Fanatismo religioso
Estamos assistindo a uma escalada mundial de radicalização política e
social que tem como fundamento o radicalismo religioso. O atual episódio
na França-que hoje se noticia a morte dos irmãos terroristas, além de
reféns; atentado motivado por publicação satírica de uma revista
francesa ridicularizando o profeta Maomé; se soma a episódios recentes
da morte de mais de 120 estudantes no Afeganistão; do atentado no
Canadá, no quase incontrolado avanço do "Estado Islâmico" com seu
espetáculo trágico de decapitação de "infiéis".
Até que ponto, a religião pode ser usada para fundamentar ações desse
nível, ou mesmo, como ocorre no Brasil, com a atuação da chamada
"bancada evangélica", barrar avanços sociais e comportamentais- projeto
de "cura gay"; reações contra os casamentos ou uniões homofóbicas, por
exemplo? O direito à liberdade religiosa é imprescindível a um Estado
Democrático de Direito. Ocorre que, dentro das religiões, encontram-se
aqueles tidos como "radicais", os quais não acompanham a evolução da
sociedade e, por conseguinte, da queda de dogmas ou barreiras religiosas
ou comportamentais e, assim, agem com violência extrema, tentando
barrar a marcha natural da sociedade.
O Brasil- e a maioria dos países europeus e até os Estados Unidos- é um
"Estado laico". Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia Política
na Universidade de Campinas – UNICAMP, explica que o “termo “laico” tem
origem na palavra "laos", que significa o povo, o leigo, quem não tinha
condições de ser autônomo”. E arremata: “laicismo significa exatamente o
sinônimo de democracia”. Em outras palavras, Estado laico é aquele que
não possui religião oficial. Dos países que adotam religião oficial, os
mais notáveis são os países do Oriente médio, que adotam o islamismo
como religião oficial, entre eles: Irã, Iraque, Afeganistão e Paquistão.
Curiosamente, na Síria, não há religião oficial, mas exige-se que o
chefe de Estado seja seguidor do Islã. Na Argentina, a Igreja Católica
recebe amparo e subvenção do Estado, no entanto, o Catolicismo não é
adotado como religião oficial. A primeira Constituição brasileira, a de
1824, trazia em seu artigo 5º a seguinte previsão: “A Religião Catholica
Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as
outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular
em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”.
Felizmente, essa fase foi ultrapassada e a CF/88 dispõe no artigo 5º,
inciso VI, ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Ser
religioso ou mesmo ser ateu ou agnóstico, deve ser encarado como posição
livre e pessoal, não cabendo qualquer ingerência do Estado. A sociedade
brasileira e principalmente, nossos políticos devem aceitar essa
realidade.
problemas mais cruciais a resolver- criminalidade assustadora; violência
contra a mulher, crianças e adolescentes, corrupção endêmica- do que
"legislar" sobre crença ou comportamento pessoal. Isso quer dizer que,
até mesmo pela liberdade de crença, cada um pode crer no que bem
entender, ou não crer em nada, apenas não se pode nem se deve impor isso
à sociedade através da edição de “leis" ou de tentativas de direcionar a
vida social e privada de cada um.
O Estado, enquanto democrático, estabelece o diálogo e a liberdade como
regra geral, e a lei como meio de manter a sociedade dentro de
parâmetros aceitáveis de convivência social; ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º,
inciso II, da Constituição Federal). Rompida essa barreira- legal e
social, por imposição política ou religiosa, o resultado é o que estamos
assistindo no mundo todo- violência e fim da sociabilidade humana. É
oportuno lembrar que, a lei elaborada pelo legislador não deve vir
carregada com crenças dogmáticas, cegas, que se abstêm de dialogar com
outros setores da sociedade e acaba por não atender aos anseios sociais.
A convivência pacífica- social e religiosa, o respeito à diversidade de
crenças ou de opiniões- deve ser uma preocupação de todos,
principalmente daqueles que tem o poder de ditar leis e normas, sob pena
de, queiramos ou não, nos vermos na situação quase caótica de
intolerância religiosa vigente, inclusive nos mais civilizados países. O
Brasil não pode se imaginar imune de passar por situações semelhantes,
pois o mundo hoje não tem mais fronteiras- geográficas, políticas,
sociais ou ideológicas. Hoje, somos a "aldeia global" de Mac Luhan (da
década de 60), somente, que "informatizados".
* AUREMÁCIO CARVALHO é advogado
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