Associação Nacional dos Procuradores da República
ANPR.
BOLETIM 40 - AGOSTO DE 2001
JUSTIÇA PARA TODOS?
Roberto Romano
Ao
contrário de todas as exposições de vosso encontro, a minha talvez não
seja tempestiva. Não tecerei, porque me falta competência, considerandos
jurídicos sobre o nosso mundo estatal. Vou permitir-me seguir uma via
paralela e mais própria à filosofia. Os que trabalham na minha área
desconfiam de termos e de enunciados. Vou desconfiar em voz alta do
objetivo definido para este painel. Os senhores irão me perdoar a
impertinência. Espero apenas que as minhas ponderações, extraídas da
filosofia, da religião e de uma cotidiana e contínua luta pelos direitos
humanos, sejam postas no rol das opiniões prováveis.
O tema
indicado para a reflexão é árduo. Sentimos angústia ao dele nos
aproximar. Ele apresenta todas as marcas da experiência definida pela
estética filosófica como “sublime”. Respeito e temor, de um lado,
aspirações nobres da luz natural, de outro, cercam a noção arcaica de
justiça. Quando evoco a palavra “arcaica” refiro-me à lógica do termo
grego, arché, que abarca ao mesmo tempo as origens do mundo e do homem, o
poder e o fundamento da polis. A noção polissêmica de justiça evidencia
o seu aspecto arcaico porque conduz o pensamento sobre o poder para
além da finitude, abrindo o horizonte em realidades que transcendem o
tempo e o espaço, rumo à divindade ou à natureza. Justiça plena não é
destinada aos mortais. Estes apenas conseguem entrever, com muitas
dificuldades, os traços de superfície da ordem justa. O mal e o bem são
vistos pelos humanos sem a devida profundeza. E por isto eles se colocam
a julgar tudo, do universo à divindade. É assim que surgiu a
experiência de um tribunal da razão onde Deus tem sido julgado desde os
tempos antigos, constituindo-se o campo imenso da Teodicéia.
Platão
situa-se no início da longa fieira dos filósofos que defendam as
divindades, “os deuses são inocentes”. O mal no universo, entretanto,
sempre levantou acusações perenes contra os numes. A solução de Leibniz é
conhecida: o mal seria um problema de perspectiva. Nós, mônadas que
espelham o cosmos, somos limitados. A nossa percepção do mundo é sempre
anamorfótica. (1 ) Enxergamos tudo distorcido, de modo que a justiça e a
bondade nos parecem pervertidas ou enodoadas. Apenas Deus visualiza o
todo simultâneamente. Só Ele tem o saber sobre si mesmo. Refletimos
outros eventos e seres. Em nosso horizonte a justiça é relativa por
necessidade ontológica.
Assim, o tema da mesa e o seu rigor
“Justiça para todos”, pode ser ponderado. A idéia mesma de “pensar”
une-se de imediato à de pesar. Pensamento é pesagem de palavras e de
conceitos. Todo juiz deve ser um pensador, imagino. A balança depositada
nas mãos da justiça é simbolo eloquente deste vínculo.(2)Deixem-me
ponderar esta moeda que se apresenta hoje para nós, o enunciado sobre a
Justiça para todos.
Pensadores gregos e personagens bíblicos
indicam a frágil consistência de nossa justiça, a sua pobre
universalidade. O mais arcaico dos livros sobre a justiça e a política, a
República platônica, insiste em mostrar que a justiça, para os mortais,
é caça fugidía, a qual sempre pode escapar de nossas mãos e
inteligências. Permitam-me repetir as palavras dos interlocutores
daquele diálogo. Sócrates e Glaucon já definiram as bases harmônicas do
governo, com o estabelecimento de quem deve mandar na cidade. Mas isto
não basta. É preciso ir mais fundo e atingir a justiça. Mas como
encontrá-la? Olhe Glaucon, adverte Sócrates, “agora temos de nos postar
em círculo à volta da moita, como caçadores de espírito atento, não vá a
justiça fugir por qualquer lado, tornar-se invisível e desaparecer.
Pois é evidente que ela anda aí por qualquer canto. Olha então e
esforça-te por a descortinares, a ver se a avistas antes de mim e me
prevines”. A Justiça não é evidente, pois habita, afiança o arguto
Sócrates, num “lugar inacessível e sombrio, pois é escuro e dificil para
a batida”.(3 ) Resta a esperança de pegar a caça/Justiça através de seu
rasto. É para isto que Platão redigiu a República. Este texto apresenta
as pistas para se atingir a Justiça. Nenhuma certeza entretanto é
concedida, porque a caça depende da boa constituição do caçador, de seu
treino, e sobremodo de sua astúcia.
A busca da Justiça,
determinada enquanto caça que exige destreza do pesquisador, insere-se
num pensamento mais amplo sobre o mundo e a existência humana coletiva,
onde o conceito mesmo de astúcia define todos vínculos entre os seres.
Para os gregos, a metis habita todo ente vivo, sendo ela mesma uma forma
de vida. Todo ser possui sua astúcia, o peixe a tem. O pescador dela
precisa se utilizar. O camaleão e o governante, todos expandem o seu ser
através da astúcia. Ulisses é dito polimetis, homem de muitas astúcias,
e por isto sobreviveu aos horrendos monstros e aos mais violentos
inimigos humanos. (4 ) A arte da caça e a política, bem como o exercício
da justiça, têm em comum a própria astúcia. Até os nossos dias a
palavra “meticulosidade” constitui um sinal distintivo do bom governante
e do juiz competente. A justiça e o governo correto resultam da busca
treinada e jamais são garantidos pelo status deste ou daquele indivíduo.
Se
entre os gregos a justiça não é um dom, mas deve ser conquistada com
diligente inteligência, o Antigo Testamento define que o único juiz e a
única justiça efetiva é a divina. O grande enunciado sobre o Deus justo
encontra-se no Livro de Jó, que serviu até em I. Kant como referência
para o problema do mal e da liberdade humana. Lemos no texto sagrado:
“Na verdade, Deus não pratica o mal, Shaddai não perverte o direito
(...) Um inimigo do direito saberia governar? Ousarias condenar o Justo
onipotente?”. Se na República a justiça se esconde num lugar sombrio,
aqui a injustiça, mesmo envolta em trevas, não escapa aos olhos divinos:
“não há trevas, nem sombras espessas, onde possam esconder-se os
malfeitores. Pois que não se fixa ao homem um prazo para comparecer ao
tribunal divino. Ele aniquila os poderosos sem muitos inqueritos e põe
outros em seu lugar”.(34, 12-24). (5 )
Um fato interessante de
referência textual, ajuda a refletir sobre a justiça e o poder, neste
Livro de Jó. O texto é muito corrompido, cheio de incertezas para o
exegeta moderno, cujos parâmetros são dados pela ciência e pela
história. Mas a Septuaginta e a Vulgata trazem um versículo relevante,
que ajudou a cultura cristã a pensar os nexos entre o governo e a
justiça divinos e o mesmo prisma no campo humano. “Ele faz reinar o
homem hipócrita por causa dos pecados do povo”. (6 ) Dois lados da mesma
experiência sobre a justiça, bem apanhados por Tomás de Aquino no seu
comentário sobre Jó : Deus justo, povo injusto. E o resultado disto é
que reina o tirano que, bom artista, exerce o julgamento e o poder e por
isto ostenta a máscara da justiça, mas só a máscara. (7 ) Esta doutrina
sobre o poderoso enquanto persona do ser divino tem origem no Evangelho
de Mateus sendo de lá que os tradutores latinos e gregos retiraram a
idéia da magistratura enquanto máscara: “Porque vos digo que, se a vossa
justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais
entrareis no reino dos céus” (5, 20). A justiça é algo que não se exibe,
visto que em nós ela é um empréstimo da verdadeira, a divina:
“guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de
serdes vistos por eles” (6, 1). A nossa justiça é falha, unida à
vingança e às paixões, entre elas a da vaidade. Esquecemos que somos
apenas a persona de Deus e nos arrogamos o direito de julgar em última
instância. Cautela, “não julgueis para que não sejais julgados. Pois com
o critério com que julgardes, sereis julgados; e com a medida com que
tiverdes medido vos medirão também (...) Hipócrita, tira primeiro a
trave do teu olho e então verás claramente para tirar o argueiro do olho
de teu irmão” (7, 1-5). A justiça humana é cheia de embustes e
astúcias. Os que obedecem a justiça divina devem saber, de antemão, que
seu destino é mover-se entre serpes. Eles também devem ser astutos como
as cobras, porque os homens têm o costume de mandar os justos para os
tribunais, punindo neles exatamente a justiça, aprovando o mal. (Mateus,
10, 16-17). O ponto culminante da doutrina sobre os poderosos e juízes
enquanto máscaras de Deus, encontra-se em Mateus 23: “Na cadeira de
Moisés se assentam os escribas e os fariseus. Fazei e guardai, pois,
tudo quanto eles vos disserem, porém não os imiteis nas suas obras;
porque dizem e não fazem. Atam fardos pesados e os põem sobre os ombros
dos homens, entretanto, eles mesmos nem com o dedo querem movê-los”
(1-4).
Quanto à Justiça, pois, é preciso considerar que as duas
vertentes, a grega e a judaico-cristã, não a determinam como acessível
de modo íntegro nos limites do tempo e do espaço. Na versão platônica, a
esperança de atingí-la encontra-se no conhecimento e na disciplina de
corpos e de mentes. Na ordem do Antigo Testamento e do Novo, ela só pode
ser atribuída a um Ser que nos ultrapassa de modo infinito. Para nós,
vale a face fenomênica da justiça, a sua superfície, e quem a aplica não
passa de uma distorcida máscara divina. Vem daí a insistência do Cristo
no termo “hipócrita”. Nossos juízes e governos são apenas a persona do
Absoluto. E a justiça ao nosso alcance é apenas relativa.
A
filosofia opera sempre com a passagem do Absoluto, o que não tem amarras
espaço-temporais, para o relativo, o finito. No caso da justiça e do
poder, ninguém mais do que Blaise Pascal foi adiante na dedução da nossa
terrível fragilidade diante do infinito. Deste modo, ele escreveu a
sátira mais dura contra os governantes e a justiça dos homens, em pleno
século 17, época do apogeu da monarquia supostamente “absoluta”. A
coragem de Pascal e de seus companheiros jansenistas lhes valeu a ira de
Luis 14. Espanta, até hoje, saber que o mosteiro de Port-Royal foi
salgado, destruído, e os mortos foram extraídos de seus túmulos para
receberem a fôrca, a fim de aplacar a justiça do rei. Se relermos os
fragmentos pascalinos sobre a justiça, não apenas no seu conceito, mas
na sua execução, e os enunciados sobre o poder, veremos que a violência
real tinha motivos.Não só no conceito (sabemos o que disse ele nos
Pensamentos, com acentuado sabor cético) sobre a justiça que muda
segundo os acidentes geográficos e os costumes. A justiça pode mudar de
um lado do rio para o outro. Num século que buscava, com Descartes,
fundamentos sólidos para a ciência e para o convívio humano, Pascal foi
incômodo. Mas fiquemos com o exercício cotidiano do poder e dos
tribunais.
Os juízes são atores que portam a máscara da justiça,
mas não a exercem de fato. Se eles tivessem a justiça verdadeira “eles
não teriam o que fazer de seus bonés quadrados”. O costume é descrever o
autor dos Pensamentos como um místico, crítico da filosofia cartesiana
em plano sentimental. Os temas pascalinos do coração, com suas razões
que a própria razão desconhece, tornou-se risível lugar comum. Que o
Pascal místico e inimigo do pensamento não é o verdadeiro, nós todos
sabemos, sobretudo após as pesquisas de Lucien Goldman. Mas é preciso
aprofundar as razões pascalinas para definir bem o que ele pensava da
sociedade e da política. Um autor importante na análise do tempo, Sainte
Beuve, no clássico texto sobre Port Royal, diz que a diferença entre
Hobbes e Pascal é mínima. Autores de hoje comparam as teses políticas do
filósofo às de Maquiavel e de Montaigne. Trata-se de um item do maior
interesse, mormente quando, no mundo acadêmico se questiona a idéia de
um direito natural. Pascal desconfiava daquele suposto direito, o que
embaraça os comentadores, sobretudo quando analisam as suas teses sobre o
direito de propriedade, o exército, o respeito às autoridades
constituidas.
“Há sem dúvida leis naturais”, diz Pascal,”mas esta
bela razão corrompida tudo corrompeu (...) Desta confusão ocorre que um
diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador; o outro, a
comodidade do soberano; o outro o costume presente, e isto é o mais
seguro : nada, segundo apenas a razão, é justo em si; tudo é abalado com
o tempo. O costume determina toda equidade, só porque o costume é
recebido; este é o fundamento místico de sua autoridade” (Pensées,
Pléiade, frag. 230). A Justiça pode ser ainda mais frívola: “Comme la
mode fait l´agrément, aussi fait-elle la justice” (frag. 237). Justiça
unida à moda : é um pouco forte, mesmo em nossos dias.
Na época
de Pascal domina a estrita conformidade política, pois se trata da
França sob o absolutismo instituido por Richelieu, o qual domou a
nobreza em Versalhes e impos à nação o Estado centralizador e
centralizado, com um permanente culto ao rei, o qual não permitia
oposições internas. As lutas sangrentas de religião, que culminaram na
Noite de São Bartolomeu, trouxeram a norma que proibia aos particulares
lutar para impor a sua crença acima do Estado. Tudo isso possibilitou,
como antecedentes do absolutismo, um clima de medo e de obediência
forçada diante do rei e de seus ministros. As heterodoxias religiosas e
civís foram banidas. Se no século 16 ainda eram mortos na fogueira os
livres pensadores ou ateus, no século 17 eles sequer vinham a público
para apresentar idéias.Surgem os escritores anônimos. Não raro, eles
eram piedosos na vida civil e críticos ferozes dos dogmas religiosos na
existência privada. (8 ) A censura era eficiente. Além dela, a ação das
Academias de ciências, artes, literatura, etc. serviu para impor uma
ortodoxia do Estado, com o rei no seu ápice. Tudo passou a ser feito
para propagar o culto à personalidade do rei. (9 )
Pascal
considera as idéias de propriedade e as instituições políticas apenas
como instituições cômodas para manter a ordem. Elas indicam a servidão
do povo. O filósofo pergunta: quem dispensa a reputação dos indivíduos?
Quem fornece o respeito e a veneração pelas pessoas, obras, leis, aos
grandes, senão a faculdade imaginante? (10 ) As riquezas, seriam
insuficientes sem o consentimento da imaginação.
Mesmo um
magistrado venerável, será que ele enuncia suas sentenças sem apego ao
imaginário que fere as mentes fracas? Se este mesmo juiz entra numa
igreja e o padre apresenta algum defeito (uma barba mal feita, e outros
pequenos erros no rosto ou vestimenta) “aposto” diz Pascal, “na perda de
sua gravidade”. E mesmo o maior filósofo, diz Pascal, andando sobre uma
prancha, a maior que se possa encontrar, se em baixo percebe um
precipício, embora a sua razão o convença de que está em segurança,
prevalecerá a sua imaginação. “Muitos não conseguiriam sustentar o
pensamento sem suar e empalidecer”.
O pensamento que capta o real
é insuportável, como o próprio real. Daí, o consolo da imaginação que
enfeita o efetivo, dando-nos medo ou encanto, mas sempre nos poupando da
verdade, a qual tememos e que pode ser letífera. A retórica usa a
imaginação para mudar opiniões, e faz isto não apenas com imagens
completas, belas, cativantes. Ela faz isto até mesmo com uma pequena
mudança na inflexão da voz. Um tom de autoridade pode mudar até mesmo a
opinião de um homem que se julga, e é julgado pelos homens, como
superior. Nós sabemos, diz Pascal, “que um advogado bem pago previamente
considera mais justa a causa que ele defende. O quanto o seu gesto
ousado o faz parecer melhor para os juízes, enganados por esta
aparência...” Razão engraçada esta, continua Pascal, “que muda com um
vento, em todos os sentidos!”
Quem desejasse seguir apenas a
razão seria louco. Trabalha-se o dia todo tendo em vista bens
imaginários, dorme-se e se acorda para ir atrás de fumaças, à procura
desta senhora do mundo. O predomínio da imaginação sobre a razão é uma
das causas do erro, mas não a única. E aqui chega a frase satírica e
justa: “nossos magistrados conhecem bem este mistério (o predominio da
imaginação sobre a razão), pois usam vestidos vermelhos, arminhos, usam
palácios, flores de lis em suas armas.Se os médicos não tivessem nem
sotainas nem mulas, e se os doutores não tivessem bonés quadrados e
vestidos amplo, nunca teriam enganado (dupé) o mundo que não pode
resistir a esta mostra tão autêntica. Mas só possuindo ciências
imaginárias, é preciso que eles peguem estes instrumentos que ferem a
imaginação, à qual eles mesmos se apegam. E por este meio eles atraem
para si o respeito. Só os guerreiros não se disfarçam deste modo, porque
sua parte é mais essencial, eles se estabelecem pela força, enquanto os
demais o fazem através de caretas”. (11)
Assim, juízes e médicos
recebem as flechas de Pascal, com base no seu uso da imaginação e no
desempenho de ciencias imaginárias. Também os reis são por ele
ironizados. Eles se fazem respeitar por se apresentarem sempre com
homens em armas, tambores, trombetas, as quais fazem “tremer os mais
firmes”.
“O costume de ver reis acompanhados de guardas tambores,
oficiais, e de todas as coisas que inclinam a máquina rumo ao respeito e
ao terror, faz com que seu rosto, quando estão sós e sem os seus
acompanhamentos, imprima aos súditos o respeito e o terror, porque não
se separa a sua pessoa dos acessórios que sempre vem juntos deles. E o
mundo que não sabe de onde vem este costume, acredita que ele vem de uma
força natural, e dai derivam estas palavras: ´o caráter divino está
impresso em seu rosto´, etc”. A força mostra seu papel, ao lado da
imaginação ou unida a ela. “Não podendo encontrar o justo, encontrou-se o
forte”, “não podendo fazer com que o justo fosse forte, fez-se com que o
forte fosse justo”. (12)
Finalmente, vem o engano para manter o
Estado e a sociedade. “Pelo bem dos homens, é preciso enganá-los com
muita frequência”. É estratégico que o povo não sinta a verdade da
usurpação. “Ela foi introduzida anteriormente sem razão, ela tornou-se
razoável, é preciso fazer com que se a olhe como autêntica, eterna,
esconder o começo se desejamos que ela não chegue rapido ao fim”. A tese
sobre o imaginário e a força, bases do exercício da justiça, encontra
seu correspondente na doutrina pascalina sobre o poder. Seguindo a
tradição cristã que aponta o juiz e o poderoso como simples máscaras
divinas, os Três Discursos sobre a condição dos Grandes enuncia que o
ocupante do poder deve se considerar apenas como um náufrago parecido
com o rei ausente de uma ilha. O respeito a ele prestado não lhe
pertence. O povo se engana, imaginando ser ele o poderoso. O mando lhe
vem de Deus, ou da natureza. A sua justiça é incerta como o fundamento
de seu poder : a qualquer momento ela pode ser-lhe retirada. E nem a
força militar possui fundações estáveis. Cromwell estava para dominar o
mundo. De repente, um pequeno grão em sua uretra o colocou no túmulo. O
poder que vem da força é limitado, finito, como a opinião que vem do
imaginário. Mas os juízes devem temer a força : sempre pode ocorrer um
evento em que “um simples soldado arranca o boné de um primeiro
presidente de tribunal, e o faz voar pela janela” (Pensées, Pléiade,
frag. 245).
Justiça para todos. Quanto ao primeiro termo, a
filosofia só pode responder com uma busca de sentido, apontar para os
inumeráveis desvios de significação que nele se encontram. Justiça,
justiças. A força e a política, a retórica e a propaganda definem o
campo destes valores, tornando dificílimo determinar lógica e
ontológicamente o seu estatuto. Cautela, pois, diante da palavra e do
que nela se visa. Afirma Pascal, “as palavras diversamente arrumadas
proporcionam um sentido diferente, e os sentidos arrumados diversamente
produzem efeitos diferentes”. (Pensées,Pléiade, frag. 66). A justiça e a
política são pouco afeitas à razão, mas sim ao imaginário dos homens.
Se Platão e Aristóteles, diz Pascal, escreveram sobre as leis e sobre o
governo, “era como se eles quisessem regulamentar um hospício; e se
pareceram falar destes assuntos como se fosse grande coisa, é que eles
sabiam muito bem que os loucos a quem falavam pensavam ser reis e
imperadores. Eles entraram nos seus princípios, para moderar sua
loucura”. (Pensées, Pléiade, frag. 294). Não seria preciso Pascal para
lembrar esta atitude filosófica. O próprio Platão, na Carta Sétima, diz
que “nenhum homem sério, ocupado por questões sérias, não arriscará
colocar no domínio público semelhantes questões (...) quando vemos obras
escritas em forma de leis por algum legislador (...) saibamos que isto
não é para ele o mais sério.(...) Supondo-se que aos seus olhos estas
coisas sejam sérias, e por isto foram escritas, então podemos dizer que
não os deuses, mas os mortais, lhe arruinaram totalmente o juízo”. (13 )
A
razão aplicada sem cautelas lógicas à política e à sociedade não é
racional. Ela se transforma em loucura. O poderoso é um ícone da vida
humana e sua forma de ser o coloca apenas no ápice da Stultifera navis
da humanidade, sempre à deriva. Peço licença para abordar, justo como um
complemento das enunciações pascalinas, a lembrança do juiz
extremamente racional, cujo livro é uma das maiores fontes para a
análise do poder em nossos tempos. Refiro-me às Memórias de um doente de
nervos (14 ) do presidente Daniel Paul Schreber e às observações a seu
respeito em Massa e Poder de Elias Canetti. (15 )
Segundo
Canetti, Schreber é paranóico e a sua doença liga-se diretamente ao
poder. Ela é a normalidade dos homens numa sociedade de massas. No
delírio, o juiz alemão insere a própria massa dos homens em seu corpo e
em sua alma, digerindo-a. Os homens não existem para ele enquanto
indivíduos autônomos, mas se diluem em multidões de pequenos entes
ameaçadores. “Qualquer tentativa de análise conceitual do poder será
mais pobre do que a clareza da visão de Schreber. Todos os elementos das
circunstancias reais estão nela: a intensa e contínua tração sobre os
indivíduos que irão se reunir numa massa, sua intenção duvidosa, sua
domesticação, sua miniaturização, o fato de se amalgamarem no poderoso
que representa o poder político em sua pessoa (...) o sentimento do
catastrófico que está vinculado a tudo isso, uma ameaça à ordem
universal...”.
Nos Testamentos, judaico e cristão, Deus é o único
poderoso e o único justo. Com Schreber ficamos informados de que Deus,
detentor do poder, tem partidos e seu reino reúne províncias. Para
aumentar o seu mando, Deus elimina os homens incômodos. A impressão que
temos ao ler o livro do juiz alemão, diz Canetti, é que “Deus está em
guarda, como uma aranha, no centro da teia política”. Quando se percebe
que na terra um Salvador representa Deus, e Schreber sintetiza em sua
pessoa o Soter religioso e o político, captamos a extensão da paranóia
instalada no indivíduo que ocupa o cargo de julgador dos homens e de
mando sobre eles.
Alguns comentadores de Schreber, como o
psicanalista Lacan, afirmam que nele encontra-se a razão das Luzes
levadas ao paroxismo. Mas existe uma enorme distância entre o ideário
sobre o papel de juiz nas Memórias de um doente de nervos, e as
perspectivas dos philosophes no século 18. Para isto, basta consultar o
verbete da Encyclopédie diderotiana, sobre o juíz: “ Como somos
demasiadamente expostos à ceder às influencias da paixão quando se trata
de nossos interesses, considerou-se bom, quando muitas famílias se
reuniram num mesmo lugar, estabelecer juízes e revestí-los do poder de
vingar os ofendidos, de modo que todos os membros da comunidade foram
privados da liberdade oferecida pela natureza. Depois, tratou-se de
remediar os males que a intriga ou a amizade, o amor ou o ódio, poderiam
causar no espírito dos juízes nomeados. Foram feitas leis sobre este
ponto, as quais regulamentaram a maneira de dar satisfações às injúrias,
e a satisfação que as injúrias requeriam. Os juízes foram submetidos às
leis; foram atadas as suas mãos, após terem sido cobertos os seus olhos
para impedí-los de favorecer alguém; é por isto (...) que eles devem
dizer o direito, e não fazer o direito. Eles não são árbitros, mas
interpretes e defensores das leis”. (16 )
O juiz das Luzes
interpreta a lei, o personagem de Schreber disputa com o artífice das
leis, na tentativa de se fazer Deus. “Um doente mental”, enuncia
Canetti, “que passou seus dias vegetando numa clínica, pode, pelos
conhecimentos que proporciona, ser muito mais significativo do que
Hitler ou Napoleão, e iluminar a humanidade a respeito de sua maldição e
de seus senhores”. Nas Memórias, Schreber indica que as tentativas de
dominação que sofreu por parte de seres minúsculos se caracterizavam
sobretudo pelas perguntas e ordens. Comenta Elias Canetti: “Como
instrumentos do poder, ambas são bem conhecidas; como juiz, Schreber
mesmo as tinha manipulado exaustivamente”.
Dentre os desejos de
Schreber, está o de invulnerabilidade frente à massa dos mortais, além
da volúpia de sobreviver à custa dos subordinados, a mais forte
inclinação dos poderosos. Deus é o máximo poder. Schreber termina sua
delirante narrativa com um “fato” essencial. Enquanto juiz e poderoso,
“tudo o que ocorre refere-se a mim. Eu me converti para Deus no homem
absoluto ou no único homem, em torno do qual tudo gira, ao qual deve ser
relacionado tudo o que ocorre e o qual, a partir do seu próprio ponto
de vista, também deve referir todas as coisas a si mesmo”.
Justiça
fugidía em Platão, inacessível plenamente ao homem nos textos bíblicos,
exercida em plano cósmico e político na persona de Schreber, juiz
poderoso e isolado de todos os demais homens, por ele percebidos como
simples mortos. A paranóia, doença do mando, torna quem deveria ser
apenas a máscara divina em rival de Deus. Suas sentenças seriam tão
absolutas quanto as do ser divino. Ele distribui justiça para todos,
sine ira et studio, mas apenas no conjunto, nunca visando indivíduos.
Estes estão amalgamados num Todo indistinto. O comentário de Canetti
sobre a atitude do juiz que domina, soberano, o mundo social, e para
quem os homens nada significam a não ser que sejam integrados numa
multidão, é perfeito: “Vêm-nos à lembrança algumas representações da
iconografia cristã: anjos e santos, todos apertados lado a lado feito
nuvens, às vezes como nuvens de verdade, nas quais apenas olhando-se com
muita atenção percebem-se as cabeças individuais”. Tal é delírio
totalitário in nuce na razão paranóica, e que tantos poderosos e
magistrados a eles afins tentaram impôr, desgraçando milhões de
individualidades. Aqui, o “todos” têm uma consistência monstruosa, pois
exclui as partes, de uma forma ou de outra.
Desculpando-me pela
impertinência, passo ao último ponto de minha fala, o âmbito da força
enquanto verdade última da justiça, enunciada por Pascal. Antes, ainda
uma nota sobre o paranóico: ele se percebe cercado. “Seu inimigo
principal jamais se contentará com atacá-lo sozinho. Sempre procurará
atiçar contra ele uma malta odiosa, soltando-a no momento exato. Os
membros da malta a princípio se mantêm ocultos, podem estar por toda
parte”. O vínculo da força e a desconfiança produziram os organismos
secretos de vigia sobre os dominados em todos os regimes políticos
autoritários do mundo moderno. Para o poderoso que só conhece a lógica
da força, todos conspiram contra ele. Se o seu nome é Luiz 14 ou
Napoleão, Hitler ou Stalin, Vargas ou...., é preciso vigiar os
submetidos. E eles são uma totalidade compacta e homogênea. Indivíduos,
para os poderosos da história ou segundo Schreber, simplesmente não
existem: estão diluídos em massas compactas. O poderoso desmascara, com a
polícia política, os supostos indivíduos, reduzindo-os a um Todo, o
inimigo da França, do Reich, do proletariado, do povo brasileiro.
Arrancada a máscara de cada um dos vigiados e presos, o poderoso os
integra naqueles universais abstratos, o campo dos seus amigos e o dos
seus inimigos, pois é seu suposto dever e missão julgar o mundo, como se
ele fosse Deus. Aos seus olhos, todos conspiram para que ele, poderoso,
morra. Só ele, inocente, pode sentenciar milhões à morte.
Se
Schreber enunciou a lógica do isolamento que marca os poderosos e os
magistrados dos tribunais de exceção, se um paranóico diz algo muito
real sobre a essência do mando político autoritário, a lógica da
espionagem governamental foi enunciada de modo perfeito por um inimigo
jurado da democracia, Donoso Cortés. No Discurso sobre la dictadura
(1849), ele diz que mais desce o nível da fé em Deus na sociedade, e
mais o poder precisa emprestar a onisciência divina, além da
onipotência. Chega um dia em que o governo diz: “temos um milhão de
braços, mas não bastam. Precisamos mais, precisamos de um milhão de
olhos. E tiveram a polícia e com ela um milhão de olhos. Apesar disto
(...) o termômetro político e a repressão política deviam subir, porque,
apesar de tudo, o termômetro religioso baixava, e subiram. Não bastou
aos governos um milhão de braços, não lhes bastou um milhão de olhos.
Eles quiseram um milhão de ouvidos, e os tiveram com a centralização
administrativa, pela qual vieram parar no governo todas as reclamações e
todas as queixas. (...) Mas os governos disseram: não me bastam, para
reprimir, um milhão de braços; não me bastam, para reprimir, um milhão
de olhos; não me bastam, para reprimir, um milhão de ouvidos; precisamos
mais, precisamos ter o privilégio de nos encontrar ao mesmo tempo em
todas as partes. E tiveram isto, pois se inventou o telégrafo”. (17 ) O
texto é do século 19. Depois disto, quantos olhos e ouvidos, quanta
ubiquidade ganharam os governos que têm a força e desconfiam dos
subordinados !
Encerro minha fala. Em resumo, sublinho que o tema
posto em debate, justiça para todos, precisa ser encarado com
delicadeza máxima. Em primeiro lugar, porque a noção de Justiça pode ser
transposta dos deuses para os homens poderosos, os quais se colocam
como os grandes justiceiros da sociedade, ditando regras loucas mas
fortes a que todos devem submeter-se. A história do nazismo e do
estalinismo, a crônica das ditaduras brasileiras, tudo isso aconselha
prudente desconfiança e sadio empirismo no trato da justiça. Razão em
demasia na vida política e jurídica pode conduzir à gênese de
personalidades como a do presidente Schreber, prototipo dos poderosos
modernos. O segundo ponto que desejei mencionar é o quanto os que mandam
guardam desconfiança absoluta diante dos subordinados. Esta falta de fé
só pode ser atenuada em regime democrático. Neste, como não existem
deuses dirigindo os destinos dos cidadãos, não ocorrem muitos segredos
de Estado.(18 ) Para defendê-los, nenhuma instância pode se arrogar o
direito de, com mil ou um milhão de olhos, ouvidos, braços, telégrafo,
rádio, TV, jornais, Internet, destruir a intimidade dos indivíduos e a
sua forma íntegra. Na democracia, a justiça considera as pessoas uma a
uma, jamais subsumindo-as em pretensos coletivos, totalidades ontológica
e lógicamente superiores aos átomos sociais. Justiça para todos
significa justiça para cada um dos humanos. Nesta ordem, é inadmissível e
monstruoso que organismos secretos tenham o direito de “arranhar” ou de
abolir os direitos individuais ou as prerrogativas das pessoas reunidas
em movimentos, partidos, igrejas.
Justiça para todos? Talvez,
mas como avaliar a decisão que devolve aos organismos de espionagem
documentos onde se confessa a tranqüila violência contra os direitos
supremos da cidadania? Os representantes do poder executivo entram com
procedimentos contra os Procuradores da República, tentando lhes aplicar
penalidades por “abuso de autoridade”.(19 ) Os que decidem no tribunal
aceitam argumentos como a “segurança do Estado”, quando a imprensa, no
caso a Folha de São Paulo, mostra cópias dos mesmos documentos onde
brasileiros são definidos como “prejudiciais” à vida nacional, operando
os orgãos de informação como se ainda estivessemos sob a égide do AI-5.
Não sou jurista. Mas além de pagar impostos que mantêm os três poderes,
estudo um pouco a questão do Estado, tendo inclusive um doutoramento
sobre o assunto na França, país onde se originaram as liberdades
democráticas. Considero estranho que o termo “Estado” entre nós conote
organismos de espionagem contra os compatriotas. Desde muito tempo, pelo
menos desde a época em que a Revolução Francesa declarou os direitos do
homem, e acabou o absolutismo do rei -cujo marco mais evidente foi o
famoso “L´État c´est moi”- o “Estado” é o conjunto da cidadania. Basta
dos grupos, de direita ou de esquerda, que no pretérito, em Moscou ou
Berlim, praticaram todos os crimes imagináveis e não imagináveis em nome
da segurança do Estado. Elias Canetti disse um dia que tendo o homem
inventado o inferno, infinitos seriam os horrores que poderíamos esperar
deste ser “racional”. Devem encontrar segurança contra o inferno
autoritário os indivíduos que trabalham e sacrificam suas forças em prol
do bem comum, nunca os espiões que não se pejam de conviver
disfarçados, de jornalistas ou com outra máscara, e ousam julgar os seus
irmãos, que os chefes apontam, sem provas e com dolo, como “inimigos”
ao modo de Carl Schmitt.
Justiça para todos? Se os documentos
apreendidos pelos Procuradores da República enunciam monstruosidades
subversivas como as que todos lemos é preciso decidir: ou o Estado é
aquele onde o povo detêm a soberania e no qual todo poder só pode
exercitar-se em seu nome, ou ele resume-se ao Executivo e aos seus
pretores, esbirros e similares. Como cidadão que frequentou as cadeias
da ditadura militar, não aceito a maneira pela qual os procedimentos
daquela época são mantidos, apenas mudando-se os nomes, reiterando-se a
mesma doutrina paranóica e anti-democrática sobre a “segurança
nacional”, a mesma polícia secreta à qual se atribui o privilégio de
julgar quem é bom cidadão brasileiro, e à qual se permite violar a
intimidade das pessoas, atentando contra as garantias constitucionais.
Isto
constitui, de fato e de direito, a suprema injustiça. Que os espiões e
seus líderes saibam: com a pretensão de se julgarem deuses consagrados
pela onisciência, eles sim, integram o número das “forças adversas” que
destroem na raiz a justiça, a fé pública, componentes sine qua non do
regime democrático e das liberdades individuais e coletivas. Enquanto
existirem espiões pagos pelos contribuintes e cidadãos, agindo de modo
conspiratório e marcados pela paranóia, tenho a certeza de que não
haverá justiça, nem para cada um, nem para todos nós.
Obrigado.
___________
1
A visão do mal é como “nestas invenções de perspectiva onde certos
desenhos belos parecem apenas confusos, até que sejam relacionados aos
seus verdadeiros pontos de vista, onde os olhamos por meio de um vidro
ou espelho (...) Assim as disformidades aparentes de nossos pequenos
mundos reunem-se em belezas no grande”. Leibniz, G. W. : Essais de Théodicée. Sur la Bonté de Dieu, la Liberté de l ´Homme et l ´Origine du Mal.
Paris, Flammarion, 1969, § 147, p. 199. Anamorfose é fenômeno optico
que preocupou muito os pensadores até que suas regras fossem descobertas
.Ela coloca em dúvida a percepção do olhar, pois apresenta a
possibilidade de o mundo “real” ser disforme. A metáfora de Leibniz, do
mundo físico para o moral, é questionável. I. Kant não aceita semelhante
passagem do campo natural para o do espírito. Para ele, “o céu
estrelado” está diante de mim e a lei moral “está em mim”. Apenas a
faculdade do julgamento, na Terceira Critica, permite passar do visível,
o fenômeno, ao invisível, o noumeno. E isto é possibilitado pela arte,
não pela física ou pela moral. Sobre a anamorfose, cf. Baltrusaitis,
Jurgis, Anamorphoses, ou les perspectives dépravées, Paris, Flammarionm 1984. Do mesmo autor, cf. Le Miroir, Paris, Seuil/Elmayan, 1978. Sobre o assunto, cf. Hocke, Gustav R. Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo, Perspectiva/Usp, 1974.
2 Cf. sobre este ponto, as análises de Silvio Lima em Ensaio sobre a Essência do Ensaio. São Paulo, Saraiva & Cia. Edit., 1946, pp.69 e ss.
3 Utilizo a tradução portuguêsa da República, feita por Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Calouste Gulbenkian Ed., 3a edição, 1980. pp-184-185.
4 O grande texto nosso contemporâneo sobre o tema da astúcia é o escrito de Jean Pierre Vernant e Marcel Detienne, Les ruses de l ´intelligence. La mètis des Grecs. Paris, Flammarion, 1974.
5 Utilizo a tradução da Biblia de Jerusalem em português. São Paulo, Paulinas Ed., 1973, pp.928-929.
6 “Qui regnare facit hominem hypocritam propter peccata populi” (Vulgata, 34, 30, Marietti Ed., Roma, 1959, p. 428; Septuaginta, Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart, 1979, p. 328.
7 Cf.
Job un homme pour notre temps. De Saint Thomas d´Aquin, Exposition littérale sur le Livre de Job. Paris, Tequi Ed., 1980, pp. 458 e ss.
8
Ainda no século 18, a existência dupla é o apanágio dos que pensam
contra o rei ou contra a religião de Estado. Diderot foi preso em
Vincennes por este motivo, ao escrever a Carta sobre os Cegos. Entre muitos estudos sobre este ponto, cf. Macary, Jean: Masque et Lumières au XVIIIe siècle. André-François Deslandes ´citoyen et philosophe´, 1689-1757. La Haye, M. Nijhoff, 1975.
10 Blaise Pascal, Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, 1964, Coleção La Pléiade, pp. 852 e
11 Cf. Ferreyrolles, Gérard : “L ´imagination en procès”, in Révue XVIIe siècle. Pascal. Octobre-décembre 1992, n. 177, 44e année, pp. 469 e ss.
12 Cf. Mckenna, A. : “Deux termes-clef du vocabulaire pascalien: idée et fantaisie”, in Pascal, L´Exercice de l´esprit. Révue des Sciences Humaines. 244, Octobre-décembre, 1996,pp. 103 e ss.
13 Tradução de Leon Robin, Oeuvres de Platon , Paris, Gallimard, Coleção Le Pléiade, 1950, Volume 2, p. 1214. Cf. Letter VII in Plato, Volume IX, Loeb Classical Library, Cambridge, Harvard University Press, 1975, pp. 541-542.
14 Edição francêsa :
Mémoires d´un névropathe. Paris, Seuil, 1975.
15
Uso a edição brasileira da Universidade de Brasilia /Melhoramentos,
Brasilia, 1986, pp. 493 e ss. Também me valho da tradução francesa: Masse et puissance, Paris, Gallimard, 1960, traduction R. Rovini, pp. 475-476.
16 Encyclopédie raisonée des Arts et des Métiers, de D´Alembert et de Denis Diderot. Utilizo a edição em CD Ed. da Redon, Paris, 2000.
17 in
Obras Completas de Donoso Cortés, Madrid, BAC, 1970, v. 2, p. 318.
18
“Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato
de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas
democracias se reparte e se dilui entre muitos”. Elias Canetti, Massa e Poder, Ed. brasileira Universidade de Brasilia, p. 329. Todo este capítulo de Massa e Poder
sobre o segredo é vital para a existência política brasileira nestes
últimos tempos. A questão do segredo pode ser encarada de maneira
diversa. Um exemplo de atitude democrática é a do Ministro Paulo Costa
Leite: “Na minha gestão, estou determinado a buscar cada vez mais a
visibilidade. Queremos um Tribunal em que as pessoas confiem e se sintam
efetivamente atendidas em suas demandas”. Formas de pensamento
democráticas merecem receber o máximo incentivo, sobretudo nos graves
momentos que atravessamos na vida pública nacional. Cf.Discurso de posse
na Presidência do STJ, citado na Revista a Ajufe, em homenagem ao
Ministro Costa Leite.
19 O
documento seguinte entrará para a história do Brasil, como sinal de um
grave retrocesso na vida política nacional : “O mais grave, Senhor
Procurador-Geral, é que vários documentos ilegalmente apreendidos têm
caráter reservado e confidencial, sendo alguns deles de classificação
secreta, e ainda assim tiveram ampla e indevida publicidade, através de
jornais e televisão. Aliás, segundo informações do Comando Militar da
Amazônia, durante a invasão, foi notada a presença da jornalista Andréa
Michael da Folha de S. Paulo”.
E mais : “Os documentos apreendidos, repita-se, não têm qualquer
pertinência com o objetivo da Medida Cautelar de Exibição de Documentos
de onde extraiu o Mandado de Busca e Apreensão, alguns são sigilosos e
reservados, outros têm classificação secreta, e até a presente data não
foram restituídos ao Ministério da Defesa (Comando do Exército)”. São
apontadas também “evidências de que membros do Ministério Público
Federal seriam os responsáveis pelo vazamento do teor dos documentos com
classificação secreta, atitude que, salvo melhor juízo, merece ser
amplamente investigada nas instâncias penal e administrativa”. Gilmar
Ferreira Mendes, ao Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro.
Consultor Jurídico, 1 de setembro de 2001. Quem lutou durante anos
contra a ditadura militar, com a sua doutrina de segurança nacional,
sabe perfeitamente o que significa “secredo de Estado”. Mas se as
evidências se encaminham todas no sentido de que os documentos secretos
afirmam que direitos constitucionais dos cidadãos podem (e devem) ser
arranhados por organismos que deveriam agir segundo a lei, se milhares
de seres pensantes puderam ler na Folha de São Paulo
monstruosidades tirânicas, então cabe a pergunta: quem a Advocacia da
União representa, na verdade? Qual a base da soberania? Todas estas
questões fazem recordar um pretérito que teima em não morrer, o passado
produzido por juristas como Francisco Campos, e seus pares do período
militar. A franqueza era a virtude daqueles autoritários, inspirados na
doutrina da soberania da contra revolução, a mesma que gerou o
decisionismo brutal : “Souverän ist, wer über den Ausnachmezustand
entscheidet”. Não mais o povo, mas os dirigentes do Estado detêm a
decisão sobre o direito. Cf. Schmitt, Carl : Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität.
München-Leipzig, Duncker & Humblot, 1934.Getúlio Vargas, embalado
por esta doutrina, afirmou: “O Estado não conhece direitos de indivíduos
contra a coletividade. Os indivíduos não têm direitos, têm deveres! Os
direitos pertecem à coletividade!” (Discurso de 1 de Maio de 1938, citado por L.W. Viana, Liberalismo e sindicato no Brasil,
Paz e Terra Ed., 1976, p. 213). Se a franqueza de nossos políticos
“realistas” fosse maior, a Constituição deveria ser redigida no sentido
de enunciar: “todo poder emana dos dirigentes (no Executivo,
Legislativo, Judiciário, com seus adendos, como o Exército) e em seu
nome será exercido”.