Em meio à alta temperatura do debate político no Brasil, episódios
envolvendo a hostilização de figuras públicas vêm se tornando cada vez
mais constantes.
No último fim de semana, o ex-ministro da
Fazenda, Guido Mantega, foi alvo de xingamentos enquanto jantava em um
restaurante em um bairro de classe média alta de São Paulo. No ano
passado, Mantega já havia sofrido ataque semelhante quando acompanhava
sua esposa, que se tratava de um câncer, a um hospital da capital
paulista.
Recentemente, outro ex-ministro do PT, Alexandre
Padilha, que ficou à frente da pasta da Saúde entre 2011 e 2014, também
foi hostilizado em um restaurante de São Paulo.
No ano passado, durante a abertura da Copa do Mundo, a presidente Dilma Rousseff foi alvo de vaias e xingamentos.
Mas os ataques não se limitam a personalidades ligadas ao governo ─ e, portanto, mais "à esquerda".
Figuras
como os deputados Marco Feliciano (PSC-SP) e Jair Bolsonaro (PP-RJ)
também foram alvos de escárnio e constrangimento público.
A BBC Brasil ouviu leitores,
cientistas políticos e sociólogos para responder à seguinte questão: "A
hostilização de uma pessoa pública fora do exercício de sua função é
certo ou errado?"
Por meio das redes sociais, a imensa maioria dos
leitores se manifestou a favor da liberdade de se manifestar contra
representantes da cena política em qualquer local, mesmo que na
intimidade de sua vida privada.
"Exigir dessas pessoas faz parte
dos direitos de cada cidadão brasileiro, se eles não gostam que por
favor saiam do lugar que estão!", disse o leitor Thiago Bacana.
"Acho
válido, afinal vivemos em uma democracia, temos direito à liberdade de
expressão, e eles, como nossos representantes, têm o dever de nos ouvir.
Se a pessoa vota em determinado político tem o direito de fiscalizar e
cobrar", acrescentou o leitor José Lopes.
Já o leitor Vinicius Severo pensa diferente.
"Hostilizar
é falta de educação, independente do personagem que é hostilizado. É
feio. Quer protestar, reclama, com respeito. Simples", escreveu.
Para cientistas políticos e sociólogos ouvidos pela reportagem da BBC
Brasil, os ataques ─ sobretudo quando ocorridos na intimidade das
personalidades da vida política do país ─ "minam a democracia".
Confira as opiniões dos especialistas:
Ricardo Ismael (cientista político/PUC-Rio)
"É preciso separar o público e o
privado. Qualquer crítica a uma figura política tem de ser restrita à
atuação dela no cargo que ela ocupou. Não existe razão que justifique
constrangimento ou ofensa. Evidentemente que o cidadão brasileiro tem o
direito de se manifestar politicamente contra governos ou partidos. Mas é
preciso fazê-lo dentro do jogo democrático. Quando essa manifestação
passa a tentar constranger o político dentro de sua vida privada,
ultrapassa-se um limite perigoso".
Antonio Carlos Mazzeo (cientista político/USP)
"Pode-se divergir de uma pessoa
sem hostilizá-la. Tal postura reflete a ascensão de um tipo de
sectarismo que se assemelha muito à dos grupos da Alemanha pré-nazista,
que saíam às ruas agredindo pessoas com pensamentos políticos
diferentes. A hostilização não é só inaceitável; ela tem de ser coibida.
Isso não significa negar o direito à livre manifestação, que pode – e
deve – continuar sendo feita, nas urnas, principalmente. No plano
pessoal, é uma violência".
Paulo Baía (cientista político/UFRJ)
"É
um ato de intolerância que não é compatível com a sociedade
democrática. Vivemos o que chamo de crise do individualismo fóbico. O
nível de intolerância atingiu patamares nunca antes vistos na história
desse país. Não se respeita o outro. A livre manifestação é sempre
bem-vinda, mas esse tipo de agressão, especialmente no espaço privado,
foge do padrão civilizatório".
Roberto Romano (professor de Filosofia e Ética da Unicamp)
A hostilização não é democrática, não é republicana e não é civilizada
"A hostilização não é democrática, não é
republicana e não é civilizada. Tal atitude é muito própria de pessoas
que não têm vivência na esfera pública. Pior: esse 'carisma incivil'
ganhou corpo pela prática irresponsável e calhorda das redes sociais. Em
nome de uma ideologia, vilipendia-se a existência e a dignidade do
outro. Agora, não há dúvida de que Mantega e Padilha estão pagando a
conta do que seus colegas criaram. Os partidos políticos ajudaram a
criar esse tipo de niilismo e de falta de respeito aos direitos
fundamentais. As pessoas precisam entender que não é dizendo uma série
de desaforos que o processo de Justiça vai se instaurar. Os já
condenados tampouco perdem seus direitos de cidadãos e merecem ser
igualmente respeitados. Essa ideia de que política só se faz
determinando inimigos mina a democracia".
Luiz Felipe Pondé (filósofo e professor da PUC e da FAAP)
"É
injustificável sob qualquer circunstância do ponto de vista moral. Mas
pode ser justificada tecnicamente do ponto de vista político. Só que a
moral deve vir antes da política. Como na democracia há uma tendência de
se dissolver os vínculos morais, ainda mais se levando em conta uma
sociedade como a nossa, pautada pelo anonimato e a impessoalidade, há
uma tendência se tornar secundária qualquer abordagem moral e vir ao
front da cena sempre as abordagens políticas. Exemplo: apesar de eu
pessoalmente achar o governo da Dilma uma catástrofe em todos os
sentidos, considero um absurdo ficar xingando uma pessoa desse jeito em
público. É preciso manter a valorização das instituições, senão caímos
na barbárie facilmente. É aquela velha história: se alguém mata o seu
irmão, você tem o direito de fazer Justiça pelas próprias mãos? Não. Só
quem pode julgar uma pessoa é o Estado, ao qual cabe o monopólio
legítimo da violência. Se um sujeito é corrupto, deve ser preso,
julgado, obrigado a devolver o dinheiro, as pessoas podem xingá-lo nas
redes sociais, os jornalistas podem escrever artigos críticos, mas não
concordo com esse tipo de linchamento no campo privado. E isso vale para
os dois lados do espectro político-ideológico. Acho, por exemplo, as
ideias do Bolsonaro infelizes, mas nem por isso acho que ele deve ser
humilhado ou ser objeto de linchamento público como o Mantega ou
qualquer outro.