sexta-feira, 15 de maio de 2015

Sobre o Fanatismo. Palestra efetuada no CIEE, em São Paulo.



 Sobre o Fanatismo.
Roberto Romano

O fanatismo é zelo cego e apaixonado, nascido de crenças endurecidas e que faz cometer atos ridículos, injustos e cruéis, não apenas sem vergonha ou remorso, mas com uma espécie de alegria e consolo. O fanatismo é a recusa de qualquer convívio social livre e democrático.

Imaginemos um enorme templo onde a cada metro exista um altar a certo deus inimigo de outros, postos em altares próximos. A guerra entre os vários seguidores não se limita ao interior do templo mas segue fora dele, prejudica a todos os alheios aos cultos ali praticados. A técnica usada pelos adeptos de todos os deuses é o paradoxo. Paradoxo é termo grego que significa ir contra o pensamento comum. Absurdos são usados pelos  fanáticos para maravilhar ou trazer medo aos  que não partilham suas crenças. As falas paradoxais são acompanhadas de gestos paradoxais, prodígios, promessas, milagres. O medo, sobretudo o de perder a vida e o sentido da vida. Os fanáticos costumam aterrorizar os ainda não atraídos por seus dogmas. Do inferno às ameaças de morte, na receita do fanatismo o medo é o fermento que faz crescer a massa.

O medo divide os ameaçados física ou moralmente pelo fanático. Este não aceita a condição de minoria e tenta desorientar a maioria, gera guerra e secessão. Um meio para tal fim é a calúnia, a injúria,  mentiras sobre os que não vivem na seita e, mesmo, dos que nela vivem mas não aprovam totalmente seus métodos e certezas. A luta do fanático para impor dogmas começa na perseguição dos que, em vez de acreditar na sua palavra, procuram a verdade fora dos círculos por ele dominados. O medo faz o fanático indicar vítimas propiciatórias, as quais devem ser massacradas para que seu partido seja aceito ou aplacado. Não existe fanatismo sem execuções físicas ou morais dos alheios ou contrários à fé sectária. Quanto mais justa e prudente uma pessoa, mais será ela candidata ao ataque dos fanáticos. As crianças e os velhos são também destinados ao sacrifício, porque as primeiras estão longe de serem militantes ágeis do fanatismo, e os segundos deixaram a idade em que podem ser úteis à causa assassina.

O fanatismo surge em todas as sociedades, classes, situações humanas. Nas igrejas e partidos políticos encontram-se fanáticos e pessoas prudentes. Numa crise social, política ou econômica, no entanto, os fanáticos ganham relêvo, aproveitam o medo da sociedade para aprofundar o embate de todos contra todos.  O fanatismo se instala no mundo islâmico ou cristão, católico ou protestante, ateu ou religioso. O fanático adere a certezas que ele jamais critica e tenta impor aos demais. O fanático nunca duvida. Sua fala e  atos sempre são afirmativos, sua escrita não conhece o sinal de interrogação, mas apenas o de exclamação. Seu discurso não busca persuadir pois sempre quer mandar sem réplicas. O fanático é surdo para as falas que não repetem suas doutrinas. Ele não ouve razões alheias que, no seu entender, são crime a ser punido com castigos físicos, morais, ou a morte. Elias Canetti, em Massa e Poder, fala dos poderosos que acumulam corpos mortos, para que o seu apenas sobreviva. Ela também recorda os que  acumulam riquezas, o famoso que acumula aplausos ao seu nome. Ele não fala, nem seria preciso, do fanático que acumula espinhas curvadas diante de sua prática aterrorizante. O fanático também acumula corpos de crianças, mulheres, jovens e idosos imolados à sua crença. A sua lógica é a seguinte: existem lados na sociedade. E nestes lados vivem o bem e o mal. O bem, por definição, está no acampamento do fanático. O mal, claro, reside nos setores que não o reconhecem.

O fanático é hipócrita, pois usa a máscara da religião, da democracia, do bem comum social, da justiça, para minar os mesmos valores em nome de seus desejos. O fanático ignora toda amizade efetiva. Para ele,  quem não aceita seus ultimatos são inimigos. Amigos, e sempre temporários, só os que pertencem no momento ao seu círculo sectário. O fanático não valoriza partidos políticos ou religiosos, mas vive e lavora em regime de facção, prestes a dar golpes nos coletivos que ele considera inimigos. O fanático se revela corrupto e não é responsável: se  calunia, rouba, mata, tudo é feito  em nome da Causa que, por definição jamais pode ser criticada pelos outros mortais. Se estes últimos falam em nome próprio, o fanático sempre se julga a voz de Deus, da História, da Ideologia, da Raça. E, como pressuposto, sua divindade, sua história, sua raça e ideologia são “superiores”.  Os seus decretos de vida e morte são inapeláveis. O fanático não aceita o Estado e a sociedade porque, na sua mente, só ele encarna o verdadeiro Estado e a verdadeira sociedade : ambos definidos pela sua crença. O fanático, como o terrorista, não reconhece autonomia e independência dos poderes porque ele se julga legislador, executor, julgador e carrasco. Sua lei não pode ser pensada ou discutida. O fanático é o executivo sem amarra externa, legislativa ou judicial. O próprio fanático é molécula das ditaduras mas, ao contrário das ditaduras comuns, a dele precisa durar eternamente.

O fanático não reconhece cidadanias, pois deseja mansos rebanhos comandados por ele. O fanatismo não tem base na ordem natural ou humana. Ele é uma distorção subjetiva, ocorrida na mente e na vontade. Como não pode se impor pelos meios da fala e do exemplo, ele só consegue mandar com violência física ou moral o  que aprofunda o medo da morte cívica ou biológica. O fanático não reconhece autoridade alheias : religiosa, intelectual, política. Ele é o princípio e o fim de toda autoridade. O fanatismo não encontra lugar no prudente pensamento e mora nas paixões do orgulho, do poder, no que os gregos chamam pleonexia (pleon echein):  ele não aceita nem reconhece limites. O fanatismo é satânico. Lemos no Paraíso Perdido que Lucifer é o pai da arrogância e do orgulho, marcas do pandemônio gerado pelo fanatismo. Só quem pertence à seita deve mandar, enriquecer, ser honrado.

O fanático ignora as virtudes coletivas da simpatia, despreza o termo e a realidade da misericórdia e do respeito. Se não encontra espinhas dóceis, além das ameaças  usa o insulto, os palavrões contra quem pensa diferente dele. Seu Deus cruel fala uma só lingua e decreta o certo e o errado na  integralidade, nada resta para a opção das pessoas. Quem não segue seus caminhos está condenado à morte, sem compaixão. Assim, é certo para o fanático destruir os inimigos da sua fé. Ele não aceita a igualdade jurídica nem a diferença de idéias. O fruto do fanatismo não é um povo pacífico, amigo e fraterno, mas a divisão, a perseguição mútua, o sacrifício dos dissidentes. O fruto do fanatismo é a guerra civil. Para o sectário faccioso, governantes que não se dobram aos seus ditames são tiranos e devem ser depostos ou mortos. O fanático não aceita eleições em que ele perde, só as que vence, sempre está à espreita de um golpe de Estado se os eleitores não o escolhem. O fanático ignora a coexistência dos opostos, mas louva a perseguição à diferença. O fanático pode se alojar na esquerda, direita, centro da política. Ele endurece toda prática e discurso, pois odeia o debate, o diálogo, a tolerância.

O que é o fanatismo? É o efeito de uma consciência falsa que abusa das coisas mais nobres e sujeita a política, a religião, as artes, as ciências aos caprichos de sua imaginação febril, às suas paixões do orgulho, ambição, desejo de mando.

Quais são os componentes do fanatismo?

1)   as certezas aceitas sem exame. Para afirmar uma idéia, é preciso estudar a sua história, a sua consistência lógica, a sua adequação à realidade. Mas as noções fanáticas são paradoxais, e não raro vão contra a racionalidade humana, o estudo, a comprovação factual. Elas têm mais a forma de imaginação delirante do que pensamento.
2)   Dogmas obscuros e delirantes geram  seitas que se guerreiam e lutam para que o coletivo inteiro se torne inimigo dos seus inimigos. Batalhas sectárias se transformam em guerras civis.
3)   Uma fonte do fanatismo é o moralismo. O moralista, ao contrário da pessoa moral, limpa o exterior mas guarda a sujeira como num túmulo. O moralista tem o odor da morte em tudo o que faz e diz. Ele, neste sentido, é fundamentalista:  a letra vale mais do que o espírito.
4)   Outra fonte do fanatismo é a incomprensão dos deveres. O ser humano vive num complexo de ordens e leis, dentre as quais ele deve optar se quiser o respeito dos semelhantes. O fanático não tem a experiência da vacilação e da escolha, aceita normas e as impõem sem refletir. Daí, suas certezas serem duras e, ao mesmo tempo, tolas.
5)    O fanático usa a intolerância já existente nas religiões e partidos e a transforma, de relativa em absoluta.
6)   Uma fonte do seu recrutamento é o fato seguinte : as seitas fanáticas são perseguidas. Como são perseguidas, só entendem a lingua da perseguição, ignoram o diálogo.
7)   Porque muito sofrem, os fanáticos adquirem impassibilidade: eles não sofrem com a dor alheia. Aprendem a ser implacáveis.
8)   O fanatismo oferece segurança, ao contrário da liberdade que só tem desafios a proporcionar.
9)   “O fanático”diz a Enciclopédia de Diderot, “faz um mal maior à humanidade do que o impio. Estes últimos pretendem se livrar de todo jugo. Já o fanático quer ampliar seus ferros para toda a terra”.

Todas essas marcas do fanatismo podem ser lidas na Enciclopédia francêsa comandada por Denis Diderot, pensador das Luzes no século 18. A responsabilidade do verbete é de Deleyre, um colaborador de Diderot. Algo da minha lavra foi posto nas frases acima.


O Brasil vive uma crise inédita de sociedade e de Estado. Tal crise inclui uma urbanização intensa, pois ainda em 1960 nosso país pouco ia além da franja do Oceano Atlântico. Logo após a inauguração de Brasília tivemos um enorme crescimento de cidades no interior. Todas elas são carentes de políticas públicas (água, esgôto, segurança, saúde, escola, cultura, etc). Com a centralização excessiva das mesmas políticas públicas no Executivo federal, os impostos saem das cidades mas só retornam pelo apadrinhamento de lobbies e políticos. Muitos deles cobram uma taxa dos municípios tendo em vista sua reeleição. As massas urbanas, carentes de quase tudo, têm no entanto acesso às informações: a imprensa cresceu bastante, o rádio e a TV trazem contínuas notícias, a internet pode ser acessada em qualquer lugar afastado.

No mesmo passo em que as massas urbanas se informam e amadurecem, a máquina do Estado brasileiro é anacrônica, centralista,  favorece a corrupção. Não existe elo federativo de fato em nosso país, mas um império do poder central, que retira dos Estados e munícipios toda autonomia efetiva. A burocracia gigantesca favorece o desperdício de recursos, o apadrinhamento de grupos econômicos e políticos. O poder de Estado brasileiro existe para garantir privilégios aos que integram os três poderes. Se fossem cortados todos os privilégios dos que operam o poder, alguns trilhões sobrariam para as políticas públicas. Cito apenas os carros, motoristas, gasolina, pedágios e outros enfeitos usados por vereadores, prefeitos, secretários, deputados estaduais, federais, senadores, ministros, magistrados, etc. Outro abuso encontra-se nas contas de publicidade dos governos, do município ao Palácio do Planalto. Tais gastos, supostamente para informar a opinião pública em assuntos relevantes para a saúde, educação, segurança, etc. na verdade constituem meios de propaganda e intimidação da cidadania, paradoxo e medo, portanto. Cito por último (a lista seria interminável), os “cargos em confiança” em número inédito e desconhecido no mundo. Eles representam na verdade cabos eleitorais a serviço de políticos e partidos, fontes de corrupção perene. Todos esses abusos são aceitos, apoiados, louvados pelos fanáticos, pois servem à Causa, ajudam a conseguir o alvo final que é o de impor o poder ao todo da sociedade.

Nossos partidos políticos são máquinas anacrônicas e pouco democráticas. Elas são dominadas por grupos de velhos políticos que nelas mandam com mão férrea. Alguns estão nos postos diretivos há décadas e décadas. Temos aí verdadeiros proprietários dos partidos pois controlam as alianças, os apoios ou oposições aos governos, as candidaturas, as propagandas, e sobretudo os cofres. Nas agremiações não existem corretivos aos desmandos dos dirigentes, não ocorrem eleições primárias, a fiscalização pelos filiados é quimera. A Justiça eleitoral, por sua vez, emperra o processo das eleições com mandamentos pouco democráticos e mostra ineficiência na fiscalização das contas partidárias. Fala-se muito em financiamento público de campanha. Mas sem democratizar os partidos, sem exigir que as direções sejam mudadas a cada dois anos pelo menos, a ditadura dos grupos poderosos será mantida e ampliada pela suposta reforma política e seu tipo de financiamento. Agora mesmo, num arroubo de descaso pela crise econômica que mostra sinais terríveis, o fundo partidário foi aumentado de maneira inusitada. Como os atuais dirigentes são donos dos cofres, imaginemos o que pode ocorrer se o financiamento for totalmente garantido pelos contribuintes, em termos de corrupção, arbítrio, abuso do poder pelos donos dos partidos. Os oligarcas partidários mandam nas candidaturas, nas alianças, nos cofres. Mandam também na propaganda eleitoral “gratuita” que leva bilhões da vida econômica, paga marqueteiros aos milhões, mente de modo desavergonhado e intimida eleitores. O medo surge novamente, nas operações de marketing político. Basta ver o que ocorreu na última campanha presidencial quando mentiras e medo partilharam as imagens da TV, as ondas do rádio, as páginas de jornais dependentes dos recursos financeiros governamentais.  

A máquina do Estado emperrada, os partidos autocráticos dão as costas à cidadania, sobretudo à juventude. Esta foge das agremiações e não recebe nelas acolhida. Se entram para os partidos é para cumprir tarefas, obedecer aos donos do organismo à espera de uma possível candidatura a cargo público. Os jovens, nos partidos, não aprendem a liderar, mas a obedecer servilmente. Daí a nossa carência de novos estadistas. Peço aos senhores que enumerem mentalmente o número de nossos líderes nacionais. Com certeza, a conta não supera os dedos das mãos.

Estado com imensa burocracia emperrada, partidos ossificados, juventude expulsa ou fugindo da política.

Agora, temos uma terrível novidade entre nós. Partidos que chegaram ao poder nacional decretam a divisão do país entre “eles”e “nós”. Ou seja, só merece respeito quem segue os nossos ditames. Os “outros”, por definição, pertencem às hostes inimigas. Esta é a palavra que deslancha o fanatismo, que estimula a secessão, que provoca a guerra civil, que justifica os golpes de Estado.

Termino. O que disse é o bastante para evocar os labirintos de nossa vida pública. O perigo maior é o crescimento da lógica fanática. O jurista alemão Carl Schmitt, idealizador do confronto político entre “amigo”e “inimigo” e justificador de Hitler, está em voga em muitos ambientes nacionais. Ele já esteve na moda na era Vargas quando Francisco Campos, leitor de Schmitt, idealizou a Polaca, constituição fascista que instaurou um Estado que ignorou todos os direitos da cidadania, sobretudo o direito à divergência em relação ao governo.

Na ordem democrática não existe a divisão entre “nós”e “eles”, entre o “nosso lado”e o “deles”. Todos são responsáveis pela vida comum, todos merecem respeito. Em Francogallia, tratado jurídico que ajudou a instaurar o moderno Estado democrático, Francisco Hotmann resume o ponto ao dizer que “é essencial à liberdade que as questões coletivas sejam administradas sob o conselho e autoridade de quem deve suportar seu risco, pois segundo antigo ditado, o relativo a todos deve ser aprovado por todos’”.  Althusius afirma o mesmo : “é justo que o relativo a todos, seja resolvido por todos”(Política). A tese de fundo reside na certeza de que o governante detém o uso do poder, mas a sua fonte é o povo, a quem deve prestar contas. O governo que se deixa levar pela diferenciação entre “nós”e “eles” não passa de uma facção fanática. Lutemos para que o Brasil não seja estraçalhado pelas  seitas, mas seja a terra comum de todos, livres e iguais.