sábado, 26 de março de 2011

A imprensa como Alcoviteira (Karl Kraus)

A imprensa como Alcoviteira (Karl Kraus)

Roberto Romano


A luta pela imprensa livre entra no campo das iniciativas democráticas. Os dois conceitos —democracia e livre imprensa— são indissociáveis . Mas é preciso, para não cair em ilusões, determinar o que se entende com os dois vocábulos. Além da censura governamental, judiciária, econômica, política e ideológica (não raro constituindo um todo uníssono) é preciso levar em conta o que a “imprensa” significa para quem a opera. Aqui, soma-se com frequência o interesse econômico, político e ideológico dos proprietários dos meios de comunicação, com o efeito mimético e repressivo —censor, no limite— dos subordinados, os funcionários da redação que, tendo alcançado cargos decisivos na tarefa de selecionar o que o leitor deve ter diante dos olhos assumem atitudes ditatoriais na escrita. Só é publicado o que aqueles ditadores (sempre obedientes às ordens dos proprietários do jornal, rádio ou televisão) permitem.


A função “nobre” da midia impressa nem sempre suscita análises compreensivas. Basta recordar o crítico Karl Kraus, “o branco pontífice da verdade” como o designou o poeta Georg Trakl. Em artigo intitulado “A imprensa como alcoviteira” (1). Kraus compara a jovem prostituta e o articulista econômico do jornal. A primeira, no seu entender, é moralmente superior ao segundo, pois ela “nunca deu a entender, como ele, assumir altos ideais”. Assim, também superior ao diretor do jornal é a alcoviteira. O intermediário da opinião, “que vive da prostituição espiritual de seus dependentes, prejudica o mister da alcoviteira no terreno que mais lhe compete”. É conhecida a guerra do autor contra os anúncios eróticos postos nos jornais. Tal luta, diz ele, não se baseia em um desdém puritano. Aqueles anúncios são imorais apenas em relação à pretensa missão ética da imprensa, como seria inconveniente uma liga em defesa da moral em jornais que pregam a liberdade sexual. “Como, de resto, seriam imorai os acessos de moralismo de uma alcoviteira, não em si mesmos, mas relação ao seu múnus”. E fulmina Kraus: “moral, nesse sentido, é a defesa da alcoviteira contra a concorrência desleal dos editores dos grandes jornais, que exercem aquele ofício sob riscos bem menores”.

Assim, “o Estado que desaloja os casais de amantes de uma casa de encontros, não tutela o bem jurídico da moralidade pública mas o da ética profissional da alcoviteira. Mas que numa casa a fachada se consagre à educação do povo e por trás se efetivem proveitos materiais combinando rendez-vous, lhe parece a mais natural e moral das destinações do edifício como casa de meretrício, e basta. Viúvas miseráveis, que vivem dos ´encontros clandestinos´, são levadas aos tribunais. Os proprietários dos jornais colocam ao dispor e põem sua administração no desenvolvimento da mais vivaz atividade erótica, em toda a sua variedade e continuam a trabalhar imperturbados”. O meretrício hoje, termina Kraus, “se prostitui agregando-se ao mais sórdido jornalismo, e se é penoso ver os mais famosos expoentes da ciência colocar-se sob ele, como colaboradores (...) arrastando o carro da patifaria financeira e intelectual. Envilece encontrar em comprometida moral filistina uma legião de honestos servidores do sexo”.


É clara a condenação de Kraus à imprensa, qualificada por ele como prostituição espiritual dos intelectuais, proxenetismo dos proprietários e editores. Mudou alguma coisa desde o libelo de Karl Kraus?


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1 Uso a tradução italiana do
texto, saído na coletânea Morale e Criminalità (Milano, Rizzoli, 1976), página 71 e seguintes.