Quarta-feira, 30 de Março de 2011
O PROBLEMA DOS TRÊS CORPOS E O CAOS
Meu artigo no número da "Gazeta de Matemática" que acaba de sair (n.º 163):
A obra maior do físico inglês Isaac Newton intitula-se Princípios Matemáticos de Filosofia Natural (1687) pois nela a matemática está omnipresente. Surgiu aí a expressão matemática da força da gravitação universal, uma força inversamente proporcional ao quadrado da distância entre dois corpos, com a qual se consegue descrever o movimento da Lua em volta da Terra ou o movimento da Terra em volta do Sol. Mas, embora o génio de Newton tivesse intuído a universalidade da força gravitacional (é com base nessa universalidade que, por exemplo, simulamos hoje choques de galáxias num supercomputador), e embora as poderosas ferramentas do cálculo infinitesimal tivessem ficado disponíveis, muitos problemas da chamada “mecânica celeste”, o estudo do movimento dos corpos celestes, ficaram em aberto. Desde logo o movimento conjunto do Sol, da Terra e da Lua, um exemplo do chamado “problema dos três corpos”. Essa questão tem desafiado os matemáticos e os físicos até à actualidade e está, de certo modo, na base da moderna teoria do caos. A aparente regularidade do movimento dos três corpos esconde uma insuspeita complexidade, que se manifesta quando se quer conhecer o futuro com precisão.
O poder da teoria newtoniana era enorme: ela conseguia descrever e explicar tanto a órbita aproximadamente circular da Lua em torno da Terra como a órbita, também aproximadamente circular, da Terra em volta do Sol, com base apenas na fórmula da força e na indicação das condições iniciais, isto é, a posição e a velocidade da Terra e da Lua. Cada um desses problemas diz-se um “problema de dois corpos”. De facto, pode mostrar-se que esses problemas de dois corpos se reduzem com facilidade ao problema de um só corpo: por exemplo, o sistema Terra-Sol pode ser substituído pelo movimento de um astro com a massa reduzida da Terra e do Sol (que é praticamente a massa da Terra, tal é a desproporção entre as duas) em torno do centro de massa (que coincide praticamente com o centro do Sol, pela mesma razão). Na mecânica de Newton, o problema de um corpo tem solução analítica, isto é, a equação diferencial de segunda ordem no tempo que descreve o movimento pode ser integrada para dar uma função conhecida, a função que descreve uma órbita elíptica.
Os matemáticos apreciam o maior grau de generalidade possível, pelo que alguns preferem tratar, em vez do problema de três corpos, o problema de n corpos e depois fazer n = 3. Em geral, o problema de n corpos consiste na resolução do seguinte conjunto de equações diferenciais:
em que m_j é a massa de cada um dos corpos (partículas), q_j são os seus vectores posicionais (os dois pontos por cima de q_j no primeiro membro significam segunda derivada em ordem ao tempo) e G é a constante de gravitação universal, uma vez dadas as posições iniciais e as velocidades iniciais dos n corpos (j = 1,..., n).
No entanto, o problema de três corpos celestes (Eq. (1) com n = 3), que interagem por meio da força de gravitação universal, cedo se revelou muito mais complicado do que o problema de dois corpos. Foi resistindo aos vários ataques que os sucessivos desenvolvimentos do cálculo infinitesimal permitiam. Métodos habilidosos, que apesar do seu engenho conduziam a resultados apenas aproximados, conduziram à descrição dos movimentos dos planetas do sistema solar tendo em conta não apenas a interacção com o astro-rei, mas também as suas interacções recíprocas: a coroa de glória da mecânica de Newton foi, sem dúvida, a descoberta do planeta Neptuno efectuada apenas com “a ponta do lápis”: os cálculos, na altura apenas manuais, necessários para descrever a órbita conhecida do planeta Urano implicavam a perturbação por um planeta então desconhecido, precisamente Neptuno. O astrónomo alemão Johann Galle que olhou pelo telescópio em 1846 para o sítio que tinha sido indicado, independentemente, pelo inglês John Adams e pelo francês Urbain Le Verrier (há alguma controvérsia sobre a primazia da descoberta), limitou-se a confirmar a previsão teórica.
O sucesso só foi possível porque a perturbação planetária era pequena. Casos mais intrincados estavam longe de ser simples. Um dos grandes herdeiros da mecânica de Newton, o matemático suíço Leonard Euler, mostrou em 1760 o seu génio ao propor certas soluções particulares para um modelo simplificado do problema de três corpos, chamado problema de três corpos restrito: nesse modelo, dois dos corpos, de maior massa, consideram-se fixos enquanto o terceiro corpo está móvel. O modelo, que admite algumas soluções analíticas, é, em boa verdade, um problema de um corpo no campo criado por dois centros de força. Apesar de ser interessante do ponto de vista matemático (o matemático italiano Joseph-Louis Lagrange deu, logo a seguir a Euler, uma outra importante contribuição), não tem correspondência física exacta: é impossível, na prática, “congelar” as posições e as velocidades dos dois astros de maior massa, por estes estarem sujeitos a atracção mútua.
O problema de três corpos tornou-se foco das atenções. Como os grandes problemas atraem os maiores génios, não admira que o grande matemático francês Henri Poincaré tenha, no final do século XIX, trabalhado nele. Em 1887, respondeu a um concurso do reino da Suécia e da Noruega que atribuía um prémio chorudo por ocasião da comemoração dos 60 anos do rei Óscar II. Pedia-se uma resposta à questão de encontrar uma solução na forma de uma série convergente para o problema de três corpos, o que seria um importante passo para conhecer a estabilidade a longo prazo do sistema solar. Poincaré não resolveu completamente o problema proposto, mas o seu trabalho sobre o problema de três corpos restrito foi distinguido. Um dos membros do júri, o matemático alemão Karl Weierstrass, afirmou: “Este trabalho não pode ser considerado realmente como fornecedor da solução completa para a questão proposta, mas o que de mais importante tem esta publicação é que ela inaugura uma nova era na história da mecânica celeste“. Com efeito, Poincaré, ao embrenhar-se na complexidade do problema considerado, tornou-se, sem ter consciência disso, o pai da moderna teoria do caos...
Vendo bem, não admira que o problema geral de três corpos não tenha solução analítica. Os físicos sabem que os problemas de mecânica se podem simplificar quando há quantidades físicas que se conservam. O problema gravitacional de dois corpos reduz-se ao problema de um corpo e este tem solução analítica graças à conservação de um certo número de grandezas, como a posição e o momento linear do centro de massa, o momento angular e a energia. É fácil verificar que o problema geral de três corpos tem muito mais variáveis do que grandezas que se mantenham constantes: provou-se um teorema segundo o qual só há dez grandezas que se conservam, as grandezas indicadas, ao passo que o problema de três corpos no espaço tridimensional tem 3 x 3 x 2 = 18 variáveis. Hoje em dia, depois do advento dos modernos computadores, problemas sem solução analítica têm solução numérica graças a técnicas de integração numérica. Dadas apenas as forças e as condições iniciais dos corpos em causa, podem conhecer-se todas as trajectórias em qualquer momento. Dizemos que o sistema é determinista, no sentido de que é possível conhecer o futuro a partir do passado: consegue-se calcular todas órbitas dos astros intervenientes a partir das suas posições e velocidades.
No entanto, tanto os físicos como, principalmente, os matemáticos gostam de dispor de soluções analíticas. Os métodos numéricos são eficazes, mas o resultado não é mais do que uma longa tabela de números, que, apesar de se poderem representar sob a forma gráfica, não fornecem necessariamente uma compreensão geral da dinâmica. E foi assim que o problema de n corpos, incluindo o caso n = 3, continuou até aos nossos dias a ser objecto de investigação dos que preferem teoremas e expressões analíticas a listas de números ou desenhos de curvas. Os tratamentos analíticos são dificultados por existirem na mecânica celeste as chamadas singularidades, correspondentes a aproximações mútuas muito grandes, choques mesmo, de dois corpos quaisquer, quando a distância é muito pequena e a força gravitacional é, por isso, muito alta. Um teorema notável a respeito do problema gravitacional de três corpos foi provado em 1912 pelo matemático finlandês Karl Sundman: ele mostrou que, excluindo as singularidades, existe uma solução na forma de uma série de potências da raiz cúbica do tempo, t^1 / 3 , série essa que é convergente para todos os valores reais de t. O problema geral acabou também por não resistir aos porfiados esforços dos matemáticos. Em 1991, o matemático norte-americano de origem chinesa Qiudong Wang generalizou o resultado de Sundman para valores arbitrários de n.
Os métodos analíticos e numéricos são complementares, já que iluminam o problema de maneira diferente. No caso do problema de n corpos, o cálculo de numerosos termos de séries (séries de convergência muito lenta) não é mais fácil do que a integração numérica directa, que hoje se faz trivialmente, se se dispuser de um computador pessoal e de um algoritmo adequado (um dos algoritmos mais simples de integração de equações diferenciais tem o nome de Euler: o método de Euler é demasiado grosseiro, mas uma sua modificação simples tem grande valor pedagógico, dando resultados muito razoáveis).
O que revelaram os computadores, de uma maneira muito mais clara e directa do que os métodos analíticos? Pois revelaram que o sistema de três corpos celestes, apesar de ser determinista (as equações são bem conhecidas, não havendo nenhum elemento de acaso), mostra um comportamento caótico, no sentido em que duas condições iniciais muito próximas conduzem a órbitas que se tornam rapidamente muito diferentes. A palavra “caos”, que é de uso corrente, tem em física e matemática um significado preciso: extrema sensibilidade às condições iniciais, quer dizer, divergência de soluções inicialmente próximas. A teoria do caos surgiu, muitos anos após o caos ter sido entrevisto por Poincaré quando, em 1963, um meteorologista do MIT, o norte-americano Edward Lorenz, estudava numericamente as soluções de um problema de três equações diferenciais não lineares de primeira ordem que descreve um fluxo de uma camada de fluido sujeita a um aquecimento por baixo. Não foi sem surpresa que verificou que duas entradas de dados muito próximas correspondiam a resultados que a prazo eram muito afastados. O interesse pelo caos explodiu com a democratização dos computadores que se verificou no início dos anos 80 do século passado. Pode mesmo dizer-se que o novo instrumento possibilitou o aparecimento de uma “ciência nova”. Aproximações numéricas e analíticas fertilizaram-se mutuamente, seja em questões de meteorologia (uma tempestade no Brasil pode ser provocada por um bater de asas de uma borboleta na China, o chamado “efeito borboleta”), seja em questões de vários outros domínios. A descoberta do caos na mecânica celeste é, de certo modo, paradoxal: pois não é a descrição do sistema solar que hoje possuímos um triunfo dos métodos analíticos devidos a Newton e uma confirmação da extraordinária capacidade de previsão da física-matemática? Sim, mas, há quase cinco mil milhões de anos, no início do sistema solar, este, em vez de ser essencialmente ordenado como hoje, era caótico e só uma “selecção natural” das órbitas “mais aptas” levou à situação de ordem actual (e, já agora, esse “darwinismo cósmico” esteve na base da selecção natural que se seguiu ao aparecimento da vida no terceiro planeta a contar do Sol). Os choques cósmicos levaram à perda de muitos corpos celestes. E, mesmo hoje, de posse de computadores muito sofisticados que permitem cálculos astronómicos a muito longo prazo, sabemos que o sistema solar exibe um comportamento caótico. O físico-matemático francês contemporâneo Jacques Laskar verificou mesmo que, a longo prazo, a órbita do nosso planeta não é tão estável como esperamos.
Pois os céus que eram, no tempo de Newton, o reino da ordem, são, no tempo de Laskar, o reino da desordem. Como que a prová-lo, aparecem inesperadamente asteróides, alguns dos quais podem constituir um perigo para a Terra (ou, mais propriamente, para a vida na Terra). Poincaré permanece actual, pois alguns dos problemas que estudou continuam nos nossos dias, agora aligeirados por progressos substanciais de compreensão: o matemático francês não conseguiu progredir mais apenas porque lhe faltava na época o computador digital. Hoje, esse é um instrumento para observar o céu tão importante como o telescópio. O telescópio permite observar o céu o presente, ou melhor, o passado, pois a luz, com velocidade constante, demora tempos diferentes a vir de astros a distâncias diferentes. Mas o computador permite “observar” tanto o futuro como o passado, é uma verdadeira máquina de viajar no tempo. Porém, com a incerteza intrinsecamente associada à noção de caos, estamos condenados a desconhecer com precisão o futuro astronómico, mesmo que conheçamos muito bem as condições actuais dos astros à nossa volta. O nosso futuro, mesmo do ponto de vista astronómico, é incerto!