sábado, 3 de dezembro de 2011
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O que sobrou para os intelectuais?
A enorme função de disciplinar o pensamento, de moralizar, que foi a dos intelectuais humanistas, passou para o âmbito dos meios eletrônicos. Por Ronan.
A questão dos intelectuais é um velho tema interno à esquerda. Desde o desenvolvimento do movimento operário vimos serem desenvolvidas teorias de crítica social ao capitalismo. A concomitância das lutas e teorias alimentou um grande mito sobre o papel dos intelectuais para a luta social. A aposta, por vezes religiosa no papel do intelectual, levava à crença generalizada no potencial da educação para a prática anticapitalista. De Marx a Bakunin, passando pelos reformistas, vimos uma aposta profunda na educação que nunca parou para questionar se os trabalhadores seriam pessoas abertas ao que eles denominavam formação crítica. Muito dessa aposta no intelectual compõe a paisagem humana que herdamos. Mas será que se trata do mesmo tipo de intelectual? Será que as condições estruturais modernas permitem aos intelectuais de hoje um papel tão destacado quanto outrora?
Durante bom espaço de tempo, os intelectuais emergiram como porta-vozes dos oprimidos e explorados, defensores também dos privilegiados e puderam atuar tranquilamente. Eles possuíam autonomia e controle sobre a produção do saber. Não havia a concorrência do rádio, da televisão, da Internet, do brutal urbanismo funcionalista, da publicidade. A maioria dos teóricos críticos do capitalismo eram intelectuais, de forma que a teoria socialista foi sobretudo desenvolvida por elementos externos à classe trabalhadora, como Fourier, Marx, Owen, Bakunin, Kropotkin, Malatesta. Houve exceções, sendo mais conhecido o caso de Proudhon, de origem plebeia, mas ainda ligado a um mundo de trabalho pré-capitalista na rural França de meados do século XIX. Se, como dizia a frase símbolo da Primeira Internacional, a emancipação dos trabalhadores haveria de ser obra dos próprios trabalhadores, o desenvolvimento da teoria socialista havia sido obra dos intelectuais! E eles puderam atuar desde finais do século XVIII até meados do século XX, ou quase meados, conforme as trajetórias nacionais.
No entanto, o desenvolvimento do capitalismo, que com sua máquina implacável é capaz de submeter e reorganizar tudo conforme os ditames da economia, tratou de alterar completamente o campo de produção, organização e difusão das ideias, sufocando os intelectuais autônomos. O mesmo capitalismo, que com a escolarização massiva da população pôde oferecer uma massa de leitores aos intelectuais contestatários, tratou depois de tirar aos intelectuais o público que lhes havia acompanhado ao fazer da história. De um lado, preparava uma massa de leitores, mas, de outro, criava outros mecanismos de enquadramento mental.
A enorme função de disciplinar o pensamento, de moralizar, que foi a dos intelectuais humanistas por longo tempo, também da igreja, com o desenvolvimento assustador da técnica durante o século XX passou para o âmbito dos meios eletrônicos como a TV, rádio, internet, além de outdoors e urbanismo e, secundariamente, os grandes jornais. Digo secundariamente porque a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo - maiores jornais brasileiros - possuem tiragem de 350 mil exemplares, enquanto a TV atua sobre o cérebro de milhões. Ainda, para ser influenciado pela Folha ou pela Veja, é necessária uma posição ativa do leitor, o que é talvez dispensável no caso do rádio e TV, outdoors etc.
O grande intelectual eletrônico representado pela indústria do entretenimento e da comunicação, por toda esta maquinaria de enquadramento mental, acabou por sufocar completamente os intelectuais autônomos. E tudo isto com a vantagem de passar ao público que as ideias deste ou daquele são políticas, mas as da publicidade, o videogame, os outdoors, os shoppings, o cinema, a TV, o rádio não o são.
A esquerda no poder traçou o mesmo caminho. Temos a CUT com seus programas televisivos, de rádio e a Revista do Brasil. Recorrem também à internet e à publicidade. Se no passado houve uma produção material e intelectual autônoma inscrita na robusta imprensa operária, hoje são os mesmos publicitários e as mesmas empresas que servem tanto aos empresários quanto aos sindicatos. O mesmo publicitário que num ano trabalha para um partido no outro serve ao concorrente.
E nem é preciso fazer considerações a respeito da proletarização e profundo controle que atingiu os trabalhadores das ideias, responsáveis pelos desenhos, pelas novelas, pelos programas de rádio, roteiros de filmes e outros. Se o Macartismo ficou conhecido pela perseguição a escritores, atores e diretores, e sabemos hoje o envolvimento de Walt Disney com a direita americana, em outros cantos a censura interna supria a função exercida pelo famoso senador.
Sobrou a universidade, dirão alguns. Mas os intelectuais foram deglutidos também pelo seu aprisionamento nas instituições universitárias, onde são docilizados e permanecem envoltos à carreira. Esses intelectuais perderam a aura que tinham, com a proletarização da universidade. Como proletários do conhecimento, o horizonte ofertado é o de inserir-se em algum grupo de estudo que faça pesquisa para o poder público ou para as empresas. Quanto mais útil o conhecimento produzido for para as empresas ou para o Estado, maiores serão as verbas recebidas. Tais grupos de estudo são verdadeiras encubadoras de gestores. O aluno começa hoje pesquisando violência na cidade tal e amanhã estará dando palestra para a polícia, assessorando prefeitura e, se for bem sucedido, pode tornar-se secretário, presidente de um conselho de segurança ou dono de ONG. Feminismo, educação, ambiente e vários temas permitem o mesmo percurso.
Há os que afloram aos jornais. Mas estes entram no esquema da autocensura – publicar algo que agrade para receber um novo convite para publicação. Não temos hoje na imprensa jornalística a presença de outrora de um Mário Pedrosa, um Cláudio Abramo, um Maurício Tragtenberg, este último demitido por pressão de empresários, sem contar os inúmeros processos que recebeu.
Quem se aloja mais à esquerda fica sem muito espaço. Há a Caros Amigos [1] que tem tiragem de 50 mil exemplares e há a Carta Capital. Parece muito, mas, no século XIX, Proudhon vendia milhares de exemplares sem a concorrência do rádio e da TV, havia ainda uma vigorosa imprensa operária. Num país com 190 milhões de habitantes, 60 milhões de miseráveis, 40% da população sobrevivendo com um salário mínimo mensal e com um índice vergonhoso de leitura de 1,8 livros per capta por ano, podemos constatar os limites.
No espaço da universidade, quem não se enquadra não tem muitas oportunidades e os financiamentos são menores ou inexistentes. A bem da verdade, uma pequena parcela faz pesquisa que tenha utilidade para além da própria formação, que não seja mera sistematização de leitura. Pesquisas do tipo “o que pensava Paulo Freire, o que pensava Gramsci, o que pensava Malatesta” abundam. Em outros casos trata-se mesmo de inutilidades ou temas de interesse estritamente local. E o que resulta disto tudo vira teses e dissertações que nem os orientadores leem ou vai parar em revistas que não somente são limitadas na tiragem como não são lidas nem pelos membros dos grupos de pesquisa que as editam. Quer dizer, ninguém lê a revista toda – cada um lê o seu artigo. Enfim, a revista serve para comprovar materialmente que o grupo de estudo existe e alargar o Lattes de seus membros.
Resumo do quadro: o intelectual eletrônico predomina e sufocou os intelectuais autônomos. Os que estão na universidade fazem pesquisa para empresas e governo, alguns servem aos jornais e revistas, TV. Há os radicais, mas com espaço e verbas restritas, sem saltar a bolha da universidade e com poucas pesquisas significativas.
Mas alguma coisa sobra. Há uns pesquisadores que produzem conhecimento que é útil e apropriado pelos movimentos sociais, assim como pelos trabalhadores em suas entidades. E este conhecimento é depois trabalhado nos espaços de formação próprios. Há escolas, há posses, há cursos de sindicatos, há cursinhos populares, grupos de estudo. E há a difusão. Nos últimos anos temos visto proliferar e difundir-se uma, embora fragmentada, prolífica imprensa eletrônica, e meios de comunicação que têm servido como instrumento de formação, debate e inter-relacionamento aos que lutam.
De movimentos por um transporte público e contra o aumento de tarifas, passando por sem-teto, sem-terra, minorias, movimento de literatura periférica, contra opressão carcerária, contra opressão policial, posses e associações, greves e paralisações por melhorias salariais e laborais, há formas variadas de luta. Para essas lutas têm servido as rádios livres, ditas piratas, os blogs, os sites, as redes, as mensagens de celular; têm surgido filmes e fotos, palestras e discursos, debates e polêmicas que servem aos participantes como palco educativo coletivo.
Parece que é conectando-se com tais meios que o pesquisador interessado poderá dar finalidade às suas pesquisas. Mas agora não existe mais o Partido que ofereceria a massa a ser educada. Ainda, o grau de auto-organização é bem mais elevado e são os movimentos que costumam chamar a quem lhes interessa. Há os meios de difusão e de discussão próprios. Por mais especializado que seja alguém em dado assunto, não há mais tanta diferença em termos de saber entre o pensador e o público, como havia antes. A população hoje possui uma maior instrução e, com dedicação, tantos podem desenvolver estudos sobre temas variados.
Nota
[1] Temos a Revista do Brasil, publicação da CUT com tiragem de mais de 300 mil exemplares, mas esta é claramente uma correia de transmissão do governo encabeçado pelo PT e nela pouco há que diga respeito ao mundo do trabalho.
[1] Temos a Revista do Brasil, publicação da CUT com tiragem de mais de 300 mil exemplares, mas esta é claramente uma correia de transmissão do governo encabeçado pelo PT e nela pouco há que diga respeito ao mundo do trabalho.