Com Platão, Tertuliano e Nietzsche, o filósofo Roberto Romano sustenta que "dogmas são espécies de promissórias que servem como lembrança e registro do que deve ser pago, na religião ou na ciência, na moral ou na política". A seguir, os principais trechos da entrevista
Deus e o Estado Penso ser preciso explicitar o problema dos dogmas no campo em que surgiu o nosso Estado e a Igreja Católica. As duas instituições, no Ocidente, produziram a chamada “civilização”. É preciso distinguir vários dogmas na história social. Existem dogmas que executam função política e repressiva para assegurar a “governabilidade”. É deste naipe o dogma ideado nas Leis platônicas sobre o ateísmo e os ateus. O ateu, quando surpreendido e preso, tinha a oportunidade de repensar suas idéias. Se mudasse de pensamento, seria poupado. Caso oposto a sua morte garantiria a base do Estado, a crença popular no divino.
Dogmas políticos possuem caráter funcional na maioria das vezes. Quando eles se unem aos dogmas religiosos, trazem lucros e prejuízos tanto ao Estado e à sociedade quanto às Igrejas.
Cristo e o Fisco
A Igreja Católica enquanto instituição que ordena e controla os seus membros assumiu fortemente a forma jurídica do império. As questões teológicas passaram às definições do direito romano, dando à fé cristã um lado formal rigoroso. Mesmo a propaganda do cristianismo, a sua defesa frente aos ataques vindos do paganismo, traz esta marca jurídica. Tertuliano é um nome essencial neste ponto. Aquele padre da Igreja acusa os filósofos gregos e romanos de usar a Verdade, revelada por Moisés e na pessoa do Cristo, como grileiros que não reconhecem o título de propriedade cristão, anterior a Sócrates, Platão etc. A verdade, para ele, não é mera posse, mas um título de propriedade. A fórmula foi extraída dos processos romanos. E também os sofrimentos de Cristo. Eles seriam o resgate, pensa Tertuliano, de uma dívida infinita. Como os homens pecaram contra o infinito divino, apenas um ser infinito pagaria tal mancha satisfatoriamente.
A Igreja edificou-se em três bases: a tradição judaica, a filosofia grega, as formas jurídicas romanas. Harmonizar os três ingredientes foi um trabalho árduo e não raro perdido nas chamadas “heresias”. A Igreja administra com dificuldade o que se liga ao dogma enquanto pensamento teológico (verdade ensinada aos cristãos pelo magistério e derivando dos Evangelhos) e o que liga ao dogma enquanto normas legais de atividade dos cristãos (sejam eles leigos ou sacerdotes). O direito canônico é um dos grandes lugares desta normatização. Muitas vezes o elemento legal, na Igreja, sobrepõe-se ao teológico. Temos os “Tribunais” de opinião, as perseguições etc.
O Estado moderno surgiu enquanto mimesis entre as cortes laicas e a Igreja. Os “dogmas” comportamentais do direito canônico e mesmo os “dogmas” do mistério cristão foram aplicados ao ser estatal pelos juristas seculares, contra a Igreja. Assim é a idéia de um Christus-fiscus em favor dos cofres estatais: como Cristo, o Fisco seria eterno, onipresente.
Quando se fala em “dogma” em nossa sociedade e Estado, é preciso ter em mente as significações da palavra, a jurídica e a filosófica entram num rol complexo que, no fim, serve para determinar o que pode ser feito, ou não pode ser feito, pelos grupos e indivíduos. Nietzsche, com base em Tertuliano, apontou perfeitamente o núcleo da moral laica e cristã ocidentais no campo da dívida: se alguém age com o fito de “pagar” uma dívida (ao divino, à sociedade, à ciência), entra no caminho que leva ao infinito e, como resultado, jamais paga nada, só aumenta o rigor de próprio comportamento, no ascetismo, inútil e perigosamente (para os outros que não sentem nenhuma dívida no horizonte e apenas vivem). Digamos brutalmente: dogmas são espécies de promissórias que servem como lembrança e registro do que deve ser pago, na religião ou na ciência, na moral ou na política.
Democracia e globalização
Não seriam os próprios valores democráticos outros tantos dogmas? E seria de fato “globalizada” a sociedade atual? Não seria mais uma franja da população, com acesso à ciência e à tecnologia, que pode aceder às escolhas morais apresentadas pela ciência de ponta? E de outro lado, os mesmos valores democráticos (supondo-se a sua desejabilidade) estão mesmo enraizados como “dogmas” nas massas populares e nas elites? Pesquisas mostram que a massa popular em continentes como a América do Sul de bom grado rifariam a democracia em troca de segurança no emprego e controle da inflação.
De onde vêm os sinais de sede infinita de salvação que joga massas e massas nos braços de líderes carismáticos? No caso nazista, Canetti (Massa e Poder) indica a relevância da inflação. No Brasil, este ponto é estratégico. Hoje, além da segurança de emprego e controle de inflação, temos a mimesis entre “o operário que chegou lá” e a pessoa média das massas. Governos carismáticos (mesmo que o carisma seja fabricado com muita técnica, como é o caso de Duda Mendonça) surgem sempre e não recebem como resposta a democracia. Por outro lado, as religiões que se baseiam numa racionalidade mercadológica absoluta crescem em número, rapidamente. Enquanto Tertuliano falava em dívida dos homens para com Deus, pastores eletr ônicos falam em gerar dívidas de Deus para com os homens. O jeito é conseguir as promissórias divinas. Mas o essencial não muda: seja o movimento Deus- Homem, seja o movimento Homem-Deus, tudo se regula pelos dogmas que garantem a compra e a venda, a dívida a ser resgatada rigorosamente, sempre na ordem jurídica estrita. Criacionismo e comunismo
O Criacionismo é a vertente política das religiões em busca de salvação e dos governos idem. A retórica contra aquela tendência não pode ser encontrada em valores tidos (dogmaticamente…) como imediatamente válidos e evidentes. Retomar a retórica das Luzes sobre a “livre pesquisa”, sem mostrar que a ela é vital para a sociedade, a economia, o Estado, é perder a guerra de antemão. Valores abstratos e universais dificilmente movem multidões sedentas de segurança e bem-estar. A mesma “globalização” arranca empregos, aumenta os atos terroristas, abala os fundamentos jurídicos dos Estados e das sociedades. Assim, ela não “resolve” ou garante a luta pelos direitos, dentre eles o de pesquisa. No Brasil assistimos ao paradoxo: a economia é globalizada e, justamente por isso, temos agora no poder um partido autoritário que negou toda a crítica anterior ao “neoliberalismo” e que tem no seu cume um messias pequeno, mas eficaz, que promete salvação… no emprego em massa, o exato contrário do que a política econômica “globalizada” pode oferecer. Mesmo que sua mensagem absurda se desgaste e seja necessário trocar o ídolo por outro, o paradoxo continua. Não é por acaso que as verbas são subtraídas das universidades, com alegre consentimento dos que as dirigem, porque raros dentre eles se interessam de fato pelas pesquisas e menos ainda por pesquisas “livres”. O grande interesse de hoje, nos campi e sobretudo nas áreas científicas e tecnológicas, não é a liberdade de pesquisa, mas o quanto pode render uma patente. Vivemos a profecia de Marx no Manifesto Comunista: tudo se compra com dinheiro, tudo se troca. Para que exista liberdade é preciso que exista alma. Mas esta última, nos campi e na vida social, é apenas uma cifra. |