terça-feira, 19 de agosto de 2014

Revista Rolling Stone

Em Nome de Deus

Enquanto os principais candidatos à Presidência correm atrás do eleitorado evangélico, políticos religiosos trabalham para levar o rebanho de fiéis das igrejas para as urnas
Em Nome de Deus
Ilustração Lézio Júnior Veja a galeria completa
 
por Leandro Prazeres | Ilustração Lézio Júnior

Temidos e, ao mesmo tempo, cobiçados. Os evangélicos brasileiros estão prestes a protagonizar um momento-chave nas eleições deste ano, com a força de aproximadamente 23 milhões de eleitores. Cerca de 22% da população (42 milhões de pessoas, ou quase um em cada quatro brasileiros) se declarou evangélica no último censo, realizado em 2010. Conectados às redes sociais e abastecidos por uma máquina midiática poderosa, os políticos que representam essa massa sabem que, nas igrejas, têm mais do que um rebanho de fiéis – têm possibilidade de votos. Se parte dos brasileiros ainda não sabe se segue em direção à esquerda ou à direita, os eleitores da bancada evangélica parecem ter em mente exatamente para onde ir e em quem votar.

Em 2010, por exemplo, foram eleitos 70 deputados federais e três senadores que levantaram a bandeira da religião na hora de arregimentar votos. Se fossem todos do mesmo partido, seriam tão fortes quanto gigantes como o PT e o PMDB. Apesar de defenderem interesses comuns, na política e fora dela os evangélicos compõem uma massa heterogênea, dividida em diversos outros grupos. Há pelo menos três grandes ramificações: os evangélicos tradicionais (que podem ser batistas, presbiterianos, protestantes, luteranos ou metodistas), os pentecostais (Assembleia de Deus, Deus é Amor, Igreja do Evangelho Quadrangular) e os neopentecostais (Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo). Este último grupo é o que mais cresce no Brasil, e se diferencia dos pentecostais por adotar, segundo eles, hábitos mais “liberais”, e acreditar na chamada Teologia da Prosperidade, que enfatiza o caráter abençoado da riqueza.

A participação de religiosos na política brasileira não é novidade e os católicos foram os pioneiros. Mas, ao longo das últimas décadas, a Igreja Católica mudou seu modo de atuação, preferindo os bastidores. Os evangélicos, por sua vez, passaram a disputar eleições em números cada vez maiores: em 2014, pelo menos 270 pastores vão concorrer a cargos eletivos, segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral). “Antes, representantes religiosos não se envolviam em disputas eleitorais ou políticas porque isso fazia parte da estrutura de pensamento deles à época”, diz o filósofo Roberto Romano, um dos maiores especialistas brasileiros na relação entre religião e política. “A separação da esfera do sagrado e do secular era um elemento importante.”

O chamado mais claro para que os evangélicos saíssem do isolamento político parece ter vindo de um velho conhecido do público: o bispo Edir Macedo, fundador e dirigente da Igreja Universal do Reino de Deus. No livro Plano de Poder (editora Thomas Nelson Brasil, 2008), Macedo conclama os fiéis a participar da vida política e a pôr em prática um projeto que é “de Deus”. Parecendo ter tirado inspiração de clássicos como O Príncipe, de Maquiavel, e de passagens bíblicas, Macedo é didático: “Mobilização é poder”. Para especialistas, o crescimento da bancada evangélica no Congresso acontece dentro de uma intrincada combinação de fatores, entre os quais estão o crescimento da população evangélica no Brasil, que triplicou entre 1980 e 2010; a dubiedade do Estado laico brasileiro; e o desgaste do velho debate político entre esquerda e direita. “A Constituição diz que o Brasil é laico, mas pede a proteção de Deus. Isso é muito irônico”, afirma Romano. Christina Vital, socióloga e professora da UFF (Universidade Federal Fluminense), enfatiza que o debate entre esquerda e direita perdeu o sentido para algumas pessoas. “Hoje, a forma de mobilização social mais forte no Brasil e em vários países do mundo não se dá mais em torno de partidos ou sindicatos. Hoje ela é religiosa”, constata.

Para o pastor Everaldo Pereira, candidato do PSC à Presidência da República, a divisão entre direita e esquerda “é ultrapassada”. “O Brasil é um país diferente. Talvez isso fizesse algum sentido na Europa, quando começou, mas o país é hoje uma mistura de coisas”, ele acredita. Pereira é pastor da Igreja Assembleia de Deus do Rio de Janeiro e, durante o governo de Anthony Garotinho (1999-2002), foi subchefe da Casa Civil. Pesquisas recentes lhe dão em torno de 3% das intenções de voto. Parece pouco, mas o candidato conta com aliados poderosos – ao que indica a força de alguns de seus apoiadores, ele poderá surpreender. Em julho deste ano, Silas Malafaia, um dos mais midiáticos pastores do Brasil, divulgou um vídeo apoiando Pereira. O aval de Malafaia é um dos mais desejados entre os políticos evangélicos. Presente sobretudo na TV e na internet, ele não tem o menor pudor em indicar e criticar políticos. Foi Malafaia quem protagonizou um duelo com a jornalista Marília Gabriela durante o programa de entrevistas De Frente com Gabi, em fevereiro do ano passado, no qual disse amar os gays “da mesma forma que ama os bandidos”. Mas não só Everaldo Pereira está disposto a olhar para eleitores evangélicos – os principais candidatos à Presidência já deram início a tentativas de abocanhar fiéis em um jogo de xadrez no qual os “bispos” é que são as peças mais importantes. Todos atrás de um eleitorado que, segundo pesquisa do Datafolha, é três vezes mais propenso a votar em candidatos indicados pela igreja do que os católicos.

Aécio Neves, candidato do PSDB à Presidência, vem mantendo conversas com líderes da Assembleia de Deus no Rio de Janeiro e em outros estados. Em 2010, parte dos representantes da Assembleia, uma das mais poderosas igrejas entre as pentecostais, seguiu com o então candidato José Serra (PSDB). O time de Dilma Rousseff (PT) também se articula para buscar votos nessa esfera. Em 2010, a então candidata obteve o apoio da Igreja Universal do Reino de Deus. Um dos principais líderes da IURD, Marcelo Crivella (PRB-RJ), foi alçado ao cargo de Ministro da Pesca e hoje é um dos principais candidatos ao governo do Rio de Janeiro. “Os principais candidatos dialogam, e muito, com esse segmento”, explica Christina Vital. “Eles procuram as lideranças, porque sabem que elas podem influenciar o voto, ainda que seja ingênuo imaginar que os fiéis votem o tempo todo da forma como o pastor indica.”

Não é difícil entender por que a ascensão da bancada evangélica no Congresso causa tanta gritaria. A explicação está em algumas das principais ideias defendidas pelo segmento, já que a maioria é contra o aborto, as leis anti-homofobia e a união homoafetiva. Uma pesquisa realizada em 2013 pelo instituto Datafolha indicou que até 24% dos evangélicos eram contra o projeto de lei que criminalizava a homofobia. Até 68% não aceitavam a união civil homoafetiva e 72% achavam que uma mulher que interrompesse a gravidez deveria ser processada.

O pastor Everaldo Pereira já se manifestou contrariamente à discussão sobre a legalização do aborto e criticou o Supremo Tribunal Federal (STF) por ter decidido a favor dos direitos civis das uniões estáveis entre parceiros do mesmo sexo. “A legislação vigente já trata do aborto suficientemente. Quanto à união homoafetiva, creio que o STF extrapolou suas atribuições”, diz. “As bandeiras do aborto e da união homoafetiva se tornaram emblemáticas para alguns grupos evangélicos”, declara Christina Vital. “Eles fazem da afirmação religiosa um instrumento de chegada ao poder. Isso é legítimo. O problema é quando essa identidade afeta a discussão de políticas públicas que deveriam ser universais, como as políticas em relação ao aborto, às drogas e aos direitos do movimento LGBT.” Foi isso o que aconteceu em 2010, quando as eleições caminhavam para uma vitória tranquila de Dilma Rousseff no primeiro turno até que segmentos religiosos passaram a questionar o posicionamento da presidente em relação ao aborto.

Pivô de alguns dos momentos mais tensos do Congresso em 2013, o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) diz não entender por que o crescimento da bancada evangélica é visto com apreensão por uma parcela da sociedade. “Eu acho curioso isso. A maioria das pessoas não se preocupa em saber qual a religião dos seus políticos, mas, no nosso caso, isso parece incomodar as pessoas”, ele declara. Em 2013, Feliciano era quase um anônimo na Câmara dos Deputados. Em março daquele ano, no entanto, o nome dele ganhou todas as manchetes depois que um acordo entre os partidos governistas terminou com a indicação dele para presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, uma das mais simbólicas e importantes. É lá que são discutidos projetos relacionados aos direitos das mulheres, dos negros, dos indígenas e do movimento LGBT. Historicamente, ficava com o PT ou com partidos identificados com a defesa dos direitos das minorias. Quando Feliciano, contrário ao aborto, à união homossexual e a favor da redução da maioridade penal, assumiu o comando da Comissão, a reação foi imediata.

O que se seguiu foi um embate pesado. Partidos historicamente ligados à defesa dos Direitos Humanos, como o PSOL, protestaram. O caso ganhou os holofotes. Houve manifestações, gente presa e virais contra Feliciano na internet, que se transformou em uma espécie de “inimigo público número 1” poucos meses antes das manifestações de junho de 2013. A expressão “não me representa”, usada inicialmente para criticar o parlamentar, virou bordão. Feliciano confessa que ocupar o comando da Comissão era estratégico para fazer seu partido aparecer. “A gente não sabia aonde ia dar. Foi um massacre. Sofri retaliações de todos os lados. Só o meu partido ficou ao meu lado. Mas hoje estou colhendo bons resultados”, afirma. “Os mesmos partidos que me criticaram em março de 2013 vieram conversar comigo em novembro. Sabe o que é andar pelo parlamento e te chamarem pelo nome? Isso é fantástico. Me tornei uma liderança evangélica nacional.” Feliciano sabe que ele é, atualmente, uma figura muito mais conhecida no cenário político do que o pastor Everaldo, e diz que, embora nutra o sonho de disputar a Presidência da República, este ainda não é o momento. “Eu não tenho a experiência necessária e estou 100% engajado na candidatura do pastor Everaldo, que tem muito mais experiência que eu. Se eu saísse agora, seria queimar um cartucho à toa. Nossa meta é aumentar a bancada e fortalecer o segmento”, explica.

Distante das comemorações e dos planos de Feliciano, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) afirma estar preocupado com a perspectiva de que a bancada evangélica possa crescer entre 20% e 25% na próxima legislatura. Wyllys garante que não tem nada contra a participação dos evangélicos na política, mas que teme que o aumento da bancada se dê com a chegada do que ele chama de “fundamentalistas religiosos”.

“A gente senta para discutir algum tema da esfera pública e os fundamentalistas falam que a Bíblia está acima da Constituição. Se esse crescimento vier junto com os fundamentalistas, aí eu acho que a gente corre o risco de retroceder em direitos que demoramos muito para conquistar”, afirma. Para o filósofo Roberto Romano, a índole autoritária de alguns grupos religiosos, sobretudo na forma como eles se relacionam com as demandas pelos direitos da comunidade LGBT e dos adeptos de religiões de matriz africana, é um ponto a ser considerado. “Até pela natureza do nosso sistema político, os governos têm feito concessões a esses grupos [evangélicos]. Dependendo do crescimento deles, essas concessões podem ser maiores e aí, se você for um liberal, que acredita na separação da religião e do Estado, tem motivos para ficar preocupado”, diz.

Cobiçados por uns e temidos por outros, Marco Feliciano e Everaldo Pereira afirmam que não é medo o que eles querem despertar nas pessoas, sobretudo aquelas ligadas a setores mais liberais da sociedade. “Eles não precisam ter medo da gente. Eles só precisam fazer algo que nunca fizeram: nos respeitar”, decreta o deputado. O pastor Everaldo adota o discurso de candidato e responde seco quando questionado sobre a possibilidade de parte do eleitorado temer o crescimento da presença dos evangélicos no poder. “Eu sempre votei independentemente da religião das pessoas. Por que as pessoas deveriam ter medo de votar na gente?”, questiona. “Nunca temi nenhum governante e não acho que as pessoas deveriam ter medo de nós. Quero ser o presidente de todos os brasileiros, não apenas dos evangélicos.” Cauteloso, o filósofo Roberto Romano afirma que dificilmente os religiosos poderiam se transformar em maioria no Parlamento, mas admite que as eleições deste ano são uma prova de fogo. “Na política, não há vácuo de poder. O desgaste das velhas forças abre espaço para as novas. Em 2014, vamos ver até onde vai o poder deles.”

Conservador Sim, e Daí?

O Pastor Everaldo Pereira disputa a presidência levantando “as bandeiras da família tradicional”

Surfando na onda de popularidade formada com a escolha de Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o pastor Everaldo Pereira (PSC) disputa pela primeira vez a Presidência da República. Em um rápido bate-papo, ele revela que não tem medo de se assumir como conservador.
O senhor se assume como conservador. Não teme ser mal interpretado?

De maneira nenhuma. Eu defendo as bandeiras da família tradicional e de uma reforma do Estado brasileiro, com o enxugamento da máquina. Comigo não tem essa história de “rasgue o que eu escrevi, o que eu disse não vale mais”. Eu sou isso aí, e pronto

Se eleito, pretende fazer algo a respeito da decisão do STF, que concedeu o direito à união civil de pessoas do mesmo sexo?

Eu defendo a Constituição e ela diz que o casamento só pode ser entre um homem e uma mulher. O STF extrapolou a Constituição.

Mas o senhor faria algum movimento para mudar essa decisão do STF?

Vou defender o que está na Constituição.

Qual seu posicionamento em relação ao aborto?

Sou defensor da vida desde a sua concepção e acredito que a legislação brasileira já trata desse assunto suficientemente

É a favor da redução da maioridade penal?

Sim. Eu mesmo já encaminhei várias propostas anteriormente nesse sentido. É claro que não vamos tratar um garoto que roubou um celular igual a um delinquente com menos de 18 anos que assassinou um monte de pessoas.