sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Um texto sobre o falatório e a curiosidade, duas pragas cujo nome maior é "midia".

Plutarco e Heidegger, sobre a curiosidade e o falatório.

Roberto Romano

Não raro os comentadores de Heidegger tomam como algo estabelecido que os textos do filósofos são, de fato, totalemente originais. Não foi semelhante intento que o moveu, mas toda reunião de seguidores tende a exacerbar as virtudes de seu patrono. Em Ser e Tempo, no entanto, pelo menos dois temas centrais são apenas, e tão somente, glosas de pensadores gregos: o problema da garrulice (die Rede) e o da curiosidade (das Neugier). Citarei apenas dois textos, dos mais influentes na formação da ética ocidental, do helenismo aos nossos dias. São dois tratados complementares de Plutarco, um sobre a fala em excesso e imprudente e outro sobre a curiosidade. No primeiro ([1]) o médico e filósofo Plutarco propõe alguns remédios para a cura do falatório. Trata-se de uma tarefa quase impossível, pois o tratamento supõe o uso do remédio (pharmakon) que, no adoecido da fala em excesso, perdeu validade. De fato, o que discursa em demasia gastou o poder do logos. Para retirá-lo de sua doença é essencial o uso do mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão (na lingua grega, logos e razão identificam-se) se ele apenas enuncia e não ouve e, portanto, não arrazoa antes de jogar palavras ao vento ? Tal é o primeiro sintoma, diz Plutarco, do nosso adoecido : “a lingua mole torna-se impotência do ouvido”. Mas é pior: a surdez do falador é deliberada, o que o faz criticar a natureza que lhe deu apenas uma lingua e dois ouvidos. ([2])

A palavra tem como serventia trazer a credibilidade. Se ocorre uma inflação de palavras, elas perdem sua força. O perigo maior é quando à garrulice somam-se outras doenças, como o culto do vinho. “O que está no coração do sóbrio está na lingua do ébrio”. Dos locais a serem temidos, quando um governo possui tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a mais ameaçadora. O rei Arquelau respondeu assim ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou como desejava cortar o cabelo : “em silêncio!”. Marius dominava a região de Atenas, mas um bando de velhotes, conversando no barbeiro, deu a entender aos espiões que um setor da cidade estava desguarnecido. Sylla, sabedor do ponto fraco, ataca à noite por ele e quase arrasou a cidade, a qual ficou cheia de cadáveres ao ponto de um riacho de sangue invadir o Cerâmico. Quando ocorreu a conspiração para assassinar Nero, um inconfidente ao ver passar certo prisioneiro rumo à cela, cochichou para o infeliz que ele deveria tudo fazer para resistir um dia a mais, pois então estaria libertado. O condenado achou de bom aviso contar o que ouviu para Nero. O resto é conhecido. Conselho de Plutarco: “se deixas escapar o segredo para depositá-lo em outra pessoa, recorres à discreção alheia, mas renuncias à tua. Se o parece parece contigo, tua perda é justa; se ele for melhor do que tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar, para teu bem, um outro mais seguro do a tua pessoa. ´mas o amigo é um outro eu !´ ([3]) Sim, mas ele também possui um amigo, a quem confidenciará… e que confiará em outro… (…) a palavra que permanece na primeira pessoa é um segredo de verdade, mas desde que passou para uma segunda, adquire o estatuto de de rumor público”.

O texto de Plutarco traz muitos exemplos unidos aos rumores políticos. O Senado romano manteve reuniões secretas e a mulher de um senador exigia de seu marido informações sobre os encontros. O politico finge anuir e diz-lhe o “segredo” seguinte : tratava-se de uma ave, com lança e capacete dourado, que surgira na cidade. O rumor seguiu até o forum, antes do homem que o inventou. Para punir sua mulher, ao chegar em casa fingiu que a coisa era séria e que, pela inconfidência, seria levado ao exilio. “Que desejas partilhar comigo?”. A resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco é a correta: “Tudo, menos teus segredos”.

Enfim, a “cura” do palavrório, segundo o médico e moralista Plutarco, não pode ser conseguida de modo violento, mas criando-se outros hábitos, costumes. O autor insiste nesse ponto, essencialmente ético : o falador deve ser treinado para ficar em silêncio, prestar atenção ao dito (treinar o ouvido), e fugir das conversas que mais agradam aos faladores. Se militar, o falador deve ser afastado das narrativas heróicas e assim por diante. Diríamos que os pescadores devem ser afastados de histórias de pescaria… Isso porque se entram no fluxo discursivo predileto, podem falar mais do que o necessário para engrandecer e embelezar o relato, o que dirige a lingua ao exagero sem o controle do pensamento. Basófias são fonte segura de segredos que se escoam. Um conselho: quando não se puder deixar de vez as rodas palavrosas, tente-se passar da oralidade à escrita. A literatura, embora ainda possa exercer a indiscreção (certo filósofo foi chamada “pena que berra” em Atenas) pode ser mais controlada pelo autor. Outra cura: fazer o linguarudo frequentar pessoas diferentes dele e deixar o círculo dos seus iguais. O respeito de opiniões ponderadas lhes fornecerá o hábito de calar.

Além da cura ética (mudança da postura, héxis) Plutarco recomenda reflexão e vigilância antes de falar. Diante da possível enunciação, perguntar sempre: “qual o propósito? É urgente? Que se ganha ao falar? O que se perde?”. A via régia foi aberta por Simonides, o poeta: nos arrependemos com frequência do que falamos, mas nunca do que silenciamos ([4]) e que o treinamento tudo pode dominar. Muitos pensadores modernos, para falar do segredo e da necessária disciplina que ele exige, usam Plutarco mas esquecem de indicar a fonte. É o que se passa com Heidegger. Em sua lúcida análise da comunicação moderna, o filósofo sublinha a perda radical do segredo na ordem da publicidade. No mundo em que reina o “se”, todos os indivíduos estão sujeitos à discreção alheia. Ou seja, o que em Plutarco era uma doença de alguns, em nossos dias tornou-se pandemia segundo Heidegger. Mas o alheio, agora, o outro, não possui deteminação certa, ele pode ser alguém e ninguém ao mesmo tempo. Quando o indivíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato sempre a culpa como advinda “dos outros”. Trata-se de um truque bem conhecido pois o dito sobre “os outros” recolhe também quem fala ou faz. “Os outros” surgem na imprensa, no ônibus, nos passeios, nas reuniões sociais, e neles todos são dissolvidos, eu incluido. Trata-se de uma indiferença ou indistinção generalizada, na qual pouco importa o que eu ou você fala, porque ambos “falamos” o que “se fala” e “como se” fala. O discurso perde qualquer sabor individual. Mesmo no “escândalo”, não ocorre falha alguma entre o público e o privado: ambos são diversificações do indistinto modo de agir e julgar pré-estabelecido, o “se” (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que, etc). Julgamos escandaloso o que “se” (o público) julga escandaloso.

Em Sein und Zeit (§27) é descrito o modo de ser com, por ou contra os outros, marca da “sociedade burguesa” como se dizia nas hostes marxistas e nazistas do século XX. Na guerra de tipo hobbesiana retratada por Heidegger os indivíduos se preocupam com a distinção própria. O pesadelo da existência reside na massa anônima. Nela, todos buscam colocar a si mesmos acima dos demais e manter tal posição. Quanto mais desapercebida a angústia de semelhante imersão, mais ela opera sobre o indivíduo. Tentando arrancar a si mesmo do nivelamento, um indivíduo permanece sob a dependência ([5]) dos outros. “Ele não é ele mesmo, os outros o esvaziaram de seu ser” . “Eles”, aqui, não permite distinguir um ente determinado, todos podem representar o ser outro no controle subrreptício ao qual todos estão submetidos. Os “outros”, assim denominados para disfarçar o fato de que ao seu número o indivíduo pertence, são um “quem”, mas “não um este nem aquele, nem a si mesmo, nem alguns, nem a soma de todos. O ´quem´ é o neutro, é o ´se´” ([6]). Mais adiante diz o autor, “Este ser-com-os-outros dissolve a minha existência no mundo do ser do ´outro´ de modo que os outros desaparecem ainda mais no que têm de expressamente particular e distinto. Esta situação de indiferença e indistinção permite ao ´se´ desenvolver sua ditadura apropriada”.

Heidegger descreve as várias formas pelas quais se manifesta a ditadura do “se”: nós nos divertimos e nos distraímos como “se” diverte, lemos, vemos, julgamos literatura e arte como “se” vê e como “se” julga. O “se” prescreve à vida cotidiana o seu modo de ser. O “se” nivela todas as possibilidades de ser. Ele é ninguém (Niemand) mas não é um nada: ele é um ens realissimum, “se o termo Realidade (Realität) pudesse ser empregado para enunciar um ser existente daquele tipo”.

O pensador identifica na midia a grande força de pasteurização e dissolução dos individuos e da linguagem. Na midia nada é secreto porque nela inexiste o contacto efetivo com o que é, mas apenas com a média das percepções e da linguagem sobre os eventos e os seres. A mediania não desce fundo nas coisas e nas palavras, ela inscreve-se num horizonte medíocre que “facilita” a compreensão de todos. Desse modo, a midia não admite exceções, ela é absolutamente democrática e igualitária. Assim, ela não autoriza a surpresa diante de novos conhecimentos. Se aparece algo assim, ela sempre procura “mostrar” que o saber alegado é antigo. Na midia não existe reconhecimento do que foi conquistado em muito tempo e pesquisa. A novidade é a sua regra, o instantâneo o seu procedimento, o público é o seu alvo e a sua pressuposição. Com a mediania, “todo segredo perde a força e o mistério. A preocupação da media evidencia uma nova tendência do existente (Dasein), e nós a chamaremos o nivelamento de todas as possibilidades de ser”. Esse nivelamente constitui a essência da “opinião pública”. O referido público, como o freguês no mercado, sempre está com a razão e “decide” a correta interpretação de tudo : aplausos mais ou menos longos decidem a verdade, a beleza, a maestria técnica dos candidatos, nos programas de auditório. O mesmo ocorre nas pesquisas de opinião pública que decidem quais são os melhores aspirantes ao governo do Estado. O que é o “público” no qual imperam os hábitos encobertos pela forma do “se” ?

O “se” é a impessoalidade coletiva que “descarrega” os indivíduos de si mesmos, deixando-os sem qualquer responsabilidade ou culpa. Eles “fazem” ou “fizeram” o que “se” faz. Desse modo, nada é serio para os indivíduos, nada é grave, tudo é frivolo. Eles jamais têm culpa e tudo é objeto de risadas, comentários, falatórios, fofocas. A covardia penetra o comportamente mediano obediente ao “se”. Nada, alí, que não pudesse encontrar em Rousseau uma descrição cortante. ([7]) Quanto mais o “se” parece manifesto em toda parte, mais ele é imperceptível e dissimulado.

A fala movida pelo “se” é irresponsável. O § 35 escrito por Heidegger tem a mesma estrutura e andamento igual ao do tratado plutarquiano. Indiquei, ao passar por aquele texto que o primeiro ponto nele inscrito é a dificuldade de curar o palavrório, visto que a doença está inserida no instrumento da cura, o logos que deve ser ouvido pelo enfermo. Este não escuta porque tem toda a sua alma voltada para a lingua. Heidegger, no início de seu parágrafo distingue entre escutar e ouvir. Ouvir e compreender agarram-se ao que se diz, enquanto se diz. Não ocorre preocupação imediata com o objeto, com o que se diz. Quando alguém fala sem prestar atenção ao que é falado, apenas transmite e repete a fala. Quanto mais pessoas ouvem um discurso, mais ele toma um carater autoritário, isto é assim porque assim se diz. Essa parolagem chega ao máximo quanto é rompido todo elo entre a palavra e o objeto que ela deveria colher. E a parolagem oral ou escrita é nutrida por leitura maquinais. Temos então a compreensão média, repetitiva, pública. ([8]) Tal forma de compreender é dogmática e dispensa as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum segredo, porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala, ele esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um veu de sons acima dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda discussão posterior. “Tudo está dito”. E nada deve ser perguntado. Desaparece o segredo no mais banal, na opinião publica. ([9])

Passemos ao problema da curiosidade (das Neugier) brilhantemente discutido por Heidegger em Ser e Tempo, mas que possui uma longa crônica na filosofia, de Platão aos nossos tempos. No De garrulitate, Plutarco afirma que uma doença muito próxima, ou gêmea do falatório é a curiosidade. ([10]) O tratado em que o moralista analisa a curiosidade possui acentuado sentido político entre os gregos. Como indica Dumortier ([11]) a prática da polupragmosune ([12]) reside na tendência a se imiscuir indiscretamente nos assuntos alheios, sejam eles privados ou públicos. Os atenienses criaram inclusive um termo para designar o sujeito que especula o que não lhe diz respeito: sicofanta (na origem, com bastante probabilidade, sicofanta era o delator dos que roubavam figos, nas comédias de Aristófanes os delatores e os sicofantas são ridicularizados). O emprego de alcagüetes marcava os tiranos. Na República, justamente quando Platão traça a pintura sinistra do tirano entra a imagem dos mercenários que, caso sua terra possua cidadãos prudentes e sábios, dela saem para servir em terra estranha “como ladrões, furadores de muralhas, cortadores de bolsas, afanadores de roupas, pilhadores de templos, praticantes de tráfico escuso; por vezes, caso sejam capazes de falar, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas, agentes da corrupção”. ([13]) Esta gente é empregada pelo tirano para dominar os cidadãos livres da polis. De importância estratégica, no entanto, a atividade de sicofanta, delator a soldo do tirano. Mas para delatar é preciso seguir o segredo onde ele se encontra.

O saber exige os cinco sentidos, em especial a vista. ([14]) Os olhos penetram os infinitos aspectos do cosmos e ultrapassam os espaços, recolhem o tempo e possibilitam, com a ciência dos números e da geometria, a base para o conhecimento. A teoria, exercício do olhar inteligente, surge na raiz da pesquisa e de sua comunicação. Tudo pode ser alvo de busca, mas na marcha do conhecimento existem níveis, tanto no objeto procurado, quanto no modo de o adquirir. ([15]). O sábio sintetiza os elementos da pesquisa. Ele é um "sinótico" ([16]) capaz de ver o todo, e não apenas as parcelas da investigação. A theoria grega e o intuitus latino, significam correto golpe de vista. Intuitus, ato de olhar, se apresenta na idéia da mente como espelho, intuitio sendo a imagem, o refletido. Speculator, o pesquisador que observa, compartilha o mesmo vocábulo de "espião". Intueor marca o olhar atento que tudo penetra. Palavras nunca são inocentes. Pesquisar e espionar, desde os primórdios da ciência, definem o campo da política e a força de um Estado para se impôr ou sobreviver aos ataques dos demais. Todo Estado digno de seu nome prevê o crescimento técnico interno e busca saberes externos para aumentar seu acúmulo de conhecimentos úteis para a manutenção e prolongamento da vida de seus cidadãos. Caso o acesso aos referidos dados sejam subtraídos a certos países, por dolo ou explícito ato de guerra, o recurso técnico mais antigo é a espionagem. Nesse plano, a dissimulação opera com destreza: o fingimento oficial condena a espionagem, mas dela não prescinde. O mesmo se passa no setor supostamente privado das grandes corporações, hoje ligadas (os EUA com a CIA) aos serviços secretos que beneficiam de imediato pequenos grupos humanos, em detrimento da grande maioria dos seres humanos. ([17]) Não é irrelevante recordar que o segredo e a sua quebra, a espionagem, foram vividos antes pelas corporações medievais e só depois assumidos pelos Estados renascentistas. Voltarei ao ponto mais adiante.

Com essa lembrança da espionagem, tomo um primeiro desvio de itinerário, para definir um obstáculo já denunciado por Platão. Refiro-me ao fato de que "olhar" pode adquirir um sentido que não se coaduna com a ética pública. Nos olhos encontram-se duas formas de atenção: a pesquisa (zetesis) e a curiosidade, a chamada polupragmosine. Enquanto o zetetés, o investigador, usa os olhos para captar o permanente e atinge um conhecimento dificilmente comunicável, o curioso atarefado recolhe informações sobre tudo e todos, sobremodo das coisas e atos sem relevância para o Bem. Ao redor da mesma imagem, vemos se produzir, na crítica do conhecimento e da moral, duas atitudes diferentes. A mais completa análise da polupragmosine encontra-se num tratado de Plutarco, com este nome. A mente curiosa, afirma Plutarco, é como a Lâmia mitológica. "Quando dormia em sua casa, ela depositava os olhos num vaso. Saindo, Lâmia os colocava em seu rosto e podia ver". Todos os homens, quando não se dedicam à pesquisa e à virtude, são Lâmias : "cada um de nós...pratica a indiscreção maldosa com o olho, esquecendo as próprias faltas e taras por ignorância (agnóia), porque não tem o meio de vê-las e de esclarecê-las". (De Curiositate, 2).

A pesquisa leva ao descobrimento de tudo, trazendo para os olhos as formas permanentes das coisas. Enquanto isso, "curiosidade é a paixão de conhecer o escondido e o dissimulado. Mas ninguém esconde o bem que possui. Às vezes nos atribuímos um bem que não temos. O curioso, em seu desejo de saber o que vai mal entre os demais, é tomado pela maldade, irmã da inveja e da calúnia. Porque a inveja é a tristeza causada pelo contentamento alheio e a maldade é alegria pela sua infelicidade. Ambas nascem de uma cruel paixão, a ruindade" (De Curiositate, 6). Plutarco tem cura para a curiosidade : a própria pesquisa. Quem se acostumou ao mal curioso, deve curá-lo de modo homeopático. O tratamento consiste em "transferir a curiosidade, transformando-a em gosto da alma por assuntos honestos e agradáveis : seja curioso do que se passa no céu e na terra, nos ares e no mar, os segredos da natureza, pois esta não se enraivece quando eles são roubados...". (De Curiositate, 5). ([18])

Desde o século 16, com a Renascença, os métodos científicos e as técnicas de Estado se nutriram de uma saudável desconfiança no olhar. No século 18 sobretudo, quando se determinou uma nova representação do espaço. “A optica moderna autonomiza-se face à visão enquanto tal e passa a conceber-se como ciência objetiva da luz, a qual encontra na geometria a linguagem adequada e segura. Esta ruptura da solidariedade entre a visão e o visível invoca a distinção entre o fenômeno da consciência e a sua causa exterior, correlata, no plano optico, da distinção entre sujeito e objeto" do saber. ([19]) Os olhos não mais determinam o verdadeiro. Novos instrumentos opticos ampliam a própria visão. Já Bacon louva as "próteses opticas" (como o telescópio e o microscópio), os instrumentos destinados a corrigir a vista. Os olhos perdem hegemonia e sofrem a concorrência dos outros sentidos. Em Kant e nas Luzes, em Diderot sobretudo, a vista é corrigida pelos demais sentidos, o que ampliou a necessidade da comunicação dos saberes. ([20])



[1] Peri adoleskias (De garrulitate). Uso aqui a edição das Moralia da Loeb Classical Library, Volume VI, Trad. W.C. Helmbold (Cambridge, Harcard university Press, 1970), páginas 396 e seguintes.

[2] Brincando com termos de medicina, Plutarco diz que o nome da doença do falador é asingesia, ou seja, impossibilidade de manter silêncio. O outro lado da mesma doença seria a anekoía, inabilidade para escutar. Resulta numa doença, também nomeada por Plutarco, a diarréousi, diarréia da lingua. Nota de Helmbold.

[3] Plutarco cita Aristóteles que, na Ética a Nicômaco (Livro IX, 1166 a31, 1170 b7) afirma “O homem bom experimenta vários sentimentos para consigo mesmo e porque ele sente para com o seu amigo do mesmo modo que sente por si mesmo (porque um amigo é um outro eu), a amizade também é pensado como consistindo em um ou outro desses sentimentos, e julga-se a posse deles como um teste de um amigo”. Uso a edição da Loeb Classical Library : Aristotle, Nicomachean Ethics, Volume XIX (Ed. H. Rackham), (London, Harvard University Press, 1990), página 535.

[4] Desse enunciado, uma tradução bem fundamentada encontra-se no Tractatus Logico-Philosophicus de Lugwig Wittgenstein : “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”. Na tradução de C.K. Ogden: Whereof one cannot speak, thereof one must be silent.” Cf. no seguinte site : http://www.kfs.org/~jonathan/witt/tlph.html Para uma análise interessante, longe dos escolásticos de Wittgenstein que ditam o verbo e as verbas universitárias, sobretudo no problema do segredo e da linguagem, Cf. Sandra Laugier: “Le secret et la voix du langage ordinaire”, in Modernités, Dossier Dire le Secret (2002). Também no seguinte endereço eletrônico : http://formes-symboliques.org/article.php3?id_article=154#nh62 Cf. também, em outros parâmetros, Emmanuel Rouillé, «Le Secret et l’Aléthéia grecque», Le Portique, Recherches 2 - Cahier 2 2004, endereço eletrônico. http://leportique.revues.org/document465.html.

[5] Botmässigkeit.

[6] “Das Wer ist nicht dieser und nicht jener, nicht man selbst und nicht einige und nicht die Summe Aller. Das ´Wer´ ist das Neutrum, das Man”.

[7] “Aujourd’hui (…) il règne dans nos mœurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été jetés dans un même moule : sans cesse la politesse exige, la bienséance ordonne : sans cesse on suit des usages, jamais son propre génie. On n’ose plus paraître ce qu’on est ; et dans cette contrainte perpétuelle, les hommes qui forment ce troupeau qu’on appelle société, placés dans les mêmes circonstances, feront tous les mêmes choses si des motifs plus puissants ne les en détournent. (…) Les soupçons, les ombrages, les craintes, la froideur, la réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme et perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre siècle. On ne profanera plus par des jurements le nom du maître de l’univers, mais on l’insultera par des blasphèmes, sans que nos oreilles scrupuleuses en soient offensées. On ne vantera pas son propre mérite, mais on rabaissera celui d’autrui. On n’outragera point grossièrement son ennemi, mais on le calomniera avec adresse. Les haines nationales s’éteindront, mais ce sera avec l’amour de la patrie. A l’ignorance méprisée, on substituera un dangereux pyrrhonisme. Il y aura des excès proscrits, des vices déshonorés, mais d’autres seront décorés du nom de vertus ; il faudra ou les avoir ou les affecter.” Rousseau: no texto premiado pela Academie de Dijon (1750) : Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mœurs. E na Carta a d´Alembert: “Si nos habitudes naissent de nos propres sentiments dans la retraite, elles naissent de l ´opinion d´auttrui dans la société. Quando on ne vit pas en soi, mais dans les autres, ce sont leurs jugements qui réglent tout, rien ne parait bon ni désirable aux particuliers que ce que le public a jugé tel, et le seul bonheur que la plupart des hommes connaissant est d´etre estimés heureux”. Pléiade, V. V (Paris, Gallimard, 1995), páginas 61-62. No Discurso sobre a desigualdade: “le sauvage vit en lui-même; l’homme sociable toujours hors de lui ne fait vivre que dans l’opinion des autres, et c’est, pour ainsi dire, de leur seul jugement qu’il tire le sentiment de sa propre existence”. Comentário: o homem social se esvazia nas multiplas opiniões. Cf. as análises de Pierre Burgelin : La philosophie del ´existence de J.-J. Rousseau (Paris, Vrin, 2005 ). Também, Hartle, A. : The modern self in Rousseau´s ´Confessions`. A reply to St. Augustine. (Indiana, University of notre Dame Ed., 1983).

[8] Um exemplo excelente dessa parolagem é indicado por Tomas Hobbes : “Na maioria das pessoas (…) o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial apenas, o resto delas segue-se pelo habito e não são mais seguidas pela mente. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como aprenderam, ensinam a posteridade. Se levarmos em contra os enganos do sentido e como os nomes foram inconstantemente determinados, o quanto estão submetidos ao equívoco e o quanto se diversificam pela paixão (raramente dois homens concordam sobre o chamado bem e mal, o que é liberalidade, prodigalidade, valor ou temeridade) e o quanto os homens são sujeitos ao paralogismo ou falácia no raciocínio, posso concluir de certa maneira dizendo que é impossível retificar tantos erros de um só homem, como devem proceder daquelas causas, sem começar de novo dos verdadeiros fundamentos iniciais de todo conhecimento, os sentidos; e, em vez de livros, ler ordenamente as nossas próprias concepções; nesse sentido eu entendo o nosce teipsum”. The Elements of Law, 1, 5. “Of Names, Reasoning, and Discourse of the Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library. (http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html)

[9] De Platão até hoje, a opinião (doxa) deve ser combatida pela ciência. Em Hegel, a opinião pública (Die öffentliche Meinung) ao mesmo tempo carrega elementos verdadeiros e incertos, produtos da raciocinação sem profundidade (o famoso Räsonieren, forma inferior da Razão). Uma pessoa ponderada não leva a sério a opinião pública, pois a própria opinião pública engana a si mesma. É preciso apreciá-la, pensa Hegel, mas também desprezá-la. Para que algo verdadeiro ou grande seja feito, é preciso que o sujeito tenha independência (Unabhängigkeit) diante dela. Ligada à opinião pública, a imprensa é o lugar do limitado, contingente, com infinita diversidade de conteúdo e modos de falar. O modo científico rompe com as alusões, as palavras postas pela metade. Ele exige uma expressão sem equívoco. Cf. Grundlinien der Philosophie des Rechts in Werke in zwanzig Bänden (FAM, Suhrkamp Verlag, 1975), V.7, §§ 316 a 319, páginas 483 e seguintes. Trad. Robert Derathé, Principes de la philosophie du droit (Paris, Vrin,1975) páginas 318 e seguintes. Estamos a um passo da noção de ideologia e de opinião pública enquanto falsa consciência. Cf. Habermas, J.: Mudança Estrutural da Ordem Pública (RJ, Tempo Brasileiro Ed., 1984), página149. E também Norberto Bobbio : Saggi sulla scienza politica in Italia, (Torino, Laterza, 2 ed., 1996). Bobbio compara nesse livro as teorias da ideologia em Marx e Pareto.

[10] “À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar, São especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções (…) Diz-se que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam”. Cf. De garrulitate, 12 citado aqui em Plutarque Oeuvres Morales, TomeVII-1,Trad. Jean Dumortier (Paris, Les Belles Lettres, 1975), página 242.

[11] Op. cit. páginas 261 e seguintes.

[12] Além de Jean Dumortier, cf. Adkins, A. W. H. “Polupragmosune and 'Minding One's Own Business': A Study in Greek Social and Political Values.” Classical Philology 71 (1976) páginas 301-27.

[13]“…hoia kleptousi toichôruchousi, ballantiotomousi, lôpodutousin, hierosulousin, andrapodizontai: esti d' hote sukophantousin, ean dunatoi ôsi legein, kai pseudomarturousi kai dôrodokousin”. República, IX, 575 b. Uso o texto do site Perseus. Cf. a tradução francesa de Leon Robin, Oeuvres complètes de Platon (Paris, Gallimard, 1953), Coll. Pléiade, Volume I, página 1180.

[14] Segundo o Timeu platônico (47 A), a visão "a causa do maior benefício em nosso favor, sobretudo porque todas as narrativas sobre o universo jamais poderiam ocorrer, caso o homem não tivesse enxergado as estrêlas ou o sol ou o céu. Mas (...) da visão diurna e noturna e a dos meses e dos anos circulares surge a arte do número que nos deu não apenas a noção do tempo, mas também a da pesquisa da natureza inteira". Platão. Timaeus. Trad. R.G.Bury, Loeb Classical Library, Oxford, 1975, Plato, v. 9, pp. 106-107.

[15] Boutot, A. : "Heidegger et Platon. Le Problème du Nihilisme." (Paris, PUF, 1987) páginas 116 ss.

[16] República VII, 534 e 2-3.Boutot, Alain, página 118.

[17] “O segredo é oligárquico por essência… a própria tecnocracia finaliza um impulso histórico que levou um indivíduo a se tornar dependente de certo saber que ele não pode possuir na sua totalidade…Quando observamos a produção dos saberes em nossa época, há algo evidente: embora a maioria dos conhecimentos sejam divulgados nas escolas ou centros de profissionais, a pesquisa faz-se no segredo. M. Callon…fala de ´operações de tradução´ para evocar a tendência cientifica para o isolamento do mundo, para dele se apropriar, enquanto paradoxalmente ela teria como alvo conhecê-lo. Mas isso ocorre porque a ciência, tradicionalmente, é feita e transmitida em segredo, entre ´iniciados´”. Cf. E. Roullié : “Le secret et l ´Aléthéia grecque”, in Le Portique, Revue de Philosophie et de Sciences Humaines. http://leportique.revues.org/document465.html#ftn11

[18] Utilizo a edição Belles Lettres : De la Curiosité, traduzido por Dumortier, J. Cf. Plutarque Oeuvres Morales. T. VII, Première Partie, 1975, páginas 266 ss. Na Encyclopédie de Diderot o verbete “Curiosité” é quase todo extraido de Plutarco pelo Chevalier de Jaucourt: “A curiosidade inquieta de saber o que os demais pensam de nós, é o efeito de um amor próprio desordenado. O imperador Adriano que nutria ternamente esta paixão, deve ter sido um mortal muito infeliz. Se tivessemos um espelho mágico que nos revelasse a toda hora as idéias dos outros sobre nós seria bom quebrá-lo sem usá-lo. (Este enunciado repete Francis Bacon, RR).

[19] Leonel Ribeiro dos Santos. Metáforas da Razão, ou Economia Poética do pensar kantiano. Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. Portugal. 1994, página 510.

[20] Cada um dos nossos sentidos "tem a sua linguagem específica, os seus sinais, os seus tipos e esquemas. E, com eles, também um diferente potencial de conhecimentos e de mobilização afetiva. Cada sentido tem a sua ontologia específica. Sendo o mais universal e o mais amplo dos sentidos, a vista tem contudo as suas limitações. Depende das condições da luz e da visibilidade. Mas onde falha a luz e a visão resta ainda lugar para outras modalidades da percepção humana” Herder, citado por Leonel Ribeiro dos Santos, op.cit. página 514.