sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Blog do Professor Medina

Constituição Federal de 1988 “resultou de um golpe de Estado”, afirma professor

Constituição Federal de 1988 “resultou de um golpe de Estado”, afirma professor

IHU On-Line 
 
“Julgo ser importante definir a gênese dessa Constituição e a forma pela qual ela foi elaborada. Ela não resultou de um movimento que expressasse a soberania popular. No meu entender (muito pessoal) ela resultou de um verdadeiro golpe de Estado dado pelo Congresso Nacional que se autoinstituiu com a condição da constituinte e autoconcedeu essa função, reunindo parlamentares que passaram todo o regime ditatorial servindo ao governo autoritário”, sustenta o professor Roberto Romano, em entrevista por telefone à IHU On-Line. De posições firmes e críticas, Romano estabelece um diálogo ao longo da entrevista trazendo exemplos históricos desses últimos 25 anos de como a essa gênese golpista se transformou em realidade e de como essa marca da Constituição Federal aparece na nossa vida cotidiana. Muitos dos problemas relativos à Carta Magna surgem na própria concepção dela, como aponta o professor: “A Constituição como está, torna tudo muito confuso. É urgente: todas as pessoas que se consideram republicanas e democráticas devem lutar pela convocação de uma assembleia nacional constituinte da qual surja um documento que respeite a soberania popular”.

O professor aponta como um dos principais desafios à nossa democracia, justamente, a falta de republicanismo, onde as pessoas são vistas de forma distinta, sobretudo quando se tem em conta o tratamento dado aos políticos. “Em uma república só existem homens comuns”, dispara. “O cidadão é obrigado a respeitar um político corrupto que se chama de excelência e quem é honesto é desrespeitado 24 horas por dia. Se a pessoa for de cor negra, mais desrespeitada ainda, se for pobre, mais ainda”, complementa. Para Romano, a perda de credibilidade dos poderes deriva da falta de clareza das atribuições específicas dos operadores do Estado e, também, de uma postura mais crítica e autônoma. “Essa perda de credibilidade é uma questão central quando não se tem a definição determinada dos poderes. É bom lembrar que no Nazismo, por exemplo, todas as leis radicais, como a racial, foram aceitas pelos tribunais alemães. E quando se tem juízes que se curvam à razão de Estado de quem está no poder, não existe mais democracia, não existe mais república, nem liberdade”, avalia.

Roberto Romano cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales — EHESS, França, e é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas — Unicamp. Escreveu, entre outros, os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997) e Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002).

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Confira a entrevista.

 IHU On-Line – Antes de entrarmos propriamente no tema da Constituição, gostaria de contextualizar o conceito grego de política?

Roberto Romano - Quando examinamos a história da Grécia, vemos que no início havia uma cultura não igualitária. Os aristocratas e os oligarcas dominavam o Estado e a formulação das leis, controlavam as magistraturas. Com isso tínhamos uma apropriação muito desigual da riqueza e da justiça. Sólon  iniciou uma pequena reforma agrária — embora se discuta se foi mesmo uma reforma agrária ou não —, retirando dos grandes proprietários e nobres o direito de impor taxas de juro e outros privilégios. A reforma permitiu aos pequenos proprietários se espalharem pelo território. Isso possibilitou uma base econômica muito forte à democracia grega. Esses pequenos proprietários, não mais aniquilados pelas dívidas, tinham o direito de prosperar e de exercer a cidadania. Com isso eles se dirigiram a Atenas e aí, muitas vezes fizeram residência. Essa presença em Atenas, por sua vez, transformou-se em um instrumento de controle das atividades do Estado.

Eclésia

A assembleia — Eclésia — resulta da modificação econômica e jurídica na Grécia. A ideia de igualdade, na democracia grega, resulta de uma ação de estadistas que definiram os novos rumos para a vida política. É bom não idealizar aquela democracia, pois sempre se disse, entre comentadores e analistas, tratar-se de um clube de cidadãos homens, excluindo uma quantidade imensa de escravos e mulheres. Então é preciso cautela, pois muitas vezes as críticas feitas por Platão  à democracia têm sólido fundamento. Ocorreram muitos atos tirânicos por parte da assembleia dos cidadãos iguais. Mas, apesar de tudo, a democracia grega tem muito a nos oferecer até hoje, sobretudo em termos do princípio da responsabilização. Um elemento importante é que para todo cargo público existia um exame anterior para saber se as pessoas tinham competência e condições, inclusive éticas, para o exercer. Quando a pessoa deixava o cargo ela também tinha que prestar contas. É preciso, realmente, ter na democracia grega uma fonte de inspiração, mas não idealizá-la excessivamente.

IHU On-Line – De que maneira o Iluminismo acabou influenciando a democracia que temos hoje?

Roberto Romano - O Iluminismo  é bastante diverso. No movimento das luzes há uma forma na Inglaterra, outra na França, outra na Itália e outra ainda na Alemanha. Existem tendências que são democratizantes e republicanas e outras conservadoras e monárquicas. O programa de governo das luzes mais conhecido é o francês, uma tradução para o pensamento do continente europeu das ideias elaboradas na Revolução Inglesa do século XVII e, depois, pelo pensamento de John Locke  e Newton . Diderot , um grande admirador dos dois, segue essa linha. Então o que se tem é a consolidação da liberdade, a ideia do contrato entre o povo e o governante. Assim, se o rei não é fiel ao contrato ele pode perder o cargo e, inclusive, a vida. O grande texto que voltou à questão da accountability é de John Milton , poeta republicano que, no texto sobre a manutenção dos cargos do rei e dos magistrados (The Tenure of King’s and Magistrates), diz que, se o rei ou os ocupantes de cargo público não prestam contas, perdem o cargo. Essa ideia percorre o pensamento do Diderot, mas não o de Voltaire , Immanuel Kant  e outros. Há uma forte corrente republicana nas Luzes, mas há também uma atitude mais cautelosa, conservadora, no movimento.

IHU On-Line – Tendo como base os 25 anos da Constituição brasileira, que avanços podemos perceber na democracia nessas duas décadas e meia?

Roberto Romano – Julgo importante definir a gênese dessa Constituição e a forma pela qual ela foi elaborada. Ela não resultou de um movimento que expressasse a soberania popular. No meu entender (muito pessoal) ela resultou de um golpe de Estado dado pelo Congresso Nacional que se autoinstituiu como constituinte, reunindo parlamentares que passaram o período ditatorial servindo ao governo autoritário. Portanto, parlamentares acostumados à servidão, mas que foram escolhidos precipuamente para redigir a Constituição. A Carta, portanto, desde o início tem uma história pouco edificante do ponto de vista republicano e da soberania popular.

Na constituinte havia oligarcas que serviram muito fortemente ao regime militar. Quando há essa reunião, surgem duas tendências distintas em termos doutrinários. A que procurava definir os artigos da constituição em torno da noção de Estado de Direito e a do Estado Democrático de Direito. São duas formas opostas de pensar. A primeira tende a valorizar a propriedade antes do ser humano. Na segunda, são valorizados os direitos das pessoas humanas antes e acima da propriedade. Ao longo da Constituição há parágrafos que tendem a valorizar a democracia e a soberania popular; e outros que tendem a definir o poder e a decisão, inclusive da Justiça, em favor dos proprietários. Do ponto de vista social e programático, isso faz da Constituição um documento heteróclito, sem unidade doutrinária interna.

Parlamentarismo e presidencialismo

Outro elemento complicado na história da Constituição é que ela surge tendo em vista um regime parlamentarista — ideia geral das forças progressistas — e, no entanto, acabou misturando presidencialismo com parlamentarismo, o que torna as presidências da república praticamente incapazes de governar, pois elas não têm previsão de controle. Há um misto de regimes porque com os plebiscitos — se o país queria monarquia ou república e parlamentarismo ou presidencialismo — venceram a república e o presidencialismo. Como se trata de uma república oligárquica, temos no Congresso Nacional grupos dirigentes que pressionam o poder Executivo. Existe uma força no Congresso altamente explosiva em relação à presidência da República. Como as prerrogativas quase imperiais do presidente foram mantidas, o diálogo entre Executivo e Legislativo se torna uma guerrilha perene. Quando se analisam as emendas constitucionais uma após a outra, percebe-se que são tentativas de impor as prerrogativas ou do presidente ou do Congresso. Uma das mais nocivas foi a emenda da reeleição, que permitiu a Fernando Henrique Cardoso  mais um mandato e que faz, agora, com que nossos presidentes da República, quando ainda não terminaram seu primeiro mandato, estejam preocupados com o palanque e a demagogia para o segundo mandato. Isso retira da presidência e do Congresso o tempo necessário para se dedicar ao que é precípuo às suas funções, ou seja, governar.

IHU On-Line – Que tensões se estabelecem entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no sentido de garantir um Estado democrático de fato e não discursivo? Podemos pensar em hierarquias dentro de tais esferas?

Roberto Romano - Quando a Constituição é uma colcha de retalhos de emendas, cuja origem política vem de um golpe de Estado, cria-se para o Judiciário um verdadeiro palimpsesto, um puzzle. Caso mantenha-se a Constituição como está, a cada dia haverá mais dificuldade para que o Judiciário exerça seu múnus de maneira objetiva e inquestionável. Tanto é verdade, que existe no plano eleitoral uma intromissão da Justiça em atribuições que não são dela. No Maranhão a população elegeu um governador, houve uma acusação de fraude (alguns eleitores teriam vendido o voto) e a Justiça anula a eleição e coloca como governadora a senhora Roseane Sarney, segunda colocada, em vez de ouvir o povo soberano do Maranhão. A justiça tutela o eleitor e não respeita a vontade popular. Por uma questão de forma ela abole a soberania popular no Maranhão. Existem problemas como este pipocando pelo Brasil inteiro. A Constituição como está, torna tudo muito confuso. Urge que todas as pessoas que se consideram republicanas e democráticas comecem a lutar pela convocação de uma assembleia nacional constituinte que redija um documento que respeite a soberania popular.

IHU On-Line – Quais são os limites de nossa atual Constituição? O que dela temos de efetivo em termos de soberania do povo?

Roberto Romano – Em grandes linhas existem princípios importantes, sobretudo os que vieram da visão do Estado Democrático de Direito. Lembro a ideia de autonomia, que permeia muitos aspectos da Constituição moderna, sobretudo se pensarmos na vertente trazida por Immanuel Kant. Isso significa autonomia do cidadão, dos municípios, dos poderes entre si e da autonomia, por exemplo, do Ministério Público — MP, que trouxe tanto bem para o nosso Brasil e que foi ameaçado pelo Projeto de Emenda Constitucional — PEC 37 . A autonomia do MP vem reforçar a tese da soberania popular porque coloca na mão do povo um instrumento de controle dos poderes.

Universidade

A ideia de autonomia da universidade só está escrita no texto constitucional, mas não foi implementada. Boa parte da culpa não é apenas dos governos ou dos parlamentares, mas das próprias universidades federais. Os reitores não deixam de praticar atos ilegais, como assinar listas públicas de apoio a candidatos à presidência da República. Em duas ocasiões eles fizeram essa façanha de desobedecer à lei de maneira evidente. Isso é uma prática usual, em vez de brigarem para garantir a autonomia universitária que lhes garanta direitos, mas impõe deveres, preferem uma audiência com o ministro da Educação para troca recíproca de favores políticos. Há um atraso na normatização da Constituição, do ponto de vista da autonomia universitária, que se deve tanto aos que exercem os cargos oficiais, quanto aos que exercem os cargos na própria universidade. Um número expressivo de universidades federais surgiu de pactos oligárquicos entre o poder central e poderosos regionais, uma grande parte dos que comandam estão ligados umbilicalmente às oligarquias regionais.

Plebiscito

Existem possibilidades dentro da Constituição que podem ajudar muito o exercício da democracia direta. A hipótese do plebiscito, aventada pela presidente da república, é um ponto importantíssimo. Existem mecanismos que podem ser acionados, porém se esses mecanismos integrarem uma Constituição mais coerente, que surja da vontade da população por meio de uma assembleia nacional constituinte, parece-me que teremos mais possibilidade de exercitar a soberania popular doravante.

IHU On-Line – Em um artigo publicado em junho, no Jornal O Estado de São Paulo, o senhor comenta que a Constituição está em farrapos. Do que exatamente o senhor está falando?

Roberto Romano - Na vida jurídica moderna, existem pelo menos duas grandes tendências para explicar a Constituição. A primeira é a de Hans Kelsen , para quem ela é um documento que expressa o direito e o governado deve aceitar a norma elaborada e promulgada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo; a norma define o direito interpretado pelo tribunal constitucional. Essa ideia permeia boa parte do trabalho jurídico. Há outra tendência trazida por Carl Schmitt  de que a Constituição expressa a vontade popular e não se pode colocá-la sob o controle do tribunal constitucional, mas daquele que expressa a vontade soberana do povo, o chefe do Estado. Essas duas perspectivas dominaram o século XX, inclusive no Brasil. Há vários fatos brasileiros orientados conforme essa lógica. Francisco Campos , que ajudou a elaborar todos os atos institucionais do regime ditatorial, segue tal lógica. Essa forma de pensar, que define uma relação de vontade sobre a norma, parece-me presente no Brasil. Há a necessidade de encontrar algo que não esteja tão comprometido, como as duas perspectivas apresentadas. Nós já temos trabalhos elaborados com alternativas às duas perspectivas, tanto no plano internacional quanto nacional. Trabalhos como de Ronald Dworkin  abrem perspectivas inovadoras, mas ainda não chegaram aos parlamentos, tanto regionais quanto nacional, e existe uma distância entre o formulado nos cursos e nas pesquisas do Direito e as práticas dos parlamentares e executivos brasileiros. Ainda levará tempo para amadurecer entre os operadores do Estado essas novas concepções do Direito. É fundamental que os nossos legisladores não operem segundo parâmetros do passado, mas assumam perspectivas inovadoras.

IHU On-Line – Qual poder, no caso brasileiro, pode ser apontado como o guardião dos direitos constitucionais? É possível pensar em um ente estatal que seja o defensor da Carta Magna?

Roberto Romano - Se olharmos para todos os poderes brasileiros, perceberemos falhas gritantes na tarefa de ser o guardião da Constituição. Todo mundo conhece a história do artesão prussiano que entrou em querela com o rei Frederico, apelando ao tribunal, e os juízes deram ganho de causa a ele. Foi daí que surgiu a interessante frase: “Ainda há juízes em Berlim”. Nós, como cidadãos, sentimos a falta de proteção dos poderes em relação aos nossos direitos. A Constituição de 1934 proibia o privilégio de foro e os tribunais de exceção. O tribunal de segurança nacional, que causou malefícios até 1968 (o AI-5), por introduzir na política interna do país uma ideia de segurança acima dos direitos, foi declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Isso teve consequências gravíssimas. Quando Otávio Mangabeira  foi processado por esse tribunal de segurança houve empate entre os juízes e o presidente da corte votou contra o réu, escândalo inédito na história do direito. Veja como a cidadania ficou vulnerável, sem a proteção do STF. Quando houve o golpe militar de 1964, Hermes Lima  e Evandro Lins e Silva , advogados e juízes íntegros, foram cassados e o STF tudo aceitou, não houve contestação dessa ingerência do poder Executivo ditatorial em relação ao Supremo. Houve aí uma situação de fato em que a Constituição foi rasgada pelo poder ditatorial.

Economia

Os sucessivos planos econômicos — plano Cruzado, plano Collor —, foram atos tirânicos (na definição de Jean Bodin , tirano é o que usa os bens dos outros como seus), não teve nenhuma resposta do STF até agora. Os sucessivos planos econômicos, no meu entender, foram sucessivos golpes de Estado, pois feitos no segredo, anunciados de madrugada quando os jornais e a população não poderiam mais reagir, a Justiça não atendeu no tempo certo, gerando atos absolutamente lesivos à sociedade sem nenhuma proteção.

O poder Executivo ainda guarda muitas prerrogativas do imperador, tem-se a ideia de que ele é intangível. O ex-ministro Sepúlveda Pertence  tem um trabalho sobre o impeachment. Ele mostra a dificuldade que existe para impedir um presidente no Brasil. No caso do Collor, por exemplo, foi importante que ele não tivesse a famosa base de apoio parlamentar. Temos uma situação que na vida cotidiana e nos grandes atos do poder a população fica desprotegida.

Apagão

Quando houve o apagão, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, foi instituída uma multa ao consumidor e arguida a constitucionalidade junto ao STF, que por sua vez deu uma sentença inaceitável do ponto de vista republicano. A Corte disse que, se não houvesse multa, o consumidor brasileiro não economizaria e não colaboraria com o governo. A culpa do apagão não foi do povo, porque o povo paga os impostos. A culpa foi da falta de investimento no setor elétrico que exigia inversão de recursos, novas tecnologias e tudo o mais que não foi feito. Em vez de culpabilizar quem era o culpado, o STF se voltou contra a cidadania. É muito difícil ouvir que o STF é o protetor da Constituição, porque protegê-la significa proteger o autor dela, que é o povo. Isso é a decisão que Hobbes , no Leviatã (São Paulo: Rideel, 2005), define de maneira magnífica — para que exista comunidade política é o povo que é o autor da lei. Os governantes e os juízes são apenas os atores da lei e, portanto, para agir precisam ser autorizados pelo povo soberano. Essa é uma visão que no Brasil está totalmente invertida. Quando se vê um deputado ou um vereador que exige que um cidadão lhe chame de excelência, temos a inversão absoluta do princípio republicano. Essa inversão, que ocorre nos cargos mais baixos de uma república, se repete de maneira fantástica na presidência do país. A presidência age como um imperador que controla um exército vencedor que dita as regras para todos os Estados brasileiros, de onde surge outra ficção, que são nossas federações. Não somos federações, somos o império do poder central.

Poderes

Sempre que comento com estudantes sobre a soberania popular, sugiro que eles entrem em qualquer repartição pública brasileira e olhem atrás do balcão do funcionário. Atrás de todo o balcão tem um cartaz dizendo o seguinte: “desrespeito ao funcionário, tantos anos de cadeia”. Mas não tem ao lado um cartaz do mesmo tamanho dizendo “desrespeito ao cidadão, tantos anos de cadeia”. Isso mostra bem a estrutura não republicana e não democrática do Estado brasileiro. O cidadão é obrigado a respeitar um político corrupto que se chama de excelência, e quem é honesto é desrespeitado 24 horas por dia. Se a pessoa for de cor negra, mais desrespeitada ainda, se for pobre, mais ainda. Há costumes que são feitos em nome da segurança, por exemplo, que são verdadeiros atentados ao princípio republicano. Não é possível entrar em muitos prédios sem tirar fotografia e mostrar o RG. Isso é um atentado ao direito de ir e vir. Não são somente prédios particulares, mas prédios públicos, e quando você questiona o porquê do procedimento, justifica-se que é em nome da segurança, o que significa dizer que para aqueles servidores o cidadão é um bandido. São medidas absolutamente antiéticas em termos republicanos.

IHU On-Line – Que conflitos éticos se estabelecem na relação desarmoniosa entre os poderes, embora a Constituição sustente uma equidade entre Executivo, Legislativo e Judiciário?

Roberto Romano – A indefinição da extensão e dos limites dos poderes gera permanentes tentativas de pequenos golpes de Estado e há a desconfiança no exercício dos poderes. O mensalão toca problemas éticos gravíssimos, pois trata-se de partido que é bastante sufragado pelo eleitor, sendo que, durante boa parte do processo até o julgamento, a sigla apregoou que se tratava de um golpe. Tal postura foi assumida inclusive pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva , quando afirmou que o mensalão seria uma farsa. Quando se diz que um processo judicial que está na mais alta Corte é uma farsa, assume-se que se trata de um golpe. É desta falta de confiança que surge a desarmonia, pois se o STF tivesse a confiança irrestrita da cidadania, essa acusação não teria sentido, cairia por si mesma. A dificuldade em terminar esse julgamento mostra a desconfiança que paira sobre toda a instituição judiciária. Desconfiança que também paira sobre o Congresso Nacional, que está no ponto mínimo de confiança da população, e também paira, agora, sobre o poder Executivo. Se não há a confiabilidade da palavra dos operadores do poder nos três setores, não há a fé pública, e sem isso não há vida social garantida.

Collor

Voltemos ao caso do golpe de Collor. Se não há confiança de que a pessoa depositará o salário no banco e que vai recolhê-lo no mês que vem, se ninguém vai prestar contas do dinheiro subtraído, se não há garantia, não há confiança no poder. Em um processo de inflação, por exemplo, muito bem trabalhado por Elias Canetti  em Massa e poder (São Paulo: Companhia das Letras, 2005)¸quando a moeda não vale aquilo que ela anuncia, há a perda não apenas de credibilidade dos operadores econômicos de Estado, mas uma depreciação que a pessoa sente no próprio corpo. É um fenômeno de massa tremendo a perda de confiança no exercício do poder. O poder te engana sob a forma do papel moeda. Essa perda de credibilidade é central quando não se tem a definição determinada dos poderes. É bom lembrar que no nazismo todas as leis radicais, como a racial, foram aceitas pelos tribunais alemães. E quando se tem juízes curvados à razão de Estado de quem está no poder, não existe mais democracia, república e liberdade. Não chegamos ao descalabro do desaparecimento total da fé pública, mas temos sinais muito importantes nas manifestações que ocorreram no mês de junho.

IHU On-Line – As manifestações que tomaram as ruas do país em junho reacenderam a centelha de uma reforma política, o que ensejou um discurso da presidente Dilma sobre uma possível reforma constituinte — que depois ela recuou. Que recado a crise de representação manifesta nas ruas dá aos poderes instituídos?

Roberto Romano – Está chegando ao limite da concessão a esses operadores ineptos do Estado brasileiro, no sentido de que eles revertam essa situação e saiam do regime tirânico. Quando se observam os dados de corrupção no Brasil, a quantidade de licitações fraudulentas e a inversão de recursos nas reeleições do prefeito ao presidente da República, percebemos que o regime político brasileiro é aquele em que o governante usa o bem dos governados como se fossem os seus. A população está começando a dar um basta à tirania. Os sinais foram muito evidentes, quando os deputados e senadores começaram a falar abertamente que queriam impor a PEC-37 para colocar um freio ao MP, que queriam modificar a lei de improbidade administrativa. A lei de improbidade administrativa existe há 20 anos e conseguiu condenar cerca de 40% dos ímprobos. Isso no Brasil é um feito extraordinário, que irritou profundamente os ímprobos, e eles anunciaram que iriam diminuir ao máximo as determinações desta lei. Havia vontade de atenuar a lei da ficha limpa, que estava começando a produzir resultados, e os políticos chegaram a um ponto tal de arrogância que levantaram os ânimos da população. A questão das manifestações é justamente o resultado do abuso do poder nos três setores do Estado.

Poder

Parece que toda essa celeuma poderia ser melhorada, desde o ponto de vista do popular ao do exercício do poder, se houvesse uma lei democratizando os partidos políticos. Nossos partidos políticos não são democráticos, porque têm dirigentes que estão no poder há décadas, alguns há 40 anos. Seria urgentíssimo que houvesse uma lei que impedisse a direção partidária por mais de dois anos. Com o tempo, os dirigentes de partidos fazem relações, têm o controle do fundo partidário, das doações, das candidaturas, dos programas de governo — que são na verdade apenas cartas de intenção para enganar a Justiça —, têm controle das alianças e dos cargos, ou seja, são verdadeiros proprietários de partidos. Existem partidos que não escutam as lideranças de bases, não existe assembleia de fato, não têm as eleições primárias, que ocorrem nos Estados Unidos e na Europa, que permite recolher as intenções dos militantes. Veja o exemplo clássico da Hilary Clinton , que era a candidata clássica da oligarquia dos Democratas , e nas primárias saiu o Barack Obama . Não digo que isso seja fantástico, eu tenho a mesma cautela quando penso na democracia na Grécia. Mas, pelo menos, há um controle maior da militância em relação ao movimento partidário. O que significa dizer que há uma maior atração da população à vida política. As pessoas que agora estão gritando fora dos partidos ou “fora os partidos”, estariam movimentando os partidos na base exigindo reformas e mudanças. Sem esse controle das bases, os donos dos partidos operam como príncipes, fazendo concessões uns aos outros.

Reforma política

O princípio fundamental de qualquer reforma política seria, na sequência da lei da ficha limpa, uma lei de democratização dos partidos políticos, mas isso não se vê ninguém falar. O Partido dos Trabalhadores – PT, até que o Lula chegasse à presidência da República, praticava um certo tipo de democracia interna, ouvia os integrantes em convenções, as discussões eram acirradas, as tendências internas e externas eram debatidas. A partir do momento em que foi conquistado o poder federal, o PT se tornou um partido de dirigentes, onde candidatos saem do bolso do Lula ou de um grupo pequeno. À semelhança do que ocorre no partido dos Tucanos, PSDB, que chegaram a definir o nome do candidato à presidência em um jantar. Esse defeito de nossos partidos é mortal para eles, para a democracia e lesivo à soberania popular. É por isso que parte dos manifestantes tem verdadeira ojeriza aos partidos.

IHU On-Line – Tendo em vista o descrédito da população com as instituições políticas de modo geral, uma reforma política seria compatível com uma abertura maior à participação nas eleições de candidatos sem partidos políticos? 

Roberto Romano – É perfeitamente possível ter uma democracia partidária e, ao mesmo tempo, aberta para os movimentos sociais. O problema é que os movimentos sociais são muito mais dinâmicos que o movimento do Estado, porque eles têm que se renovar mais rapidamente conforme os desafios vividos pela sociedade. O outro perigo é que mesmo os movimentos sociais podem se tornar burocratizados. Eu tive experiência em Porto Alegre, observando o Orçamento Participativo – OP, e me interessei muito por essa experiência e segui a literatura a respeito. Um dia estava no ginásio de esportes, onde ocorria a reunião, e entrou um grupo que ostentava uma faixa (vou mudar o nome para preservar a identidade do envolvido) “A comunidade de Pedro Leopoldo saúda os participantes”. Perguntei à pessoa que me ciceroneava: “onde é Pedro Leopoldo?”. “Onde, não, professor” foi a resposta. “Quem é Pedro Leopoldo. Ele é uma espécie de dono da comunidade”. Muitos dos integrantes que iam falar ao microfone se sentiam donos do movimento. Nessa época, a prefeitura de Porto Alegre criou um mecanismo de distribuição de fichas aos pais para que eles não precisassem ficar na fila para matricular os filhos nas escolas, mas os líderes comunitários exigiam que tais fichas fossem entregues a eles. Essa prática autoritária e, infelizmente, popular, começou a ser relativizada e diminuída no mesmo período porque houve uma prática republicana, mais democrática e dialogante. As pessoas tinham que decidir se o recurso ia para tal ou tal investimento, fazendo com que elas aprendessem a viver em democracia e ao mesmo tempo fiscalizassem a realização do orçamento. O OP era pedagógico em todos os sentidos.

Realismo político

Quando o PT chegou ao governo federal, o OP foi praticamente desativado. No Brasil inteiro, nesses dez anos de governo, se o OP fosse instituído de Norte a Sul, muitos problemas já teriam sido minimizados. A chegada do PT ao poder nacional fez surgir uma hierarquia muito rígida, dá as cartas quem tem acesso direto ao poder. Antigamente o partido se abria muito aos movimentos sociais e, atualmente, o próprio Lula admite, é preciso retomar esse diálogo. É essa estrutura do Estado brasileiro que chamo de absolutista, em que as pessoas, ao chegarem ao poder, consideram que o poder lhes pertence, e não ao povo. Gosto de citar um artigo de Norberto Bobbio , intitulado A praça e o palácio, onde ele argumenta que enquanto as pessoas estão na praça consideram o palácio corrupto e autoritário, mas quando se vai para o palácio, pensa-se que a praça é demagógica, irrealista. A conclusão de Bobbio, entretanto, é que é perfeita, ou seja, sem a praça e sem o palácio não se consegue exercitar o poder democrático. Isso é o que me parece ter acontecido com os partidos de esquerda, tanto os Tucanos quanto os Petistas, no momento em que chegaram ao poder, pois se curvaram ao realismo político, que supõe manter o poder dos nossos oligarcas. Ambos os partidos passaram o regime ditatorial inteiro atacando José Sarney , que era um funcionário dos ditadores muito diligente, e de repente este homem, em pleno regime democrático, vira o grande condestável da república, a ponto de o Lula dizer que ele “não pode ser criticado, porque não é um homem comum”. Ora, em uma república só existem homens comuns.

IHU On-Line – Passados 25 anos da promulgação da Constituição, que desafios estão postos à sociedade brasileira para avançar na nossa cidadania e, particularmente, que desafios estão postos ao Congresso Nacional?

Roberto Romano – O primeiro desafio é do pleno respeito à soberania popular. Por enquanto, não temos essa soberania plenamente acatada pelos operadores do Estado. O segundo desafio é promover a federação no Brasil, dando efetiva autonomia, como preconiza a Carta, aos Estados e aos Municípios, inclusive do ponto de vista fiscal e financeiro. É absolutamente indecente ter uma federação na qual, a cada período, prefeitos se dirigem a Brasília para mendigar um pequeno aumento no fundo de participação dos municípios. Em uma federação todos sabem que os gastos maiores e mais importantes são feitos pelos municípios. Temos uma situação injustificável de centralização. O terceiro ponto é a famosa reforma política, mas que não comece pelo fim e sim pelo princípio, que é a redemocratização dos partidos políticos. Finalmente, é preciso fazer uma espécie de reinstauração mínima da fé pública para o Brasil. Enquanto não estiver afastado o fantasma da reeleição, haverá sempre a propaganda funcionando, em vez de funcionarem o ato administrativo e o ato político. É lamentável que o Brasil tenha mergulhado na ditadura do marketing político. O último ponto é o fim do privilégio da prerrogativa de foro. Trata-se de uma falta de republicanismo absoluto. Não sei como o STF, quando se arroga o título de protetor da Constituição, aceita a existência de cidadãos de duas classes, aqueles que têm privilégio de foro e os que não têm. Isso significa que não existe república. Esses são os desafios mais imediatos.

Os outros não derivam da vontade popular e não dependem dos operadores do Estado. A população está mostrando que aprendeu a tomar a cidadania nas suas mãos, e me parece que todos os movimentos que conseguirem apresentar reivindicações podem avançar nas demandas, inclusive passou para 500 mil o número de assinaturas de pessoas que podem enviar solicitações ao Congresso. Cabe 50% aos operadores do Estado e 50% aos cidadãos, que não devem se cobrir sob o manto da apoliticidade, pois quando se assume que não se tem nada a ver com a política, permite-se o ato político aos ímprobos, aos autoritários e àqueles que não têm respeito pela soberania popular.

Fonte: IHU On-Line