domingo, 25 de janeiro de 2015

Idólatras, Roberto Romano, O Estado de São Paulo, 25/01/2015

Idólatras!

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
25 Janeiro 2015 | 02h 05 

Após os atentados na França, cascatas de tinta foram gastas no debate sobre o veto muçulmano às imagens. Muitos analistas escrevem como se a doutrina só existisse no mundo islâmico. Pouco é dito sobre o núcleo da questão, posto no livro do Êxodo (20, 4-5). O Antigo Testamento proíbe imagens (Juízes 6,25, Jeremias 19,4, Oseias 11,2). Na Igreja primitiva o problema é pouco disputado. Mas com a filosofia neoplatônica surge o debate entre os defensores das pinturas e os seus inimigos.
Paulo proclama que o Cristo é o ícone do Deus invisível (Colossenses, 1, 15) ao interpretar a frase "Quem me viu, viu o Pai" (João, 14, 9). Qual o significado de "ícone", termo grego usado pelo apóstolo? Haveria algo comum entre "ser imagem" e "pintar imagens"? Para os iconoclastas, retratar o Cristo rebaixa a divindade. Os iconódulos pensam o oposto: se o Verbo se fez carne, Ele já se tornou visível.

Segundo o iconoclasta Arius (319 AD), Deus é "a mônada e princípio de tudo, anterior ao Filho". A Trindade não tem, afirma o teórico, estatuto igual em cada uma de suas pessoas. As substâncias (hypóstaseis) não se misturam. Uma é absolutamente superior e não representável pelas outras. O Filho "nada tem de divindade, pois ele não é igual a Deus, nem mesmo consubstancial. Caso oposto, a substância divina deixaria de ser mônada". Cristo é criatura adotada como Filho e quem o venera, ou as suas imagens, "adora criaturas".

A ortodoxia, nos Concílios de Niceia, nega Arius. Deus é pai, mas não à semelhança dos homens. O Pai perfeito só pode ter uma imagem perfeita, o Cristo. Não há desnivelamento entre o modelo e a imagem, o Verbo não se parece a Deus, mas é Deus. O erro ariano seria transpor para o divino o que vale no plano humano. A imagem é analógica, nem unívoca nem equívoca. Mas contra as teses de Niceia estouram, em 726 e 814, dois iconoclasmas (destruição dos ícones, Eikonomachía). O imperador Leão III ordena banir as figuras nos cultos. Ocorre sanguinária destruição de ícones e de seus defensores. 

Dionísio, o Areopagita, anônimo neoplatônico importante para a Igreja, ensina uma escala dos seres. Do divino emana a luz que atinge os entes. Na hierarquia vêm os arcanjos, os anjos, os padres, os reis, o povo (os "leigos"). A entidade elevada brilha mais. As inferiores entram em comunhão com o sagrado pelo ícone, elo entre homem e Deus.

O iconoclasma debate a natureza do Cristo. A ortodoxia cristã recusa a equivocidade, nele, das naturezas divina e humana. A plena analogia é seguida pela Igreja. Para os iconoclastas a representação do Cristo deve ser exata, ou não ser. O Concílio de Hieria (754) condena "a arte ilegal de pintar criaturas vivas blasfemando a doutrina fundamental da nossa salvação". Os iconódulos respondem com o sírio João Damasceno: o cristianismo não adora a matéria, mas o seu Criador, e também venera "a matéria pela qual nos veio a salvação, transmitindo a divina energia e graça". Sobre o tema ver O Ícone de Cristo, de Christoph Schönborn, e A Imagem Proibida, de Alain Besançon.

A doutrina do Deus encarnado é recusada pelos cristãos arianos e pelo Corão: "Dize: 'Ele é Allah, o Único (…) o Absoluto'" que "jamais gerou ou foi gerado". A unicidade de Allah impede a sua representação em forma humana. Se Allah "não foi gerado, temos a recusa da noção de Jesus Deus. Para ter nascido ele deveria antes não ser, o que contradiz o atributo da existência eterna.

O veto cristão às imagens ressurge na Reforma. "Deus não pode suportar que sua majestade infinita seja representada em madeira ou pintura" (Calvino). Com a negação da imagem vem a recusa da ideia neoplatônica sobre a hierarquia eclesiástica e cósmica que leva a Deus por intermediários. O reformador atribui a Platão (deveria mencionar o neoplatonismo) "a filosofia que ensina ir a Deus por meio dos anjos e honrá-los para que estejam mais inclinados a nos dar acesso ao divino. É uma opinião falsa e maldosa. (...) Sempre que se representa Deus em imagem, sua glória é falsa e maldosamente corrompida". O veto não impediu Calvino de admirar pinturas, desde que limitadas ao plano humano.

Para a Confissão de Augsburgo (1530), "não é possível provar pelas Escrituras que se deve invocar os santos ou pedir sua ajuda. Pois só existe um Reconciliador e Mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo". O Concílio de Trento (35.ª sessão, 1563) reprova o abuso das imagens: "Será banido todo tipo de superstição e afastada toda busca de lucro indigno e sórdido". Mas vem a ordem pastoral: "Ensinem os bispos que os santos reinam com Jesus Cristo e oferecem preces a Deus pelos homens". Sua ajuda pode "obter graças e favores de Deus por seu Filho, Senhor Jesus Cristo, único Redentor e Salvador".

Na mesma França que hoje invectiva a interdição islâmica contra as figuras, no século 17 correram rios de sangue dos que defendiam ou negavam as imagens. Antes das caricaturas atuais, o século 18 conheceu o virulento Tratado dos Três Impostores (Moisés, Jesus, Maomé). Reduzir o problema ao Islã é pensá-lo pela metade. Quando o Charlie Hebdo ridiculariza cultos e doutrinas, ele sopra brasas do lado judaico e cristão. Cabe aos defensores da ordem profana pesar o custo, em vidas, da guerra que empreendem. Mas os seus inimigos não residem apenas nas mesquitas e no terror armado. Talvez os piores adversários sejam os que saíram às ruas, aos milhões, para "defender a liberdade de expressão". Nos selfies em massa, eles mostraram que, sim, têm um ídolo: o Ego que os domina após a corrosão do sagrado. Duro, Baudelaire: com as fotografias o povo "correu, como um só Narciso, para contemplar sua imagem na placa metálica. Uma loucura, um fanatismo extraordinário dominou todos estes novos adoradores do sol". 

Súbito, fileiras imensas de Joanas d'Arc são lideradas pelo fascista e antissemita Front National. Recordemos Le Pen, para quem as câmaras de gás nazistas foram "um detalhe na história da 2.ª Guerra Mundial". Liberdade de expressão?

*Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de 'Razão de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)