Domingo, 03 de agosto de 2014
O direito à igualdade como o direito à felicidade. Entrevista especial com Roberto Romano
"O mundo político onde reina a infelicidade, longe de ser uma Civitas, é um hospício de loucos", afirma o professor de Filosofia, citando Spinoza.
A
dificuldade de se estabelecer a definição clássica do conceito de
igualdade exige que pensemos o termo a partir de um paradigma
genealógico. “Com os tempos, a noção variou muito, de acordo com a
hegemonia social, política, econômica, filosófica e mesmo teológica que
balizaram a formulação do problema. Dar uma definição com base na
experiência democrática grega, por exemplo, com o termo ‘isonomia’, é
esquecer que o regime democrático de Atenas, o mais liberal se comparado
ao de Esparta, tem como base a desigualdade na ordem econômica e
política. Só eram iguais os homens, os de nascimento grego comprovado
pela genealogia, os proprietários e os ainda não desonrados pela lei da
‘atimia’, uma das piores práticas jurídicas e políticas definidoras da
humanidade. Falar da igualdade a partir de Platão e Aristóteles,
então, é mais do que problemático. Basta recordar o etnocentrismo que
norteia suas concepções do ser humano”, explica o professor Roberto Romano, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
De acordo com Romano, o movimento filosófico que mais contribuiu para a noção moderna de igualdade encontra-se nas Luzes
do século XVII. “A corrente de pensamento que mais obstáculos
apresentou às teses igualitárias é o romantismo, sobretudo na sua
vertente conservadora liderada por Edmund Burke, Novalis, os irmãos Schlegel e outros”, aponta. “O aristocratismo romântico nega a igualização em todos os sentidos, sobretudo na política”, complementa.
Para o professor, até mesmo as teses neoliberais fracassaram no
sentido de alcançar a desigualdade. “O neoliberalismo julga ser possível
a liberdade sem os seus correlatos. E o resultado é a catástrofe vivida
pela humanidade em nossos tempos. Acrescento outro elemento, muito
defendido pelas Luzes e na Revolução Francesa e também
norte-americana: o direito à felicidade. Num mundo desgraçado onde reina
o frio lucro e onde o genocídio é constante, parece tolice defender o
direito à felicidade. Se escutarmos Spinoza, o mundo político onde reina a infelicidade, longe de ser uma Civitas, é um hospício de loucos”, destaca.
Roberto Romano
cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales —
EHESS, França, e é professor de Filosofia na Universidade Estadual de
Campinas — Unicamp. Escreveu, entre outros, os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997) e Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a definição clássica de igualdade na
filosofia política moderna? Quais são suas principais ambiguidades e
complexidades?
Roberto Romano - Uma definição clássica, eu diria, é
quase impossível de ser indicada isoladamente, porque a igualdade é
conceito que, já ao nascer, implica em múltiplas e complexas
dificuldades. Prefiro partir, algo arbitrariamente, da mensagem
evangélica, a Boa Nova de Jesus. Ao criticar o farisaísmo, ele mostrou
que as diferenças externas do culto, o rigorismo moral, as precedências,
não evidenciariam a verdadeira essência das pessoas no trato com Deus.
Episódios como o da pecadora prestes a ser apedrejada (João 8, 3-11)
mostram uma igualdade de todos perante o mal e algo, da parte do Cristo,
que os gregos denominam epikeia, a justiça efetiva.
Para estabelecer a igualdade de todos no bem, a tarefa é mais
difícil, aconselhando o mesmo Jesus um segredo rigoroso quando atos bons
forem praticados. Mesmo o gesto da mulher que unge seus pés com perfume
(Lucas: 7, 36-50), criticado pelos fariseus, mostra uma dimensão
importante, o da beleza sem débitos nem créditos, sem propriedade, sem
cálculos de igualdade ou desigualdade. Temos aí os primórdios das
fórmulas posteriores sobre a graça, o pecado, a redenção. Lembremos a
parábola do filho pródigo (Lucas, 15, 11-32). Na lógica do herdeiro
“correto”, a medida das recompensas e penas deveria ser única. Cristo
ensina que, além do aspecto quantitativo, vigora a misericórdia, o amor
gratuito paterno e fraternal.
A comunidade nascente do cristianismo segue vigorosamente os ensinos
do Mestre, mas se adapta ao mundo que envolve o minúsculo coletivo. Paulo, que traz universalidade à vida cristã, contra a tendência judaizante liderada por Pedro,
de certo modo molda a doutrina, em seus aspectos sociais, à prática
grega e latina da ordem social e do direito. Com o helenismo, ocorre a
junção do pensamento aristotélico ao platônico , com várias correntes
dos Padres.
Estoicismo, neoplatonismo, são formas de pensar o mundo humano que
estabelecem escalas diferenciais de ordem cósmica e societária entre os
homens. No caso estoico, o Logos a tudo produz segundo a ordem racional.
Loucos os indivíduos que desobedecem tal ordem, sendo inferiores aos
sábios. Já na vertente neoplatônica, têm muita importância nas inovações
cristãs as doutrinas recolhidas sob o nome de Dionísio, o Pseudo-Areopagita.
Tanto na Hierarquia celeste quanto na Hierarquia eclesiástica se
estabelece uma escala de perfeição cósmica e social. Quanto mais próximo
o ente da luz divina, mais perfeito e superior aos demais. No máximo da
escala estariam os anjos, arcanjos, potestades. Abaixo deles, os
clérigos e os governantes. No mais baixo da escala, os leigos. Seria um
pecado um indivíduo recusar o seu lugar na escala fixa, dada para toda a
eternidade.
Dionísio está presente nos grandes padres medievais como Tomás de Aquino.
O exame das citações do Pseudo-Areopagita nos textos tomistas comprova o
seu peso nas Summas e demais escritos do Doutor Angélico.
Esse edifício teológico-político subsiste até a demolição dos escritos de Dionísio por Lorenzo Valla. No caso, haveria uma “fraude piedosa” tão grave quanto a Doação de Constantino, também evidenciada por Valla.
Erasmo e Lutero, modernos pensadores cristãos, levam adiante a filologia e a hermenêutica de Valla. Erasmo recua em pontos de disciplina eclesiástica, mas Lutero
conduz ao máximo a subversão da hierarquia eclesiástica e radicaliza a
tese do sacerdócio comum dos fiéis, funda uma nova maneira de ser na
Igreja com princípio da igualdade de todos perante Deus, sem a mediação
das autoridades visíveis. Tal princípio igualizaria a todos no plano
espiritual, ou seja, no invisível, lugar da consciência.
Thomas Münzer e seus apoiadores tentam conduzir a revolução luterana, a igualização espiritual, aos planos sociais e políticos. Lutero
nega semelhante democratização do mando secular. Ele apoia a repressão
feroz contra os revoltosos. Com setores calvinistas radicalizados, a
referida passagem se estabeleceu em momentos críticos do Estado
absolutista, como é o caso dos monarcômacos franceses e os “niveladores” (Levellers) na França e na Inglaterra do século XVII. Mas nenhum desses movimentos retomou a radicalização de Münzer ou dos Diggers, movimento periférico mas atuante na Inglaterra que chegou à negação da propriedade privada, etc.
Na Revolução Francesa, a hegemonia maior não reside nos radicais que negam a propriedade privada, a família nos moldes tradicionais, etc. Apenas na Comuna Insurrecional de Paris,
em 1792, se esboçam algumas ideias de igualdade econômica. Jacobinos e
girondinos mantêm a tese da igualdade política, mas fundamentada na
defesa da propriedade desigual.
Com o Termidor, se radicalizam as teses que negam mesmo a igualdade jurídica e política. Termidorianos como Boiyssi d’Anglas afirmam que o governo sendo matéria séria, os não proprietários irresponsáveis não poderiam aspirar ao comando. No Termidor
a Revolução Francesa deixa o campo dos valores igualitários e passa ao
plano do interesse econômico como base política. As filosofias do século
XVIII, incluindo as de Rousseau, as de Diderot e mesmo as de um aristocrata como Voltaire, insistiam na virtude cidadã como garantia do governo não tirânico, doutrina reforçada no período jacobino, sobretudo sob Robespierre. Após o Termidor ela foi afastada na teoria e na prática políticas.
Permitam que eu cite um luminoso estudo de Alain Badiou :
“o ponto central é que ao princípio da Virtude se substituiu o princípio do interesse. O termidoriano exemplar (…) é certamente Boissy d’Anglas.
Seu grande texto canônico é o discurso do 5 Messidor ano 3. Citemos:
‘Devemos ser governados pelos melhores (…) ora, com poucas exceções, só
encontrareis semelhantes homens entre os que, tendo uma propriedade, são
apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranquilidade
que a conserva’”.
A virtude, comenta Badiou, “é uma prescrição subjetiva incondicionada, que não remete para qualquer determinação objetiva. É por este motivo que Boissy d’Anglas
a recusa. Não se exigirá do dirigente que ele seja um político
virtuoso, mas que seja um representante governamental dos ‘melhores’.
Estes não constituem uma determinação subjetiva. É uma categoria
definível condicionada absolutamente pela propriedade.
As três razões evocadas por Boissy d’Anglas para entregar o Estado aos ‘melhores’ são essenciais e tiveram grande futuro:
— Para um termidoriano, o país não é, como para o
patriota jacobino, o lugar possível das virtudes republicanas. Ele é o
que contém uma propriedade. O país é uma objetividade econômica.
— Para um termidoriano, a lei não é como para o
jacobino, a máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Ela é o
que protege, e singularmente o que protege a propriedade. Assim, sua
universalidade é totalmente secundária. Conta a função.
— Para um termidoriano, a insurreição não poderia
ser, como o é para o jacobino quando a universalidade dos princípios é
pisoteada, o mais sagrado dos deveres. Pois a reivindicação principal e
legítima do proprietário é a tranquilidade.
Encontramos, assim, o tripé fundamental de uma concepção objetiva do
país, de uma concepção conservadora da lei, e de uma concepção
securitária das situações. Uma primeira descrição do conceito de
termidoriano nele vê a nuvem do objetivismo, do status quo ‘natural’ e
da segurança”.
(Alain Badiou, “Qu’est-ce qu’un thermidorien?” in
Kintzler, Catherine et Rizk, Hadi: La république et la terreur. Paris,
Kimé, 1995, pp. 56-57).
No século XIX, as insurreições liberais e socialistas, a partir de
1848, aproximam a igualização política e jurídica e as bases de uma
sociedade economicamente igualitária. As propostas de Saint-Simon,
por exemplo, seguem rumo à propriedade em parâmetros diferentes dos
estabelecidos pela tradição. Com os anarquistas e comunistas, as bases
mesmas da propriedade privada, vistas como a origem de todas as
desigualdades, serão questionadas.
A Comuna de 1870 radicaliza tais propostas, mas o Estado francês, unido ao exército de Bismarck,
a esmaga. Ela dura 72 dias. No século XX, experiências políticas como a
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS e das soberanias
comunistas seguem a via da coletivização da propriedade, sendo não raro
obrigadas a recuar em instantes de crise, como acontece com a Nova Política Econômica (NEP) conduzida por Lenin.
Essa pequena história, resumida com certo arbítrio por mim, mostra a
dificuldade de se enunciar um conceito clássico da igualdade: com os
tempos, a noção variou muito, de acordo com a hegemonia social,
política, econômica, filosófica e mesmo teológica que balizaram a
formulação do problema.
Dar uma definição com base na experiência democrática grega, por
exemplo, com o termo “isonomia”, é esquecer que o regime democrático de Atenas,
o mais liberal se comparado ao de Esparta, tem como base a desigualdade
na ordem econômica e política. Só eram iguais os homens, os de
nascimento grego comprovado pela genealogia, os proprietários e os ainda
não desonrados pela lei da “atimia”, uma das piores práticas jurídicas e
políticas definidoras da humanidade. Falar da igualdade a partir de Platão e Aristóteles, então, é mais do que problemático. Basta recordar o etnocentrismo que norteia suas concepções do ser humano.
IHU On-Line - Quais são os filósofos centrais e suas ideias para esse debate na filosofia?
Roberto Romano - Eu diria que o movimento filosófico que mais contribuiu para a noção moderna de igualdade encontra-se nas Luzes do século XVIII. A corrente de pensamento que mais obstáculos apresentou às teses igualitária é o romantismo, sobretudo na sua vertente conservadora liderada por Edmund Burke, Novalis, os irmãos Schlegel e outros.
Os autores das Luzes, com suas diversas leituras da igualdade, tendem
à abstração geométrica quando determinam o conceito. Os românticos
acentuam o aspecto orgânico do cosmos e da sociedade, reinstaurando um
ideário mais próximo de Dionísio Pseudo-Areopagita. O aristocratismo romântico nega a igualização em todos os sentidos, sobretudo na política.
Como ressaltei em meu livro Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), pensadores como Novalis
tendem a apresentar um poder paternal do monarca, acima de todos os
homens. No mesmo passo, ele apresenta o povo como simples problema
pedagógico: o povo seria eterna criança que não terá jamais maturidade
para assumir a igualdade face aos dominantes. Não por acaso Novalis apresenta as Reflexões sobre a Revolução Francesa de Edmund Burke,
um dos mais virulentos panfletos opostos à ideia e à prática de
igualdade, como “um livro revolucionário contra a Revolução”.
IHU On-Line - Como podemos compreender o princípio da
igualdade e quais são os principais limites e desafios em praticá-lo em
nosso tempo?
Roberto Romano - Para o caso, cito o verbete “igualdade”, da Encyclopédie coordenada por Denis Diderot, escrito por Jaucourt, mas revisado por Diderot. O verbete define a noção mesma de igualdade abstrata:
“uma semelhança de quantidade
descoberta pela operação do intelecto. Assim, quando o entendimento mede
o mais e o menos de dois objetos, acha que a mesma ideia que lhe
fornece o mais ou o menos de um, ou seja, os graus de sua quantidade,
lhe manifesta também o mais e o menos, ou seja, a quantidade do outro.
Tal conformidade de ideias das quais o intelecto se utiliza para
medi-las faz conceder a esses dois objetos o nome de iguais. Mas não se
deve confundir a relação de igualdade com a semelhança e a proporção”.
Note-se que o ponto de partida, aqui, é o mais abstrato possível, o mais geral e indeterminado.
A seguir, o verbete anota o conceito de igualdade na astronomia, na
geometria, na proporção da igualdade ordenada (ex oequo ordinata), na
álgebra, até chegar ao ponto explosivo do tema, a questão da igualdade
natural, no Direito. Ou seja, a reflexão vai do mais abstrato (a
quantidade) para o concreto humano, a vida social, jurídica, econômica,
etc. Note-se que o procedimento é o exato contrário do que denuncia Edmund Burke,
que enxerga nas Luzes e na Revolução Francesa o triunfo do puramente
quantitativo. A má-fé do conservadorismo burkeano salta à vista. Assim,
eu diria que os maiores desafios é bem aplicar a medida, algo prudencial
por excelência. Há um seminário recente e muito útil, que aborda os
problemas da medida e que pode servir para pensar a questão da igualdade
para além do puramente quantitativo. (Jean Claude Beaune: La Mesure, instruments et Philosophies, Seyssel, Ed. Champ Vallon, 1994).
O pensamento de Hegel ajuda muito, sobretudo na Grande Lógica, a pensar os problemas da medida na ordem física e humana. Mas no meu modesto parecer, Karl Marx determinou muito bem o problema da medida e da igualdade no modelo de texto analítico que é a Crítica do Programa de Gotha.
Perdoem a longa citação, necessária para bem situar o ponto de vista
marxista, esquecido pelos defensores do materialismo histórico e
dialético posterior. Não por acaso, a Crítica do Programa de Gotha foi engavetada por Engels e pela social democracia, por bom tempo e por razões óbvias. Atacando a noção de Lassalle sobre o “direito igual”, Marx apresenta as luminosas observações seguintes:
“O direito igual é aqui, portanto,
sempre ainda — segundo os princípios — o direito burguês, se bem que
princípio e prática já não se andem a puxar os cabelos, enquanto a troca
de equivalentes na troca de mercadorias só existe em média e não para o
caso individual. Apesar deste progresso, este igual direito está ainda
constantemente carregado com uma limitação burguesa. O direito dos
produtores é proporcional ao seu fornecimento de trabalho; a igualdade
consiste em que ele é medido por uma escala igual: o trabalho. Mas um
[indivíduo] é física ou espiritualmente superior a outro; fornece,
portanto, mais trabalho no mesmo tempo ou pode trabalhar durante mais
tempo; e o trabalho, para servir de medida, tem que ser determinado
segundo a extensão ou a intensidade, senão cessaria de ser escala [de
medida]. Este igual direito é direito desigual para trabalho desigual.
Não reconhece nenhuma diferença de classes, porque cada um é apenas tão
trabalhador como o outro; mas reconhece tacitamente o desigual dom
individual — e, portanto, [a desigual] capacidade de rendimento dos
trabalhadores como privilégios naturais. E, portanto, um direito da
desigualdade, pelo seu conteúdo, como todo o direito. O direito, pela
sua natureza, só pode consistir na aplicação de uma escala igual; mas os
indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos diversos se não fossem
desiguais) só são medíveis por uma escala igual, desde que sejam
colocados sob um ponto de vista igual, desde que sejam apreendidos
apenas por um lado determinado, por exemplo, no caso presente, desde que
sejam considerados como trabalhadores apenas e que se não veja neles
nada mais, desde que se abstraia de tudo o resto. Além disso: um
trabalhador é casado, o outro não; um tem mais filhos do que o outro,
etc. Com um rendimento de trabalho igual — e, portanto, com uma
participação igual no fundo social de consumo — um recebe, pois, de
fato, mais do que o outro, um é mais rico do que o outro, etc. Para
evitar todos estes inconvenientes, o direito, em vez de igual, teria
antes de ser desigual”.
Mente lúcida, digna das maiores genialidades humanas, Marx
toma o problema no seu ponto lógico e ontológico mais agudo: definir a
igualdade, segundo padrões abstratos (como é o caso do direito burguês)
significa cair na armadilha da classe dominante. Assim, exigir
“igualdade” sem questionar suas bases é limitar de forma grave o escopo
de libertação humana no mundo do mercado, lugar da igualização abstrata
de tudo e de todos.
Estranho modo de pensar para um pensador dito “coletivista”! Quase sempre se “esquece” que Marx
valoriza o indivíduo acima de tudo e que, justamente, o pior aspecto da
sociedade mercadológica que reduz os corpos humanos à força igual de
trabalho é o fato de que nela somem as individualidades. João não é mais
João, mas simples operador mecânico a serviço do capital, integrado à
força de trabalho, mercadoria a ser negociada segundo os princípios da
igualdade quantitativamente considerada.
Outro elemento estratégico na Crítica do Programa de Gotha é a questão do trabalho, suposta fonte de toda riqueza. Marx
evidencia que a fonte de toda riqueza é o mundo natural, apropriado sem
cerimônias pelo capitalista. Num instante em que a natureza é esgotada
pelo capitalismo sem peias, tanto no plano alimentar (a Monsanto
e derivados têm muito a admitir no crime de lesa-natureza) quanto no
vestuário (a quantidade de tecidos tóxicos é inacreditável) e em todos
os sentidos (as advertências de Hans Jonas apresentam
terrível atualidade), a exploração do trabalho humano acrescenta, ao
crime dos que buscam lucro, uma crueldade super-humana. Igualdade,
portanto, é problema que exige muita cautela. O estudo mais profundo que
conheço sobre o tema das individualidades em Marx, sublinho minha
fraqueza, a qual pode ser corrigida, é o de Michel Henry, Marx (Paris, Gallimard, 1976).
IHU On-Line - É possível pensar que dos ideais da Revolução
Francesa restou apenas o conceito de liberdade? Por que a igualdade e a
fraternidade caíram por terra?
Roberto Romano - Christopher Hill,
em momento lúcido de suas pesquisas, faz a seguinte pergunta: “liberdade
para quem e para fazer o quê?”. Ele recorda as alfinetadas de Marx
sobre o inglês que defende seu direito de chicotear seu criado, em nome
da liberdade. Sendo a flor do sistema democrático, a liberdade exige as
duas outras palavras da Revolução, a igualdade e a fraternidade como
sua raiz e caule. Mas como ela não está unida imediatamente à posse da
natureza e das coisas artificiais, não foi tragada pela voragem
conservadora que imperou no mundo após o Termidor. O
neoliberalismo julga ser possível a liberdade sem os seus correlatos. E o
resultado é a catástrofe vivida pela humanidade em nossos tempos.
Acrescento outro elemento, muito defendido pelas Luzes e na Revolução Francesa
e também norte-americana: o direito à felicidade. Num mundo desgraçado
onde reina o frio lucro e onde o genocídio é constante, parece tolice
defender o direito à felicidade. Se escutarmos Spinoza, o mundo político onde reina a infelicidade, longe de ser uma Civitas, é um hospício de loucos.
IHU On-Line - A que constatações chegamos ao analisar a liberdade hoje convertida em sinônimo de liberdade econômica?
Roberto Romano - Prejudicada, visto as respostas
anteriores. Em que medida é possível conciliar a igualdade com a
diversidade que caracteriza a pós-modernidade? Será mesmo que a
pós-modernidade se caracteriza pela diversidade? Que outra coisa seria,
senão igualdade ensandecida, a violência testemunhada nas redes da
internet como o Facebook? Tenho muitas dúvidas acerca de algumas ideias
sobre a pós-modernidade.
IHU On-Line - Nietzsche criticava a democracia liberal do
século XIX porque, em seu ponto de vista, esta promovia um nivelamento
por baixo e uma mediocrização da política. Para ele, tal concepção
igualitária provinha da “sistematização” do cristianismo por Paulo de
Tarso. Qual é a pertinência dessa análise para examinarmos a democracia
em nosso tempo?
Roberto Romano - Tentei encaminhar o ponto na
primeira resposta. Creio que uma questão assim seria mais adequadamente
respondida pelo meu colega e amigo, Oswaldo Giacoia . Quanto a mim,
desconfio que tanto Marx quanto Freud e Nietzsche não aceitavam o princípio da igualização quantitativa, que reduz o mundo humano ao seu aspecto abstrato. Quando Nietzsche
diz que as palavras, no mundo moderno, se reduziram a moedas gastas,
sem valor, imagino que ele alertava tanto para o desgaste semântico
quanto para o fato de que o dinheiro vira o padrão básico de uma
sociedade vulgar. Lembremos a invectiva, em Assim Falava Zaratustra, contra o Estado e seus operadores:
“Cada povo tem seu idioma do bem e do
mal e o povo vizinho não o entende. Mas o Estado sabe mentir em todas
as línguas do bem e do mal e, em tudo o que ele diz, mente e tudo o que
possui, roubou. Tudo nele é falso; ele morde com dentes falsos, até suas
entranhas são falsas. (…) O Estado é o lugar onde todos estão
intoxicados, bons e maus, onde todos se dissolvem (…) onde o lento
suicídio de todos é chamado ‘vida’. (…) Vede estes supérfluos: eles
adquirem riquezas e apenas se tornam mais pobres. Eles querem o poder
(Macht) e, antes, a alavanca do poder, muito dinheiro — esses
impotentes! Vede como eles sobem, estes macacos ágeis. Eles sobem uns
sobre os outros e se fazem mutuamente cair na lama e no abismo. Todos
querem ganhar o trono. Com frequência é a lama que está sobre o trono, e
não raro o trono está plantado na lama. Todos loucos… seu ídolo fede,
este monstro frio; eles também fedem, os idólatras…”.
IHU On-Line - Por que a obra de Thomas Piketty está provocando tanto alvoroço?
Roberto Romano - Ela vem após o vagalhão neoliberal
que varreu o mundo depois da Segunda Guerra e, sobretudo, após o
predomínio imperial dos Estados Unidos. Aquela potência enviou aos
países dominados, para golpear a democracia, dois exércitos: o dos
truculentos armados e o dos truculentos armados de planilhas, os
economistas deformados na escola de Chicago. O autor
leva a uma visão nova do mundo capitalista, sem a voracidade dos que
defendem apenas e tão somente interesses privados. Ele não é contra o
capitalismo, mas apresenta defeitos gravíssimos do sistema. Vale por tal
motivo.
Nota: As fonte das imagens que ilustram a entrevista são, respectivamente, http://economiapolitica e http://migre.me/kLWAW.