quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Para os energúmenos, petistas ou não, que me acusam de ser tucano, segue apenas um dos textos que escrevi, em pleno império dos bicudos, contra os primos do PT. O assunto é velho, e atualíssimo!

São Paulo, sexta, 2 de outubro de 1998


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Padilha e a licença política

O ministro julga ter prerrogativas que o colocariam como ser à parte. Isso tem nome: tirania e despotismo


ROBERTO ROMANO

Na "República", criticando a democracia, Platão adverte contra a licença política, fonte do fracasso daquele regime. Na "pólis" irresponsável, certos "governantes parecem governados, e os governados parecem governantes"; pelas ruas andam "cavalos e burros, acostumados a uma liberdade completa e altiva, chocando-se sempre contra quem vier em sentido contrário, a menos que saia do caminho". Com leve alteração, onde está escrito "burros", notamos espécimes da atualidade brasileira. Nosso trânsito está repleto de asnos no volante. Da desobediência coletiva às leis brota quase um genocídio. A ONU não aceita os dados sobre acidentes ocorridos em nossas estradas ou ruas: ela os considera assassinatos.
Platão expõe o caráter mimético do ser humano, em especial na política. O filósofo René Girard e o etnólogo Leroi-Gourhan indicam o acerto desse item. Por imitação, massas inteiras seguem o modelo de governantes, estrelas de cinema, esportistas, religiosos.
O totalitarismo é gerado nessa ação especular. O exemplo define o rumo da coletividade. Se os dirigentes seguem as leis e a Justiça, boa parte dos liderados fará o mesmo. Caso contrário, a república cai na desgraça.
Somos pobres de vida federativa. As leis aqui são impostas pelo poder central, sem que os Estados, como nos EUA, definam diferenças em campos importantes, como as penas, a educação etc. O fruto dessa uniformidade abstrata, do Oiapoque ao Chuí, é a ineficácia da Justiça, do fisco, do ensino.
Nossos dirigentes nem sequer se dão ao trabalho de fingir respeito às normas civilizadas. Sua atitude cínica opera como paradigma da barbárie. No Brasil, certo governador pode colocar o revólver na boca de um adversário, atirar, fugir e ser absolvido pela covardia cúmplice de uma Assembléia Legislativa; um ministro dos Transportes pode estar sentado num carro e o veículo matar um transeunte, sem que seus ocupantes prestem socorro à vítima. Quem recebe a "solidariedade" da classe política é o causador do acidente, não o morto. Essa crônica de frio desrespeito poderia se estender ao infinito. Pensávamos estar cheia a medida do fascismo caboclo, com "autoridades" que se julgam acima da cidadania.
O que é uma "autoridade"? A palavra vem de "autor". Isso, no teatro político, resulta no ator. Os indivíduos produzem o pacto que funda a república, mas não podem todos atuar como garantias do mesmo pacto. Um (ou mais) dentre eles assume o papel de ator político, possuindo autoridade. Esta supõe sempre a vontade do corpo social, porque "nenhum homem é obrigado por um pacto, se não for dele o autor, nem por um pacto feito contra ou ao lado da autoridade que ele concedeu" ("Leviatã"). E Hobbes é acusado de ter uma teoria do Estado em que viver é insuportável. Se compararmos sua doutrina ao Brasil, concluiremos que ela é libertária e democrática.
O sr. Eliseu Padilha estaciona sua picape na calçada, ameaça vidas de contribuintes e afirma que só poderia ser multado se estivesse no local como cidadão. Mas ali estava como "estadista". Ele se julga investido de prerrogativas que o colocariam como ser à parte. Isso tem nome: tirania e despotismo.
Sua carta ("Painel do Leitor" de ontem) piora as coisas. Diz que um membro da Brigada Militar "abriu caminho entre a multidão" e conduziu seu veículo "até o local em que, no entender do policial, deveria estacionar e permanecer", exatamente -afirma- como em municípios e Estados a que ele comparece como ministro de Estado, oficialmente. O "local" era a calçada.
Escudou-se ele no art. 89 do Código Brasileiro de Trânsito. Dentre os itens falhos do texto, recomenda-se revisão desse artigo pelos deputados sérios (eles existem). Sua leitura foi ampla em demasia. Um código feito para que a nação respeite a vida não pode tolerar privilégios para mandatários. Calçadas são para pedestres, não para particulares ou autoridades estacionarem. Do contrário, ele ensina que, para certos indivíduos (ainda não coroados reis!), são lícitos atos proibidos aos demais.
Recordemos Robespierre, no rascunho da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (24/4/1793): "As funções públicas não podem ser consideradas como sinais de superioridade nem como recompensa, mas como deveres públicos. Os delitos dos mandatários devem ser severa e agilmente punidos. Ninguém possui o direito de ser mais "inviolável' do que outros cidadãos. O povo tem o direito de conhecer todos os atos dos seus mandatários".
Os jacobinos perderam o governo, mas suas lições foram incorporadas à vida política, fazendo da França uma democracia séria. Não tivemos democratas entre nós e nos submetemos à abjeção de ser vistos como cidadãos de segunda classe. Mudemos isso nestas eleições, mandando aquelas "autoridades" para a vida comum. Em suas casas, tais pessoas poderão fazer o que lhes convém. No espaço democrático, só pode ser aceito quem é igual. O resto é licença, que só conduz ao picadeiro político chamado Brasil.
P.S.: Ministro Ilmar Galvão, os brasileiros esperam a nova lista do ministério de Fernando Henrique Cardoso. Caso seu nome não apareça nela, o senhor merece desculpas dos eleitores. Em situação oposta, aguardamos suas escusas. Estabilidade sem fé pública é ilusão e propaganda. Nada mais.

Roberto Romano, 52, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).