Constituição Federal de 1988 “resultou de um golpe de Estado”, afirma professor
07
quinta-feira
nov 2013
in IHU On-Line
“Julgo ser importante definir a gênese
dessa Constituição e a forma pela qual ela foi elaborada. Ela não
resultou de um movimento que expressasse a soberania popular. No meu
entender (muito pessoal) ela resultou de um verdadeiro golpe de Estado
dado pelo Congresso Nacional que se autoinstituiu com a condição da
constituinte e autoconcedeu essa função, reunindo parlamentares que
passaram todo o regime ditatorial servindo ao governo autoritário”,
sustenta o professor Roberto Romano, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
De posições firmes e críticas, Romano estabelece um diálogo ao longo da
entrevista trazendo exemplos históricos desses últimos 25 anos de como a
essa gênese golpista se transformou em realidade e de como essa marca
da Constituição Federal aparece na nossa vida cotidiana. Muitos dos
problemas relativos à Carta Magna surgem na própria concepção dela, como
aponta o professor: “A Constituição como está, torna tudo muito
confuso. É urgente: todas as pessoas que se consideram republicanas e
democráticas devem lutar pela convocação de uma assembleia nacional
constituinte da qual surja um documento que respeite a soberania
popular”.
O professor aponta como um dos principais
desafios à nossa democracia, justamente, a falta de republicanismo,
onde as pessoas são vistas de forma distinta, sobretudo quando se tem em
conta o tratamento dado aos políticos. “Em uma república só existem
homens comuns”, dispara. “O cidadão é obrigado a respeitar um político
corrupto que se chama de excelência e quem é honesto é desrespeitado 24
horas por dia. Se a pessoa for de cor negra, mais desrespeitada ainda,
se for pobre, mais ainda”, complementa. Para Romano, a perda de
credibilidade dos poderes deriva da falta de clareza das atribuições
específicas dos operadores do Estado e, também, de uma postura mais
crítica e autônoma. “Essa perda de credibilidade é uma questão central
quando não se tem a definição determinada dos poderes. É bom lembrar que
no Nazismo, por exemplo, todas as leis radicais, como a racial, foram
aceitas pelos tribunais alemães. E quando se tem juízes que se curvam à
razão de Estado de quem está no poder, não existe mais democracia, não
existe mais república, nem liberdade”, avalia.
Roberto Romano cursou
doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales — EHESS,
França, e é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas —
Unicamp. Escreveu, entre outros, os livros Igreja contra Estado.
Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo
romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997) e Moral e Ciência. A
monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002).
Folheie as obras do Prof. Medina:
CF Comentada
CPC Comentado
Processo Civil Moderno, volumes 1, 2, 3 e 4
* * *
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Confira a entrevista.
IHU On-Line – Antes de entrarmos propriamente no tema da Constituição, gostaria de contextualizar o conceito grego de política?
Roberto Romano - Quando
examinamos a história da Grécia, vemos que no início havia uma cultura
não igualitária. Os aristocratas e os oligarcas dominavam o Estado e a
formulação das leis, controlavam as magistraturas. Com isso tínhamos uma
apropriação muito desigual da riqueza e da justiça. Sólon iniciou uma
pequena reforma agrária — embora se discuta se foi mesmo uma reforma
agrária ou não —, retirando dos grandes proprietários e nobres o direito
de impor taxas de juro e outros privilégios. A reforma permitiu aos
pequenos proprietários se espalharem pelo território. Isso possibilitou
uma base econômica muito forte à democracia grega. Esses pequenos
proprietários, não mais aniquilados pelas dívidas, tinham o direito de
prosperar e de exercer a cidadania. Com isso eles se dirigiram a Atenas e
aí, muitas vezes fizeram residência. Essa presença em Atenas, por sua
vez, transformou-se em um instrumento de controle das atividades do
Estado.
Eclésia
A assembleia — Eclésia — resulta da
modificação econômica e jurídica na Grécia. A ideia de igualdade, na
democracia grega, resulta de uma ação de estadistas que definiram os
novos rumos para a vida política. É bom não idealizar aquela democracia,
pois sempre se disse, entre comentadores e analistas, tratar-se de um
clube de cidadãos homens, excluindo uma quantidade imensa de escravos e
mulheres. Então é preciso cautela, pois muitas vezes as críticas feitas
por Platão à democracia têm sólido fundamento. Ocorreram muitos atos
tirânicos por parte da assembleia dos cidadãos iguais. Mas, apesar de
tudo, a democracia grega tem muito a nos oferecer até hoje, sobretudo em
termos do princípio da responsabilização. Um elemento importante é que
para todo cargo público existia um exame anterior para saber se as
pessoas tinham competência e condições, inclusive éticas, para o
exercer. Quando a pessoa deixava o cargo ela também tinha que prestar
contas. É preciso, realmente, ter na democracia grega uma fonte de
inspiração, mas não idealizá-la excessivamente.
IHU On-Line – De que maneira o Iluminismo acabou influenciando a democracia que temos hoje?
Roberto Romano - O
Iluminismo é bastante diverso. No movimento das luzes há uma forma na
Inglaterra, outra na França, outra na Itália e outra ainda na Alemanha.
Existem tendências que são democratizantes e republicanas e outras
conservadoras e monárquicas. O programa de governo das luzes mais
conhecido é o francês, uma tradução para o pensamento do continente
europeu das ideias elaboradas na Revolução Inglesa do século XVII e,
depois, pelo pensamento de John Locke e Newton . Diderot , um grande
admirador dos dois, segue essa linha. Então o que se tem é a
consolidação da liberdade, a ideia do contrato entre o povo e o
governante. Assim, se o rei não é fiel ao contrato ele pode perder o
cargo e, inclusive, a vida. O grande texto que voltou à questão da
accountability é de John Milton , poeta republicano que, no texto sobre a
manutenção dos cargos do rei e dos magistrados (The Tenure of King’s
and Magistrates), diz que, se o rei ou os ocupantes de cargo público não
prestam contas, perdem o cargo. Essa ideia percorre o pensamento do
Diderot, mas não o de Voltaire , Immanuel Kant e outros. Há uma forte
corrente republicana nas Luzes, mas há também uma atitude mais
cautelosa, conservadora, no movimento.
IHU On-Line – Tendo como base os
25 anos da Constituição brasileira, que avanços podemos perceber na
democracia nessas duas décadas e meia?
Roberto Romano – Julgo
importante definir a gênese dessa Constituição e a forma pela qual ela
foi elaborada. Ela não resultou de um movimento que expressasse a
soberania popular. No meu entender (muito pessoal) ela resultou de um
golpe de Estado dado pelo Congresso Nacional que se autoinstituiu como
constituinte, reunindo parlamentares que passaram o período ditatorial
servindo ao governo autoritário. Portanto, parlamentares acostumados à
servidão, mas que foram escolhidos precipuamente para redigir a
Constituição. A Carta, portanto, desde o início tem uma história pouco
edificante do ponto de vista republicano e da soberania popular.
Na constituinte havia oligarcas que
serviram muito fortemente ao regime militar. Quando há essa reunião,
surgem duas tendências distintas em termos doutrinários. A que procurava
definir os artigos da constituição em torno da noção de Estado de
Direito e a do Estado Democrático de Direito. São duas formas opostas de
pensar. A primeira tende a valorizar a propriedade antes do ser humano.
Na segunda, são valorizados os direitos das pessoas humanas antes e
acima da propriedade. Ao longo da Constituição há parágrafos que tendem a
valorizar a democracia e a soberania popular; e outros que tendem a
definir o poder e a decisão, inclusive da Justiça, em favor dos
proprietários. Do ponto de vista social e programático, isso faz da
Constituição um documento heteróclito, sem unidade doutrinária interna.
Parlamentarismo e presidencialismo
Outro elemento complicado na história da
Constituição é que ela surge tendo em vista um regime parlamentarista —
ideia geral das forças progressistas — e, no entanto, acabou misturando
presidencialismo com parlamentarismo, o que torna as presidências da
república praticamente incapazes de governar, pois elas não têm previsão
de controle. Há um misto de regimes porque com os plebiscitos — se o
país queria monarquia ou república e parlamentarismo ou presidencialismo
— venceram a república e o presidencialismo. Como se trata de uma
república oligárquica, temos no Congresso Nacional grupos dirigentes que
pressionam o poder Executivo. Existe uma força no Congresso altamente
explosiva em relação à presidência da República. Como as prerrogativas
quase imperiais do presidente foram mantidas, o diálogo entre Executivo e
Legislativo se torna uma guerrilha perene. Quando se analisam as
emendas constitucionais uma após a outra, percebe-se que são tentativas
de impor as prerrogativas ou do presidente ou do Congresso. Uma das mais
nocivas foi a emenda da reeleição, que permitiu a Fernando Henrique
Cardoso mais um mandato e que faz, agora, com que nossos presidentes da
República, quando ainda não terminaram seu primeiro mandato, estejam
preocupados com o palanque e a demagogia para o segundo mandato. Isso
retira da presidência e do Congresso o tempo necessário para se dedicar
ao que é precípuo às suas funções, ou seja, governar.
IHU On-Line – Que tensões se
estabelecem entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no
sentido de garantir um Estado democrático de fato e não discursivo?
Podemos pensar em hierarquias dentro de tais esferas?
Roberto Romano - Quando a
Constituição é uma colcha de retalhos de emendas, cuja origem política
vem de um golpe de Estado, cria-se para o Judiciário um verdadeiro
palimpsesto, um puzzle. Caso mantenha-se a Constituição como está, a
cada dia haverá mais dificuldade para que o Judiciário exerça seu múnus
de maneira objetiva e inquestionável. Tanto é verdade, que existe no
plano eleitoral uma intromissão da Justiça em atribuições que não são
dela. No Maranhão a população elegeu um governador, houve uma acusação
de fraude (alguns eleitores teriam vendido o voto) e a Justiça anula a
eleição e coloca como governadora a senhora Roseane Sarney, segunda
colocada, em vez de ouvir o povo soberano do Maranhão. A justiça tutela o
eleitor e não respeita a vontade popular. Por uma questão de forma ela
abole a soberania popular no Maranhão. Existem problemas como este
pipocando pelo Brasil inteiro. A Constituição como está, torna tudo
muito confuso. Urge que todas as pessoas que se consideram republicanas e
democráticas comecem a lutar pela convocação de uma assembleia nacional
constituinte que redija um documento que respeite a soberania popular.
IHU On-Line – Quais são os limites de nossa atual Constituição? O que dela temos de efetivo em termos de soberania do povo?
Roberto Romano – Em
grandes linhas existem princípios importantes, sobretudo os que vieram
da visão do Estado Democrático de Direito. Lembro a ideia de autonomia,
que permeia muitos aspectos da Constituição moderna, sobretudo se
pensarmos na vertente trazida por Immanuel Kant. Isso significa
autonomia do cidadão, dos municípios, dos poderes entre si e da
autonomia, por exemplo, do Ministério Público — MP, que trouxe tanto bem
para o nosso Brasil e que foi ameaçado pelo Projeto de Emenda
Constitucional — PEC 37 . A autonomia do MP vem reforçar a tese da
soberania popular porque coloca na mão do povo um instrumento de
controle dos poderes.
Universidade
A ideia de autonomia da universidade só
está escrita no texto constitucional, mas não foi implementada. Boa
parte da culpa não é apenas dos governos ou dos parlamentares, mas das
próprias universidades federais. Os reitores não deixam de praticar atos
ilegais, como assinar listas públicas de apoio a candidatos à
presidência da República. Em duas ocasiões eles fizeram essa façanha de
desobedecer à lei de maneira evidente. Isso é uma prática usual, em vez
de brigarem para garantir a autonomia universitária que lhes garanta
direitos, mas impõe deveres, preferem uma audiência com o ministro da
Educação para troca recíproca de favores políticos. Há um atraso na
normatização da Constituição, do ponto de vista da autonomia
universitária, que se deve tanto aos que exercem os cargos oficiais,
quanto aos que exercem os cargos na própria universidade. Um número
expressivo de universidades federais surgiu de pactos oligárquicos entre
o poder central e poderosos regionais, uma grande parte dos que
comandam estão ligados umbilicalmente às oligarquias regionais.
Plebiscito
Existem possibilidades dentro da
Constituição que podem ajudar muito o exercício da democracia direta. A
hipótese do plebiscito, aventada pela presidente da república, é um
ponto importantíssimo. Existem mecanismos que podem ser acionados, porém
se esses mecanismos integrarem uma Constituição mais coerente, que
surja da vontade da população por meio de uma assembleia nacional
constituinte, parece-me que teremos mais possibilidade de exercitar a
soberania popular doravante.
IHU On-Line – Em um artigo
publicado em junho, no Jornal O Estado de São Paulo, o senhor comenta
que a Constituição está em farrapos. Do que exatamente o senhor está
falando?
Roberto Romano - Na vida
jurídica moderna, existem pelo menos duas grandes tendências para
explicar a Constituição. A primeira é a de Hans Kelsen , para quem ela é
um documento que expressa o direito e o governado deve aceitar a norma
elaborada e promulgada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo; a
norma define o direito interpretado pelo tribunal constitucional. Essa
ideia permeia boa parte do trabalho jurídico. Há outra tendência trazida
por Carl Schmitt de que a Constituição expressa a vontade popular e
não se pode colocá-la sob o controle do tribunal constitucional, mas
daquele que expressa a vontade soberana do povo, o chefe do Estado.
Essas duas perspectivas dominaram o século XX, inclusive no Brasil. Há
vários fatos brasileiros orientados conforme essa lógica. Francisco
Campos , que ajudou a elaborar todos os atos institucionais do regime
ditatorial, segue tal lógica. Essa forma de pensar, que define uma
relação de vontade sobre a norma, parece-me presente no Brasil. Há a
necessidade de encontrar algo que não esteja tão comprometido, como as
duas perspectivas apresentadas. Nós já temos trabalhos elaborados com
alternativas às duas perspectivas, tanto no plano internacional quanto
nacional. Trabalhos como de Ronald Dworkin abrem perspectivas
inovadoras, mas ainda não chegaram aos parlamentos, tanto regionais
quanto nacional, e existe uma distância entre o formulado nos cursos e
nas pesquisas do Direito e as práticas dos parlamentares e executivos
brasileiros. Ainda levará tempo para amadurecer entre os operadores do
Estado essas novas concepções do Direito. É fundamental que os nossos
legisladores não operem segundo parâmetros do passado, mas assumam
perspectivas inovadoras.
IHU On-Line – Qual poder, no caso
brasileiro, pode ser apontado como o guardião dos direitos
constitucionais? É possível pensar em um ente estatal que seja o
defensor da Carta Magna?
Roberto Romano - Se
olharmos para todos os poderes brasileiros, perceberemos falhas
gritantes na tarefa de ser o guardião da Constituição. Todo mundo
conhece a história do artesão prussiano que entrou em querela com o rei
Frederico, apelando ao tribunal, e os juízes deram ganho de causa a ele.
Foi daí que surgiu a interessante frase: “Ainda há juízes em Berlim”.
Nós, como cidadãos, sentimos a falta de proteção dos poderes em relação
aos nossos direitos. A Constituição de 1934 proibia o privilégio de foro
e os tribunais de exceção. O tribunal de segurança nacional, que causou
malefícios até 1968 (o AI-5), por introduzir na política interna do
país uma ideia de segurança acima dos direitos, foi declarado
constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Isso teve consequências
gravíssimas. Quando Otávio Mangabeira foi processado por esse tribunal
de segurança houve empate entre os juízes e o presidente da corte votou
contra o réu, escândalo inédito na história do direito. Veja como a
cidadania ficou vulnerável, sem a proteção do STF. Quando houve o golpe
militar de 1964, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva , advogados e
juízes íntegros, foram cassados e o STF tudo aceitou, não houve
contestação dessa ingerência do poder Executivo ditatorial em relação ao
Supremo. Houve aí uma situação de fato em que a Constituição foi
rasgada pelo poder ditatorial.
Economia
Os sucessivos planos econômicos — plano
Cruzado, plano Collor —, foram atos tirânicos (na definição de Jean
Bodin , tirano é o que usa os bens dos outros como seus), não teve
nenhuma resposta do STF até agora. Os sucessivos planos econômicos, no
meu entender, foram sucessivos golpes de Estado, pois feitos no segredo,
anunciados de madrugada quando os jornais e a população não poderiam
mais reagir, a Justiça não atendeu no tempo certo, gerando atos
absolutamente lesivos à sociedade sem nenhuma proteção.
O poder Executivo ainda guarda muitas
prerrogativas do imperador, tem-se a ideia de que ele é intangível. O
ex-ministro Sepúlveda Pertence tem um trabalho sobre o impeachment. Ele
mostra a dificuldade que existe para impedir um presidente no Brasil.
No caso do Collor, por exemplo, foi importante que ele não tivesse a
famosa base de apoio parlamentar. Temos uma situação que na vida
cotidiana e nos grandes atos do poder a população fica desprotegida.
Apagão
Quando houve o apagão, durante o governo
Fernando Henrique Cardoso, foi instituída uma multa ao consumidor e
arguida a constitucionalidade junto ao STF, que por sua vez deu uma
sentença inaceitável do ponto de vista republicano. A Corte disse que,
se não houvesse multa, o consumidor brasileiro não economizaria e não
colaboraria com o governo. A culpa do apagão não foi do povo, porque o
povo paga os impostos. A culpa foi da falta de investimento no setor
elétrico que exigia inversão de recursos, novas tecnologias e tudo o
mais que não foi feito. Em vez de culpabilizar quem era o culpado, o STF
se voltou contra a cidadania. É muito difícil ouvir que o STF é o
protetor da Constituição, porque protegê-la significa proteger o autor
dela, que é o povo. Isso é a decisão que Hobbes , no Leviatã (São Paulo:
Rideel, 2005), define de maneira magnífica — para que exista comunidade
política é o povo que é o autor da lei. Os governantes e os juízes são
apenas os atores da lei e, portanto, para agir precisam ser autorizados
pelo povo soberano. Essa é uma visão que no Brasil está totalmente
invertida. Quando se vê um deputado ou um vereador que exige que um
cidadão lhe chame de excelência, temos a inversão absoluta do princípio
republicano. Essa inversão, que ocorre nos cargos mais baixos de uma
república, se repete de maneira fantástica na presidência do país. A
presidência age como um imperador que controla um exército vencedor que
dita as regras para todos os Estados brasileiros, de onde surge outra
ficção, que são nossas federações. Não somos federações, somos o império
do poder central.
Poderes
Sempre que comento com estudantes sobre a
soberania popular, sugiro que eles entrem em qualquer repartição
pública brasileira e olhem atrás do balcão do funcionário. Atrás de todo
o balcão tem um cartaz dizendo o seguinte: “desrespeito ao funcionário,
tantos anos de cadeia”. Mas não tem ao lado um cartaz do mesmo tamanho
dizendo “desrespeito ao cidadão, tantos anos de cadeia”. Isso mostra bem
a estrutura não republicana e não democrática do Estado brasileiro. O
cidadão é obrigado a respeitar um político corrupto que se chama de
excelência, e quem é honesto é desrespeitado 24 horas por dia. Se a
pessoa for de cor negra, mais desrespeitada ainda, se for pobre, mais
ainda. Há costumes que são feitos em nome da segurança, por exemplo, que
são verdadeiros atentados ao princípio republicano. Não é possível
entrar em muitos prédios sem tirar fotografia e mostrar o RG. Isso é um
atentado ao direito de ir e vir. Não são somente prédios particulares,
mas prédios públicos, e quando você questiona o porquê do procedimento,
justifica-se que é em nome da segurança, o que significa dizer que para
aqueles servidores o cidadão é um bandido. São medidas absolutamente
antiéticas em termos republicanos.
IHU On-Line – Que conflitos
éticos se estabelecem na relação desarmoniosa entre os poderes, embora a
Constituição sustente uma equidade entre Executivo, Legislativo e
Judiciário?
Roberto Romano – A
indefinição da extensão e dos limites dos poderes gera permanentes
tentativas de pequenos golpes de Estado e há a desconfiança no exercício
dos poderes. O mensalão toca problemas éticos gravíssimos, pois
trata-se de partido que é bastante sufragado pelo eleitor, sendo que,
durante boa parte do processo até o julgamento, a sigla apregoou que se
tratava de um golpe. Tal postura foi assumida inclusive pelo
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva , quando afirmou que o mensalão
seria uma farsa. Quando se diz que um processo judicial que está na mais
alta Corte é uma farsa, assume-se que se trata de um golpe. É desta
falta de confiança que surge a desarmonia, pois se o STF tivesse a
confiança irrestrita da cidadania, essa acusação não teria sentido,
cairia por si mesma. A dificuldade em terminar esse julgamento mostra a
desconfiança que paira sobre toda a instituição judiciária. Desconfiança
que também paira sobre o Congresso Nacional, que está no ponto mínimo
de confiança da população, e também paira, agora, sobre o poder
Executivo. Se não há a confiabilidade da palavra dos operadores do poder
nos três setores, não há a fé pública, e sem isso não há vida social
garantida.
Collor
Voltemos ao caso do golpe de Collor. Se
não há confiança de que a pessoa depositará o salário no banco e que vai
recolhê-lo no mês que vem, se ninguém vai prestar contas do dinheiro
subtraído, se não há garantia, não há confiança no poder. Em um processo
de inflação, por exemplo, muito bem trabalhado por Elias Canetti em
Massa e poder (São Paulo: Companhia das Letras, 2005)¸quando a moeda não
vale aquilo que ela anuncia, há a perda não apenas de credibilidade dos
operadores econômicos de Estado, mas uma depreciação que a pessoa sente
no próprio corpo. É um fenômeno de massa tremendo a perda de confiança
no exercício do poder. O poder te engana sob a forma do papel moeda.
Essa perda de credibilidade é central quando não se tem a definição
determinada dos poderes. É bom lembrar que no nazismo todas as leis
radicais, como a racial, foram aceitas pelos tribunais alemães. E quando
se tem juízes curvados à razão de Estado de quem está no poder, não
existe mais democracia, república e liberdade. Não chegamos ao
descalabro do desaparecimento total da fé pública, mas temos sinais
muito importantes nas manifestações que ocorreram no mês de junho.
IHU On-Line – As manifestações
que tomaram as ruas do país em junho reacenderam a centelha de uma
reforma política, o que ensejou um discurso da presidente Dilma sobre
uma possível reforma constituinte — que depois ela recuou. Que recado a
crise de representação manifesta nas ruas dá aos poderes instituídos?
Roberto Romano – Está
chegando ao limite da concessão a esses operadores ineptos do Estado
brasileiro, no sentido de que eles revertam essa situação e saiam do
regime tirânico. Quando se observam os dados de corrupção no Brasil, a
quantidade de licitações fraudulentas e a inversão de recursos nas
reeleições do prefeito ao presidente da República, percebemos que o
regime político brasileiro é aquele em que o governante usa o bem dos
governados como se fossem os seus. A população está começando a dar um
basta à tirania. Os sinais foram muito evidentes, quando os deputados e
senadores começaram a falar abertamente que queriam impor a PEC-37 para
colocar um freio ao MP, que queriam modificar a lei de improbidade
administrativa. A lei de improbidade administrativa existe há 20 anos e
conseguiu condenar cerca de 40% dos ímprobos. Isso no Brasil é um feito
extraordinário, que irritou profundamente os ímprobos, e eles anunciaram
que iriam diminuir ao máximo as determinações desta lei. Havia vontade
de atenuar a lei da ficha limpa, que estava começando a produzir
resultados, e os políticos chegaram a um ponto tal de arrogância que
levantaram os ânimos da população. A questão das manifestações é
justamente o resultado do abuso do poder nos três setores do Estado.
Poder
Parece que toda essa celeuma poderia ser
melhorada, desde o ponto de vista do popular ao do exercício do poder,
se houvesse uma lei democratizando os partidos políticos. Nossos
partidos políticos não são democráticos, porque têm dirigentes que estão
no poder há décadas, alguns há 40 anos. Seria urgentíssimo que houvesse
uma lei que impedisse a direção partidária por mais de dois anos. Com o
tempo, os dirigentes de partidos fazem relações, têm o controle do
fundo partidário, das doações, das candidaturas, dos programas de
governo — que são na verdade apenas cartas de intenção para enganar a
Justiça —, têm controle das alianças e dos cargos, ou seja, são
verdadeiros proprietários de partidos. Existem partidos que não escutam
as lideranças de bases, não existe assembleia de fato, não têm as
eleições primárias, que ocorrem nos Estados Unidos e na Europa, que
permite recolher as intenções dos militantes. Veja o exemplo clássico da
Hilary Clinton , que era a candidata clássica da oligarquia dos
Democratas , e nas primárias saiu o Barack Obama . Não digo que isso
seja fantástico, eu tenho a mesma cautela quando penso na democracia na
Grécia. Mas, pelo menos, há um controle maior da militância em relação
ao movimento partidário. O que significa dizer que há uma maior atração
da população à vida política. As pessoas que agora estão gritando fora
dos partidos ou “fora os partidos”, estariam movimentando os partidos na
base exigindo reformas e mudanças. Sem esse controle das bases, os
donos dos partidos operam como príncipes, fazendo concessões uns aos
outros.
Reforma política
O princípio fundamental de qualquer
reforma política seria, na sequência da lei da ficha limpa, uma lei de
democratização dos partidos políticos, mas isso não se vê ninguém falar.
O Partido dos Trabalhadores – PT, até que o Lula chegasse à presidência
da República, praticava um certo tipo de democracia interna, ouvia os
integrantes em convenções, as discussões eram acirradas, as tendências
internas e externas eram debatidas. A partir do momento em que foi
conquistado o poder federal, o PT se tornou um partido de dirigentes,
onde candidatos saem do bolso do Lula ou de um grupo pequeno. À
semelhança do que ocorre no partido dos Tucanos, PSDB, que chegaram a
definir o nome do candidato à presidência em um jantar. Esse defeito de
nossos partidos é mortal para eles, para a democracia e lesivo à
soberania popular. É por isso que parte dos manifestantes tem verdadeira
ojeriza aos partidos.
IHU On-Line – Tendo em vista o
descrédito da população com as instituições políticas de modo geral, uma
reforma política seria compatível com uma abertura maior à participação
nas eleições de candidatos sem partidos políticos?
Roberto Romano – É
perfeitamente possível ter uma democracia partidária e, ao mesmo tempo,
aberta para os movimentos sociais. O problema é que os movimentos
sociais são muito mais dinâmicos que o movimento do Estado, porque eles
têm que se renovar mais rapidamente conforme os desafios vividos pela
sociedade. O outro perigo é que mesmo os movimentos sociais podem se
tornar burocratizados. Eu tive experiência em Porto Alegre, observando o
Orçamento Participativo – OP, e me interessei muito por essa
experiência e segui a literatura a respeito. Um dia estava no ginásio de
esportes, onde ocorria a reunião, e entrou um grupo que ostentava uma
faixa (vou mudar o nome para preservar a identidade do envolvido) “A
comunidade de Pedro Leopoldo saúda os participantes”. Perguntei à pessoa
que me ciceroneava: “onde é Pedro Leopoldo?”. “Onde, não, professor”
foi a resposta. “Quem é Pedro Leopoldo. Ele é uma espécie de dono da
comunidade”. Muitos dos integrantes que iam falar ao microfone se
sentiam donos do movimento. Nessa época, a prefeitura de Porto Alegre
criou um mecanismo de distribuição de fichas aos pais para que eles não
precisassem ficar na fila para matricular os filhos nas escolas, mas os
líderes comunitários exigiam que tais fichas fossem entregues a eles.
Essa prática autoritária e, infelizmente, popular, começou a ser
relativizada e diminuída no mesmo período porque houve uma prática
republicana, mais democrática e dialogante. As pessoas tinham que
decidir se o recurso ia para tal ou tal investimento, fazendo com que
elas aprendessem a viver em democracia e ao mesmo tempo fiscalizassem a
realização do orçamento. O OP era pedagógico em todos os sentidos.
Realismo político
Quando o PT chegou ao governo federal, o
OP foi praticamente desativado. No Brasil inteiro, nesses dez anos de
governo, se o OP fosse instituído de Norte a Sul, muitos problemas já
teriam sido minimizados. A chegada do PT ao poder nacional fez surgir
uma hierarquia muito rígida, dá as cartas quem tem acesso direto ao
poder. Antigamente o partido se abria muito aos movimentos sociais e,
atualmente, o próprio Lula admite, é preciso retomar esse diálogo. É
essa estrutura do Estado brasileiro que chamo de absolutista, em que as
pessoas, ao chegarem ao poder, consideram que o poder lhes pertence, e
não ao povo. Gosto de citar um artigo de Norberto Bobbio , intitulado A
praça e o palácio, onde ele argumenta que enquanto as pessoas estão na
praça consideram o palácio corrupto e autoritário, mas quando se vai
para o palácio, pensa-se que a praça é demagógica, irrealista. A
conclusão de Bobbio, entretanto, é que é perfeita, ou seja, sem a praça e
sem o palácio não se consegue exercitar o poder democrático. Isso é o
que me parece ter acontecido com os partidos de esquerda, tanto os
Tucanos quanto os Petistas, no momento em que chegaram ao poder, pois se
curvaram ao realismo político, que supõe manter o poder dos nossos
oligarcas. Ambos os partidos passaram o regime ditatorial inteiro
atacando José Sarney , que era um funcionário dos ditadores muito
diligente, e de repente este homem, em pleno regime democrático, vira o
grande condestável da república, a ponto de o Lula dizer que ele “não
pode ser criticado, porque não é um homem comum”. Ora, em uma república
só existem homens comuns.
IHU On-Line – Passados 25 anos da
promulgação da Constituição, que desafios estão postos à sociedade
brasileira para avançar na nossa cidadania e, particularmente, que
desafios estão postos ao Congresso Nacional?
Roberto Romano – O
primeiro desafio é do pleno respeito à soberania popular. Por enquanto,
não temos essa soberania plenamente acatada pelos operadores do Estado. O
segundo desafio é promover a federação no Brasil, dando efetiva
autonomia, como preconiza a Carta, aos Estados e aos Municípios,
inclusive do ponto de vista fiscal e financeiro. É absolutamente
indecente ter uma federação na qual, a cada período, prefeitos se
dirigem a Brasília para mendigar um pequeno aumento no fundo de
participação dos municípios. Em uma federação todos sabem que os gastos
maiores e mais importantes são feitos pelos municípios. Temos uma
situação injustificável de centralização. O terceiro ponto é a famosa
reforma política, mas que não comece pelo fim e sim pelo princípio, que é
a redemocratização dos partidos políticos. Finalmente, é preciso fazer
uma espécie de reinstauração mínima da fé pública para o Brasil.
Enquanto não estiver afastado o fantasma da reeleição, haverá sempre a
propaganda funcionando, em vez de funcionarem o ato administrativo e o
ato político. É lamentável que o Brasil tenha mergulhado na ditadura do
marketing político. O último ponto é o fim do privilégio da prerrogativa
de foro. Trata-se de uma falta de republicanismo absoluto. Não sei como
o STF, quando se arroga o título de protetor da Constituição, aceita a
existência de cidadãos de duas classes, aqueles que têm privilégio de
foro e os que não têm. Isso significa que não existe república. Esses
são os desafios mais imediatos.
Os outros não derivam da vontade popular e
não dependem dos operadores do Estado. A população está mostrando que
aprendeu a tomar a cidadania nas suas mãos, e me parece que todos os
movimentos que conseguirem apresentar reivindicações podem avançar nas
demandas, inclusive passou para 500 mil o número de assinaturas de
pessoas que podem enviar solicitações ao Congresso. Cabe 50% aos
operadores do Estado e 50% aos cidadãos, que não devem se cobrir sob o
manto da apoliticidade, pois quando se assume que não se tem nada a ver
com a política, permite-se o ato político aos ímprobos, aos autoritários
e àqueles que não têm respeito pela soberania popular.
Fonte: IHU On-Line