terça-feira, 22 de março de 2011

Sobre Fukushima, Roberto Romano

Fukushima e responsabilidade, sobre Hans Jonas.

As notícias do Japão desafiam o pensamento ético. Elas também geram asserções sensatas ou desvairadas, como em todos os traumas coletivos, antigos ou contemporâneos. No pretérito, as pessoas perguntavam se a culpa pelas desgraças seria dos deuses. Hoje, elas interrogam a ciência, a técnica, os alvos humanos. A busca delirante de culpados mostra que tais problemas ainda são discutidos sob o signo das paixões e do medo. Para desculpar os deuses, foi criada a Teodicéia. Os homens são indesculpáveis ?

Hans Jonas, filósofo judeu nascido na Alemanha mas com reconhecimento acadêmico pleno nos EUA, refletiu sobre o futuro a partir da tragédia vivi da em Hiroshima e Nagasaki. Longe de terem sido fatalidade guerreira, aqueles eventos revelam, diz o pensador, uma senda de horror pelo uso irresponsável das técnicas. Após a energia nuclear, afirma ele, a natureza passou a ser radicalmente alterada pelos homens. O que antes era apenas um nexo externo entre a nossa espécie e a natureza (tsunamis, terremotos, etc) agora tem acréscimo da técnica, e pode resultar em desastre. Daí, a proposta do “princípio responsabilidade” para uma nova ética. O título de seu livro "Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische Zivilization" —O Princípio de Responsabilidade, à procura de uma ética para a civilização tecnológica— (1), merece análise. Quando falamos em “responder”, de imediato vêm à tona as raízes jurídicas do pensamento. “Respondere” no direito romano significa “garantir em troca, assegurar”. “Verantwortung” é responsabilidade diante de alguém que poss ui direitos. O vocábulo se aproxima da tese inglêsa e democrática sobre a necessária “accountability”. Com os Levellers, todas as autoridades do Estado, antes só responsáveis diante do Ser Supremo, têm o dever de prestar contas à cidadania. Tal doutrina custou a cabeça de Carlos 1. A mesma regra conduziu Luis 16 à guilhotina. Os EUA foram instaurados sobre aquela base. Com Napoleão, a ordem ética arrefeceu, fortalecendo a irresponsável razão de Estado. Mas a norma axiológica é essencial em toda política com pretensões democráticas.

Voltemos a H. Jonas. Antes das recentes inovações tecnológicas, o sujeito humano não podia alterar o mundo. Autores revolucionários, a exemplo de Karl Marx, deixaram de interpretar o universo, exigindo a sua plena alteração. “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt aber darauf an, sie zu verändern”. (2) A profecia de Marx, imoderado admirador da técnica, foi realizada na era atômica. Com ela surge enorme aporia, jamais proposta às mentes humanas. Não se trata apenas do sentido de nossa existência, mas da própria existência. É possível, com o simples manejo de botão, arrancar a vida do planeta e, mesmo, aniquilar a Terra.


Não só no campo bélico se instalou o desejo ilimitado de impor outras formas ao mundo, chegando à sua destruição. Também na medicina e na genética existe o desejo de alterar a estrutura do próprio ente humano. No controle dos comportamentos, na medicação, no exercício da engenharia e da medicina, surgem fatos inquietantes que atraem os pesquisadores responsáveis. Cito apenas, escolhendo entre muitos, Jonathan Moreno. Especialista em bioética, consultor do Congresso e do governo nos EUA, ele tem alertado coletividades e indivíduos para os caminhos da pesquisa, quando ela tenta modificar corpos e almas visando a "melhoria" do padrão humano. (3) Como, antes de Moreno, asseverou Han s Jonas, estamos realizando tais projetos, mas nada garante que eles estão à nossa altura, ou que temos o direito de os efetivar.

Não podemos manter atitude despreocupada com o resultado de nossas façanhas técnicas. Temos o dever de preservar a vida humana e a do planeta, contra experimentos e aparelhos que não garantem o nosso patrimônio biológico ou espiritual. Jonas não segue Rousseau e menos ainda os ecologistas místicos. Nele não ocorrem frases ridículas (e românticas ao estilo Avatar) sobre a "mãe natureza" ou sentenças tolas como "os terremotos e tsunamis têm origem no abuso humano". Seu diagnóstico é cheio de matizes e admite que a técnica possui valor inquestionável. O perigo reside no seu uso sem a necessária prudência. Aliás, ele não deixa de seguir o princípio esperança elaborado por Ernst Bloch, outro crítico das administrações burocráticas, marxistas ou capitalistas.

Responsáveis diante de quem ? Tal é a p ergunta de Jonas. Não perante a natureza, pois ela não é portadora de direitos. Somos éticamente responsáveis pela nossa vida no uso dos recursos naturais. Não sendo possível interromper o movimento científico e técnico, importa lutar contra a tirania tecnocrática. É preciso que admistradores e políticos respondam diante dos governados e de toda a humanidade. Urge que eles sigam o mandamento que manda agir "de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autênticamente humana na Terra, durante o maior tempo possível". Jonas não tem fé ingênua em governantes que se regem sobretudo pelos alvos do poder, mas interpela a responsabilidade de todas as pessoas. O imperativo categórico é universal.

"A tecnologia, ao contrário da ciência, justifica a si mesma apenas pelos seus efeitos, não por si mesma e, assim, dados certos efeitos, avanços posteriores podem se tornar indesejáveis". (Jonas). Diante de si tuações dolorosas como a do Japão, o princípio da responsabilidade define tarefas para os que, sem cair no misticismo ecológico, desejam ser sucedidos por seres humanos nesta partícula do universo a que demos o nome de Terra, "no maior tempo possível". Sem responsabilidade, morre qualquer esperança.

Notas

1 Existem várias traduções, a mais acessível é a norte-americana : The imperative of responsability, In search of an ethics for the Technological Age (Univ. of Chicago Press, 1985).
2 “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diversas maneiras, mas trata-se de transformá-lo”.
3 Cf. Jonathan M. Moreno : Mind Wars, brain researche and National Defense e também Undue Risk, secret experiments on humans. Sobre os mesmos temas, cf Hans Jonas : "Philosophical Reflections on Experimenting with Human Subjects" in Daedalus, vol. 98, 2 1969, pags. 219-247).