Roberto Romano: comédia, tragédia…
"Se o país é dividido entre "nós" e "eles", com certeza a autoridade constituída beira a ruína"
Obra "Morte di Cesare" (1798), de Vincenzo Camuccini, retrata morte de César
Foto:
Wikimedia Commons / Reprodução
* Roberto Romano é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp. Escreve quinzenalmente.
O leitor se enfada ao ler e ouvir, como ladainha, o dito marxista
repetido até a náusea na mídia nacional. Falo do chavão: na primeira vez
um evento é tragédia, depois comédia. O enunciado não é de Marx. O dito
encontra-se nas hegelianas Lições sobre a Filosofia da História,
onde se analisa a crise política do Império Romano. Ali, Hegel nota que
a entrega do poder a César atenuou a guerra civil em Roma mas levou o
império a conflitos bélicos externos. "César abriu um novo teatro; ele
criou a cena que deveria tornar-se o centro da história universal". O
ditador corrupto sapou o regime republicano pois "o que restava da
república era desprovido de força". Imaginando o cesarismo efêmero,
Brutus e Cassius usaram punhais. César morto, pensavam, voltaria a
república. Presas de espanto ilusório, eles quiseram deter a história,
mas "uma revolução política, em geral, é sancionada pela opinião dos
homens quando ela se renova". Assim, diz Hegel, "Napoleão caiu duas
vezes e os Bourbons foram expulsos duas vezes. A repetição realiza e
confirma o que, no início, parecia contingente". Hegel não fala em
tragédia ou comédia, mas recorda Shakespeare e sua peça sobre César. E
ironiza a tolice conservadora posterior à Revolução Francesa. Marx
também bebeu das águas hegelianas, nas Lições sobre a Estética. Ali sim, Hegel fala da tragédia divina e, depois, da sátira.
As frases de Marx, repetidas pelos pedantes de hoje, surgem no 18 Brumário de Luis Bonaparte,
livro ignorado pelos preguiçosos universitários ou jornalistas. Como
bom acadêmico alemão, o jovem Karl estudou os clássicos. A sua tese de
doutorado trata com acuidade e rigor dos mestres éticos ocidentais,
Epicuro e Demócrito. Mesmo hoje aquele trabalho serve como fonte (não
raro silenciada pelos pesquisadores) no estudo da filosofia antiga e
moderna. A tragédia ética é o centro do 18 Brumário.
Marx já aproveitara a ideia na Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito.
Cito: "A última fase de uma figura histórica mundial é sua comédia. Os
deuses gregos atingidos mortalmente na tragédia, como no Prometeu Acorrentado
(Ésquilo), precisariam morrer de novo, comicamente, nos diálogos de
Luciano. Por que a história segue tal via? Assim a Humanidade separa-se
feliz e alegremente de seu passado". Mesmo quem recusa o pensamento
marxista percebe que tais pensamentos fazem refletir, ao contrário da
cantilena sobre "tragédia" e "comédia". As palavras são as mesmas, o
contexto exige estudo, disciplina, inteligência.
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