terça-feira, 13 de julho de 2010

Correio Popular de Campinas

Dom Hugo Bressane de Araújo. R.I.P.


Publicada em 14/7/2010


Dom Hugo, um pastor


Portentoso em altura física, dom Hugo Bressane de Araújo seguia pelas ruas de Marília, Interior de São Paulo, como príncipe da Igreja e da vida moral. Usava batina preta, sem ostentações. Na cabeça, o chapéu ornado com as cores do Brasil. Educado, afável, severo, discreto. Os estudantes que frequentaram a moradia episcopal conheciam seus hábitos e horários. Atendimento ao povo, visitas pastorais, leituras, ofícios religiosos.

Durante anos a sua figura encantou os fiéis que sempre terminavam, quando seu nome se encontrava no centro das conversas, se perguntando a causa de seu título não corresponder à realidade institucional de Marília. Ele, “arcebispo e bispo”, numa diocese comum? É como se, data venia, falássemos de um marechal comandando quartel de hierarquia menos elevada. Ninguém ousou lhe perguntar diretamente sobre a incongruência. Os murmúrios diziam que, nomeado para suceder o arcebispo de Belo Horizonte, este último não ficou nada feliz com a escolha do Papa e, assim, lá se foi Dom Hugo para uma espécie de exílio intraeclesiástico... Mas eram versões das curiosas ovelhas, sem evidência de verdade.

Adepto fervoroso da família cristã, apoiava o arcebispo e bispo os movimentos de casais e outras iniciativas apostólicas que visavam orientar pais e filhos. Além disso, foi pioneiro na instalação, em nosso país, do controverso movimento intitulado Opus Dei, como reconhecem os ligados ao referido núcleo conservador.

Com todas as marcas de uma visão de mundo ortodoxa, ele mostrou que sua ética era digna de um pastor da Igreja, de alguém que não escolhia as almas pela sua tintura ideológica ou política. Em 1964 delatores anônimos faziam furor em Marília. Alguns beatos o foram procurar com nomes de “perigosos comunistas infiltrados na Igreja”. Eles esperavam ação fulminante do antístete para arrancar a erva daninha da boa semeadura. Dom Hugo os decepciona: com bonomia os aconselha a ir direto ao cartório para registrar os nomes dos subversivos, assinando embaixo... Dentre os apontados como “vermelhos” no redil de Cristo estavam os professores Antonio Quelce Salgado (biólogo) e Ubaldo Martini Puppi (filósofo), ambos piedosos integrantes das Equipes de Casais de Nossa Senhora cujo pecado mortal era seguir as técnicas de Paulo Freire, instalando grupos destinados à alfabetização de adultos. Ambos foram cassados, expulsos da Faculdade de Filosofia de Marília. Só voltaram com expressiva vitória na Justiça, o que demonstrava que, mesmo em regime tirânico, existiam juízes no Brasil.

Dom Hugo lia bastante (ao contrário de alguns colegas seus, mais dedicados à cura d’almas) e hoje é conhecido por seu livro sobre Machado de Assis. No fundador da Academia, ele percebeu a presença de Nietzsche (A Gaia Ciência), o que mostra leitura pouco usual em bispos, e uma abertura de vista incomum. Em seu livro O aspecto religioso da obra de Machado de Assis (RJ, Cruzada da Boa Imprensa Ed., 1939) ele ressalta a ausência de religião ou presença de uma espiritualidade no mínimo estranha em Machado. Vale a pena consultar o volume porque até hoje é fonte de corretas informações sobre a cultura em que se moveu nosso autor mais famoso, depois de Vieira.

Nas festas do centenário machadiano, que alegram editores e seus cofres, o livro de Hugo Bressane é recordado com justiça. Mas não esqueço a sua figura pastoral. A postura digna, reta e superior até mesmo ao conservadorismo por ele assumido, contrastou com o ódio de beatos e beatas que vociferavam contra o comunismo e a corrupção, mas terminaram em boas pazes com a segunda, apoiando as torturas, as prisões e os exílios contra o primeiro. Na própria Marília, uma estação de rádio “cristã” chegou ao ponto de denunciar, em programa da Ave Maria, estudantes ligados à JEC (Juventude Estudantil Católica) e JUC (Juventude Universitária Católica), como agentes do mal. Não fez assim Dom Hugo. Quando leio sobre ele, as lembranças são gratas. Como gratas devem ser as recordações de um bom pastor.