Sobre a Consciência
La Boétie não condena nem desanda a rir da consciência: percebe o seu perigo quando enjaulada nas crenças rígidas da sua época.
Como informei, uma entrevista dada por mim ao jornal O Globo (sobre o Blog da Petrobras) gerou comentários que tentaram me desqualificar como acadêmico e ser humano. O crítico, seguindo o modelo fascista, indicou meus títulos entre aspas. E afirmou rir às escâncaras com a recomendação de que os jornalistas deveriam ouvir os administradores da empresa. Se estes repetissem a técnica intimidatória (ao expor as reportagens, antes da sua publicação) importava obedecer à própria consciência e redigir algo fiel aos fatos (objetividade absoluta só na essência divina, os redatores da Petrobras estão longe de atingir o ser divino).
A palavra “consciência” causou hilaridade no crítico. E nele gerou um sofisma digno das práticas demagógicas, algo que envergonha intelectuais rigorosos. “Mengele também tinha consciência”. Se alguém usa de modo errado um dom (natural ou divino) cuja função é respeitar os valores éticos, não implica (é a lógica honesta) em desqualificar o uso correto. Aquele dom leva o ente racional a se colocar um passo adiante das feras. Se Mengele moveu seu intelecto e vontade para destruir os fracos, é ainda mais vital empregar a consciência para impedir que os atuais governantes dela façam um instrumento de pavor, contra os oposicionistas.
O crítico ignora o que gera o seu riso. O termo para nomear a consciência é “syneidesis”, autorreflexão sem aspectos morais, tanto nos textos platônicos quanto nos estoicos. A palavra, no Testamento Novo, aparece trinta vezes. Jesus prefere a forma judaica, “coração”, fonte de remorso e luz, de onde saem pensamentos pervertidos, assassinatos, roubos, falsos testemunhos, difamações. (Mateus, XV, 10, 17-20).
Mesmo que o cristão, diz Paulo, tenha certeza de seguir normas justas, ele não tem o direito de usar, contra os infiéis, a força física ou constrangimento moral. (J. Lecler: Histoire de la Tolérance au siècle de la Réforme, Paris, Aubier/Montaigne, 1952; também Eckstein, H-J.: Der Begriff Syneidesis bei Paulus, Tübingen, J.C. Mohr, 1983). Todos têm o direito de pensar de acordo com a consciência. Rousseau exclama sem gargalhadas: “Consciência! Consciência! Instinto divino, imortal et celeste voz; guia seguro de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, tu realizas a excelência de sua natureza e a moralidade de suas ações”. (Emílio).
Para I. Kant, um pavoroso espetáculo surge no exame de consciência. “Nenhum homem desejará ter ocasião de o experimentar, nem desejará viver numa tal circunstância. (...) é insuportável ser indigno de viver diante dos próprios olhos” (Kritik der Praktischen Vernunft, Ed. Felix Meiner, 1972, p. 103; comento a doutrina em Corpo e Cristal, Marx Romântico, RJ, Ed. Guanabara, 1985).
A consciência pode ser usada como instrumento de engano e autoengano, pode ser pervertida. E aí, não existe motivo de risos. Franz Stangl, nazista igual a Mengele, ficou famoso ao proclamar: “Minha consciência é clara. Eu apenas cumpri o meu dever”. Mesma desculpa de C. Schmitt em Nuremberg: Hitler era governante legalmente estabelecido... Tais perversões da consciência a fazem rígida como o granito.
La Boétie (Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562), contrário às guerras religiosas, afirma que “o povo aprende a desobedecer voluntariamente deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, o mais doce e agradável veneno do mundo. (…) Nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”.
La Boétie não condena nem desanda a rir da consciência: percebe o seu perigo quando enjaulada nas crenças rígidas da sua época. Jornalistas e adeptos da Petrobras têm consciência. Ambos devem ouvir a sua voz. Rir de seu aviso é cair na bestialidade fanática das hienas do espírito. Nada mais.