sábado, 19 de março de 2011

J. R. Guedes de Oliveira

OBAMA E O AUTORETRATO DA TARSILA DO AMARAL

J. R. Guedes de Oliveira*

Com a visita do Presidente Barack Obama ao Brasil, podemos afiançar, com segurança, que caminhamos pela integração real das Américas, onde o nosso país toma uma dimensão maior.

E, nesta vista, não poderia deixar de tecer algumas considerações sobre a preferência do mandatário americano, ao vislumbrar a riqueza do Palácio do Planalto, o autoretrato da Tarsila do Amaral.

É imperioso, portanto, dizer que a pintora capivariana é a expressão maior da nossa arte, ao lado de Cândido Portinari.

Mas, pelo que sentiu Barack Obama, permitem-nos a descrever quem foi esta figura imensa da nossa pintura:

Internacionalmente conhecida, como uma das mais célebres pintoras do Brasil, senão a mais fértil de todas, Tarsila do Amaral, a caipira de Capivari, ainda está para merecer a contemplação de um Museu, onde pudesse estar recolhida toda a sua trajetória de artista fenomenal.

E que não fosse pouco, a sua história, vivida intensamente, com lances de altos e baixos em documentários a ser espalhados por este Brasil, indo além fronteiras, para que mais ainda conhecessem o seu encanto, a sua infinita bondade, o seu acendrado amor pelas coisas simples e, acima de tudo, o seu talento artístico de há muito comprovado.

Essa história fincada no seu passado quatrocentão, da origem dos Brás Cubas, se calca na grandeza da alma paulista, recheada das incertezas que imperaram do início até a metade do século XX. As riquezas, depois o aperto, a angustiosa caída que fulminou os grandes fazendeiros do nosso interior, principalmente aqueles que sentiram na pela a crise do café, por força de sua principal produção agrícola. Mesmo o algodão e a cana de açúcar não conseguiram devolver o que se foi como uma enxurrada, em dias de chuvas intensas.

De qualquer forma, Tarsila do Amaral sobreviveu a tudo isto, com sua altivez e o seu magnetismo, graças mais ainda a uma pessoa que lhe foi a todo tempo uma amiga e um ombro largo e acolhedor: Dona Lídia, sua mãe querida.

Não se poderia jamais distanciar esta perene ligação, entre mãe preocupada e sempre presente nos momentos cruciais e de dificuldades, com a pintora, escultura, jornalista, poetisa e até contista Tarsila do Amaral.

Portanto, para compreender a extensão de caráter e este magnetismo que a artista possuía, é necessário perceber a constante presença de sua mãe, orando, escrevendo-lhe doces cartas e indicando-lhe o caminho de sua felicidade. Mais ainda, a educação materna foi o princípio de toda a sua trajetória, um legado de exemplo edificante nas artes.

Seja, então, nesta minha introdução, pequena fala de respeito, admiração e apreço à pintora, um sublime projeto-resumo do caráter da chamada caipira “Paulista por mercê de Deus”, como se vê no listel que adorna o Brasão de Capivari, sua terra natal, frase esta famosa de Diogo Antônio Feijó.

No concurso dos grandes pintores, artistas dos pincéis, da prancha, do cavalete, da tela, da tinta, da imaginação e do talento, ressurge como estrela fulgurante, de uma Quinta grandeza, a figura imorredoura de Tarsila do Amaral.

No dia 1º de setembro de 1886, no estertor do século XIX, ainda sob o regime do Império, em seu segundo reinado de até 1889, nascia em Capivari, Tarsila do Amaral, filha de José Estanislau do Amaral Filho, cocnominado “o rico fazendeiro” e de Dona Lídia Dias de Aguiar do Amaral. Ainda que pese algumas dúvidas em que localidade realmente ela nasceu, não há qualquer contraposição de que o seu surgimento se deu em terras capivarianas.

Há uma hipótese mais viável de que veio à luz numa fazenda denominada “Sertão”, nos arredores de Capivari, hoje pertencente ao município de Mombuca. Esta pacata cidade, de produção agrícola entre cana, batata e cebola, também deu para o nosso teatro, cinema e TV, a figura de Leonardo Villar.

O abastado fazendeiro Dr. Juca, possuía fantásticas e extensas fazendas, que se enfileiravam de Piracicaba até Jundiaí. Mais de duas dezenas destas, todas elas plantadas, produzindo, principalmente, o café. Perdia-se de longe o número de empregados e de produção agrícola.

Fácil assim é supor que a pequena Tarsila vivesse a desfrutar disso tudo, percorrendo-as ao longo de sua infância. Numa delas, na Fazenda São Bernardo, hoje pertencente ao município de Rafard, a pequena passou alguns anos de intensa alegria. Esta fazenda, o Dr. Juca havia adquirido em 1889. Até hoje a sede desta propriedade permanece intacta, vistosas e vetusta, imponente, desafiando o tempo que não lhe consumiu mesmo em sua centenária existência.

A pequena iniciou sua pintura, ainda em tenra idade. Um coração vermelho, pintado na parede, pensa-se ser o primeiro trabalho seu. Ao que sei, esta obra inicial foi feita aos 6 anos de idade, bem à moda da pintora, na fazenda de propriedade do Dr. Sérgio Estanislau do Amaral, há alguns anos falecido e que tive a oportunidade de desfrutar de sua amizade particular, sendo um dos sobrinhos mais queridos da artista. Depois lhe vieram outras pinturas, mas na fase em que esteve na Fazenda Santa Cruz do Alto, pertencente ao município de Jundiaí.

Inspirado nessa ternura de pintora, florescendo ao fervor do pincel, assim se expressou o poeta e historiador Homero Dantas, seu conterrâneo:

PINTORA MODELO

à memória de Tarsila do Amaral

Ela pintava flores simplesmente

copiando pelo espelho o lindo rosto.

Era uma flor humana que, ao sol-posto

ou de manhã, se retratava ardente!...

Assim, com seu semblante róseo em frente

ao espelho – modelo pulcro exposto!...

ela, beleza rosicler, com gosto

pintava flores em tela albescente!...

Olhando a rósea cor de sua face

em mescla com um brancor leve e fugace

flores róseas e brancas pintalgava!...

E ao pintá-las, em meio às variegadas

flores – níveas e rosas e encarnadas –

ela, flor, com as flores se igualava!...

Mas a infância percorrida nas propriedades do pai, colhendo frutas, entre as quais de sua predileção, a jabuticaba, Tarsila do Amaral viu a sua cultura resplandecer à rigidez dos grandes fazendeiros. O português castiço, o francês primoroso, o latim, as artes como um todo, à escuta do piano que sua mãe tão magistralmente tocava, tudo num cenário grandiloquo, lapidando o caráter de uma figura que se tornaria célebre até nos rincões da então distante União Soviética. E ela, saboreando tudo isso, diria mais tarde, já consagrada:

“Comecei a pintar quanto estava na fazenda. Era criança ainda, tinha quatro para cinco anos. Meu pai tinha comprado diversas fazendas, gostava muito de terras. Ele comprara uma muito bonita, de muito luxo, confortável. Então mudamos, fomos para Capivari, onde eu tinha nascido.

Eu não pintava, ainda, mas gostava de ver, por exemplo, o que minha mãe tinha: uma porção de santinhos que eram dados nas igrejas. Os santos – eu gostava de olhar aquilo, ficava reparando.

Depois, mais tarde, meio uma professora da Bélgica. Era de uma família muito rica, que tinha perdido tudo, de alta classe; tinha chegado a São Paulo. E, como não havia professores, meu pai combinou com a família dela: tinha comprado cinco fazendas de uma vez, e daria trabalho para eles. Os belgas não entendiam nada de fazenda, mas aceitaram, pois precisavam.

A filha deles ficou sendo minha professora de francês. O francês da Bélgica que não era tão bonito como o da França. Em todo caso, era uma língua estrangeira. Ela tinha 18 anos. Eu me lembro muito de um passeio que fazíamos. As fazendas se comunicavam umas com as outras. Uma delas era uma beleza, tinha uma floresta. Íamos de trólei puxando a cavalos; a gente via onças ao longe, eu ficava com medo daquilo”.

Posteriormente, fixa-se na capital paulista, em colégio interno.

E continua no seu depoimento, realizado em 1972, um ano antes do seu falecimento:

“Mais tarde, fui para São Paulo, para ficar num colégio interno. Meu pai gostava assim, pois havia mais disciplina. Fiquei lá, no colégio de freiras, uma porção de tempo. E já desenhava bem, decalcando sempre. Punha aquele papel e ia tirando os desenhos. Mas não fazia nada bom; depois, as professoras sabiam quase menos que eu. Faziam coisas muito mal feitas de pintura.

Passado algum tempo, a família toda foi para a Europa. E eu fui, então. Fomos a Madrid e Barcelona: lá tinha um colégio de freiras muito bom, com moças muito bonitas, todas nobres, muito instruídas – tanto que elas não podiam falar o catalão, que era a língua de lá.

Vi muita coisa bonita. Uma igreja que estava sendo trabalhada já fazia 200 anos e ainda não estava pronta.

Quando cheguei lá eu não sabia falar nada do espanhol. Nesse tempo era muito nova, tinha 8 anos, não sabia nada – mas aprendi um instante. Houve um concurso de ortografia e eu fiz parte do grupo das meninas maiores, das mais instruídas; estudei muito bem aquilo tudo, com muita paciência, e na ocasião das provas fui a primeira da classe. Até a diretora da escola fez uma preleção. Falou que era uma vergonha uma estrangeira chegada havia apenas três meses ser a primeira da classe”.

Numa segunda ida à Europa, agora com toda a família, Tarsila do Amaral reafirma a sua condição de pintora, dizendo:

“No colégio sempre fui a primeira da classe. Ficava contente de fazer as coisas bem feitas. Depois, fui para outro colégio, em Paris, para aprender bem o francês. Meus irmãos foram todos também. Mais tarde, voltei para a Espanha. Minha mãe voltou para o Brasil, pois meu pai precisava ver as fazendas, se iam bem”.

De volta para São Paulo, ela assim se expressa:

“Fui para São Paulo, entrando no Colégio Sion. Eu já falava bem o francês e era a primeira em latim. Saí do colégio e fui estudar em casa. Já sabia pintar mais ou menos. O Cristo que eu fiz ficou até mais bonito que o quadro, fiz os olhos maiores. Fui dispensada dos trabalhos manuais, para fazer só pintura. Aqui, as professoras que me ensinavam pinturas não eram boas. Eu fazia tudo meio decalcando.

Fiquei muito tempo no colégio. Depois, fui para uma temporada na fazenda. Continuei pintando animais”.

Em 1920, na 3ª viagem à Europa, Tarsila do Amaral começa a estudar em Paris, com os grandes mestres. Primeiro, na Academia Julian. Depois com Emile Renard, freqüentando cursos livres.

A pintura moderna a envolve sobremaneira. Conhece e passa a aluna de Lhote Léger e Glauzes. Frequenta as rodas de intelectuais, escritores e artistas, mais acentuadamente com os franceses: Gauthier, Serge Romoff, Maurice Raynal, André Warnod, Blaise Cendrars, Pablo Picasso, Brancusie e outros.

Estava na Europa quando, em fevereiro de 1922 explode a Semana de Arte Moderna. A notícia lhe chega através de Anita Malfatti, por carta que esta, ainda não a conhecendo, lhe escreve.

Em depoimento, assim Tarsila do Amaral se expressa:

“Eu não conhecia a Anita Malfatti. Conhecia, sim: quando houve a Semana de Arte Moderna e eu não estava aqui no Brasil, e ela me escreveu uma carta contando como se passou a Semana. Contou aquilo tudo. Ela já fazia uma pintura mais avançada. Era diferente a pintura dela. Teve um professor alemão, estudou na Alemanha. Eu recebia a carta. Ela explicava, contava tudo detalhadamente, aquelas brigas, as pessoas que vieram do Rio de Janeiro; era uma carta longa, que eu guardei por muito tempo e depois perdi.

Voltei nos primeiros dias de julho de 22. Naquele tempo não havia avião nem nada. Só navios. Aqueles ingleses, muito bons, viagens de até 20 dias.

Cheguei e, quando vi a pintura de Anita também não gostei. A pessoa que prejudicou muito a Anita foi a própria mãe dela, que era pintora e queria que a filha fizesse como ela. Coisas sem novidades. Ela se zangava com a pintura da Anita. Nessa ocasião, teve Monteiro Lobato, que escreveu sobre Anita. Mas ele ofendeu tanto Anita que ela nunca mais se levantou. Jamais reconquistou a confiança no seu trabalho. Eles falavam de um burro com um pincel amarrado no rabo, que sujava com as tintas e passava numa tela atrás, e que a pintura de Anita era igual a essa”.

A adesão de Tarsila do Amaral ao referido Movimento, foi feita através dessas cartas trocadas quase que diariamente entre ela e Anita Malfatti. No Salão dos Artistas Franceses, ela se apresenta e inicia um processo de conhecimento público de suas obras.

Esta fase européia da Tarsila é caracterizada pela da pintura “pau-brasil”, identificada pelo quadro “Caipirinha”, com bananas e coqueiros. Lhote, Léger e Glizes não deixam de rasgar elogios desta fase cubista, dizendo que ela era o “serviço militar na pintura”.

O seu quadro “A Negra”, também dessa fase, reflete bem a raça brasileira. Os franceses a viam com o esplendor incomum da pintura mundial, ao lado dos grandes mestres da década de 20 e de 30.

De volta para o Brasil, imprime viagem pelas cidades históricas de Minas Gerais, com um grupo de amigos. A excursão tem por base as cidades de São João Del Rey, Congonhas do Campo, Sabará, Ouro Preto, Mariana, Tiradentes, Barbacena e outras localidades de Minas Gerais. Com esse contato direto com os artistas da localidade, Tarsila do Amaral enche seus cadernos de anotações, descobrindo um novo Brasil, esse país colonial, acolhedor, simples. Passa a trabalhar intensamente, produzindo, entre outras obras o “Morro da Favela” e “Adoração” pintadas com cores vivas, quentes. A exposição de 1929 foi um sucesso.

A Semana de Arte Moderna revoluciona os meios literários e artísticos. O atelier de Tarsila do Amaral, no centro de São Paulo, na Rua Vitória, é ponto de encontro e reunião obrigatória de todo grupo modernista. Ali, formou-se o conhecidíssimo grupo dos cinco: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Anita Malfatti e a Tarsila do Amaral. Graça Aranha havia formado um outro grupo, mas participava também das reuniões no atelier da Tarsila.

Em 1926, em Paris, realiza a sua primeira exposição na célebre Galeria Percier. Tem completo êxito o evento. Dois anos depois, em 1928, em seu atelier de São Paulo, Tarsila esboça uma grande tela, que deu o nome de Abapuru, uma figura solitária, esquisita, pés imensos, sentada numa planície verde. Em frente, um cactus explodindo numa flor completamente absurda.

Em 1929, tomando os motivos principais de “Negra” e “Abapuru”, realiza um esplêndida composição, denominando-a de Antropofagia, quando este que despertou a curiosidade do mundo artístico.

Ainda em 1929, na Rua Barão de Itapetininga, na capital paulista, realiza-se a exposicão de quadros da Tarsila. Interessante é que os alunos recém-formados da Escola de Belas Artes de São Paulo, visitando a referida exposição, deixam “charges” penduradas entre os quadros. Sem se aborrecer, Tarsila do Amaral mantém estas “charges” junto aos quadros, muito embora fossem alusivos à crítica à sua arte. Houve, por assim dizer, um interessante episódio de se formar duas correntes distintas entre a intelectualidade: uma, a conservadora, ainda pressa ao passado e a outra, vanguardista, defensora da livre expressão da arte.

Em 1931 volta à Europa e expõe em Berlim. De lá segue para Moscou. Na capital russa entra em contato com a família de Octavio Brandão. A poetisa e heroína Laura Brandão mantém com a Tarsila uma amizade duradoura. Interessante que a Tarsila do Amaral esboça em quadro o rosto da jovem poetisa e revolucionária, mas, pelo que sei, se perdeu no corre-corre com a invasão nazista às portas de Moscou.

Em 1932, Tarsila volta ao Brasil e inicia os trabalhos na sua fase social. Quadros como “Operário”, à óleo, com 53 cabeças, representa todos os povos da terra. Em 1933 pinta o quadro “A 2ª Classe” , representando numerosa família de trabalhadores desembarcando numa estação. Posteriormente, vem a fase modernista. Já havia pintado, na fase acadêmica, também os quadros “Sono”, em 1928, “Floresta”, em 1929 e “Antropofagia”, em 1929. O “Abapuru”, de 1928, é um quadro que presenteia Oswald de Andrade, em seu aniversário. Esta obra foi adquirida, há algum tempo, pelo colecionador portenho Eduardo Francisco Constantin, principal executivo do Banco Velox. Em depoimento sobre esta monumental obra, de conhecimento universal, Tarsila explica: “Fiz este quadro para dar de presente ao Oswald, no seu aniversário. Aproveitei que ele não estava em casa e fiz aquela coisa monstruosa, aqueles pés enormes. Oswald levou um susto e telefonou para Raul Bopp, pedindo para vir correndo. Procurei um dicionário tupi – sempre gostei de ler dicionários – o que era aba: “homem”. Na última página achei uma coisa diferente: poru: gente que come carne humana. Então ficou “Abaporu”, “homem que come carne humana”.

De 1935 em diante, abandona a fase social e passa a se interessar pelos problemas puramente plásticos da pintura.

Vem, então, uma série de exposições entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Em 1950 realiza uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna, em São Paulo, com grande repercussão. Em 1969, é a vez do Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, com o título de “Os 50 anos da pintura de Tarsila”. É considerado o acontecimento maior do ano. Além disso, as bienais se multiplica e as exposições internacionais se avolumam, entre as quais a de Veneza, na Itália.

Em 1971, presta longo depoimento no Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Nesse mesmo ano, por ocasião do lançamento, pela Colletio, de um seu álbum de gravuras, é saudada pelo poeta Jorge da Cunha Lima, que diz taxativamente: “Saudar Tarsila é como jogar uma rede no tempo e recolher beleza”.

No entanto, no dia 17 de 1973, falecia em São Paulo, a grande pintora, sendo uma história à parte das artes nacionais.

Badalada por todos os cantos, deixou um legado enorme de arte, na pintura, nas plásticas e no bronze. Foi esplêndida tanto como artista, como mulher.

Alguns aspectos ainda desconhecidos da história, como, por exemplo, o seu casamento com Oswald de Andrade e a sua idade correta (que sempre guardou à sete chaves), merecem um estudo melhor. Mesmo o período de um mês que passou na prisão, por motivos políticos que Oswald de Andrade provocou, já que este, numa de suas tiradas, entrou no Partido Comunista do Brasil.

Mas, entretanto, há que se fazer algumas referências a isto tudo, para a compreensão de quem realmente foi esta notável pintora.

Inúmeros biógrafos se debruçam sobre a vida da pintora, esmiuçando tudo a respeito de suas várias fases, entre estes a professora Aracy do Amaral, com três livros sobre a Tarsila, a pesquisadora Nádia Batella Gotilib e uma sobrinha-neta da pintora, que inclusive leva o seu próprio nome Tarsila do Amaral, filha do Dr. Guilherme Estanislau do Amaral, se deparam com o desconhecimento total de sua infância capivariana. Desconhecem o ambiente em que viveu, cercada de riqueza, mas de rigidez de caráter e de sociabilidade. Jamais Tarsila do Amaral teve um minuto sequer de explosão, nem mesmo quando doente, inválida, penando ora a cama, ora o carrinho de rodas, viu seu irmão, sua filha única e sua neta também única, falecerem. Maria do Carmo de Almeida, a Capitu, muito amiga da Tarsila, dizia que não conhecia ninguém mais amiga dos amigos que ela. Nem de ninguém que tenha passado por tantas provações como ela, sem se queixar de nada. Era realmente uma mulher que nasce a cada cinquenta anos. Outra, só daqui a muito tempo, nas palavras de Capitu.

Tarsila do Amaral conheceu Oswald de Andrade quando de sua volta da Europa, em 1923. Em 1926 casa-se com ele, cujo padrinho de casamento foi o Presidente da República Washington Luiz e o Presidente do Estado de São Paulo Júlio Prestes. Os governos dos estados eram assim chamados de Presidente.

A própria Tarsila assim fala deste casamento, que muitos dizem não ter realizado:

“Fui casada com Oswald de Andrade. Dizem que não, mas não é verdade. Casamos numa grande festa em minha casa na rua Vitória. Fiz um vestido de seda com um “manteau” maravilhoso. Mas Oswald era impossível. Adorava brigar. Estávamos casados quando ele brigou com o Mário de Andrade. Depois pediu que eu escrevesse uma carta de re-conciliação. Mas o Mário não aceitou”.

Depois se separou, em razão do temperamento explosivo de Oswald. Quando desta separação, lhe sobreveio a morte dos pais. E assim perdeu tudo, inclusive as suas propriedades, tendo que morar na casa da Capitu. Como a única coisa que lhe restava era o apartamento em Paris, resolveu ir até lá para ver se fazia algum negócio de sua venda. Estava tão pobre que ficou numa pensão. Em 15 dias, acabou o seu dinheiro e ela resolveu procurar emprego. Andando uns dias pelas ruas viu numa construção a placa “Precisa-se de pintor”. Entrou e foi admitida entre os pintores – todos homens – que lhe ensinaram o ofício. Com alguns dias, pediram-lhe os documentos para contratá-la, mas o dono da construção era o arquiteto Adrian Claude, que ao ver o seu nome mandou chamá-la. Ficou muito chocado de ver Tarsila fazendo aquele trabalho, convidando-a para decorar o seu apartamento. Tarsila desenhou nas paredes a baia de Guanabara em sépia. Ganhou dinheiro bastante para voltar ao Brasil e ficar algum tempo com folga.

Lembro, entretanto, que o primeiro casamento da Tarsila, foi com o Dr. André Teixeira Pinto, e desta união é que nasceu a filha Dulce, falecida em 1966, vítima de diabetes. A neta Beatriz, faleceu afogada numa piscina em Petrópolis, no Rio de Janeiro, ao tentar salvar uma amiga.

Com o Oswald de Andrade não teve filhos. Após a separação com este, casa-se novamente, com Luiz Martins, escritor e jornalista. Separa-se, tempos depois. No final da vida, uma companheira inseparável lhe foi a secretária Anete.

Recolhida em seus aposentos, nos últimos tempos, em cadeira de roda, em razão de um acidente, Tarsila do Amaral guardou, sempre, a alegria e o entusiasmo pela vida. Dizia querer viver cem anos, se assim Deus permitisse. Tinha o amor pelas coisas simples e via com olhar de um pensador todos ao seu redor. Tratava-os com a sua delicadeza peculiar.

Nos últimos tempos de vida, ela não deixava de dizer sobre a morte:

“Eu não tenho medo da morte e sei que ela virá na hora certa, como tudo o que me aconteceu na vida. Sempre procurei estar preparada para receber o pior, embora morrer seja uma contingência natural. O importante é que se tenha vivido com dignidade e se haja, em todos os instantes, escolhido a melhor maneira de ser útil. Existir por existir nada significa, se a gente não empresta sentido ao fato puro e simples da existência”.

Lembro que o seu início de pintura foi com Pedro Alexandrino, o primeiro a lhe explicar as nuances da pintura e lhe abrir o caminho do estrelato. Uma vida dedicada inteiramente à pintura, muito embora de suas mãos tenha saído algumas poesias e alguns contos.

Fez, Tarsila do Amaral, jornalismo crítico, nos principais jornais do país, entre eles O Globo, O Estado de São Paulo, Díário de São Paulo, Diário de Notícias, Diários Associados e outros tantos. Conviveu com a intelectualidade brasileira, nos áureos tempos da década de 20.

Lembro que em Capivari, a sua terra natal, a única obra deixada pela artista foi o busto do eterno Rodrigues de Abreu. A história registra o quanto se fez em Capivari para a construção dessa herma e o quanto se arrecadou para a sua concretização. Entretanto, dos escultores, por final foram ter com a Tarsila que, num gesto de acendrado amor à sua terra natal, e também o reconhecimento do valor poético de uma dos mais invejáveis intelectuais da década de 20, não cobrou nada pela obra. E lá está, desde 1933, na Praça Dr. Cesário Mota, com a assinatura no bronze: Tarcilla do Amaral, que esteve presente na inauguração, com toda pompa possível.

Devo, nesta oportunidade, dizer-lhes alguma coisa mais sobre a vida da Tarsila do Amaral. O desconhecimento que se tem de algumas fases de sua vida, principalmente a da tenra idade, fase de meninice e, depois, a mocidade resplandecente, muita coisa ficou encoberta, até porque ela mesmo assim fez questão de esconder. Basta-nos encarar como fato interessante ela ter, toda a sua vida, encoberto a idade e o ano de seu nascimento. É claro que este seu ano de nascimento ficou por muito tempo duvidoso, mas graças a um trabalho meticuloso da boa gente capivariana (e eu, sem falsa modesta, também fui um dos pesquisadores), chegou-se a conclusão do ano de 1886. Precisamente no dia 1º de setembro. Uma carta de sua mãe, Dona Lidia, datada do dia 1º de setembro de 1927, assim diz:

“Neste glorioso dia em que nasceu a maior pintora brasileira, de uma criatura tão humilde como eu, rendo graças ao nosso bom Deus por ter-se dignado encher-te de seus dons, fazendo de ti uma verdadeira maravilha em beleza física e moral, em inteligência inigualável, pois que Deus cumulou-te de perfeições, não se esquecendo de fazer-te a melhor das filhas, eu te abençoo, eu e teu pai, neste dia em que nasceste. Abraço-te e beijo-te com todo o amor maternal. Sua mãe, Lídia”.

Ficaria, aqui, a enumerar centenas de figuras que falaram da Tarsila do Amaral, em depoimentos dos mais importantes sobre a pintura brasileira. Falaria de seus inúmeros amigos, admiradores, de suas idas à Capivari, hospedando-se em casas de parentes, amigas e do seu entusiasmo ao rever toda essa gente. O pintor capivariano, residente em Indaiatuba, Norberto Benedito de Campos, recebeu da Tarsila todo o entusiasmo, quando ainda criança residia na rua Antônio Pires. Ele faz questão de salientar o quanto Tarsila do Amaral e Anita Malfatti enchiam-lhe de elogios, passando-lhe as mãos na cabeça. Recorda, com brilhos nos olhos, estes velhos tempos, que já se vão 50 anos atrás.

Recorda, ainda, o querido amigo Dr. Sérgio Estanislau do Amaral, o carinho que a Tarsila tinha por ele. Em várias oportunidades, este seu sobrinho predileto disse-me o quanto ela gostava de Capivari, das pessoas simples, das fazendas, do campo, das plantas, das boas e sinceras amizades.

Por tudo isto é que rendemos pleito de gratidão a esta grande criatura. Portanto, a figura de Tarsila do Amaral, eterna, precisa ser lembrada, a todo instante, para conhecimento das novas gerações.

Há, neste momento, muitos admiradores da artista que buscam perpetuar a sua memória, trazendo novos temas, novas e interessantes passagens desta bela criatura. A mim, particularmente, como capivariano e conterrâneo que ligeiramente a conheci, quando de uma sua visita ao seu irmão em Capivari, no majestosos casarão da Rua Fernando de Barros com a Rua Barão do Rio Branco, quase próximo da famosa “biquinha”, tão cantada por Mário Lago, me resta contribuir indelevelmente com esta minha fala, enaltecendo os seus feitos. Tarsila do Amaral representa uma época em nosso país – uma eterna aliança cultural que não pode ser esquecida jamais.

E vejam as palavras do escritor Fernando Góes: “Tarsila viveu sua longa vida cerca da não só dos aplausos e da admiração, sem desfalecimentos, do público e dos meios artísticos e intelectuais, mas também da estima e da amizade de seus companheiros de ofício, dos escritores, daqueles que tiveram a alegria do seu convívio e que nela viam não somente a grande artista, mas, igualmente, fundindo-se e confundindo-se com esta, uma grande figura humana”.

E, Pedro Dantas, arremata: “Tarsila não se deixou abalar conforme a rosa dos ventos. Seu lugar, sua posição na história da arte brasileira, é inexpugnável. Ela brilhará, nesse firmamento, como estrela que não deixou e não deixará de nos comover com os raios da sua luminosa trajetória no mundo das formas, da cor, da luz”.

Mas de todos os grandes elogios sobre a pintura, ficaria com as palavras do poeta Paulo Bonfim, que lhe fez a oração de despedida, quando o corpo da Tarsila baixava à sepultura, no Cemitério da Consolação, em São Paulo, numa tarde fria e nebulosa de janeiro de 1973: “Tarsila não parte. Chega com o futuro”.

Há algum tempo, em vista de acirradas disputas sobre a questão da naturalidade da Tarsila do Amaral, vimos a público, em artigos aos jornais, manifestar a nossa perplexidade pela forma, conteúdo e significado desse embaralhar enorme que só produzem o nada.

Assim é que levantamos a nossa voz e que, nesta oportunidade, relatamos para o bem único da verdade que deve pairar:

Primeiramente, queremos expressar os nossos mais calorosos sentimentos de alegria, pela nossa terra natal Capivari, onde temos as nossas raízes, onde fincamos as nossas observações, onde vimos a luz do dia e despertemos para as letras.

Não há como decifrar o calor, afeto e acolhimento desta nossa cidade “Paulista por mercê de Deus”. É algo indescritível.

Vemo-nos num impasse incomum, em que se procura desvendar um fato ocorrido há mais de 100 anos, como isto fosse, hoje, alterar o curso da nossa história. Parecem-no novos Champollions, tentando decifrar a pedra de Roseta.

Ledo engano dos que se habilitam à prática da busca, defendendo uma antítese daquilo que de há muito ressoa no tempo e no espaço, sendo, como consequência, inviolável na sua exatidão.

Este nosso raciocínio vem da fartura e abundância de imaginações que tomam conta das pessoas no calor inflamável do partidarismo, desejosos em tributos infindáveis de créditos e adjetivos – epinícios, diriam os nossos antepassados do “rio das capivaras”.

De há muito se sabe do nascimento de Tarsila do Amaral, nos ares poéticos de Capivari. Não há como contradizer, negando esta naturalidade. Se nasceu na cama, no chão, no barraco, na vistosa fazenda, à beira de um rio ou no mato, não é o que diz a sua formação e nem tão pouco pode traduzir o seu caráter. O que nos interessa é que pertencente toda região ao município de Capivari, a sua naturalidade só poderia ser capivariana. É o óbvio.

Algumas hipóteses levantadas, ao logo do tempo, trouxeram à tona de que ela havia nascido em terras hoje pertencentes ao município de Mombuca (no Sertão). A sesquicentenária casa da fazenda pertencente à família do saudoso Dr. Sérgio Estanislau do Amaral, poder-se-ia dizer que ali ela nasceu. É até uma opinião formada pelo insigne professor e que a nós foi passada por ele próprio, em algumas conversas que mantivemos. E, reafirmando esta hipótese, o sr. Carlos Dias de Aguiar, tio da Tarsila do Amaral (era irmão da Dona Lídia) chegou assim a dizer ao pintor Norberto B. de Campos. Este último teve o privilégio de conhecer a Tarsila do Amaral e conviver em muitas ocasiões em que a famosa pintora se hospedava em Capivari.

A confusão tamanha, que algumas pessoas criam, nada mais é que fruto de desconhecimento da história. Tira-se proveito próprio, alguém que não conhecendo esta mesma história, busca ouvir e requerer depoimentos de supostas pessoas que até falam ter presenciado o nascimento da célebre artista. Parece incrível, mas já ouvimos dizer que existem depoimentos interessantes de pessoas que passam a outras, pormenorizando todo o fato que antecedeu ao nascimento de Tarsila do Amaral, relatando pormenores da ida de sua mãe à nova fazenda (São Bernardo) para lá dar à luz. Mas de onde Dona Lídia saiu para lá estar? Qual o significado disto. É tudo confuso e nos faz lembrar os velhos versos de Walt Whitman, quando ele nos diz: “Que poderão dizer de mim, depois de morto, se nem mesmo sei o que eu fui”.

É um risco enorme e um a total falta de conhecimento histórico, nesta altura do acontecimento, dizer-se Tarsila do Amaral, natural de Rafard. Perdoem-nos, mas parece que é este o desejo de algumas pessoas interessadas na Lei de Gérson (levar vantagem em tudo).

Há pouco tempo, estivemos em visita ao querido poeta e historiador Pedro Silveira Rocha, velho amigo nosso, já no peso dos seus 86 anos bem vividos, piracicabano de nascimento, rafardense de adoção (desde aos 14 anos). A nossa conversa girou em torno desse problema e fizemos ver a ele que os fatos estão aí e que, na verdade, existem pessoas interessadas em levar proveito de tudo, mesmo que isto seja para jogar a história num saco de lixo. Silveira Rocha concordou plenamente conosco, quando nos disse que o mais importante de tudo era a nacionalidade de Tarsila do Amaral – brasileira. E fez, ainda, o relato de que ela, realmente, nasceu em terras capivarianas. Não há precisão do local exato. Os desconhecedores da sua biografia precisam de uma melhor reflexão. Ela mesmo fez questão de sempre enfatizar o seu nascimento em Capivari, como se observa em vários depoimentos da pintora.

Damos, como exemplo, um interessante raciocínio. Se Capivari teve a sua origem em Itapeva e esta, hoje, pertence ao município de Rafard, então Capivari não é Capivari, mas sim um bairro de Rafard. Se Rodrigues de Abreu nasceu nas adjacências de Itapeva, então o grande poeta não é capivariano, mas rafardense. E o que dizer de Amadeu Amaral. Seria filho de Monte Mór?

Desconhecemos, sinceramente, a verdadeira naturalidade de Shakespeare. Seria Stratford ou seria Avon? Ou mesmo nem ele existiu como tal? Poder-se-ia dizer que é até um brasileiro, que escreveu as suas obras em inglês. A Inglaterra não criou tanta polêmica em torno disso, deixando, em plano superior, o conteúdo de sua esplêndida literatura. É este o significado maior da vida – a obra, o legado.

O fato é que, ao se pensar em criar um museu na Fazenda São Bernardo, hoje pertencente ao município de Rafard, jamais poder-se-ia aludir como local do seu nascimento. Que este museu florescesse e recebesse o carinho de todos, principalmente de capivarianos e rafardenses, numa corrente inquebrantável, seria o ideal de todos, não fosse toda esta grita insuportável e maléfica aos princípios mais sagrados da legitimidade histórica da nossa região.

- “Olha, gente! Foi aqui que a Tarsila do Amaral passou a sua infância. Foram os seus melhores dias”.

Entretanto, buscando alteração num fato sobejamente conhecido, desejam alterar tudo, como num toque de mágico. Não é assim. A consequência é o distanciamento cultural que se verifica, antagonismos que amargam a todos os que se dedicam a cultuar a grande personalidade brasileira.

Ainda bem que, para dar calor à figura da Tarsila do Amaral e avivar a sua memória, alguns defensores da verdade e do equilíbrio se posicionam com suas espadas, sustentando a inviolabilidade de sua naturalidade, como ponto de honra.

Endossando o espírito pacífico de que reverenciar a memória da Tarsila do Amaral é mais importante que esta falácia, está o trabalho desenvolvido pela professora e pedagoga Rosana Padilha, levando a terapia da pintura aos escolares, com um projeto educacional de alcance, sem precedentes na cidade de São Paulo.

Sabemos, ainda, que esta atividade pedagógica, com resultados práticos na própria formação do aluno, vem merecendo, por parte do Ministério da Educação, uma atenção toda especial. Quiçá possa, mais cedo do que nunca, tornar-se projeto obrigatório na área do MEC, colhendo, com certeza, os melhores frutos na formação dos nossos jovens.

Todavia, enquanto perdurar esta vontade louca de alterar a naturalidade histórica da insigne pintora, poetisa, jornalista e escultura Tarsila do Amaral, ficamos recolhidos ao nosso canto. E amargamos, com tristeza, todo essa grita inútil que a própria pintora, se ainda viva, abominaria veementemente.

*J. R. Guedes de Oliveira, ensaísta, biógrafo e historiador.

Prêmio Emílio Castelar 2008 – Madrid, Espanha.

E-mail: guedes.idt@terra.com.br