sexta-feira, 5 de junho de 2015

Blog Fato Notório.

segunda, 25 de maio de 2015 - 06h01

"A ética política brasileira é anacrônica, não democrática, nada republicana"

ROBERTO ROMANOProfessor de ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas
FATO NOTÓRIO: Falta ética na política?

Roberto Romano: A política, como todos os fenômenos sociais, não possui ética única. Como expressa os desejos, pensamentos e projetos de múltiplos setores (religiosos, econômicos, ideológicos, culturais, étnicos, etc) ela se caracteriza pelos ajustes e conflitos das várias éticas existentes. Mas há uma cristalização ética própria às instituições. O Estado brasileiro, no qual se exerce o monopólio da política pública, traz ainda hoje as marcas do absolutismo que o gerou no século 19. Nele, não existem plenamente as noções de responsabilidade do gestor diante do contribuinte. A famosa “accountability” foi haurida na democracia grega do século quinto antes de Cristo pelos autores da Revolução Inglesa do século 17 (sobretudo os liberais, os Levellers). Ela foi, depois, transmitida aos estadistas norte-americanos e franceses do século 18. No mesmo passo em que as democracias ocidentais firmaram modelos modernos de gestão e de prestação de contas, no Brasil foi mantido o privilégio dos operadores do Estado, nos três poderes. Resulta que a ética política institucional brasileira é infensa à responsabilidade plena dos governantes. Daí, todos os abusos que levam ao perene “é dando que se recebe”, as prerrogativas de foro, etc. Estamos ainda muito longe da ética democrática, para a qual o povo é soberano. A ética política institucional brasileira é anacrônica, não democrática, nada republicana.

FATO NOTÓRIO: O tamanho do Executivo Federal influencia na corrupção?

Roberto Romano: O problema é que nossa estrutura de Estado concentra no Poder Executivo Federal todas as políticas públicas e todos os financiamentos e também a capacidade de recolher impostos para essas políticas. Isto é, tudo que está relacionado a serviço público é monopolizado pelo Poder Federal. Com isso, o governo federal tem força desproporcional em relação aos outros poderes. Vivemos um paradoxo perene, o Brasil vive às custas de medidas provisórias e não há, da parte do Legislativo, nenhum esforço para tirar esse poder do Executivo, porque isso rende. O caso do escândalo de compra dos parlamentares pela liberação de emendas, nada mais é do que corrupção e isso é feito cotidianamente. O Poder Executivo tem uma estrutura gigantesca no Brasil inteiro, uma burocracia enorme que coloca ventosas em todos os poros da sociedade. Este é o primeiro ponto importante.

FATO NOTÓRIO: Qual o papel dos partidos políticos neste processo?

Roberto Romano: Há um fenômeno construído desde o século XIX e depois no século XX: o apadrinhamento do partido político. Ao invés do coronel ou aquele nobre da Europa que conseguia os recursos, os partidos políticos assumiram esses papéis, apadrinhando seus militantes. O vencedor nas eleições indica correligionários para os cargos públicos. Dessa forma, pouco a pouco, os militantes foram colocados nas estatais e na administração pública para sugarem recursos para partidos. O partido também apadrinha o interesse dos empresários junto ao poder público. O tripé está montado com o partido, militantes e empresários. Os empresários pagam aos partidos pelos bons negócios que fizeram, empregando os militantes e dando dinheiro às legendas. O PT tem seus militantes, que são colocados na Petrobras, na administração pública, com a função de conseguir dinheiro para ganharem as eleições. Todos os partidos brasileiros atuam com essa prática. Para conseguir emprego, é preciso que o partido ganhe eleições. Então, se você está na administração pública, vai fazer tudo para vender facilidades aos empresários e conseguir dinheiro para o partido.

FATO NOTÓRIO: Seria o caso de regulamentar o lobby no Brasil?

Roberto Romano: Isso é fundamental quando se fala de corrupção. Hoje, existem 11 projetos sobre o tema no Congresso Nacional e os textos não são discutidos. Os deputados e senadores apadrinhados fazem lobby para os empresários. Se a prática fosse normatizada, os parlamentares não usariam o mandato para fazer lobby. A bancada “x”, “y”, “z” nada mais é que um lobby, financiado, inclusive por meio de parlamentares. Resumindo, você tem essa estrutura dos partidos apadrinhadores, que tem seus “donos”. Esses permanecessem na direção por 30 anos ou mais, são donos de tudo e, sobretudo, do cofre. Qual é a diferença se o dinheiro vem dos empresários ou do estado se quem vai mexer no cofre são os donos dos partidos, esses grandes apadrinhadores? Eles distribuem os benefícios para seus apadrinhados. O episódio do dinheiro de propina ir para o cofre do PT de forma legal é um exemplo muito claro dessa estrutura de apadrinhamento. Enquanto o Brasil não for federalizado, a Presidência não perder os “poderes excepcionais” e o Congresso não for independente, falar em fim da corrupção é um sonho dourado. 

FATO NOTÓRIO: Parece que vivemos uma onda contínua de escândalos.

Roberto Romano: A corrupção tem um lado sincrônico e um diacrônico. O diacrônico é quando um caso é descoberto depois do outro: a polícia descobre, o Ministério Público denuncia, a imprensa divulga e população fica indignada. Isso causa cansaço nas pessoas. O lado mais perverso, no entanto, é o sincrônico. Enquanto um está sendo punido, tem muitos outros operando. O caso da Petrobras estava operando enquanto o Mensalão estava sendo julgado. Aquele que aparece depois pode estar antes e, se não é descoberto, denuncia-se o resultado e não o pressuposto. Perdemos muito tempo discutindo financiamento e deixamos de lado os pontos mais vitais e dolorosos nessa estrutura da corrupção.

FATO NOTÓRIO: Este é um processo endêmico?

Roberto Romano: Sempre defendo o aspecto sistêmico da corrupção no Brasil. Praticamente todos os partidos fazem apadrinhamento, por exemplo, é um sistema que ninguém escapa. No escândalo da Petrobras, a defesa de um empresário entrou com um argumento de que “eles eram obrigados a pagar propina”. O juiz Moro deu uma resposta que acho magnífica, uma coisa é você ser achacado por um assaltante de rua que te coloca um revólver na cabeça e outra muito diferente é você se reunir com o corrupto para planejar o assalto ao cofre público. Existe cumplicidade, ninguém obrigava ninguém. Querer jogar a culpa um nas costas do outro, a origem do esquema, é uma desculpa muito fácil, tênue, que não resiste ao mínimo exame lógico e factual. O que vemos é um procedimento que vem justamente da estrutura maior do Estado brasileiro, que coloca bilhões na mão de funcionários que não têm que responder pelo seu exercício.

FATO NOTÓRIO: Falta mais controle sobre a prestação de contas?

Roberto Romano: Por que a Petrobras, por exemplo, recebe especial autorização para fazer licitação que não está de acordo com o código de licitação do próprio governo? Isso mostra que nossa estrutura de estado não prima pela responsabilidade e pela accountability. Vou contar uma anedota verdadeira que aconteceu no século XVII, período absolutista. A burguesia queria que o rei prestasse contas do que tinha no cofre, porque ele queria aumentar os impostos. O clero na época deu o seguinte juízo: os cofres eram como santíssimo sacramento, só poderia abri-lo quem era ordenado pra isso. No Brasil, é mais ou menos isso. O fato de ter a maior empresa do país com as contas praticamente fechadas levou a esse descaso.

FATO NOTÓRIO: É possível casos tão grandes de corrupção, com volume enorme de recursos desviados, não chegar ao poder executivo?

Roberto Romano: O que aconteceu no Brasil é que não se baniu de vez o costume instaurado no Império da irresponsabilidade do chefe-de-Estado. Na prática, a responsabilização não funciona, porque o presidente da República goza dos mesmos benefícios que o imperadores tinham. Isso foi elaborado na nossa história política e marca nossa estrutura de Estado, fazendo com que ela seja pouco republicana. Muitos juristas falam que a República brasileira é uma República imperial.
FATO NOTÓRIO: Como isso afeta a política brasileira?

Roberto Romano: Se tivéssemos o princípio da responsabilização, o fato de alguém dizer que “não sabe de nada” já seria um crime. A pessoa comanda todo o Estado, a aprovação de todos os atos do governo, como diz que não sabe? Essa resposta só é utilizada no Brasil porque não interessa responsabilizar, de fato, as chefias do governo por conta da hegemonia do Poder Executivo. Fico até nervoso quando escuto essa história de não sabia como uma desculpa que acaba com a conversa. Não sabia, então por que você não sabia? O Lula, na época do Mensalão, foi à televisão dizer que havia sido traído e, depois, disse que o Mensalão era uma farsa. Mas não era farsa, então quer dizer que foi traído ou liderou. Essa questão precisa ser mais cobrada tanto pelo Ministério Público, pela cidadania e pela imprensa. Dizer que não sabe não é desculpa, é álibi. O agente público foi escolhido para saber. O cidadão que paga impostos caríssimos votou nele para administrar bem os recursos públicos. Se um prefeito diz que não sabe já é horrível, um governador mais ainda, agora se um presidente diz que não sabe, é inominável.

FATO NOTÓRIO: Há mais corrupção no país ou ela ficou mais visível?

Roberto Romano: Esse é um ponto que precisa ser visto e é por isso que apresento sempre essa questão do sincrônico e diacrônico. Quando você considera o diacrônico, é evidente que tende a aumentar. Ninguém falava em bilhões na época do Collor. O grande escândalo era de poucos milhões. A magnitude passou de milhão para bilhões. É evidente que alguma coisa muito grave aconteceu no ponto de vista da corrupção. Pela visão sincrônica, você vê que essa prática coexiste desde as épocas das empreiteiras, desde Getúlio Vargas, construção de Brasília com JK, a suspeitíssima opção do transporte rodoviário ante o ferroviário. Não aumentou a corrupção, ela está incólume e produz feitos cada vez maiores. O problema não é a corrupção e sim a estrutura que permite que ela sempre esteja no horizonte, se estabeleça. Durante os oito anos do governo petista, a oposição do PSDB foi extremamente frágil. Se você analisa as críticas e as lutas da oposição no Congresso durante o governo Lula e Dilma, você vê que era praticamente uma oposição cor de rosa, não era pra valer. Esse é um ponto, essa estrutura da excessiva força ao Executivo. Costumo dizer que o executivo é um gigante de pé de barro: pode tudo, mas precisa da aprovação do Congresso e essa é a hora do “é dando que se recebe”. (Publicado originalmente na SemanaOn)