Todo o poder emana do povo…
Roberto Romano - O Estado de S. Paulo
06 Junho 2015 | 03h 00
No XXXV Congresso Brasileiro de Direito Constitucional
(maio de 2015), coordenado pela professora Maria Garcia, baluarte do
ensino jurídico, certa mesa se intitulou “Todo o poder emana do povo”.
Thais Novaes Cavalcanti discorreu sobre o tema com teses que suscitam o
pensamento. Ela recordou Goffredo Telles, autor da “Carta aos
Brasileiros”, em estudo sobre a democracia participativa. O escrito
discute a ideia do povo como fonte do poder. A certa altura, Telles
indica este articulista em problema atual, dada a farsesca reforma
política votada na Câmara dos Deputados.
Cito a referência ao meu texto, pelo professor, para esclarecer o que
adianto a seguir: “Por falta de modificações estratégicas na condução do
jogo político e sem reformas que definam a estrita obediência dos
representantes do povo aos programas dos partidos pelos quais foram
eleitos, a luta eleitoral exibe, novamente, aspectos negativos do
organismo político” (Roberto Romano, Ética e fé pública, FSP,
15/3/2002)”.
A partir do meu diagnóstico arrazoa Telles: “A providência mais urgente,
em hora de sinceridade, é a de alijar as contrafações de partidos, as
excrescências e os vícios que maculam ou impedem a verdadeira
representação política do povo, nas Casas Legislativas do Governo. O
primeiro passo, a medida inadiável da Reforma Política, aconselhada pela
própria realidade brasileira, consiste em consagrar, em norma
Constitucional, o conceito democrático de partido político. Consiste em
deixar firmada, nesse conceito, a relação necessária entre a atuação
partidária e uma ideia programática do bem comum, uma ideia que é a
razão de ser do partido, e que há de ser proclamada em seu programa
registrado. Convém não esquecer que os partidos, com a forma essencial
que alcançaram desde o Século XX, devem ser sempre ‘organizações a
serviço de uma ideia’ (Maurice Hauriou); ‘porta-vozes de uma doutrina’
(Benjamim Constant); ‘formações que agrupam homens que têm as mesmas
concepções’ (Kelsen). Disto se conclui que ‘nenhum partido deve ser
tolerado se não persegue um ideal superior, se seu propósito não é o
interesse coletivo, se só pretende apoderar-se do governo’ (Alfredo
Palácios). Não devem ser admitidas como partido as agremiações sem
ideário próprio”. Quanta luz em país tenebroso!
O dr. Dircêo Torrecillas Ramos, no mesmo XXXV Congresso, adiantou a
ideia pouco discutida pelos que estudam a reforma política. A fidelidade
partidária, para sanções negativas, localiza-se na pessoa do político.
Quase nada acontece contra partidos infiéis ao programa apresentado ao
povo. A falta de punição traz abusos que aniquilam a base doutrinária
dos partidos. Fica mais clara a citação de Goffredo Telles Júnior feita
acima. O leitor a releia e a compare ao que se passa nos partidos e
instituições estatais brasileiras.
Acrescento um item ao debate “Todo o poder emana do povo”. Tomemos o
conceito de “emanação”. Ele mostra o quanto respiramos a metafísica e a
teologia em nosso suposto Estado laico e secular. Emanação é o termo
neoplatônico para apontar o elo entre seres inferiores e divindade.
Na ordem cristã, a ideia se encontra em Dionísio, o pseudoareopagita.
Lorenzo Valla desmascarou na Renascença a mentirosa doação de
Constantino, que entregava ao papa a dignidade imperial, terras e
poderes terrestres, e também desnudou a lenda de Dionísio. Ela rezava
que o escritor assistiu a Paulo pregar aos atenienses: “Quando ouviram
falar de ressurreição de mortos, uns escarneceram e outros disseram: A
respeito disso te ouviremos noutra hora” (Atos 17:32). Dionísio
revelaria a doutrina de Paulo. Lorenzo Valla desmontou a piedosa
mentira.
Mas o pseudo-Dionísio calou fundo na vida ocidental. O pensamento
tomista sobre o poder traz as marcas da sua Coelesti Hierarchia (Sobre a
Hierarquia Celeste), da Ecclesiastica Hierarchia (Sobre a Hierarquia
Eclesiástica) e Divinis Nominibus (Sobre os Nomes Divinos). O símile
menos inapropriado, afirma Dionísio, para designar Deus é o da luz. Dele
emana o brilho que desce ao mundo. Próximos ao resplendor divino estão
os arcanjos, as potestades. Abaixo, o clero e os príncipes. Na mais
baixa escala, o povo. Tal hierarquia é sagrada, sendo pecado quebrá-la
para mudar a sorte dos coletivos e dos indivíduos. A emanação realiza a
hierarquia. Do ser divino deriva todo o poder, administrado de maneira
vertical e absoluta.
A Reforma luterana abateu a construção teológico-política acima. A
igualdade define a vida religiosa. Na Inglaterra do século 17, a
revolução puritana decapitou o rei e iniciou a prática da
accountability. Nela, não por acaso, os movimentos mais importantes
vieram dos “niveladores” (levellers). Some a base do poder absoluto e da
hierarquia correspondente. Com eles, cai por terra a ideia de emanação.
Se o poder emana do povo, o ente popular é como o Deus neoplatônico, do
qual algo só pode ser dito de maneira negativa ou imagética. Então, a
soberania popular é conceito metafísico. Daí que políticos religiosos
exijam, como o deputado Cabo Daciolo (ex-PSOL-RJ), mudar a Constituição,
para o retorno à hierarquia celeste. No seu entender, todo poder emana
de Deus, não do povo. A proposta do deputado escandalizou a esquerda, os
progressistas e, porque não, os conservadores.
Mas se juristas usam conceitos metafísicos como o de emanação, séculos
após a Crítica da Razão Pura, os leigos também podem almejar coerência
nos termos. Emanação, na teologia ou política, supõe hierarquia e
transcendência do poder, a recusa de toda imanência política. Daí,
talvez, se explique a distância abissal entre representantes e
representados na trevosa República brasileira.
*Roberto Romano é professor da Unicamp, é autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão'