segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Diário de Cuiabá


   Segunda feira, 19 de janeiro de 2015 Edição nº 14105 18/01/2015  





AUREMÁCIO CARVALHOAnterior | Índice | Próxima

Fanatismo religioso

Estamos assistindo a uma escalada mundial de radicalização política e social que tem como fundamento o radicalismo religioso. O atual episódio na França-que hoje se noticia a morte dos irmãos terroristas, além de reféns; atentado motivado por publicação satírica de uma revista francesa ridicularizando o profeta Maomé; se soma a episódios recentes da morte de mais de 120 estudantes no Afeganistão; do atentado no Canadá, no quase incontrolado avanço do "Estado Islâmico" com seu espetáculo trágico de decapitação de "infiéis".

Até que ponto, a religião pode ser usada para fundamentar ações desse nível, ou mesmo, como ocorre no Brasil, com a atuação da chamada "bancada evangélica", barrar avanços sociais e comportamentais- projeto de "cura gay"; reações contra os casamentos ou uniões homofóbicas, por exemplo? O direito à liberdade religiosa é imprescindível a um Estado Democrático de Direito. Ocorre que, dentro das religiões, encontram-se aqueles tidos como "radicais", os quais não acompanham a evolução da sociedade e, por conseguinte, da queda de dogmas ou barreiras religiosas ou comportamentais e, assim, agem com violência extrema, tentando barrar a marcha natural da sociedade.

O Brasil- e a maioria dos países europeus e até os Estados Unidos- é um "Estado laico". Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de Campinas – UNICAMP, explica que o “termo “laico” tem origem na palavra "laos", que significa o povo, o leigo, quem não tinha condições de ser autônomo”. E arremata: “laicismo significa exatamente o sinônimo de democracia”. Em outras palavras, Estado laico é aquele que não possui religião oficial. Dos países que adotam religião oficial, os mais notáveis são os países do Oriente médio, que adotam o islamismo como religião oficial, entre eles: Irã, Iraque, Afeganistão e Paquistão.

Curiosamente, na Síria, não há religião oficial, mas exige-se que o chefe de Estado seja seguidor do Islã. Na Argentina, a Igreja Católica recebe amparo e subvenção do Estado, no entanto, o Catolicismo não é adotado como religião oficial. A primeira Constituição brasileira, a de 1824, trazia em seu artigo 5º a seguinte previsão: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”.

Felizmente, essa fase foi ultrapassada e a CF/88 dispõe no artigo 5º, inciso VI, ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Ser religioso ou mesmo ser ateu ou agnóstico, deve ser encarado como posição livre e pessoal, não cabendo qualquer ingerência do Estado. A sociedade brasileira e principalmente, nossos políticos devem aceitar essa realidade.

problemas mais cruciais a resolver- criminalidade assustadora; violência contra a mulher, crianças e adolescentes, corrupção endêmica- do que "legislar" sobre crença ou comportamento pessoal. Isso quer dizer que, até mesmo pela liberdade de crença, cada um pode crer no que bem entender, ou não crer em nada, apenas não se pode nem se deve impor isso à sociedade através da edição de “leis" ou de tentativas de direcionar a vida social e privada de cada um.

O Estado, enquanto democrático, estabelece o diálogo e a liberdade como regra geral, e a lei como meio de manter a sociedade dentro de parâmetros aceitáveis de convivência social; ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal). Rompida essa barreira- legal e social, por imposição política ou religiosa, o resultado é o que estamos assistindo no mundo todo- violência e fim da sociabilidade humana. É oportuno lembrar que, a lei elaborada pelo legislador não deve vir carregada com crenças dogmáticas, cegas, que se abstêm de dialogar com outros setores da sociedade e acaba por não atender aos anseios sociais.

A convivência pacífica- social e religiosa, o respeito à diversidade de crenças ou de opiniões- deve ser uma preocupação de todos, principalmente daqueles que tem o poder de ditar leis e normas, sob pena de, queiramos ou não, nos vermos na situação quase caótica de intolerância religiosa vigente, inclusive nos mais civilizados países. O Brasil não pode se imaginar imune de passar por situações semelhantes, pois o mundo hoje não tem mais fronteiras- geográficas, políticas, sociais ou ideológicas. Hoje, somos a "aldeia global" de Mac Luhan (da década de 60), somente, que "informatizados".



* AUREMÁCIO CARVALHO é advogado