A agenda política da blasfêmia no Islã
FAREED , ZAKARIA, THE WASHINGTON POST - O Estado de S.Paulo
11 Janeiro 2015 | 02h 01
Sem estar prevista no Alcorão, punição a quem zomba do profeta é usada politicamente em vários países muçulmanos
Ao cometerem seu massacre, os homens que
assassinaram 12 pessoas em Paris na quarta-feira gritaram "vingamos o
profeta". Seguiram o exemplo de outros terroristas que bombardearam
redações de jornais, esfaquearam um cineasta, mataram escritores e
tradutores, tudo para infligir o que eles acreditam ser as punições
adequadas pelas blasfêmias definidas pelo Corão.
Na verdade, o Alcorão não prescreve nenhuma punição para a blasfêmia.
Como muitos dos aspectos mais violentos e fanáticos do terrorismo
islâmico nos dias atuais, a ideia de que o Islã exige que insultos a
Maomé sejam refutados com violência é uma criação de clérigos que vai
atender a uma agenda política.
Um livro sagrado
preocupou-se profundamente com a blasfêmia: a Bíblia. No Velho
Testamento, a blasfêmia e os blasfemos eram condenados e punidos
severamente. A passagem mais conhecida a respeito está no Levítico,
capítulo 24, versículo 16: "Quem blasfemar contra o nome do Senhor
deverá morrer e toda a comunidade o apedrejará. Seja nativo ou
estrangeiro, quem blasfemar contra o santo nome será punido de morte."
Pelo
contrário, o termo blasfêmia não aparece no Alcorão (e tampouco o
Alcorão, em alguma parte, proíbe a criação de imagens de Maomé, embora
existam comentários e tradições - "hadith" - que alertam contra a
idolatria). A estudiosa islâmica Maulana Wahiduddin Khan assinalou que
"existem mais de 200 versos do Alcorão que revelam que os contemporâneos
dos profetas repetidamente cometiam o mesmo ato, que hoje é chamado
'blasfêmia ou abuso do Profeta', mas em nenhuma parte do Alcorão está
prescrita punição por chibatadas, a morte ou qualquer outro tipo de
punição física".
Em diversas ocasiões Maomé tratou as
pessoas que o ridicularizavam e os seus ensinamentos com compreensão e
ternura. "No Islã, a blasfêmia é um tema de discussão intelectual, mais
que um assunto de punição física", disse a estudiosa.
Punições. Alguém
esqueceu de dizer isso aos terroristas. Mas a crença mórbida e
sangrenta que os jihadistas adotaram - e é também muito comum no mundo
muçulmano, mesmo entre os chamados islâmicos moderados - é a de que a
blasfêmia e a apostasia são crimes gravíssimos contra o Islã e devem ser
punidas duramente. Muitos países de maioria muçulmana possuem leis
contra a blasfêmia e a apostasia - e em alguns lugares elas são
duramente aplicadas.
O Paquistão hoje é um grande exemplo
de campanha selvagem contra a blasfêmia. Desde março de 2014, pelo menos
14 pessoas estavam no corredor da morte no país e 19 cumpriam penas de
prisão perpétua por tais "crimes", de acordo com a Comissão sobre
Liberdade Religiosa Internacional dos Estados Unidos.
O
proprietário do maior grupo de mídia do país foi condenado a 26 anos de
prisão porque um de seus canais divulgou uma canção religiosa sobre a
filha do profeta Maomé enquanto um casamento era representado.
E
o Paquistão não é o único. Bangladesh, Malásia, Egito, Turquia e Sudão
têm usado leis sobre blasfêmia para prender e fustigar pessoas.
Na
Indonésia, país moderado, 120 indivíduos foram detidos por essa razão
desde 2003. A Arábia Saudita proíbe a prática de qualquer religião que
não seja sua própria versão wahabita do Islã.
O caso do
Paquistão é instrutivo porque sua versão radical da lei contra a
blasfêmia é relativamente recente e produto da política.
Mohammad
Zia ul-Haq, ditador nos anos 70 e 89, quis marginalizar a oposição
liberal e democrática e acolheu os fundamentalistas islâmicos, mesmo os
mais radicais.
Ele adotou uma série de leis com o fim de
"islamizar" o Paquistão, incluindo a lei contra a blasfêmia que impunha a
pena de morte ou prisão perpétua para quem insultasse o profeta Maomé.
Quando os governos tentam granjear os favores de fanáticos, no final são os fanáticos que fazem a lei com suas próprias mãos.
Radicalização.
Os jihadistas no Paquistão mataram dezenas de pessoas que acusaram de
blasfêmia, incluindo um corajoso político, Salmaan Taseer, que ousou
qualificar a lei sobre a blasfêmia de "lei negra".
Devemos
combater o terrorismo, mas é preciso também combater a fonte do
problema. Não basta para os líderes muçulmanos condenar as pessoas que
matam quem elas consideram blasfemas se seus próprios governos endossam o
conceito da blasfêmia.
A comissão de liberdade religiosa
dos Estados Unidos e a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas
declararam que as leis de blasfêmia por definição violam os direitos
humanos universais (porque violam a liberdade de expressão). Estão
certos.
Em países de maioria muçulmana ninguém se atreve a alterar essas leis.
Nos
países ocidentais ninguém se opõe aos seus aliados com relação a essa
matéria. Mas a blasfêmia não é um assunto puramente interno, que
interessa apenas àqueles que se preocupam com questões internas dos
países.
Ela tornou-se o fio da navalha entre islamistas
radicais e as sociedades ocidentais - com consequências sangrentas. Ela
não pode mais ser evitada.
Os líderes e intelectuais
muçulmanos de todas as partes devem deixar claro que blasfêmia é algo
que não existe no Alcorão e não deve existir no mundo moderno.
/TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO