliqua re externa iudicet? Est enim uirtus perfecta ratio, quod certe in natura est: igitur omnis honestas eodem modo.Nam ut uera et falsa, ut consequentia et contraria sua sponte, non aliena iudicantur, sic constans et perpetua ratio uitae, quae uirtus est, itemque inconstantia, quod est uitium, sua natura probai; nos ingenia im non item? [46] An ingenia natura, uirtutes et uitia quae existunt ab ingeniis, aliter iudicabuntur? An ea non aliter, honesta et turpia non ad naturam referri necesse erit? quod laudabile bonum est, in se habeat quod laudetur, necesse est; ipsum enim bonum non est opinionibus, sed natura. Nam ni ita esset, beati quoque opinione esse, quo quid dici potest stultius? Quare quom et bonum et malum natura iudicetur, et ea sint principia naturae, certe honesta quoque et turpia simili ratione diiudicanda et ad naturam referenda sunt.
18 T. A. Sinclair : A History of Greek Political Thought (Routledge & Kegan Paul, 1952) pp. 40 e ss. Também H.E. Stier: “Nomos Basileus” in Philologus, 83, 1928.
19 Nomos Basileus (Napoli, Edizioni Glaux, 1956), p. 12 e ss.
20 Ilaria Ramelli : Il basileus como nomos empsychos tra diritto naturale e diritto divino. Spunti platonici del concetto e sviluppi do età imperiale e tardo antica. Memorie dell’ Istituto Italiano per gli Studi Filosofici 34 (Napoli, Bibliopolis, 2006).
21 Discorsi, I, proemio in Niccolò Machiavelli Il Principe e Discorsi, a cura di G. Procacci (Milano, Feltrinelli, 1973), p. 124.
22 “Come dimostrano tutti coloro che ragionano del vivere civile, e come ne è piena di esempli ogni istoria, è necessario a chi dispone una republica ed ordina leggi in quella presupporre tutti gli uomini rei, e che li abbiano sempre a usare la malignità dello animo loro qualunque volta ne abbiano libera occasione [. . . ] Però si dice che la fame e la povertà fa gli uomini industriosi, e le leggi gli fanno buoni”. Discorsi, I, 3. Cit. por M. Viroli, Machiavelli (Oxford, Univ. Press, 1998), p. 47.
23 Cicero, (De officiis I, 34) e Tito Livio (Ab urbe condita 2. 3) cit. por Viroli.
24 Chiapelli, in Studi sul linguaggio di Machiavelli (Florença, Le Monier, 1952).
25 Cf. Jack H. Dexter : “The vision of politics on the eve of the Reformation” in More, Machiavelli, and Seyssel ( New York: Basic Books, 1973), 150-78.
26 Talvez referência ao De officiis (I,XI, 34).
27 Príncipe, capítulo 18.
28 De officiis, 2.7.24
29 Principe, capítulo 17.
30 Leo Strauss : “Machiavelli ´s intention: ´The Prince’ in American Political Science Review, LI ( 1957) e Thoughts on Machiavelli ( Glencoe, Ill., 1958). “The Prince is neither a moral nor an immoral book; it is simply a technical book. In a technical book we do not seek rules of ethical conduct, of good and evil. . . . Machiavelli studied political actions in the same way as a chemist studies chemical reactions. Assuredly a chemist who prepares in his laboratory a strong poison is not responsible for its effects. . . . Machiavelli’s Prince contains many dangerous and poisonous things, but he looks at them with the coolness and indifference of a scientist. He gives his political prescriptions.” Ernst Cassirer, The Myth of State (New Haven/London, Yale University Press, 1966), p. 153.
31 Maritain, Jacques: “The end of machiavelianism” in Machiavelli: Cynic, Patriot, or Political Scientist ?” ed. cit. pp. 91 e ss.
32 Embora tenha sido aluno de Claude Lefort, e com ele defendido meu doutoramento na École des Hautes Études em 1978, as referências aos seus trabalhos, a partir de agora, as retiro de Dick Howard no livro The Specter of Democracy ( Columbia Univ. Press, 2002). Trata-se de análise abrangente do pensamento lefortiano. Da explanação de Howard, só uso a que interessa aos meus fins neste texto.
33 Cf. “La résurrection de Trotsky?” in Claude Lefort, Eléments d’ une critique de la bureaucratie (Genebra, Droz, 1971).
34 Cf. Lefort,Claude : “Organisation et parti,” Socialisme ou Barbarie, no. 26 (1958).
35 Paris, Gallimard, 1947.
36 Dispot, Laurent. La machine a terreur. Paris: Bernard – Grasset, 1978.
37 Londres, 1940.
38 Michel Laval : Arthur Koestler, l’ Homme sans concessions [Paris, Calman Levy, 2005] citado por Pierre Raiman, “Autour de Trois Solitudes, 1 : Roubachov- Le Zéro et l ´infini, no Site Autour de la Liberté :
http://autourdelaliberte.blogspot.com/ Os fatos são narrados por Walter Krivitsky, general que fugiu em 1937 para os EUA, onde provavelmente foi assassinado em 1941 : “Sloutsky o persuadira que os bolcheviques têm o dever de submeter suas idéias e vontade à vontade do partido (…) ou que seria preciso permanecer no partido, mesmo até a morte, a desonra, a morte desonrosa, se necessário para consolidar a potência dos sovietes”. (J´ étais l´ agent de Staline [Paris, Champ Libre, 1979] citado por Raiman).
39 Sigo o trabalho de Dominique Colas, “Lénine et la dictature de parti unique” in Maurice Duverger (Ed.) Dictatures et Légitimité (Paris, PUF, 1982), pp. 309 e ss. Uso também a sua indicação das obras de Lénine em francês : Oeuvres en 47 volumes (Paris, Editions Sociales, 1959. No caso dos fuzilamentos e deportações citados, o documento encontra-se na p. 108, do Tomo 44.
40 Oeuvres, Tomo 36, p. 504.
41 Oeuvres, T. 44, pp. 149 e 509.
42 Oeuvres, T. 30, p. 495. Tchekista, de Tcheka, criada para contrabalançar o poder do Comissariado do Povo para Assuntos Internos. Durante toda a guerra civil as duas organizações coexistiram, de maneira autônoma, como rivais. Lenine sugeriu a criação de um outro orgão para controle e retribuição, o Rabkrin (Controle do Povo), para controlar a elite bolchevista, a Tcheka e o Comissariado para os Assuntos Internos. Cf. Военная литература : Исследования : Suvorov V. Inside soviet…..in [militera.lib.ru/research/suvorov8]
43 Tomo 33, p. 365.
44 Tomo 28, p. 244.
45 Tomo 26, p. 142.
46 Colas, D. op. cit. p. 314.
47 Tomo 26, p. 241.
48 Tomo 28, pp. 53, 75, 285.
49 Tomo 27, p. 243.
50 Tomo 27, p. 278.
51 Tomo 27, p. 279.
52 Uma análise percuciente desse imaginário encontra-se em Heller, M. : La machine et les rouages: la formation de l ´homme soviétique (Paris, Calman Levy, 1985).
53 Tomo 19, p. 437.
54 A temática vem da crítica romântica e idealista às luzes. Lenine pensa contra o idealismo e o romantismo, e assume o modelo da máquina recusado pelos pensadores europeus na virada do século 18 para o 19 . O jovem Hegel, crítico da concepção mecânica de Fichte sobre o Estado, pensa que “a liberdade humana pode ser compatível com a natureza mas não com o Estado. (…) uma idéia de máquina seria algo profundamente contraditório : é rejeitada por tal razão a idéia de um Estado, porque Hegel parte do pressuposto de que o Estado é ´algo mecânico´. A comparação do Estado à máquina desumana e a oposição entre máquina e organismo livre, é um lugar comum da época (…) como a físíca, por seu modelo mecanicista e determinista afasta o homem do mundo, também o Estado, por seu mecanicismo determinista afasta o homem de si mesmo. Como a física, que divide o mundo com seus procedimento quantitativo, o Estado divide a humanidade reduzindo os indivíduos à condição de engrenagem, constrangidos a desempenhar num contexto de ausência de liberdade o papel limitado que lhes é atribuido. Estado e liberdade são incompatíveis. (…) O Estado deve desaparecer”. Panagiotis Thanassas (Universidade Aristóteles de Tessalônica) : “Mythologie de la raison. Un manifeste hégélien de jeunesse” in Methodos, savoirs et textes. 5 (2005), La subjectivité, no site http://methodos.revues.org/document341.html O que indica Thanassas foi efetivado por mim em Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo (SP, Ed. Unesp, 1997, 1a. ed. 1981). O contexto do pensamento russo sobre o Estado, com base no idealismo alemão, pode ser discutido a partir do livro Hegel en Russie de Planty- Bonjour (La Haye, Martinus Nijhoff, 1978).
55 Lenine, Oeuvres cit. tomo 19, p. 528.
56 Tomo 44, p. 456.
57 Trato dessa temática em Silêncio e Ruído. A sátira em Denis Diderot (Campinas, Ed. Unicamp, 1997).
58 Jean- Jacques Rousseau Dictionnaire de musique (Paris, Pléiade, Volume V), pp. 885.
59 Kant, I : Que significa orientar-se no pensamento? Trad. Artur Morão, in www. lusosofia. net.
60 Existe uma preocupação perene, na história da filosofia moderna, desde Kant até os nossos dias, com o famoso Rasönnieren, um jeito tortuoso e medíocre de arrazoar, que serve para fugir da forma racional em sentido estrito. Trata-se das “boas desculpas” ou da lógica que finge ignorar erros graves nas teorias ou práticas do grupo ao qual o enunciador pertence. Trata-se, nesses casos, de pura e simples mentira disfarçada de formas aparentemente racionais. Analiso o assunto no texto “Mentira e Razão de Estado” (aula magna na Escola Superior da Procuradoria Geral de São Paulo). O escrito pode ser lido no Blog da referida Escola.
61 Se descermos no tempo, a metáfora do relógio surge bem antes do totalitarismo. Basta recordar que o símile do Leviatã, logo nas linhas iniciais do projeto hobbesiano, é o relógio. Não por acaso, os indivíduos perdem a liberdade e o direito de manifestar em público o seu pensamento, pois tal é a prerrogativa e o monopólio do soberano. Se é difícil aceitar que Hobbes seja um precursor do Estado totalitário, é preciso que se recorde o fascínio exercido por ele sobre o pensamento que racionalizou os mandos de Hitler, Stalin, Mussolini. O exemplo de Carl Schmitt é um entre vários, de jurista obsecado pela visão de Hobbes sobre o espaço público, as individualidades, a soberania. Cf. Solon, Ari Marcelo : Teoria da Soberania como Problema da Norma Jurídica e da Decisão (Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Ed. 1997), sobretudo página 80 e seguintes. A polêmica de Schmitt contra a tecnologia política, cujos frutos encontram-se no Estado moderno, se inspira em Hobbes e se dirige contra ele. Há uma história a ser determinada, no trato dos românticos tardios alemães, como Tönnies (estudioso, crítico e editor de Hobbes) e Carl Schmitt.
62 Kölnische Zeitung, número 179, citado por Merleau Ponty.
63 Citado por Ari Marcelo Solon, op. cit. p. 81.
64 Pindaro, Odes Píticas 8. 95-96. Trato do assunto em meu artigo “A razão Sonhadora”, editado em O Caldeirão de Medéia (SP, Ed. Perspectiva, 2002).
65 in Sens et Non Sens (Paris, Nagel, 1966)
66 p. 212.
67 São Paulo, Alfa Ômega Ed. 1978, 2a ed.
68 p. 366. Citado por Sérgio Joachim Rückert : Persuasão e Ordem. A escola de quadros do Partido Comunista do Brasil na Década de 50. Tese de Mestrado apresentada à Unicamp em 1987, sob minha orientação. Infelizmente o autor faleceu meses após a defesa da tese, não se conseguiu publicar em livro os resultados de sua pesquisa. Todas as citações sobre o Partido Comunista no Brasil, aqui consignadas, são extraídas daquele escrito, salvo indicação em contrário.
69 Carta de Albert Burgh a Spinoza, 11 de setembro de 1675.
70 Cf. Claudin, Fernando : La crisis del movimiento comunista da la Komintern al Kominforn, no capítulo “El apogeo del stalinismo”. (El Ruedo Ibérico, 1970).
71 Para a política soviética em termos internacionais na época, cf. William Waack “Conferências de Yalta e Potsdam (1945)” in Magnoli, Demétrio (Org.) História da Paz (São Paulo, Ed. Contexto, 2008), pp. 269 e ss. O que os norte-americanos não “entenderam imediatamente é que Potsdam criou claras zonas de influência embora Truman aceitasse, até de bom grado, que uma parte da Europa se tornaria ´eslava´ por um bom tempo. Curiosamente, num dos últimos diálogos travados em Potsdam” os mandatários norte-americanos “perguntaram ao chefe do Kremlin se uma linha que dividisse a Europa em duas grandes metades seria traçada do Báltico ao Adriático e Stalin respondeu que sim.” Waack, p. 294.
72 Arquivos Presidenciais, f. 3, inv 24, dossier 427, f.13-18. Texto publicado em Istocnik (1993), p. 23-25. As notas entre parêntesis são de Nicolas Werth . Na internet, o documento foi publicado no site do Instituto de História do Tempo presente (IHTP), do CNRS. http://www.ihtp.cnrs.fr/spip.php?rubrique56?lang=fr
73 Raison d´ État et pensée politique à l ´époque de Richelieu (Paris, Albin Michel, 2000, 1ª edição 1966), pp. 166 e seguintes.
74 Thuau, op. cit. p. 166.
75”I put for a general inclination of all mankind a perpetual and restless desire of power after power, that ceaseth only in death. And the cause of this is not always that a man hopes for a more intensive delight than he has already attained to, or that he cannot be content with a moderate power, but because he cannot assure the power and means to live well, which he hath present, without the acquisition of more. And from hence it is that kings, whose power is greatest, turn their endeavours to the assuring it at home by laws, or abroad by wars: and when that is done, there succeedeth a new desire; in some, of fame from new conquest; in others, of ease and sensual pleasure; in others, of admiration, or being flattered for excellence in some art or other ability of the mind. Competition of riches, honour, command, or other power inclineth to contention, enmity, and war, because the way of one competitor to the attaining of his desire is to kill, subdue, supplant, or repel the other. Particularly, competition of praise inclineth to a reverence of antiquity. For men contend with the living, not with the dead; to these ascribing more than due, that they may obscure the glory of the other.” Leviathan, capítulo 11 in eBooks@Adelaide 2007 [http://ebooks.adelaide.edu.au/h/hobbes/thomas/h68l/chapter11.html.]
76 Cf. Henri de Rohan: De l ´interêt des princes et des Etats de la chrétienté, Lazzeri, Christian Editor (Paris, PUF, 1995), p. 161: “Le prince se peut tromper, son conseil peut être corrompu, mais l´ interêt seul ne peut jamais manquer. Selon qu ´il est bien ou mal entendu, il fait vivre ou mourir les Etats”. O tema do interesse, como assinala Lazzeri nas notas ao livro de Rohan, foi desenvolvido por Botero no Della Ragion di Stato. Para Botero “razão de Estado” é idêntica à razão de interesse. Lazzeri cita outros autores que defendem posições semelhantes, como é o caso de Frachetta e F. Bonaventura.
77 Os autores do verbete ( Diderot e Jaucourt) examinam a idéia no sentido filosófico, musical, médico, etc. E terminam com a noção de sistema em finanças, com o exemplo de Law. “on a donné très -bien ce nom vers l’ an 1720 au projet connu & exécuté par le sieur Law écossois, de mettre dans ce royaume du papier & des billets de banque pour y circuler, & représenter l’argent monnoyé, comme en Angleterre & en Hollande. J’ai vu plusieurs éloges de ce grand projet, & quelques -uns faits avec éloquence. C’ étoit, dit M. Dutot, un édifice construit par un habile architecte, mais dont les fondemens n’ avoient été faits que pour porter trois étages. Sa beauté surpassa même les espérances que l’ on en avoit conçues, puisqu’il fit mépriser pendant quelques mois l’ or & l’argent, espece de miracle que la postérité ne croira peut- être pas. Cependant, sans égard au bien que la postérité pouvoit retirer de cette idée, une puissante cabale formée contre l’ architecte, eut assez de crédit pour engager le gouvernement à surcharger ou à élever cet édifice jusqu’à sept étages, ensorte que les fondemens ne pouvant supporter cette surcharge, ils s’ écroulerent, & l’ édifice tomba de fond en comble. Voilà bien de l’ esprit en pure perte. Je veux croire cependant que le sieur Law en formant une banque, se proposoit d’ augmenter utilement la circulation publique, de faciliter le commerce, & de simplifier la perception des revenus du roi ; mais comment pouvoit -il se flatter dans la disette la plus générale, d’ établir une banque de crédit qui eût la confiance de la nation & des étrangers ? Si l ‘on parut pendant quelques mois donner la préférence des billets de sa banque à l’argent réel, c’ étoit dans la vue de les fondre, & d’ en tirer du profit dès qu’ ils auroient haussé davantage par le délire de la nation. Enfin, les remboursemens du sieur Law n’ ont enrichi que des familles nouvelles en ruinant les anciennes, & les débris de son systême n’ ont produit dans l’ état qu’ une compagnie exclusive de commerce, dont je laisse à de plus habiles que moi à calculer les avantages rélativement au bien public. (D. J.) Encyclopédie, Ed. CD Rond, Macintosh.
78 “Praeterea ostendere forsan voluit, quantum libera multitudo cavere debet, ne salutem suam uni absolute credat, qui nisi vanus sit et omnibus se posse placere existimet, quotidie insidias timere debet ; atque adeo sibi potius cavere et multitudini contra insidiari magis, quam consulere cogitur. Talvez [Maquiavel] tenha querido mostrar que a multidão livre deve, a todo preço, se precaver para não confiar sua salvação a um só homem. Pois este, a menos que seja muito vaidoso e imagine ser possível agradar a todos seus dirigidos, temerá ininterruptas insídias. Ele será obrigado de se manter alerta e, ele mesmo, insidiar a multidão —em vez de cuidar, como seria seu dever, dos interesses gerais”. Tratado Político, cap. 5, 7 (Hyper Spinoza, http://hyperspinoza.caute.lautre.net). Cf. Lefort, Claude: Le travail de l ´oeuvre, Machiavel (Paris, Gallimard Tel, 1986), pp. 100-1001.
79 Apesar da qualificação de “sistemático” dada a Spinoza, ocorre o elogio dos políticos, contra quem segue modelos da humanidade : Affectus, quibus conflictamur, concipiunt philosophi veluti vitia, in quae homines sua culpa labuntur; quos propterea ridere, flere, carpere vel (qui sanctiores videri volunt) detestari solent. Sic ergo se rem divinam facere, et sapientiae culmen attingere credunt, quando humanam naturam, quae nullibi est, multis modis laudare et eam, quae revera est, dictis lacessere norunt. Homines namque non ut sunt, sed ut eosdem esse vellent, concipiunt; unde factum est, ut plerumque pro  e t h i c a  satyram scripserint, et ut nunquam  p o l i t i c a m  conceperint, quae possit ad usum revocari; sed quae pro chimaera haberetur, vel quae in Utopia vel in illo poëtarum aureo saeculo, ubi scilicet minime necesse erat, institui potuisset. Cum igitur omnium scientiarum, quae usum habent, tum maxime  p o l i t i c e s   t h e o r i a  ab ipsius  p r a x i  discrepare creditur, et regendae reipublicae nulli minus idonei aestimantur, quam theoretici seu philosophi”. É clara a alusão à tese platônica do rei filósofo. A cautela manda não atribuir o juízo spinozano a Platão, mas ao neo platonismo.
80 Para esta passagem, cf. Burke, Peter: A Fabricação do Rei. A Construção da Imagem Pública de Luís XIV (RJ, Jorge Zahar Editor, 1994). Análises várias sobre o tema são expostas no livro coletivo publicado pela Société d´ Étude du XVIIe siècle : L´ Image du Souverain dans les Lettres Françaises, des Guerres de Religion a la Revocation de l ´ Édit de Nantes, Colloque de Strasbourg, 25-27 mai 1983. (Paris, Klincksieck, 1985). No volume, cf. sobretudo Jacques Bailbé : “L´ image d´ Henry IV dans l´ oeuvre d´ Agrippa d´ Aubigné” (pp. 27-40) .
81 Após a batalha de Actium (31 AC), na qual venceu Marco Antonio, Otávio definiu uma paz na república romana, que estava combalida. Com o poder sobre a cidade de Roma, o Senado se entrega ao vencedor. Em 27 AC os senadores lhe dão o título de Augusto. Neste dia tem começo o império. Otávio acumula o título de Princeps senatus e as mais importantes magistraturas militares, civis, religiosas. Ele instala as prefeituras encarregadas do abastecimento, segurança, da vida civil. Ele nomeia os magistrados superiores e os candidatos às eleições. Para conseguir adesão ao novo regime, o príncipe inicia a propaganda tendo em vista a sua legitimidade. Otávio é dito Pai da Pátria por escritores e artistas. O mês sextilis foi rebatizado como Augustus, enquanto o mês quinctilis passou a ser Julius, em honra de Júlio César. O novo regime, o império, mistura formas republicanas e monárquicas e nele restam como focos do poder o Senado e o povo romano e o príncipe . Para o problema, cf. Yavetz, Zvi: La plèbe et le prince. Foule et politique sous le haut empire romain (Paris, Maspero, 1984).
82 Uma variante do princípio “maquiavélico” de Luís XI, “Quem não sabe dissimular, não sabe governar”. O elo entre Luís XI e Richelieu é indicado desde pelo menos Damiens de Gomicourt (tradutor do jurista Blackstone para o francês) no livro Mélanges historiques et Critiques contenant diverses pieces relatives à l’ Histoire de France (Paris, De Hansy le Jeune Ed. 1768). Richelieu “este ministro tão grande político quanto Luís XI, mais empreendedor e mais conseqüente do que ele, executou sob um rei fraco o projeto que o rei mais decidido de todos os reis da monarquia, só tinha conseguido esboçar. É certo que para torná-lo efetivo, foi preciso os mesmos princípios de Luís XI, arrancar dos grandes os meios de fazer valer na corte as pretensões de independência que eles defendiam, e para isto foi preciso privá-los de recursos infinitos que a posse das dignidades lhes conferia sem cessar, para conseguir partidários”. Citado por Adrianna Bakos em Images of kingship in Early Modern France, Louis XI in Political Thought, 1560-1789. (London, Routledge, 1997), p. 210. Pierre Bayle, crítico de Luís XIV salienta os defeitos e qualidades de Luís XI, sobretudo no Dictionnaire Historique et critique.
83 “ libertas scelerum est quae regna invisa tuetur sublatusque modus gladiis. facere omnia saeve non inpune licet, nisi cum facis exeata aula qui volit esse pius. virtus et summa potestas non coeunt; semper metuet quem saeva pudebunt” “Para o poder sem lei a melhor defesa é o crime,* atos cruéis encontram segurança apenas ao serem feitos. Quem deseja ser piedoso deixe a sala do trono; virtude e sumo poder não se juntam, o poderoso vive com medo se diminui sua crueza” (Bellum civile sive Pharsalia in Bibliotheca Augustana. http://www.hs-augsburg.de%5D
84 Zlavoj Žižek: “Robespierre ou la ´violence divine´ de la terreur in Robespierre, entre vertu et terreur (Paris, Stock, 2007), pp. 9 e ss.
85 he doctrine of emanation is a little more explicit in Philo, though he does not teach it clearly and consciously, still less purely and logically. It assumes its most definite form for Greek philosophy in the works of the Neoplatonists — though their speculations are largely derived from the Gnostic mythological systems of Basilides and Valentinus, in which emanation played a prominent part. According to Basilides, a whole series of eons emanated in successive stages from the unbegotten Father; and the Valentinians spoke of the primal essence as “throwing off ” (proballein), without diminution, that which was derived from it. In the Neoplatonist system, the highest principle, the One, overflows without a conscious act, merely by a law of its nature, losing nothing of its fullness and this process has no end in time. It goes from more perfect to less perfect, and the ineffable Unity is the source of all plurality. The Nous (intellect), the first stage in the process, thinks, and thus from it emanate the soul and the logos (word). So the process goes on until the lowest stage is reached in essenceless matter. The notion of emanation was frequently used by the early Christian writers in the attempt to express the relation of the Son and the Holy Spirit to the Father. The idea is similarly used by Athenagoras, Origen, and Arnobius- Tertullian even ventures to employ the Valentinian term probola for the relation of the Son to the Father, while repudiating the separation which Valentinus had taught between his eons. In the final establishment of the Trinitarian doctrine the idea of emanation undoubtedly played a part, as in the emphasis laid upon the Son’s being ” begotten, not made ” (Nicene Creed), and the ” procession” of the Holy Ghost; but the idea of descent to imperfection is lacking.
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Pseudo Dionysius, Scholastic, and Mystic Doctrine
A common misunderstanding regards Dionysius the Areopagite as of importance in the history of the doctrine of emanation. He does teach an efflux from God; but the heavenly hierarchy, with its various grades of perfection, does not arise by an emanation of one from the other; all have their origin directly from God, or the Highest Good. Erigena, referring much of his doctrine to Dionysius, makes use of a kind of creation which resembles the Neoplatonist emanation. His world of causoe primordiales is eternal, though not with God’s eternity, but eternally created by or proceeding from God. Creation is a process through these to the visible and invisible creatures; it too is eternal; God is in the creation, and the creation in God. From Erigena the custom passed over to scholasticism of considering creation as a sort of emanation; but in the passage of Thomas Aquinas most frequently quoted in this connection (I., qu. xlv., art. 1) the specific character of emanation is so weakened as to be perceptible only in the fact that he does not draw a sharp dividing line between God and his powers and the world. In the mystics, despite their connection with scholasticism, the doctrine of emanation can scarcely be discovered in its pure form. But in the Jewish Cabala the emanationistic origin of the world is distinctly taught; the connection with Christian Gnosticism, with the Neoplatonists, and with Dionysius is evident. With the founders of modern metaphysics, Descartes and Spinoza, emanation plays no prominent part; but the logicians of the sixteenth and seventeenth centuries make use of the term causa emanative in contradistinction to causa activa. It is also found in Leibniz’s conception of the relation between God and single monads; God is the primal unity, the monas primitive, which produces the created and derived monads.
Notas
1 Cf. Max Lerner: “Machiavelli the Realist” in De Lamar Jensen (Ed.) : Machiavelli: Cynic, Patriot, or Political Scientist ? (D.C. Heath Ed., 1960), pp. 9-13.
2 At politici contra hominibus magis insidiari, quam consulere creduntur, et potius callidi, quam sapientes aestimantur. Docuit nimirum eosdem experientia, vitia fore, donec homines. Humanam igitur malitiam praevenire dum student, idque iis artibus, quas experientia longo usu docuit, et quas homines magis metu, quam ratione ducti exercere solent, religioni adversari videntur, theologis praecipue, qui credunt summas potestates debere negotia publica tractare secundum easdem pietatis regulas, quibus vir privatus tenetur. Ipsos tamen politicos multo felicius de rebus politicis scripsisse, quam philosophos, dubitari non potest. Nam quoniam experientiam magistram habuerunt, nihil docuerunt, quod ab usu remotum esset. (Tratado Político, I, §2. Uso o texto do site Hyper-Spinoza [http://hyperspinoza.caute.lautre.net/] acessado em 21/02/2008, 9:00 AM.
3 loc. Cit.
4 Lerner, op. cit.
5 “Numa (…) trovando uno popolo ferocissimo, e volendolo ridurre nelle obedienze civili con le arti della pace, si volse alla religione, come cosa al tutto necessaria a volere mantenere una civiltà, e la constituì in modo, che per più secoli non fu mai tanto timore di Dio quanto in quella republica, il che facilitò qualunque impresa che il Senato o quelli grandi uomini romani disegnassero fare.” (…) la religione introdotta da Numa fu intra le prime cagioni della felicità di quella città: perché quella causò buoni ordini; i buoni ordini fanno buona fortuna, e dalla buona fortuna nacquero i felici successi delle imprese. E come la osservanza del culto divino è cagione della grandezza delle republiche, così il dispregio di quello è cagione della rovina d’esse. Perché, dove manca il timore di Dio, conviene o che quel regno rovini, o che sia sostenuto dal timore d’uno principe che sopperisca a’ difetti della religione. E perché i principi sono di corta vita, conviene che quel regno manchi presto, secondo che manca la virtù d’esso”. Discorsi, I, 11, in Niccolò Machiavelli, Opere a cura di Corrado Vivanti (Torino, Einaudi/Gallimard, 1997), Volume I, p. 229 e
6 “Perché, dove gli uomini hanno poca virtù, la fortuna mostra assai la potenza sua; e, perché la è varia, variano le republiche e gli stati spesso; e varieranno sempre, infino che non surga qualcuno che sia della antichità tanto amatore, che la regoli in modo, che la non abbia cagione di mostrare, a ogni girare di sole, quanto ella puote”.(Discorsi, II, 30), ed. cit. p. 410.
7 Verbete “Fortuna”, Dictionnaire des Antiquités Grecques et Romaines de Ch. Daremberg e Edm. Saglio, Université de Toulouse Le Mirail, in http://dagr.univ-tlse2.fr/sdx/dagr/index.xsp, consultado no dia 29/02/2008, 09:16 AM.
8 Guerra do Peloponeso, IV, 18 : “Know it, by seeing this present misfortune fallen on us, who, being of greatest dignity of alla Grecians, come to you to ask that which before we thought chieflyin our own hands to give. And yet we are not brought to this through weakness nor through insolence upon addition of strenght, but because it succeeded not with the we had as we tought it should, which may as well happen to any other as to ouerselves. So that you have no reason to conceive that for your power and purchases fortune also must be therefore always yours” Tradução de Thomas Hobbes :The Peloponesian War (Chicago,University Press, 1991), p. 239. (….) gnôte de kai es tas hêmeteras nun xumphoras apidontes, hoitines axiôma megiston tôn echHellênônontes hêkomen par’ humas, proteron autoi kuriôteroi nomizontes einai dounai eph’ ha nun aphigmenoi humas aitoumetha. kaitoi oute dunameôs endeiai epathomen auto oute meizonos prosgenomenês hubrisantes, apo de tôn aiei huparchontôn gnômêi sphalentes, en hôi pasi to auto homoiôs huparchei.  hôste ouk eikos humas dia tên parousan nun rhômên poleôs te kai tôn prosgegenêmenôn kai to tês tuchê oiesthai aiei meth’ humôn esesthai. ” Site Perseus.
9 Meinecke, Friedrich: Machiavellism: The Doctrine of Raison D’État and Its Place in Modern History (Yale University Press, 1957).
10 tisin anankais hekasta gignetai tôn ouraniôn (Mem. 1.1.11). O trecho refere-se a Sócrates, que evitava conversar sobre a natureza do suposto cosmos, sobre as leis que governam necessariamente os fenômenos celestes.
11 Uso o texto do Perseus Project, acessado em 09/03/2008, 10 AM. Sigo a tradução de Thomas Hobbes: The Peloponesian War with notes by David Grene (Chicago, University Press, 1989, pp. 364 e ss.
12 De officiis, III, 2 : “Panaetius igitur, qui sine controversia de officiis accuratissime disputavit quemque nos correctione quadam adhibita potissimum secuti sumus, tribus generibus propositis, in quibus deliberare homines et consultare de officio solerent, uno cum dubitarent, honestumne id esset, de quo ageretur, an turpe, altero utilene esset an inutile, tertio, si id, quod speciem haberet honesti, pugnaret cum eo, quod utile videretur, quomodo ea discerni oporteret, de duobus generibus primis tribus libris explicavit, de tertio autem genere deinceps se scripsit dicturum nec exsolvit id, quod promiserat”. Panécio nos dá a mais profunda discussão sobre os deveres morais. Ele classifica em três itens os problemas éticos que as pessoas costumam considerar e pesar : primeiro, se a questão analisada é moralmente certa ou errônea; segundo, se é expediente ou não; terceiro como uma decisão deve ser assumida, nos casos em que ela parece ser moralmente certa mas se choca com o que parece expediente. Tradução livre (RR).
13 Anais, XIV, 44.
14 Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIª IIae, q. 2 e 3. Ad primum ergo dicendum quod epieikeia correspondet proprie iustitiae legali, et quodammodo continetur sub ea, et quodammodo excedit eam. Si enim iustitia legalis dicatur quae obtemperat legi sive quantum ad verba legis sive quantum ad intentionem legislatoris, quae potior est, sic epieikeia est pars potior legalis iustitiae. Si vero iustitia legalis dicatur solum quae obtemperat legi secundum verba legis, sic epieikeia non est pars legalis iustitiae, sed est pars iustitiae communiter dictae, contra iustitiam legalem divisa sicut excedens ipsam. (…) Ad tertium dicendum quod ad epieikeiam pertinet aliquid moderari, scilicet observantiam verborum legis. Sed modestia quae ponitur pars temperantiae, moderatur exteriorem hominis vitam, puta in incessu vel habitu, vel aliis huiusmodi. Potest tamen esse quod nomen epieikeiae, apud Graecos, per quandam similitudinem transfertur ad omnes moderationes. Citado a partir do site Corpus Thomisticum (http://www.corpusthomisticum.org/sth3109.html, consultado no dia 12/10/200/, 20.30 PM.
15 Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, Livro V, 10 e ss. Na edição da Loeb Classical Library Aristotle, XIX, trad. H. Rackham (Cambridge, Cambridge University Press, 1990), pp. 312 e ss. Também Aristóteles, Retorica, Ed. W.D. Ross, (Oxford, Clarendon Press, 1959). O dicionário Little &Scott designa: epieikéia como “reasonableness”, “fairness”, “equity”
16 De Legibus, 1.15.42, in Cicero, De Re Publica ; tradução De Legibus por Clinton Walker Keyes, Loeb (1928;Harvard, Univ. Press, 1952). Cf. Ch. S. Ross, “Justifying Violence: Boiardo’s Castle Cruel” in Philological Quarterly, Vol. 73, 1994. O essencial é a referência aos textos platônicos e sua coerência doutrinal interna. No debate sobre o nexo entre a República e as Leis, Cícero afirma, no De Legibus (2.6.14) que as Leis definem um código legal apropriado ao regime descrito na República. Tal debate é antigo, tendo relação com outro, saber se o soberano de carne e osso é cria da lei, a qual seria o verdadeiro soberano, ou o contrário.Cf. V. Bradley Lewis. “Politeia kai Nomoi: on the coherence of Plato ´s Political Political Philosophy” in Polity, Vol. 31, 1998.
17[42] Iam uero illud stultissimum, existimare omnia iusta esse quae sita sint in populorum institutis aut legibus. Etiamne si quae leges sint tyrannorum? Si triginta illi Athenis leges inponere uoluissent, et si omnes Athenienses delectarentur tyrannicis legibus, num idcirco eae leges iustae haberentur? Nihilo credo magis illa quam interrex noster tulit, ut dictator quem uellet ciuium aut indicta causa inpune posset occidere. Est enim unum ius quo deuincta est hominum societas et quod lex constituit una, quae lex est recta ratio imperandi atque prohibendi. Quam qui ignorat, is est iniustus, siue est illa scripta uspiam siue nusquam. Quodsi iustitia est obtemperatio scriptis legibus institutisque populorum, et si, ut eidem dicunt, utilitate omnia metienda sunt, negleget leges easque perrumpet, si poterit, is qui sibi eam rem fructuosam putabit fore. Ita fit ut nulla sit omnino iustitia, si neque natura est ea quae propter utilitatem constituitur utilitate lia conuellitur.[43] Atqui si natura confirmatura ius non erit, uirtutes omnes tollantur. Vbi enim liberalitas, ubi patriae caritas, ubi pietas, ubi aut bene merendi de altero aut referendae gratiae uoluntas poterit existere? Nam haec nascuntur ex eo quod natura propensi sumus ad diligendos homines, quod fundamentum iuris est. Neque solum in homines obsequia, sed etiam in deos caerimoniae religionesque tollntur, quas non metu, sed ea coniunctione quae est homini cum deo conseruandas puto. Quodsi populorum iussis, si principum decretis, si sententiis iudicum iura constituerentur, ius esset latrocinari, ius adulterare, ius testamenta falsa supponere, si haec suffragiis aut scitis multitudinis probarentur.[44] Quodsi tanta potestas est stultorum sententiis atque iussis, ut eorum suffragiis rerum natura uertatur, cur non sanciunt ut quae mala perniciosaque sunt, habeantur pro bonis et salutaribus? Aut cum ius ex iniuria lex facere possit, bonum eadem facere non possit ex malo? Atqui nos legem bonam a mala nulla alia nisi natura norma diuidere possumus. Nec solum ius et iuria natura diiudicatur, sed omnino omnia honesta et turpia. Nam, communis intellegentia nobis notas res effcit easque in animis nostris inchoauit, honesta in uirtute ponuntur, in uitiis turpia. [45] Haec autem in opinione existimare, non in natura posita, dementis est. Nam nec arboris nec equi uirtus quae dicitur (in quo abutimur nomine) in opinione sita est, sed in natura. Quod si ita est, honesta quoque et turpia natura diiudicanda sunt. Nam si opinione uniuersa uirtus, eadem eius etiam partes probarentur. Quis igitur prudentem et, ut ita dicam, catum non ex ipsius habitu sed ex aliqua re externa iudicet? Est enim uirtus perfecta ratio, quod certe in natura est: igitur omnis honestas eodem modo.Nam ut uera et falsa, ut consequentia et contraria sua sponte, non aliena iudicantur, sic constans et perpetua ratio uitae, quae uirtus est, itemque inconstantia, quod est uitium, sua natura probai; nos ingenia im non item? [46] An ingenia natura, uirtutes et uitia quae existunt ab ingeniis, aliter iudicabuntur? An ea non aliter, honesta et turpia non ad naturam referri necesse erit? quod laudabile bonum est, in se habeat quod laudetur, necesse est; ipsum enim bonum non est opinionibus, sed natura. Nam ni ita esset, beati quoque opinione esse, quo quid dici potest stultius? Quare quom et bonum et malum natura iudicetur, et ea sint principia naturae, certe honesta quoque et turpia simili ratione diiudicanda et ad naturam referenda sunt.
18 T. A. Sinclair : A History of Greek Political Thought (Routledge & Kegan Paul, 1952) pp. 40 e ss. Também H.E. Stier: “Nomos Basileus” in Philologus, 83, 1928.
19 Nomos Basileus (Napoli, Edizioni Glaux, 1956), p. 12 e ss.
20 Ilaria Ramelli : Il basileus como nomos empsychos tra diritto naturale e diritto divino. Spunti platonici del concetto e sviluppi do età imperiale e tardo antica. Memorie dell’ Istituto Italiano per gli Studi Filosofici 34 (Napoli, Bibliopolis, 2006).
21 Discorsi, I, proemio in Niccolò Machiavelli Il Principe e Discorsi, a cura di G. Procacci (Milano, Feltrinelli, 1973), p. 124.
22 “Come dimostrano tutti coloro che ragionano del vivere civile, e come ne è piena di esempli ogni istoria, è necessario a chi dispone una republica ed ordina leggi in quella presupporre tutti gli uomini rei, e che li abbiano sempre a usare la malignità dello animo loro qualunque volta ne abbiano libera occasione [. . . ] Però si dice che la fame e la povertà fa gli uomini industriosi, e le leggi gli fanno buoni”. Discorsi, I, 3. Cit. por M. Viroli, Machiavelli (Oxford, Univ. Press, 1998), p. 47.
23 Cicero, (De officiis I, 34) e Tito Livio (Ab urbe condita 2. 3) cit. por Viroli.
24 Chiapelli, in Studi sul linguaggio di Machiavelli (Florença, Le Monier, 1952).
25 Cf. Jack H. Dexter : “The vision of politics on the eve of the Reformation” in More, Machiavelli, and Seyssel ( New York: Basic Books, 1973), 150-78.
26 Talvez referência ao De officiis (I,XI, 34).
27 Príncipe, capítulo 18.
28 De officiis, 2.7.24
29 Principe, capítulo 17.
30 Leo Strauss : “Machiavelli ´s intention: ´The Prince’ in American Political Science Review, LI ( 1957) e Thoughts on Machiavelli ( Glencoe, Ill., 1958). “The Prince is neither a moral nor an immoral book; it is simply a technical book. In a technical book we do not seek rules of ethical conduct, of good and evil. . . . Machiavelli studied political actions in the same way as a chemist studies chemical reactions. Assuredly a chemist who prepares in his laboratory a strong poison is not responsible for its effects. . . . Machiavelli’s Prince contains many dangerous and poisonous things, but he looks at them with the coolness and indifference of a scientist. He gives his political prescriptions.” Ernst Cassirer, The Myth of State (New Haven/London, Yale University Press, 1966), p. 153.

31 Maritain, Jacques: “The end of machiavelianism” in Machiavelli: Cynic, Patriot, or Political Scientist ?” ed. cit. pp. 91 e ss.
32 Embora tenha sido aluno de Claude Lefort, e com ele defendido meu doutoramento na École des Hautes Études em 1978, as referências aos seus trabalhos, a partir de agora, as retiro de Dick Howard no livro The Specter of Democracy ( Columbia Univ. Press, 2002). Trata-se de análise abrangente do pensamento lefortiano. Da explanação de Howard, só uso a que interessa aos meus fins neste texto.
33 Cf. “La résurrection de Trotsky?” in Claude Lefort, Eléments d’ une critique de la bureaucratie (Genebra, Droz, 1971).
34 Cf. Lefort,Claude : “Organisation et parti,” Socialisme ou Barbarie, no. 26 (1958).
35 Paris, Gallimard, 1947.
36 Dispot, Laurent. La machine a terreur. Paris: Bernard – Grasset, 1978.
37 Londres, 1940.
38 Michel Laval : Arthur Koestler, l’ Homme sans concessions [Paris, Calman Levy, 2005] citado por Pierre Raiman, “Autour de Trois Solitudes, 1 : Roubachov- Le Zéro et l ´infini, no Site Autour de la Liberté :
http://autourdelaliberte.blogspot.com/ Os fatos são narrados por Walter Krivitsky, general que fugiu em 1937 para os EUA, onde provavelmente foi assassinado em 1941 : “Sloutsky o persuadira que os bolcheviques têm o dever de submeter suas idéias e vontade à vontade do partido (…) ou que seria preciso permanecer no partido, mesmo até a morte, a desonra, a morte desonrosa, se necessário para consolidar a potência dos sovietes”. (J´ étais l´ agent de Staline [Paris, Champ Libre, 1979] citado por Raiman).
39 Sigo o trabalho de Dominique Colas, “Lénine et la dictature de parti unique” in Maurice Duverger (Ed.) Dictatures et Légitimité (Paris, PUF, 1982), pp. 309 e ss. Uso também a sua indicação das obras de Lénine em francês : Oeuvres en 47 volumes (Paris, Editions Sociales, 1959. No caso dos fuzilamentos e deportações citados, o documento encontra-se na p. 108, do Tomo 44.
40 Oeuvres, Tomo 36, p. 504.
41 Oeuvres, T. 44, pp. 149 e 509.
42 Oeuvres, T. 30, p. 495. Tchekista, de Tcheka, criada para contrabalançar o poder do Comissariado do Povo para Assuntos Internos. Durante toda a guerra civil as duas organizações coexistiram, de maneira autônoma, como rivais. Lenine sugeriu a criação de um outro orgão para controle e retribuição, o Rabkrin (Controle do Povo), para controlar a elite bolchevista, a Tcheka e o Comissariado para os Assuntos Internos. Cf. Военная литература : Исследования : Suvorov V. Inside soviet…..in [militera.lib.ru/research/suvorov8]
43 Tomo 33, p. 365.
44 Tomo 28, p. 244.
45 Tomo 26, p. 142.
46 Colas, D. op. cit. p. 314.
47 Tomo 26, p. 241.
48 Tomo 28, pp. 53, 75, 285.
49 Tomo 27, p. 243.
50 Tomo 27, p. 278.
51 Tomo 27, p. 279.
52 Uma análise percuciente desse imaginário encontra-se em Heller, M. : La machine et les rouages: la formation de l ´homme soviétique (Paris, Calman Levy, 1985).
53 Tomo 19, p. 437.
54 A temática vem da crítica romântica e idealista às luzes. Lenine pensa contra o idealismo e o romantismo, e assume o modelo da máquina recusado pelos pensadores europeus na virada do século 18 para o 19 . O jovem Hegel, crítico da concepção mecânica de Fichte sobre o Estado, pensa que “a liberdade humana pode ser compatível com a natureza mas não com o Estado. (…) uma idéia de máquina seria algo profundamente contraditório : é rejeitada por tal razão a idéia de um Estado, porque Hegel parte do pressuposto de que o Estado é ´algo mecânico´. A comparação do Estado à máquina desumana e a oposição entre máquina e organismo livre, é um lugar comum da época (…) como a físíca, por seu modelo mecanicista e determinista afasta o homem do mundo, também o Estado, por seu mecanicismo determinista afasta o homem de si mesmo. Como a física, que divide o mundo com seus procedimento quantitativo, o Estado divide a humanidade reduzindo os indivíduos à condição de engrenagem, constrangidos a desempenhar num contexto de ausência de liberdade o papel limitado que lhes é atribuido. Estado e liberdade são incompatíveis. (…) O Estado deve desaparecer”. Panagiotis Thanassas (Universidade Aristóteles de Tessalônica) : “Mythologie de la raison. Un manifeste hégélien de jeunesse” in Methodos, savoirs et textes. 5 (2005), La subjectivité, no site http://methodos.revues.org/document341.html O que indica Thanassas foi efetivado por mim em Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo (SP, Ed. Unesp, 1997, 1a. ed. 1981). O contexto do pensamento russo sobre o Estado, com base no idealismo alemão, pode ser discutido a partir do livro Hegel en Russie de Planty- Bonjour (La Haye, Martinus Nijhoff, 1978).
55 Lenine, Oeuvres cit. tomo 19, p. 528.
56 Tomo 44, p. 456.
57 Trato dessa temática em Silêncio e Ruído. A sátira em Denis Diderot (Campinas, Ed. Unicamp, 1997).
58 Jean- Jacques Rousseau Dictionnaire de musique (Paris, Pléiade, Volume V), pp. 885.
59 Kant, I : Que significa orientar-se no pensamento? Trad. Artur Morão, in www. lusosofia. net.
60 Existe uma preocupação perene, na história da filosofia moderna, desde Kant até os nossos dias, com o famoso Rasönnieren, um jeito tortuoso e medíocre de arrazoar, que serve para fugir da forma racional em sentido estrito. Trata-se das “boas desculpas” ou da lógica que finge ignorar erros graves nas teorias ou práticas do grupo ao qual o enunciador pertence. Trata-se, nesses casos, de pura e simples mentira disfarçada de formas aparentemente racionais. Analiso o assunto no texto “Mentira e Razão de Estado” (aula magna na Escola Superior da Procuradoria Geral de São Paulo). O escrito pode ser lido no Blog da referida Escola.
61 Se descermos no tempo, a metáfora do relógio surge bem antes do totalitarismo. Basta recordar que o símile do Leviatã, logo nas linhas iniciais do projeto hobbesiano, é o relógio. Não por acaso, os indivíduos perdem a liberdade e o direito de manifestar em público o seu pensamento, pois tal é a prerrogativa e o monopólio do soberano. Se é difícil aceitar que Hobbes seja um precursor do Estado totalitário, é preciso que se recorde o fascínio exercido por ele sobre o pensamento que racionalizou os mandos de Hitler, Stalin, Mussolini. O exemplo de Carl Schmitt é um entre vários, de jurista obsecado pela visão de Hobbes sobre o espaço público, as individualidades, a soberania. Cf. Solon, Ari Marcelo : Teoria da Soberania como Problema da Norma Jurídica e da Decisão (Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Ed. 1997), sobretudo página 80 e seguintes. A polêmica de Schmitt contra a tecnologia política, cujos frutos encontram-se no Estado moderno, se inspira em Hobbes e se dirige contra ele. Há uma história a ser determinada, no trato dos românticos tardios alemães, como Tönnies (estudioso, crítico e editor de Hobbes) e Carl Schmitt.
62 Kölnische Zeitung, número 179, citado por Merleau Ponty.
63 Citado por Ari Marcelo Solon, op. cit. p. 81.
64 Pindaro, Odes Píticas 8. 95-96. Trato do assunto em meu artigo “A razão Sonhadora”, editado em O Caldeirão de Medéia (SP, Ed. Perspectiva, 2002).
65 in Sens et Non Sens (Paris, Nagel, 1966)
66 p. 212.
67 São Paulo, Alfa Ômega Ed. 1978, 2a ed.
68 p. 366. Citado por Sérgio Joachim Rückert : Persuasão e Ordem. A escola de quadros do Partido Comunista do Brasil na Década de 50. Tese de Mestrado apresentada à Unicamp em 1987, sob minha orientação. Infelizmente o autor faleceu meses após a defesa da tese, não se conseguiu publicar em livro os resultados de sua pesquisa. Todas as citações sobre o Partido Comunista no Brasil, aqui consignadas, são extraídas daquele escrito, salvo indicação em contrário.
69 Carta de Albert Burgh a Spinoza, 11 de setembro de 1675.
70 Cf. Claudin, Fernando : La crisis del movimiento comunista da la Komintern al Kominforn, no capítulo “El apogeo del stalinismo”. (El Ruedo Ibérico, 1970).
71 Para a política soviética em termos internacionais na época, cf. William Waack “Conferências de Yalta e Potsdam (1945)” in Magnoli, Demétrio (Org.) História da Paz (São Paulo, Ed. Contexto, 2008), pp. 269 e ss. O que os norte-americanos não “entenderam imediatamente é que Potsdam criou claras zonas de influência embora Truman aceitasse, até de bom grado, que uma parte da Europa se tornaria ´eslava´ por um bom tempo. Curiosamente, num dos últimos diálogos travados em Potsdam” os mandatários norte-americanos “perguntaram ao chefe do Kremlin se uma linha que dividisse a Europa em duas grandes metades seria traçada do Báltico ao Adriático e Stalin respondeu que sim.” Waack, p. 294.
72 Arquivos Presidenciais, f. 3, inv 24, dossier 427, f.13-18. Texto publicado em Istocnik (1993), p. 23-25. As notas entre parêntesis são de Nicolas Werth . Na internet, o documento foi publicado no site do Instituto de História do Tempo presente (IHTP), do CNRS. http://www.ihtp.cnrs.fr/spip.php?rubrique56?lang=fr
73 Raison d´ État et pensée politique à l ´époque de Richelieu (Paris, Albin Michel, 2000, 1ª edição 1966), pp. 166 e seguintes.
74 Thuau, op. cit. p. 166.
75”I put for a general inclination of all mankind a perpetual and restless desire of power after power, that ceaseth only in death. And the cause of this is not always that a man hopes for a more intensive delight than he has already attained to, or that he cannot be content with a moderate power, but because he cannot assure the power and means to live well, which he hath present, without the acquisition of more. And from hence it is that kings, whose power is greatest, turn their endeavours to the assuring it at home by laws, or abroad by wars: and when that is done, there succeedeth a new desire; in some, of fame from new conquest; in others, of ease and sensual pleasure; in others, of admiration, or being flattered for excellence in some art or other ability of the mind. Competition of riches, honour, command, or other power inclineth to contention, enmity, and war, because the way of one competitor to the attaining of his desire is to kill, subdue, supplant, or repel the other. Particularly, competition of praise inclineth to a reverence of antiquity. For men contend with the living, not with the dead; to these ascribing more than due, that they may obscure the glory of the other.” Leviathan, capítulo 11 in eBooks@Adelaide 2007 [http://ebooks.adelaide.edu.au/h/hobbes/thomas/h68l/chapter11.html.]
76 Cf. Henri de Rohan: De l ´interêt des princes et des Etats de la chrétienté, Lazzeri, Christian Editor (Paris, PUF, 1995), p. 161: “Le prince se peut tromper, son conseil peut être corrompu, mais l´ interêt seul ne peut jamais manquer. Selon qu ´il est bien ou mal entendu, il fait vivre ou mourir les Etats”. O tema do interesse, como assinala Lazzeri nas notas ao livro de Rohan, foi desenvolvido por Botero no Della Ragion di Stato. Para Botero “razão de Estado” é idêntica à razão de interesse. Lazzeri cita outros autores que defendem posições semelhantes, como é o caso de Frachetta e F. Bonaventura.
77 Os autores do verbete ( Diderot e Jaucourt) examinam a idéia no sentido filosófico, musical, médico, etc. E terminam com a noção de sistema em finanças, com o exemplo de Law. “on a donné très -bien ce nom vers l’ an 1720 au projet connu & exécuté par le sieur Law écossois, de mettre dans ce royaume du papier & des billets de banque pour y circuler, & représenter l’argent monnoyé, comme en Angleterre & en Hollande. J’ai vu plusieurs éloges de ce grand projet, & quelques -uns faits avec éloquence. C’ étoit, dit M. Dutot, un édifice construit par un habile architecte, mais dont les fondemens n’ avoient été faits que pour porter trois étages. Sa beauté surpassa même les espérances que l’ on en avoit conçues, puisqu’il fit mépriser pendant quelques mois l’ or & l’argent, espece de miracle que la postérité ne croira peut- être pas. Cependant, sans égard au bien que la postérité pouvoit retirer de cette idée, une puissante cabale formée contre l’ architecte, eut assez de crédit pour engager le gouvernement à surcharger ou à élever cet édifice jusqu’à sept étages, ensorte que les fondemens ne pouvant supporter cette surcharge, ils s’ écroulerent, & l’ édifice tomba de fond en comble. Voilà bien de l’ esprit en pure perte. Je veux croire cependant que le sieur Law en formant une banque, se proposoit d’ augmenter utilement la circulation publique, de faciliter le commerce, & de simplifier la perception des revenus du roi ; mais comment pouvoit -il se flatter dans la disette la plus générale, d’ établir une banque de crédit qui eût la confiance de la nation & des étrangers ? Si l ‘on parut pendant quelques mois donner la préférence des billets de sa banque à l’argent réel, c’ étoit dans la vue de les fondre, & d’ en tirer du profit dès qu’ ils auroient haussé davantage par le délire de la nation. Enfin, les remboursemens du sieur Law n’ ont enrichi que des familles nouvelles en ruinant les anciennes, & les débris de son systême n’ ont produit dans l’ état qu’ une compagnie exclusive de commerce, dont je laisse à de plus habiles que moi à calculer les avantages rélativement au bien public. (D. J.) Encyclopédie, Ed. CD Rond, Macintosh.
78 “Praeterea ostendere forsan voluit, quantum libera multitudo cavere debet, ne salutem suam uni absolute credat, qui nisi vanus sit et omnibus se posse placere existimet, quotidie insidias timere debet ; atque adeo sibi potius cavere et multitudini contra insidiari magis, quam consulere cogitur. Talvez [Maquiavel] tenha querido mostrar que a multidão livre deve, a todo preço, se precaver para não confiar sua salvação a um só homem. Pois este, a menos que seja muito vaidoso e imagine ser possível agradar a todos seus dirigidos, temerá ininterruptas insídias. Ele será obrigado de se manter alerta e, ele mesmo, insidiar a multidão —em vez de cuidar, como seria seu dever, dos interesses gerais”. Tratado Político, cap. 5, 7 (Hyper Spinoza, http://hyperspinoza.caute.lautre.net). Cf. Lefort, Claude: Le travail de l ´oeuvre, Machiavel (Paris, Gallimard Tel, 1986), pp. 100-1001.
79 Apesar da qualificação de “sistemático” dada a Spinoza, ocorre o elogio dos políticos, contra quem segue modelos da humanidade : Affectus, quibus conflictamur, concipiunt philosophi veluti vitia, in quae homines sua culpa labuntur; quos propterea ridere, flere, carpere vel (qui sanctiores videri volunt) detestari solent. Sic ergo se rem divinam facere, et sapientiae culmen attingere credunt, quando humanam naturam, quae nullibi est, multis modis laudare et eam, quae revera est, dictis lacessere norunt. Homines namque non ut sunt, sed ut eosdem esse vellent, concipiunt; unde factum est, ut plerumque pro  e t h i c a  satyram scripserint, et ut nunquam  p o l i t i c a m  conceperint, quae possit ad usum revocari; sed quae pro chimaera haberetur, vel quae in Utopia vel in illo poëtarum aureo saeculo, ubi scilicet minime necesse erat, institui potuisset. Cum igitur omnium scientiarum, quae usum habent, tum maxime  p o l i t i c e s   t h e o r i a  ab ipsius  p r a x i  discrepare creditur, et regendae reipublicae nulli minus idonei aestimantur, quam theoretici seu philosophi”. É clara a alusão à tese platônica do rei filósofo. A cautela manda não atribuir o juízo spinozano a Platão, mas ao neo platonismo.
80 Para esta passagem, cf. Burke, Peter: A Fabricação do Rei. A Construção da Imagem Pública de Luís XIV (RJ, Jorge Zahar Editor, 1994). Análises várias sobre o tema são expostas no livro coletivo publicado pela Société d´ Étude du XVIIe siècle : L´ Image du Souverain dans les Lettres Françaises, des Guerres de Religion a la Revocation de l ´ Édit de Nantes, Colloque de Strasbourg, 25-27 mai 1983. (Paris, Klincksieck, 1985). No volume, cf. sobretudo Jacques Bailbé : “L´ image d´ Henry IV dans l´ oeuvre d´ Agrippa d´ Aubigné” (pp. 27-40) .
81 Após a batalha de Actium (31 AC), na qual venceu Marco Antonio, Otávio definiu uma paz na república romana, que estava combalida. Com o poder sobre a cidade de Roma, o Senado se entrega ao vencedor. Em 27 AC os senadores lhe dão o título de Augusto. Neste dia tem começo o império. Otávio acumula o título de Princeps senatus e as mais importantes magistraturas militares, civis, religiosas. Ele instala as prefeituras encarregadas do abastecimento, segurança, da vida civil. Ele nomeia os magistrados superiores e os candidatos às eleições. Para conseguir adesão ao novo regime, o príncipe inicia a propaganda tendo em vista a sua legitimidade. Otávio é dito Pai da Pátria por escritores e artistas. O mês sextilis foi rebatizado como Augustus, enquanto o mês quinctilis passou a ser Julius, em honra de Júlio César. O novo regime, o império, mistura formas republicanas e monárquicas e nele restam como focos do poder o Senado e o povo romano e o príncipe . Para o problema, cf. Yavetz, Zvi: La plèbe et le prince. Foule et politique sous le haut empire romain (Paris, Maspero, 1984).
82 Uma variante do princípio “maquiavélico” de Luís XI, “Quem não sabe dissimular, não sabe governar”. O elo entre Luís XI e Richelieu é indicado desde pelo menos Damiens de Gomicourt (tradutor do jurista Blackstone para o francês) no livro Mélanges historiques et Critiques contenant diverses pieces relatives à l’ Histoire de France (Paris, De Hansy le Jeune Ed. 1768). Richelieu “este ministro tão grande político quanto Luís XI, mais empreendedor e mais conseqüente do que ele, executou sob um rei fraco o projeto que o rei mais decidido de todos os reis da monarquia, só tinha conseguido esboçar. É certo que para torná-lo efetivo, foi preciso os mesmos princípios de Luís XI, arrancar dos grandes os meios de fazer valer na corte as pretensões de independência que eles defendiam, e para isto foi preciso privá-los de recursos infinitos que a posse das dignidades lhes conferia sem cessar, para conseguir partidários”. Citado por Adrianna Bakos em Images of kingship in Early Modern France, Louis XI in Political Thought, 1560-1789. (London, Routledge, 1997), p. 210. Pierre Bayle, crítico de Luís XIV salienta os defeitos e qualidades de Luís XI, sobretudo no Dictionnaire Historique et critique.
83 “ libertas scelerum est quae regna invisa tuetur sublatusque modus gladiis. facere omnia saeve non inpune licet, nisi cum facis exeata aula qui volit esse pius. virtus et summa potestas non coeunt; semper metuet quem saeva pudebunt” “Para o poder sem lei a melhor defesa é o crime,* atos cruéis encontram segurança apenas ao serem feitos. Quem deseja ser piedoso deixe a sala do trono; virtude e sumo poder não se juntam, o poderoso vive com medo se diminui sua crueza” (Bellum civile sive Pharsalia in Bibliotheca Augustana. http://www.hs-augsburg.de%5D
84 Zlavoj Žižek: “Robespierre ou la ´violence divine´ de la terreur in Robespierre, entre vertu et terreur (Paris, Stock, 2007), pp. 9 e ss.
85 he doctrine of emanation is a little more explicit in Philo, though he does not teach it clearly and consciously, still less purely and logically. It assumes its most definite form for Greek philosophy in the works of the Neoplatonists — though their speculations are largely derived from the Gnostic mythological systems of Basilides and Valentinus, in which emanation played a prominent part. According to Basilides, a whole series of eons emanated in successive stages from the unbegotten Father; and the Valentinians spoke of the primal essence as “throwing off ” (proballein), without diminution, that which was derived from it. In the Neoplatonist system, the highest principle, the One, overflows without a conscious act, merely by a law of its nature, losing nothing of its fullness and this process has no end in time. It goes from more perfect to less perfect, and the ineffable Unity is the source of all plurality. The Nous (intellect), the first stage in the process, thinks, and thus from it emanate the soul and the logos (word). So the process goes on until the lowest stage is reached in essenceless matter. The notion of emanation was frequently used by the early Christian writers in the attempt to express the relation of the Son and the Holy Spirit to the Father. The idea is similarly used by Athenagoras, Origen, and Arnobius- Tertullian even ventures to employ the Valentinian term probola for the relation of the Son to the Father, while repudiating the separation which Valentinus had taught between his eons. In the final establishment of the Trinitarian doctrine the idea of emanation undoubtedly played a part, as in the emphasis laid upon the Son’s being ” begotten, not made ” (Nicene Creed), and the ” procession” of the Holy Ghost; but the idea of descent to imperfection is lacking.
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Pseudo Dionysius, Scholastic, and Mystic Doctrine
A common misunderstanding regards Dionysius the Areopagite as of importance in the history of the doctrine of emanation. He does teach an efflux from God; but the heavenly hierarchy, with its various grades of perfection, does not arise by an emanation of one from the other; all have their origin directly from God, or the Highest Good. Erigena, referring much of his doctrine to Dionysius, makes use of a kind of creation which resembles the Neoplatonist emanation. His world of causoe primordiales is eternal, though not with God’s eternity, but eternally created by or proceeding from God. Creation is a process through these to the visible and invisible creatures; it too is eternal; God is in the creation, and the creation in God. From Erigena the custom passed over to scholasticism of considering creation as a sort of emanation; but in the passage of Thomas Aquinas most frequently quoted in this connection (I., qu. xlv., art. 1) the specific character of emanation is so weakened as to be perceptible only in the fact that he does not draw a sharp dividing line between God and his powers and the world. In the mystics, despite their connection with scholasticism, the doctrine of emanation can scarcely be discovered in its pure form. But in the Jewish Cabala the emanationistic origin of the world is distinctly taught; the connection with Christian Gnosticism, with the Neoplatonists, and with Dionysius is evident. With the founders of modern metaphysics, Descartes and Spinoza, emanation plays no prominent part; but the logicians of the sixteenth and seventeenth centuries make use of the term causa emanative in contradistinction to causa activa. It is also found in Leibniz’s conception of the relation between God and single monads; God is the primal unity, the monas primitive, which produces the created and derived monads.