sábado, 17 de julho de 2010

A Ordem...sem o progresso...

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A guinada do rebanho

Historiador mostra papel de revista no
redirecionamento do pensamento católico

A revista A Ordem teve papel importante na reformulação do pensamento político-social católico no Brasil, iniciada na década de 1930, de acordo com o historiador Alexandre José Gonçalves Costa. Na tese “Teologia e política: A Ordem e a atualização do discurso político-social católico no Brasil, 1931-1958”, Costa estuda essa publicação para analisar o debate que afetou a Igreja desde o século 19 acerca das instituições e dos valores difundidos pela Revolução Francesa. Redigida por leigos que buscavam a restauração espiritual de intelectuais católicos, a revista, segundo o pesquisador, surge no início da década de 1920, como veículo principal de expressão do Centro Dom Vital, fundado por Jackson de Figueiredo (1821-1928) sob o patrocínio do então arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme (1882-1942), com a finalidade de reverter o que era percebido como a “descristianização da sociedade brasileira”, particularmente de suas elites, que haviam aderido ao positivismo, ao evolucionismo spenceriano (proposto por Herbert Spencer - Inglaterra,1820-1903) e, quando não, ao indiferentismo religioso.

A tese mostra que houve no período estudado um movimento de afastamento dos fascismos e de defesa de uma concepção autoritária de sociedade para a aproximação da democracia e defesa de seus valores. De acordo com Costa, os intelectuais católicos responsáveis por essa transição eram ligados ao filósofo e pensador católico francês Jacques Maritain (1882-1973) e constituíam o núcleo mais importante pela atualização do pensamento político-social católico no Brasil de meados do século 20. Era esse grupo, formado na maioria por advogados, médicos, engenheiros, professores que buscavam nas cátedras das instituições públicas de ensino sua principal fonte de sustento, que promovia a aproximação à democracia na década de 1940.

Entre as obras de Maritain que teriam influenciado os intelectuais católicos estão Humanismo Integral e Cristianismo e Democracia, que foram as referências para o afastamento dos governos autoritários e aproximação da democracia. De acordo com Costa, as atitudes adotadas por Maritain, inclusive sua postura crítica da Guerra Civil Espanhola como uma “guerra santa”, também tiveram influência na mudança de postura dos intelectuais.

Na opinião de Costa, a reformulação do pensamento político católico na década de 1940 atualizou a posição da Igreja no âmbito político e social da época, além de dar origem a um forte movimento de democracia cristã, principalmente na Europa, e contribuir para o movimento da redemocratização do pós-guerra no Brasil.

De acordo com o pesquisador, a Segunda Guerra Mundial foi fundamental para a mudança de posição da Igreja, que, durante boa parte da década de 1930, nutria simpatia por líderes reacionários como Mussolini, na Itália, Franco, na Espanha, e Salazar, em Portugal. A mudança de discurso teve início somente no período entre 1942 e 1943, quando é possível, a partir do estudo feito por Costa, observar uma postura crítica e um distanciamento em relação aos regimes autoritários ibéricos. No Brasil, segundo o pesquisador, o distanciamento da revista em relação a Getúlio Vargas inicia-se em 1944, quando o Estado Novo dava sinais de esgotamento. Ao divulgar a obra de Maritain, os intelectuais de A Ordem polemizavam com os intelectuais católicos que ainda se opunham à atualização e insistiam em afirmar a afinidade política da Igreja Católica com os líderes reacionários.

Na opinião de Costa, a secularização empreendida pelos estados modernos, que implicou a separação entre religião e Estado e a perda de espaço da religião da esfera pública, forçou a Igreja a trabalhar não só por sua sobrevivência, mas também pela conquista contínua de um espaço significativo de ação que lhe permitisse reunir e conduzir seus fieis. “Esse trabalho possui uma dimensão política tanto na sua relação com a sociedade quanto na sua relação com o Estado. Podemos dizer que ela solta seus militantes à direita e, à esquerda, seus “conservadores” e seus “progressistas”, sem que isso comprometa irremediavelmente a instituição com algum projeto político secular”, enfatiza. Ele acrescenta que, entre conservadores e progressistas, se institui um espaço de mobilidade política no qual a igreja busca ampliar seus espaços no mundo atual.

Divergências

Costa nega que tenha havido conflitos na produção da revista na década de 1930, mas existiram divergências, posições nuançadas sobre quais seriam os inimigos principais a combater. Na década de 1940, segundo ele, todos se tornam maritainianos e, a partir de 1945, se engajaram na Resistência Democrática e na UDN. Já na década de 1950, foi esboçada uma divisão entre um grupo liderado por Alceu Amoroso Lima e outro sob a liderança de Gustavo Corção.

Para o autor, a atualização do discurso católico tratada na tese teve um papel importante em seu tempo, inclusive ajudando a preparar o terreno para o Vaticano II, mas depois disso foi superada por outras atualizações do catolicismo. “É fato que no Brasil não tivemos consolidado um Partido da Democracia Cristã, apesar de o pensamento maritainiano ter influenciado muitos políticos que tiveram e têm, até hoje, um papel relevante nos destinos do país”.

A liberdade que a Igreja concede a seus fieis é a primeira explicação para compreender as trajetórias individuais de lideranças católicas brasileiras que no século 20 transitaram de um ponto a outro do espectro político, na opinião de Costa. “Em não se tratando de verdades dogmáticas e morais, são livres para se posicionarem nas outras questões. Desta forma, os deslocamentos ficariam por conta do ‘temperamento’ individual, expressão cara a Alceu de Amoroso Lima”, ressalta.

Os deslocamentos foram manifestações de divisão entre os fieis, pois muitos católicos mantiveram-se “neutros”, outros seguiram a maré política, muitos permaneceram conservadores, alguns aderiram ao progressismo e ainda houve os que ficaram entre dois movimentos, porém, nenhum deixou de ser acolhido pela Igreja. Vale lembrar, segundo Costa, que o trabalho está focado em lideranças políticas católicas que se fizeram presença no Brasil do período estudado, cujos pronunciamentos estavam impregnados de uma determinada concepção do significado de ser católico no mundo. “Eles traziam consigo a longa história do périplo do corpo místico do Cristo no século”, declara.

Ele ressalta que quando Gustavo Corção ou Alceu Amoroso Lima divulgavam pareceres sobre a situação brasileira, não o faziam apenas como indivíduos que vivenciavam uma época e um lugar, mas falavam também em nome de uma tradição de respostas à indagação do significado de “ser cristão no mundo sem ser do mundo”. “Para o cristão, a necessidade da vida presente, sua interferência no espaço público por meio da ação e da palavra é limitada no que respeita a um projeto futuro de humanidade porque ela vincula-se à percepção da transitoriedade das coisas terrenas, já que está imbuída da certeza de que o mundo acabará”, acentua.

Peregrinos

Costa explica a postura do cristão como uma situação de “estrangeiro”, que está de passagem e tem sua esperança lançada num futuro que está fora do século em que vive. Esta situação de passagem, a partir de Paulo, implica o apostolado universal que orienta a “anunciar a boa nova a todos, convocá-los a se tornarem peregrinos”. Uma vez institucionalizada a lida pela salvação, assegurado o lugar privilegiado ao fim do império romano, e tendo a sua disposição o braço armado do Estado para executar o que lhe era vetado pelo mandamento, a Igreja sofre o grande abalo provocado pelos “famigerados três Rs” – Renascimento, Reforma e Revolução.

A secularização também agiu na produção de um conhecimento que pretendia aliviar a canseira humana, motivando a confiança na capacidade humana de gerir seu próprio destino e construir um futuro melhor. “E foi nessa ideia que alguns da Igreja, com a proposta de garantir a permanência no século da modernidade, correram a elaborar um projeto de futuro para a humanidade, a fim de atribuir algum sentido de progresso no século capaz de atenuar a ideia do mundo como lugar da dor”, acrescenta o historiador.

Segundo ele, aí reside a origem da moderna divisão política no interior da Igreja, divisão que se torna mais complexa com a consolidação da ordem burguesa, o abandono por parte da burguesia de alguns valores que ela havia representado quando de sua ascensão, a irrupção das massas e o advento dos movimentos socialistas. O historiador observa que entre “integristas” (que pretendem restaurar a integridade da religião) e “modernistas” se institui um espaço de mobilidade política no qual a Igreja busca forjar um lugar no mundo moderno, às vezes próxima ao exílio, às vezes próxima ao reconhecimento desse mundo como prefigura do reino.

Para Costa, as diferenças entre as duas posições não encobrem o fato de que o antimodernismo católico está na origem do catolicismo social, movimento reivindicado pelos progressistas católicos do século 20 como de sua linhagem, visto como força de progresso de importante papel histórico. “Sempre atentos à advertência de Roberto Romano de que não se pode ‘esquecer que o discurso da Igreja é teológico-político’, discurso articulado a partir de um sistema de representações e de uma linguagem próprios com os quais transfigura simbolicamente a realidade, pareceu-nos um ponto de partida rico em possibilidades pensar as trajetórias díspares das lideranças católicas no Brasil do século 20 como emblemáticas, como figuras do modo como a Igreja forja sua presença no mundo moderno”, pontua.

Publicação

Tese “Teologia e política: A Ordem e a atualização do discurso político-social católico no Brasil, 1931-1958”
Autor: Alexandre José Gonçalves Costa
Orientadora: Izabel Andrade Marson
Financiamento: Fapesp




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