ESTARÁ O
DESTINO DO BRASIL POR UMA CANETADA?
Ruben
Bauer Naveira
A canetada em questão é declarar inidôneas
as empreiteiras corruptoras da Petrobras, e assim suspender todos os seus
demais contratos pagos com dinheiro público.
Uma vez que no Brasil essas empresas
respondem pela quase totalidade das obras públicas de vulto, declará-las
inidôneas significa desorganizar, em alguma medida e por algum tempo, a
economia do país, acarretando preços a serem pagos tanto a curto (desemprego)
quanto a médio prazo (crescimento).
Ninguém, em sã consciência, deseja algo
assim. Mas, e quanto ao preço do descrédito nas instituições (sim, ainda não
chegamos ao fundo do poço) como consequência das ações e pressões dos agentes
do Estado para salvar as empreiteiras?
E se de todo modo elas forem declaradas
inidôneas? Pode-se adotar medidas que atenuem o impacto? Pode-se procurar
chegar a algum benefício em meio aos prejuízos?
Procurar
responder tais perguntas de forma intelectualmente honesta (o propósito deste
artigo é contribuir para isso) seria do mais alto interesse nacional. Não é o
que vem ocorrendo, infelizmente. Tem-se abusado da expressão “parar o país”, não
apenas simplista mas de óbvio impacto psicológico. Com que intuitos? Alertar a
opinião pública, ou amedrontá-la?
Encarar a
Realidade
Por mais que se deseje que a economia não
padeça nenhuma desorganização, recusar admitir a hipótese de que isso aconteça
não deveria ser uma opção. Vejamos: quase todo o dinheiro para obras públicas (da
União, estados e municípios) encontra-se contratado às empreiteiras investigadas.
Quase todo ele embute superfaturamento (ninguém carece de mais revelações como
as da operação Lava-jato para estar seguro disso). Não é à toa que, a partir dos
indícios já constatados com base na Lava-jato, a Polícia Federal afirmou já
estar se preparando para abrir noventa e cinco novos inquéritos, que demandarão,
no mínimo, quinze novas operações...
Uma obviedade até aqui despercebida vai-se revelando:
a partir do momento em que as empreiteiras forem declaradas inidôneas, elimina-se
a totalidade desses superfaturamentos (porque cancelam-se todos os
contratos em vigor). Vai-se tornando cada vez mais evidente que salvaguardar os
contratos significa salvaguardar também o status quo histórico da corrupção.
A pergunta de um zilhão de reais é: o que a
sociedade iria preferir? Pagar o preço (conjuntural) de uma desorganização da
economia, ou pagar o preço (estrutural) de se preservar o status quo da corrupção
no país?
É claro que a maioria das pessoas não dispõe
de uma noção prévia acerca dos sacrifícios a serem incorridos no caso de uma
desorganização da economia, logo, o mais correto seria o Estado dirigir-se às
pessoas com franqueza e transparência. Winston Churchill, em seu primeiro
discurso após ter sido nomeado primeiro-ministro para comandar a guerra contra o
nazismo, anunciou aos britânicos que nada lhes prometia além de sangue, suor e
lágrimas. Não poderia a luta do país contra a corrupção ser considerada também uma
guerra (que atravessa séculos: o primeiro tratado sobre a corrupção no Brasil, A Arte de Furtar, foi escrito pelo padre
Antonio Vieira no ano de 1652), impondo sacrifícios a serem padecidos como em qualquer
guerra de verdade? Quanto mais as pessoas forem respaldadas como cidadãos em vez
de tuteladas como se incapazes fossem, mais elas se predisporão a serem
chamadas a dividir responsabilidades.
No que se
refere à magnitude da desorganização da economia, quem pode de antemão afirmar que
será mesmo catastrófica? Em função das ações (preventivas e corretivas) que
viermos a adotar desde logo, porque não poderá haver no fim das contas
meramente um freio de arrumação (coisa que um economista chamaria de destruição
criativa)?
Rompendo o
Círculo Vicioso
Façamos agora uma suposição, e digamos que
a nossa expectativa seja a de que as empreiteiras acabarão mesmo declaradas
inidôneas. Apresenta-se a seguir então um livre exercício de imaginação, no
intuito de mostrar que um futuro do qual só se consegue sentir medo pode acabar
por se revelar não apenas palatável como também portador de benefícios
surpreendentes.
Um benefício óbvio para o governo será assumir
o protagonismo na luta conta a corrupção, pois um esforço para salvar as
empreiteiras seria uma versão abrasileirada do “too big to fail” dos EUA em 2008 (aqui no Brasil poderia ser chamado
“too big to jail”...), quando
trilhões de dólares dos contribuintes americanos foram malversados para salvar
bancos falidos. Promover algo assim aqui no Brasil seria passar uma mensagem
negativa de complacência com a corrupção, quando se deve buscar justamente o oposto.
Ou: se o governo perderá na economia (emprego, crescimento) ele ganhará na
política (credibilidade).
Na economia, para que se perca menos, o lapso
de tempo para a retomada das obras de infraestrutura deverá ser o menor
possível. Isso requererá duas condições: 1) que novos contratos sejam firmados;
e 2) que haja empreiteiras em condições de firmá-los. Examinemos ambas, a
começar dos novos contratos.
Não seria interessante para todos os
governos (também dos estados e municípios) que a recontratação das obras se desse
da forma mais ágil e rápida possível? Ora, isso requer que o marco legal facilite
as coisas. Só que o marco legal existente complica as coisas. Uma legislação
simplificadora ainda terá que ser produzida.
Acontece que o Brasil acabará por exigir um
novo marco legal por outro motivo, muito mais crítico: de nada terá valido cancelar
contratos fraudulentos se for para substituí-los por novos contratos igualmente
fraudulentos – tal qual um fumante que, após sobreviver a uma cirurgia para retirada
de um câncer na garganta, continuasse a fumar. O sistema em vigor encontra-se
flagrantemente falido: sofisticado, complexo e custosamente burocrático (cuja fiscalização
é igualmente sofisticada, complexa e custosamente burocrática), ilusoriamente
no propósito de coibir fraudes, ele acaba por inibir a livre concorrência
privilegiando aquelas empresas especializadas não em prestar melhor os
serviços, mas em vencer as licitações (especializadas em recursos, embargos,
impugnações, liminares...), bem como favorece a que editais sejam de antemão
redigidos nos termos mais convenientes à empresa que ao final se sagrará vencedora.
A confecção de um novo marco legal precisa começar
pela definição das suas premissas. Proposta: simplicidade e transparência.
Simplicidade para uma universalização, ao invés de restrição, do acesso; e
transparência para permitir fiscalização por parte de todo e qualquer cidadão (o
que reforça o requisito pela maior simplicidade possível). Se a simplicidade
traz vulnerabilidade (lembrando que a complexidade não garantiu nada, muito
pelo contrário), uma transparência a máxima possível, com empoderamento da
sociedade bem como severidade na punição às fraudes que vierem a ser
descobertas, pode ser o seu contrabalanço. A simplicidade virá ainda contribuir
para reduzir a histórica ineficiência do Estado pelo seu desengessamento.
As definições para essa nova legislação
devem ficar a cargo da sociedade, uma vez que os técnicos do governo,
Congresso, TCU e CGU estão por demais impregnados do espírito da legislação
atual e assim automaticamente a tomariam por referencial. Uma comissão composta
de nomes inquestionáveis por sua credibilidade conferirá respaldo da sociedade ao
modelo que vier a ser concebido. Pode parecer contraditório, acrescentar os
tempos do trabalho de uma comissão aos já morosos (e conflituosos) tempos
processuais do Congresso Nacional. No entanto, tudo o que o Congresso precisa
para aprovar uma matéria em rito acelerado é de consenso, que poderá decorrer
do endosso da sociedade ao anteprojeto produzido pela comissão (coisa que o
governo, se autor da proposta fosse, não teria como angariar).
Uma vez que se
almeja reduzir o lapso de tempo para retomada das obras e ainda substituir o
marco legal vigente, não há tempo a perder. A tarefa de elaboração de um novo
marco legal é para ser deslanchada de imediato, até porque o testemunho de que
o marco existente fracassou já se encontra patente diante de todos. E que não se
venha alegar que a Petrobras conta com um estatuto próprio para licitar ao
largo da lei 8.666, pelo que o problema seria localizado (esse certamente será
o discurso dos defensores do status quo: avançar para uma ainda maior complexidade,
ao invés de para a simplificação). É de se perguntar: seremos todos obrigados a
aguardar até que a operação Lava‑jato se desdobre às hidrelétricas, metrôs etc.
(o que fatalmente acabará ocorrendo), para atestar aquilo que todo mundo já
sabe? Se já há elementos mais que suficientes para declarar a inidoneidade das
empreiteiras, fazê-lo logo poupará anos de trabalho da Polícia Federal, ministério
público e judiciário (permitindo assistir outras prioridades).
Crise É
Oportunidade
Alardeia-se que, privadas de seus contratos
com o poder público e impedidas de celebrar novos, as empreiteiras irão falir.
Isso é no mínimo uma meia-mentira, senão uma rematada mentira mesmo.
As empreiteiras, todas elas, recorrerão à
“plasticidade acionária”. É evidente que falências haverá. Mas não será o patrimônio
que irá falir, e sim apenas um (dentre muitos) CNPJ. As participações
cruzadas serão redefinidas (os contadores terão bastante trabalho), e alguma
outra razão social (preexistente ou criada) assumirá os negócios. Como todas
são negócios familiares, o patrimônio (leia-se o poderio) permanecerá detido
pelas mesmas pessoas físicas. Aos credores das massas falidas das pessoas
jurídicas declaradas inidôneas não caberá sequer o maquinário pesado
(guindastes etc.), posto que este em grande parte não foi comprado mas sim
arrendado por leasing (fato que virá favorecer a retomada do ritmo das obras no
país).
Poucos teriam sintetizado tal estado das
coisas com tanta argúcia como Janio de Freitas: “Nem a pior das punições legais – a declaração de inidoneidade para
qualquer transação com o setor público – representa ameaça real para as
empreiteiras [...] Fusão, remodelação
acionária, partilhamento, são muitas as maneiras de modificar a fisionomia. E,
caso a pena incida sobre as pessoas de donos e dirigentes, o testa de ferro é
uma instituição prática e vigorosa. A vida não é difícil para todos” (Folha
de São Paulo, 20/11/2014).
Ainda Janio: “Nenhum dos cabeças do sistema de contratação de obras públicas por meio
de corrupção foi alcançado pela operação Lava Jato [...] a exclusão não se deve a que o jato lançado
pelos investigadores tenha orientação seletiva. ‘Executivos’ profissionais são
postos nos altos cargos, até na presidência das empreiteiras, também ou
sobretudo para arcar com os riscos de complicação pessoal e, no dia a dia,
entrar com o rosto nas ações indecentes. É para dar essa fachada aos donos e
acionistas majoritários, detentores do verdadeiro comando, que os ‘executivos’
têm as elevadas remunerações que os levam a ser audaciosos e arrogantes”
(FSP, 14/12/2014).
Punir as empreiteiras não é necessariamente
a mesma coisa que punir os corruptores. A sociedade precisará aceitar que a mais
severa punição possível aos corruptores (afora a prisão de um ou outro mais
imprevidente) consiste na perda da polpuda carteira de contratos superfaturados
detida pelas suas (atuais) empresas, sem que isso no entanto os impeça de vir a
constituir novas carteiras. Por isso mesmo é que a legislação tem que ser
refeita – de nada adiantará cancelar contratos fraudulentos se for para
substituí-los por novos contratos igualmente fraudulentos, já foi dito aqui.
Paradoxalmente, esse não é um quadro
necessariamente ruim, pois o Brasil precisa de empreiteiras. A repaginação das
atuais empreiteiras (sob novos CNPJs) afasta o risco de catástrofe que vem sendo
falaciosamente alardeado. Agora, é fato que as empreiteiras encolherão de
tamanho, o que abrirá uma gorda fatia de mercado que precisará ser preenchida a
bem da retomada do país. Como de praxe, os alarmistas (nada desinteressados)
trombeteiam o risco de uma desnacionalização, pela abertura do setor de
serviços do país às empreiteiras americanas e europeias. Mas isso só ocorreria
se o governo se omitir, pois tal vazio de mercado somente necessita dos
incentivos adequados para ser naturalmente preenchido por empresas nacionais, uma
vez que as condições para tanto não poderiam ser mais favoráveis:
– Haverá abundância de demanda, ou seja, de
mercado (já que a maioria dos contratos em vigor terá sido encerrada);
– A concorrência se dará em justa medida,
porque as grandes empreiteiras terão encolhido e ainda estarão se
reestruturando, além do que a instauração de um novo marco legal restringirá os
riscos de cartelização; e
– Haverá abundância da disponibilidade, no
mercado de trabalho, daquele que é o ativo mais valioso de qualquer
empreiteira: os engenheiros e técnicos especializados, tarimbados por anos de
experiência, dispensados pelas empreiteiras declaradas inidôneas em busca de se
recompor.
Este último ponto representa um diferencial
ímpar. Pode-se dizer que montar uma nova empreiteira, a partir do zero, sairá
praticamente de graça, pois bastará atrair no mercado os engenheiros dispensados
e começar a pagar os seus salários. Aqueles que vierem a obter proveito da
disponibilidade repentina e maciça, no mercado de trabalho, de uma mão-de-obra
altamente especializada, qualificada e valiosa, terão se beneficiado de uma
circunstância histórica causada não por qualquer interferência indevida do
Estado mas pelas próprias empreiteiras, como consequência dos seus malfeitos.
É claro que caberá ao governo atuar para
que esse vazio seja preenchido no melhor interesse nacional (leia-se, por reais
empreendedores ao invés de oportunistas de ocasião). Seguem quatro propostas,
como contribuição:
1.) O BNDES subsidiará, por meio de
financiamento abundante e barato, as inúmeras pequenas e médias empreiteiras
que existem no Brasil (muitas das quais já atuam nas principais obras, como
subcontratadas das grandes), para que cresçam pela absorção dos engenheiros e
técnicos disponíveis no mercado.
2.) Em
paralelo, o BNDES cria um programa de incentivo à constituição de novas
empreiteiras (novamente, por financiamento barato e abundante), uma vez que muitos
desses engenheiros, em especial os sêniores, terão vontade e capacidade de se
associar entre si para fundar a própria empresa.
3.) O governo deve estimular a que empresas
tanto públicas (por exemplo a Petrobras) quanto privadas (por exemplo a Vale)
que são clientes habituais dos serviços das empreiteiras aproveitem a
oportunidade para se verticalizar, constituindo áreas de engenharia próprias (afinal
elas já dispõem de setores internos de especificação de projetos, de
contratação de fornecedores e de acompanhamento e fiscalização de obras) no
propósito da retenção, no país e na profissão, dos engenheiros que tiverem sido
dispensados, mão-de-obra estratégica que o Brasil não pode perder. Nesse
sentido, à maior absorção deve corresponder o maior estímulo (por exemplo pela
desoneração dos respectivos encargos trabalhistas).
4.) Poderia ser promovida, de forma
seletiva, uma abertura do mercado de serviços às empreiteiras estrangeiras,
exclusivamente para setores socialmente prioritários em que uma redução dos
custos seja crucial para estados e municípios (saneamento básico é o caso mais
flagrante; outra possibilidade seria mobilidade urbana).
O saldo final
de todo esse processo será um Brasil em que haverá dezenas ou mesmo centenas de
empreiteiras compondo um mercado de livre concorrência, em lugar da atual situação
cartelizada por umas poucas empresas contumazmente corruptoras. O futuro do
país agradece.
A Natureza
do Estado Brasileiro
No Brasil, o
Estado é fruto histórico de um matrimônio indissolúvel entre o poder político-administrativo
e o poder econômico, e sua razão de existir é atender antes de tudo a tais interesses
particulares, não aos interesses maiores da sociedade.
Tal condição
não é exclusiva nossa, afinal não existe no mundo nenhum Estado que não esteja
sob crítica da sua respectiva sociedade. Mas o Estado brasileiro é sui generis, um tipo singular, segundo a
tese que Raymundo Faoro nos legou em seu clássico Os Donos do Poder.
Vale uma
digressão para apresentar o argumento de Faoro: no feudalismo, a classe
dominante é tipicamente composta pelo rei, pelos senhores feudais e pelo clero,
com tensões entre si na partilha do poder. Com o mercantilismo adveio também a
burguesia, acumuladora de riqueza contudo ainda excluída desse condomínio. O
Estado moderno surge então, especialmente após a Revolução Francesa, como uma
reordenação dessas forças, sob predomínio da burguesia e declínio das demais.
Portugal, porém, ao contrário dos demais países europeus, não teve feudalismo
(porque já no século XIV o rei esmagara militarmente os senhores feudais e
domesticara o clero). Para dar conta de administrar o reino sem os senhores
feudais, o rei contratou um aparato burocrático de funcionários convidados por
afinidade, que logo adquiriu vida própria e se pôs a controlar (e parasitar)
toda a atividade econômica do reino, com base em um sem número de normas
escritas (códigos, proclames do rei etc.) numa hiper-regulação.
A partir das
grandes navegações, com os descobrimentos e a colonização, esse aparato
burocrático expandiu-se e, quanto maior, mais benfeitor de si próprio, mais
apropriador da vida econômica e mais opressor da vida em geral. A burguesia
nascente, para conseguir prosperar, aprendeu a com ele se consorciar pela via
da troca de favores e privilégios e da corrupção, compondo uma sociedade em que
quem tinha posses era gente, quem não tinha era ralé e abaixo desses os
escravos. Faoro denominou esse sistema “patrimonialismo” (o público como
patrimônio de particulares), sistema que, por ser entrópico (necessita sempre
sugar mais e mais recursos para se manter), somente pôde perdurar graças aos
sucessivos booms econômicos de que Portugal se locupletou (as especiarias da
Ásia, o açúcar do Nordeste, o ouro das Gerais).
À época da
independência do Brasil, consolidava-se o Estado moderno em países como França,
Inglaterra e Estados Unidos e assim se quis de algum modo copiá-los. Contudo, o
tipo de Estado que aqui se formou não foi, como naqueles países, uma afirmação
da burguesia mercantil (e já também industrial) em superação ao absolutismo do
rei e à aristocracia, mas antes uma reafirmação do velho consórcio entre os
agentes político-administrativos e os agentes econômicos, para continuidade da
espoliação das riquezas do país (adveio em seguida o ciclo do café). Da tese de
Faoro se apreende o porquê de o Brasil, apesar de imensamente rico, não ter até
hoje conseguido deslanchar.
O que não
quer dizer que o Estado brasileiro não venha, aos poucos, se voltando em
direção à sociedade. A partir de 1930 houve progressos alternados com
retrocessos até que, como fruto das lutas pelo fim da ditadura e pela
redemocratização do país, a Constituição de 88 veio instituir um modelo
híbrido: se por um lado conserva o caráter do Estado como instrumento dos
poderosos, por outro vem abrir brechas de cidadania.
Como exemplo
do conservadorismo, a CF88 tem como cláusula pétrea (ou seja, algo que jamais
poderá ser revogado, nem mesmo pelo mecanismo de emenda constitucional de três
quintos da Câmara e do Senado, duas vezes cada um) os chamados direitos
adquiridos, e assim eterniza inumeráveis privilégios. Como apenas um exemplo, a
previdência social são na verdade dois planos de benefícios completamente
distintos (que em comum têm apenas a fonte dos recursos, o tesouro) conforme o
quilate do aposentado: o regime próprio para os servidores públicos e o regime
geral para o restante da população (denominações que são sintomáticas).
Como exemplo dos avanços, a obrigatoriedade do
ingresso no serviço público por meio de concurso (ainda que no judiciário de
vários estados os concursos sejam aproveitados para lavagem do nepotismo).
Ainda mais significativo, as tão combatidas políticas de redução das desigualdades
dos governos do PT nada mais são que o cumprimento de obrigações impostas pela
Constituição:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e
solidária; (...)
III - erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
Foi contudo graças à criação pela CF88 de um
ministério público com liberdade para atuar em defesa da sociedade que as
maiores empreiteiras do país encontram-se finalmente em vias de serem punidas
pelos seus malfeitos. Trava-se nesse exato momento um embate inédito e
definidor entre cidadania e patrimonialismo, lutando uma para desabrochar o
outro para permanecer. De um lado, personagens como Sergio Moro, Rodrigo Janot
e Teori Zavascki têm sobre seus ombros infinitamente mais do que suas
atribuições institucionais: cerram fileiras, do outro, cinco séculos de
anticidadania.
O Papel de
cada um
Raymundo Faoro nos destrinchou a presunção
do Estado em tutelar a sociedade: no Brasil, historicamente, e sempre em nome
do suposto interesse nacional maior, vicejaram e foram salvaguardados
interesses particulares menores de todo tipo.
Pois não tem sido diferente no caso atual. Declarar
as empreiteiras inidôneas é algo que vem sendo tomado pelos agentes do Estado na
qualidade não de uma disposição da Lei, mas de uma escolha discricionária. Ou
seja, estaria na alçada do Estado, em nome do sempre invocado interesse
nacional maior (“não parar o país”), a prerrogativa de livrá-las de serem declaradas
inidôneas.
Que o governo aja assim é até esperado,
conhecida sua obstinação em defender os níveis de emprego e perseguir o
crescimento. Ao que parece, não sem constrangimentos: dispensado de fazê‑lo (uma
vez que todos os ministros foram instados a escrever cartas colocando seus
cargos à disposição), o ministro da CGU Jorge Hage (o mesmo que em 2012 não
hesitara em declarar inidônea a Construtora Delta) fez questão, à la Marta Suplicy, de anunciar o seu
pedido de demissão.
Mas mesmo o ministério público parece ter
assimilado enquanto uma verdade axiomática a tese do “interesse nacional maior”.
Em entrevista coletiva a 11 de dezembro,
o procurador à testa da força‑tarefa para as investigações da operação
Lava-jato, Deltan Dallagnol, iniciou um raciocínio desnudando de forma cortante
e certeira o coração do problema (grifos meus): “existem indicativos de que essas empresas não só corromperam Petrobras
mas estão envolvidas em corrupção com outros órgãos públicos. O único
jeito de estancar esse esquema criminoso seria paralisar todos os
contratos com todos os órgãos públicos, administração municipal,
estadual e federal” (coisa que é automaticamente alcançada ao se declarar
inidôneas as empreiteiras)...
... para, na complementação do raciocínio, assumir
de forma aberta aquilo que seus pares em entidades como o TCU ou a CGU vêm
pregando de forma velada. Dizia ele, “o único
jeito de estancar esse esquema criminoso seria paralisar todos os contratos com todos os órgãos públicos,
administração municipal, estadual e federal, o que é inviável porque
prejudicaria de sobremaneira a população. A única saída, descartada
essa primeira, é a prisão dos envolvidos para que o esquema não se perpetue”.
Não desmerecendo o laborioso e imprescindível trabalho do ministério público, se
procurou ponderar que a prisão “dos envolvidos” não alcançará os verdadeiros
corruptores nem os privará de seus meios de corromper.
Numa paradoxal inversão de papéis, foi do
advogado de defesa de várias empreiteiras Antonio Carlos de Almeida Castro (o
“Kakay”) que se ouviu: “Dentro da
normalidade, você teria de declarar essas empresas inidôneas”.
Ativistas progressistas vêm também reforçar
a tese conservadora. Luis Nassif defendeu como pena para as empreiteiras “que seus dirigentes sejam
penalizados, multados, até o limite da perda de controle das companhias,
se for o caso. Mas é importante a preservação de sua capacidade operacional,
para que a atividade econômica não seja mais penalizada ainda” (portais GGN,
“O desafio de punir dirigentes e poupar empresas”, e Carta Maior, “Punir a
corrupção, não a Nação”, ambos em 23/12/2014; grifos meus).
A intenção é louvável, mas, como se poderia
impor aos donos (não os “dirigentes”, mas os acionistas majoritários) a perda
do controle das suas companhias? Não há nada na legislação que dê abrigo a uma
captura (confisco) por parte do Estado do capital acionário de uma empresa, a
menos que se queira dar razão àqueles que comparam o Brasil à Venezuela. O que
a Lei dispõe é que pessoas, sejam físicas ou jurídicas, são responsabilizáveis pelos
seus atos.
Em uma nova abordagem, os defensores do
status quo agora alarmam que a inidoneidade das empreiteiras coloca em risco todo
o sistema bancário. Nada porém justifica a desfaçatez de terem divulgado uma cifra
estratosférica (cento e trinta bilhões de reais) que, ardilosamente, embaralha
alhos (a dívida das empreiteiras, que tende a não ser paga) com bugalhos (a
dívida da Petrobras, empresa que obviamente não será declarada inidônea), sem sequer
discriminar a proporção de cada uma. Ainda que se admita tal risco como real,
um discurso assim visa paralisar o discernimento e a reflexão – visa paralisar
a sociedade, de modo a que o Estado (como de hábito) possa sozinho resolver o
que seja “melhor” para ela.
Quanto ao risco inverso, o das empreiteiras
serem salvas, ninguém parece se afligir. Há porém no Brasil milhares de
pequenas e médias empresas que por muito menos foram declaradas inidôneas (por
alguma inconsistência documental, por exemplo). Se o instrumento da
inidoneidade for desautorizado haverá insegurança jurídica, já que essas
empresas acionarão o Estado alegando isonomia (a Lei não poderá ser uma para as
empreiteiras e outra para os demais) e os juízes de primeira instância, que
mais prezam as coerências jurídico-legais do que os imperativos políticos, tenderão
a lhes dar ganho de causa gerando repercussões que podem arrastar-se por
décadas, com judicialização das licitações e mesmo da execução dos contratos nos
casos de litígio (afora os pleitos por reparações).
Ainda outra nova abordagem consistiria numa
invenção normativa, a figura do “acordo de leniência”, pelo qual as
empreiteiras deixariam de ser declaradas inidôneas em troca da devolução dos
valores malversados e da colaboração com as investigações. Ora, tal figura
seria uma sobreposição no âmbito do executivo – portanto algo redundante – a figura
idêntica preexistente no campo do judiciário, que é precisamente a delação
premiada. A redundância serviria então para salvar as aparências.
Mas, digamos que as empreiteiras acabem afinal
declaradas inidôneas (ou seja, que os agentes do Estado se vejam obrigados a
fazer isso, mesmo contra sua vontade). O preço da tão temida “paralisação do
país” terá então que ser pago de qualquer modo, só que nesse meio tempo (quanto
tempo? meses? anos?) outros preços adicionais já estarão também sendo pagos,
elevando em muito o valor total da fatura: tempo terá sido perdido (em que o
país terá ficado em compasso de espera ao invés de cuidar logo de retomar o
rumo), desgaste terá sido padecido (por todos os órgãos do Estado, mas em
especial pelo governo), e se terá abdicado do protagonismo em combater a
corrupção. Tudo isso, a troco de nada.
A sociedade
bem sabe que a montanha de dinheiro desviada da Petrobras (foi até aqui
contabilizada a propina, não o sobrepreço) é apenas a ponta de um novelo que,
quanto mais for desenrolado, mais irá mostrar.
E essa é
apenas a corrupção em curso, não a pregressa. Em entrevista, Pedro Henrique Pedreira
Campos, autor do livro Estranhas
Catedrais sobre a corrupção durante a ditadura militar, relata que naquele
período as empreiteiras tiveram acesso ao Estado sem intermediários, dado que o
Congresso era meramente figurativo. Tampouco havia instâncias de fiscalização
como as atuais, pelo que os casos de corrupção simplesmente não vinham à tona.
A roubalheira era então muito maior do que hoje (FSP, “Empreiteira que soube
usar a corrupção cresceu mais, diz historiador”, em 01/12/2014).
Um exemplo?
O embaixador José Jobim, sem nenhuma ligação com organizações de esquerda, foi
sequestrado, torturado e morto em 1979 porque havia levantado provas de que o
superfaturamento na construção de Itaipu levou a um custo final dez vezes
superior ao orçado. Atualizada a valores de hoje, aquela roubalheira de Itaipu supera
muito provavelmente esta de agora.
Evitar que as empreiteiras sejam declaradas
inidôneas pode até parecer, à primeira vista, a atitude mais sensata. Pode ser arriscado, porém, querer
convencer a sociedade de que ainda mais investimento no vício da
hiper-regulação (agora na forma de governança e compliance) herdado de nossos
antepassados lusos fará idôneas empreiteiras acostumadas há décadas a não
apenas subornar senadores, governadores e juízes, mas a fazê-los.
Não se deveria desconsiderar a magnitude do
significado da Petrobras (e dos riscos de sua degradação) nos corações e mentes
do povo brasileiro. Nem se deveria esquecer tão rapidamente que milhões de pessoas
tomaram as ruas, espontaneamente, em junho de 2013. Tampouco se deveria ignorar
os estados de espírito sinalizados pelo eleitorado em outubro de 2014. São
sinais de que o Brasil ingressa numa mutação, sinais de um novo zeitgeist. Darcy Ribeiro avisou que esse
tempo chegaria.
Conjecturar sobre o futuro é um exercício
aberto. O que foi aqui exposto é apenas um caminho, dentre inúmeros outros, de
construção do amanhã. Se quis apenas fazer lembrar que outros futuros são sempre
possíveis, para além da obstinação em se agarrar às seguranças conquistadas no
presente. E é claro que construir o futuro sonhado requer engenho e arte:
talento. Provavelmente irá requerer também alguma dose de sorte. Ou seja, é
incerto. Requer fundamentalmente, porém, algo que tem andado escasso: firmeza
de propósitos, valores, determinação para fazer o correto e não apenas o que
seja conveniente.
Vale então reiterar: nada do que foi proposto
aqui teve a pretensão de fazer crer que não haverá perdas, ou que sacrifícios
não precisarão ser feitos.
O Brasil sempre foi um país em que a
riqueza e o bem-estar existem para ser apropriados por detentores de poderes
econômicos em compadrio com detentores dos poderes de Estado (ter Paulo Maluf
virado ficha-limpa foi apenas um evento recente). Transformar o Brasil num país
em prol da totalidade da sua população não tem como ser um processo asséptico e
indolor. Assim, mais que falar em perdas ou sacrifícios cabe entender que se
trata de uma verdadeira travessia. O que está agora em jogo por meio das
escolhas de alguns dos agentes do governo e do Estado é muito mais que o
destino deles (governo e Estado), é o destino do Brasil enquanto nação, é a definição
de que país iremos ser. Ser ou não ser esse Brasil, eis a questão. Uma nação que
se faz senhora do seu próprio destino assume, conscientemente, que empreender a
travessia custa preços a serem pagos.
Estará o destino do Brasil em risco por uma
canetada? Os defensores do status quo dizem que sim, caso a canetada seja dada.
Nós (me permito usar o plural) dizemos que sim, caso ela não seja.
Ruben
Bauer Naveira tem 52 anos, é pai de dois filhos, tricolor de coração e cidadão
brasileiro, e agradece a Antonio Sales de Melo e Fabiano Barros da Rocha pela
crítica e revisão deste artigo.