Bom gosto, boas maneiras, corrupção
ROBERTO ROMANO - O ESTADO DE S.PAULO
04 Janeiro 2015 | 02h 02
A corrupção não é façanha de grupos isolados. Ela representa um complexo de interesses geridos de maneira burocrática e com vários matizes na sociedade civil ou no Estado. Numa entrevista ao programa Roda Viva em 2007, alertei sobre as dificuldades do fenômeno. Repito sempre, inclusive neste periódico, ter a corrupção o lado diacrônico - os escândalos surgem em sucessão cronológica - e outro sincrônico. Uma ladroagem é denunciada, mas outras, no mesmo instante, passam despercebidas (Fapesp, Memória Roda Viva).
Combater o fato corrupto no Brasil significa topar com a forma autoritária do poder. A Presidência monopoliza políticas públicas e verbas, o que facilita as fendas onde agem os oportunistas. O Executivo habitualmente compra o Congresso. Os cargos são o prêmio de votações parlamentares dúplices que liberam emendas orçamentárias. A política torta esconde-se no cipoal de leis e diretrizes, cuja finalidade é criar obstáculos para vender serviços ardilosos de empresas ou indivíduos à cata do dinheiro público.
O apadrinhamento de grupos ou de empresas, conduzido pelos partidos políticos, segue a tendência histórica do século 19. Inglaterra, França, Alemanha, EUA, Itália e outros países conheceram (alguns mantêm intocada) a tática de indicar militantes para os cargos na administração e nas empresas estatais. Eles devem aplicar ventosas nos cofres públicos e privados para oferecer dinheiro aos padrinhos, os donos de partidos.
Insisto na citação de estudos importantes sobre o apadrinhamento político e partidário para fins corruptos. Das análises, as mais úteis são as de Jens Ivo Engels no livro Apadrinhamento e Corrupção Política na Europa Contemporânea (Paris, Armand Colin, 2014). Para os EUA, paradigma a ser admirado segundo muitos analistas brasileiros, leia-se o livro de Jay Cost Despojos Apodrecidos, como a Política do Apadrinhamento Corrompeu o Outrora Nobre Partido Democrata e Agora Ameaça a República Americana (Harper Collins Publishers). Cost crítica a tradição iniciada pelo presidente Andrew Jackson, eleito em 1828, de colocar cabos eleitorais nos escalões administrativos. Apesar da moralização dos serviços públicos, com o Pendleton Act (1883), o costume foi mantido e apodreceu, diz Cost, sob o Partido Democrata de Barack Obama. O patrocínio político pode abarcar indivíduos, grupos ou setores sociais. É a técnica de adquirir apoio com o dinheiro de todos em proveito de alguns. Tal apadrinhamento partidário vigora no Brasil, mas é pouco analisado.
Em 2009 a revista Época promoveu um debate com a pergunta: a corrupção diminuiu ou aumentou no País? Antes de continuar, permita o leitor que eu faça uma digressão sobre o comportamento público brasileiro. Aqui, a grosseria sectária chega ao nível do linchamento. Alguém discorda do partido padrinho? Os afilhados buscam mostrar serviço para obter um cargo, verba, agrado. Eles ensaiam destruir a pessoa incômoda. Aspas são postas contra o "inimigo". O crítico vai ao pelourinho de blogs e colunas. Em artigo aqui publicado, descrevi tal prática fascista (A ideologia das aspas, 10/3/2013) e os trejeitos dos chaleiras.
"Duas coisas a burguesia nos legou, e delas não podemos abrir mão: bom gosto e boas maneiras" (Lenine). No século 20 surgiu nas ciências humanas o modelo estrutural de pesquisa. Tese: pessoas e massas não pensam, só repetem ideologias. Quem domina a mente dos governados? As classes sociais, a sociedade, o partido. A prisão ideológica gera o rebanho dos sem-fala autônoma. Nele a palavra pertence ao ideólogo, ao partido, à seita. Se alguém recusa o chicote vocabular, sofre a raiva dos líderes religiosos ou políticos, cujas diatribes são pioradas pelos energúmenos.
Volto à revista Época, que me convidou para debater com o ministro Jorge Hage. Afirmei que o centralismo das políticas públicas traz corrupção. Descrevi o elo perverso entre municípios e Brasília, que passa pelos partidos políticos na "comunhão negra dos santos" (Merleau-Ponty, Nota sobre Maquiavel, 1960). O dr. Hage escreveu: "Debater com o Professor Roberto Romano (…) é uma garantia de debate limpo, sério e de alto nível. Nesta réplica, na verdade, não tenho o que contestar na excelente análise da formação histórica da nossa 'federação' sobretudo da fragilidade dos nossos municípios". Mas os candidatos ao apadrinhamento partidário romperam a cerca do decorum e tentaram transformar o diálogo em assassinato moral. Dou o exemplo de uma carta, entre muitas de mesmo teor: "(...) Queria aproveitar a oportunidade e parabenizar o Sr. Ministro Jorge Hage, pelo texto muito bem escrito e com muita ética! E queria comunicar a equipe da ÉPOCA, que substituíssem o prof. Roberto Romano, e colocassem alguém com mais competência e ética para debater, alguém com mais argumento e que tenha mínima noção de política (…) o Prof. Roberto não sabe o que escreve, motivo esse que atrapalha quem está em dúvida! Estude e leia mais, por gentileza, Roberto Romano!". Não cito o nome do autor, mas é possível encontrá-lo, ainda hoje, na internet.
Desde então, cinco longos e tormentosos anos se esgotaram. Os escândalos ressurgiram, uns depois de outros, uns ao lado de outros. E as contas monstruosas - bilhões, bilhões, bilhões - ameaçam implodir formas sociais, políticas, jurídicas. Espero que o triunfalismo não habite as mentes de pessoas eruditas e probas como o dr. Jorge Hage, e que falsas esperanças de combate aos crimes não mais alimentem a grosseria no trato.
Após as manifestações de 2013 ficou claro para todos, incluindo os corruptos, que não é possível dissimular práticas apodrecidas só pela propaganda ou virulenta intimidação sectária. É bom levar a sério a frase de Lenine, embora tenha sido ele o primeiro a trair a sua forma e o seu conteúdo. Em política, além da ideologia e dos desejos, é preciso ter bom gosto e boas maneiras. A etiqueta é uma ética de bolso, afirmou Carlos Ayres Brito, um democrata no STF. Bem dito.
PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE 'RAZÃO DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO' (PERSPECTIVA)