quinta-feira, 7 de maio de 2015

Ricerdo Seitenfus, um artigo a ser lido e pensado.


A decisão sul-americana de intervir militarmente no Haiti
Ricardo Seitenfus[1]
MINUSTAH is the best example of mismatch between needs on the ground and the tools the Security Council uses to address them.
Mark Lyall Grant, Representante do Reino Unido na reunião do CS em 10 de outubro de 2013.

O Grupo do Rio, em total descompasso com a decisão franco-americana, tornada pública em 25 de fevereiro de 2004, em acelerar o processo visando à queda do Presidente Jean-Bertrand Aristide, emite um Comunicado no final do mesmo dia em Brasília, no qual “respaldam as atividades da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Comunidade do Caribe (CARICOM) com vistas à solução pacífica da situação no Haiti; e o oferecimento, pela Organização das Nações Unidas, de assistência humanitária àquele país”. [2]
Ademais, “instam as partes envolvidas a endossar o Plano de Ação Prévio proposto pela CARICOM; condenam energicamente os atos de violência que vêm sendo praticados no Haiti; e manifestam seu apoio ao Presidente constitucionalmente eleito daquele país, Jean-Bertrand Aristide”.[3]
Apesar da oposição latino-americana, na madrugada do dia 29 de fevereiro Aristide é forçado  ao exílio. No dia 4 de março de 2004, após entrevista telefônica do Presidente Luis Inácio Lula da Silva com o Presidente George W. Bush e com o Presidente Jacques Chirac, o porta-voz da Presidência da República do Brasil, André Singer, anuncia que:
O Presidente Chirac evocou, na conversa com o Presidente Lula, a crise do Haiti. O Presidente Chirac disse que na segunda etapa das operações internacionais de paz naquele país, quando será formada uma força multilateral das Nações Unidas, conforme decisão do Conselho de Segurança é fundamental a participação de tropas brasileiras.
Acrescentou que seria de suma importância, também, que o Brasil assumisse o comando dessa força, a ser composta de contingentes canadenses, franceses, norte-americanos e argentinos, além dos brasileiros. O Presidente da França lembrou que essa é, também, a opinião do Secretário-geral da ONU, Kofi Annan.
O Presidente Lula disse que o Brasil fica honrado com essa indicação, e que está à disposição das Nações Unidas, tanto para o envio de tropas quanto para o exercício do comando. Informou, também, ao Presidente Chirac, que está pronto a ser enviado ao Haiti um contingente de 1.100 militares brasileiros especialmente treinados para essas missões.[4]
Em pouco mais de uma semana, o Brasil muda radicalmente de posição levando consigo parte considerável de seus vizinhos. De uma defesa intransigente do princípio da não-intervenção, Brasília decide comandar o braço armado da futura Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). A que se deve a surpreendente e impensável reviravolta?
Diga-se, desde logo, que a decisão foi tomada pelo Palácio do Planalto em detrimento à posição histórica do Itamaraty de não-intervenção nos assuntos internos dos Estados, sobretudo com forças militares, quando se trata de questões estritamente domésticas de natureza política e constitucional.
Apesar de inserir-se em um contexto de colaboração permanente com o sistema das Nações Unidas para a prevenção e solução de litígios, a participação nesta Operação de Paz se reveste de particular característica. 
Com efeito, embora seguindo às regras gerais do Departamento de Operações de Paz das Nações Unidas (DPKO), a MINUSTAH apresenta um forte viés regional. Por um lado, seu Comando militar esteve sempre a cargo de militares brasileiros. Por outro, a grande maioria de seu contingente militar provêem das Forças Armadas latino-americanas. Para ilustrar o fenômeno, notemos que dos 6.589 militares latino-americanos atualmente a serviço das Operações de Paz das Nações Unidas no mundo, nada menos de 4.621 atuam no Haiti. Portanto, de cada 10 militares latino-americanos disponibilizados às Nações Unidas, 7 foram enviados ao Haiti.

Dois grupos de razões impelem os militares brasileiros em direção ao Caribe. As primeiras, de natureza difusa e discursiva, devem pavimentar uma nova inserção internacional da América Latina (a) e as segundas estão voltadas ao passado recente e a aversão suscitada na região, a partir de 2000, pelo Movimento Lavalas de Jean-Bertrand Aristide conforme indicam os debates no Foro de São Paulo (b).
a) A re-inserção da América Latina nas relações internacionais
Oficialmente a decisão de participar sustentou-se tanto na necessidade de reforçar o sistema multilateral vilipendiado quando da invasão do Iraque  quanto na expressão de um desejo em participar mais ativamente nos processos de prevenção e solução de conflitos. Caso a América Latina não fosse capaz de oferecer alternativa a um conflito doméstico de baixa intensidade que afeta dramaticamente a população do mais empobrecido Estado membro da comunidade americana, como poderia ela aspirar a influir nas questões da paz e segurança internacionais?

A participação na MINUSTAH se constitui no primeiro teste real da afirmação de uma nova concepção de segurança coletiva no âmbito da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Entre seus objetivos os seguintes estão contemplados na operação haitiana:
- comungar doutrina e estratégia;
- realizar exercícios militares conjuntos;
- testar, adequar e modernizar equipamentos bélicos;
- unificar posições frente aos desafios de segurança internacionais;
- provar a capacidade de mobilizar tropas
- implementar ações humanitárias
- conviver com culturas distintas

Alcançar tais objetivos constitui premissa para assentar as bases de um sistema coletivo de defesa no subcontinente americano. Este poderia desembocar em uma futura Organização do Atlântico Sul (OTAS), autônoma e independente.

Com uma visão solidária e compartilhada, a participação sul-americana defende a tese  que o drama haitiano possui raízes profundas muito além de seus aspectos securitários. A natureza multifacetada da crise deve desembocar em estratégias que levem em consideração as causas e origens da instabilidade e não unicamente seus resultados e conseqüências. Com sua participação, a América Latina pretende fazer com que as Nações Unidas tornem mais complexas as Operações de Manutenção da Paz.

Visto da América Latina, um dos maiores desafios que marcam as atuais relações internacionais prende-se a ineficácia do sistema de prevenção e solução de conflitos – que permanece sendo uma construção política, à margem do Direito – além de estar sob a guarda e controle dos vencedores da Segunda Guerra Mundial. Esta exigência é tanto mais importante para os Estados do Sul do planeta na medida em que os litígios bélicos que marcaram o mundo no pós-1945 penalizaram essencialmente os países em desenvolvimento, cenário das maiores atrocidades cometidas por razões internas e internacionais.

O marcante contraste entre o mundo bipolar da Guerra Fria e o multipolar do pós-1989, conduz a América Latina em particular e os países do Sul em geral, a preocuparem-se pelos problemas em torno da segurança internacional. Inevitavelmente eles devem estar presentes nos debates da alta política internacional e não somente nas questões envolvendo o desenvolvimento econômico e social ou o meio ambiente. Assim se explicam os esforços sulistas com vistas à reforma do CSNU.
Surge o que pode denominar-se de diplomacia solidária. Ela se define como sendo a concepção e a aplicação de uma ação coletiva internacional, sob os auspícios do Conselho de Segurança das Nações Unidas, feita por terceiros Estados intervenientes num conflito interno ou internacional, desprovidos de motivações decorrentes de seu interesse nacional e movidos unicamente por um dever de consciência.
O desinteresse material ou estratégico constitui sua marca registrada. Para que tal ausência de interesse seja inconteste é necessário igualmente que o Estado-sujeito não tenha tido no passado qualquer relação especial com o Estado-objeto de intervenção.

Quando um Estado – ente desprovido de sentimentos – toma a decisão pela intervenção em outro Estado? Há dois conjuntos de fatores principais: por um lado à suposta existência de interesses nacionais a defender, sejam eles financeiros, militares, estratégicos, políticos, diplomáticos ou de prestígio. Por outro, quando ocorrem catástrofes naturais ou humanitárias e guerras civis ou internacionais. Então, surge uma ativa e influente opinião pública a exigir uma resposta do Estado-sujeito com vistas a colocar um termo ao sofrimento da população civil indefesa.
O que ocorreu no caso da América Latina? Nenhum desses dois grupos de interesse pressionou o Estado-sujeito para agir. Ele o fez por motu proprio, ausente uma pressão da opinião pública e, indefinidos, para dizer o mínimo, os interesses a serem defendidos. Portanto não houve nem ação moral (da opinião pública) nem material (dos interesses) que impelissem o Estado-sujeito a intervir. Neste caso, ele o fez contrariando os fundamentos da teoria realista das relações internacionais.
O chanceler brasileiro, embaixador Celso Amorim, fornece uma valiosa e original contribuição à teoria da diplomacia solidária ao declarar que o Brasil está “profundamente comprometido no Haiti, política e emocionalmente, e isso no longo prazo”. Ao fazê-lo indica que os parâmetros sobre os quais o Brasil tomou a decisão de intervir devem ser compreendidos à luz de critérios outros que os decorrentes da fria razão (ou interesse) de Estado.
Embora não o verbalize publicamente, o Brasil espera que sua ativa e preponderante participação na vertente militar da MINUSTAH tenham como resultado aumentar as credenciais para integrar de maneira permanente o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Muitos dirigentes brasileiros crêem, ingenuamente, que o caminho para Nova Iorque passa necessariamente por Porto Príncipe.
A ação do país pretende sustentar a idéia que os conflitos – mormente os de natureza interna como no caso haitiano – devem ser enfrentados a partir de suas raízes e não somente segundo suas conseqüências. Portanto, paralelamente às questões estritamente securitárias[5], outros se adicionam tais como a necessidade do diálogo político entre facções e partidos e, sobretudo, um plano de desenvolvimento econômico capaz de aliviar o Haiti de seus graves problemas sociais.

A experiência brasileira na MINUSTAH, apesar de não ser a primeira vez que o Brasil participa de uma missão desta natureza, comporta alguns fatores que tornam essa atuação especial e paradigmática:
a) é o maior contingente militar deslocado fora das fronteiras nacionais desde o final da Segunda Guerra Mundial;
b) pela primeira vez a América do Sul tem a maioria da tropa ao longo de uma Missão de Paz da ONU;
c) pela primeira vez o Brasil conserva ao longo de toda a Missão seu comando militar;
d) a proposta brasileira ultrapassa os objetivos de garantir a instauração de condições seguras para o desenvolvimento de um processo que garanta a livre expressão do povo haitiano para a escolha de seus dirigentes.

As condições sócio-econômicas haitianas, agravadas pelas crises políticas que há décadas assolam o país e as reiteradas catástrofes naturais, tornam inconteste o risco iminente e irreparável de vida que correm milhares de seres humanos e que fazem urgente a cooperação internacional imediata. Mesmo ciente de suas próprias necessidades, o Brasil destacou esforços não só na seara militar, mas também, mais amplamente, em outras dimensões, como a social, técnica e cívica, para assistir a população haitiana e para chamar a atenção da Comunidade Internacional para as necessidades do país. Seu caráter inovador evidencia-se pela solidariedade e responsabilidade devidas para com as populações que sofrem em função de conflitos internos, carências de todas as ordens, repressão, falência do Estado, impossibilidade ou ausência de vontade deste de reduzir tais sofrimentos.
A participação brasileira na crise haitiana permite que a prática se coloque frente da retórica. No entanto, há um imberbe discurso fundador para justificar a realização dos anseios brasileiros. O discurso do Presidente Lula é, desde seu início, marcado por uma forte perspectiva humanista, que reconhece a importância e busca sobrepor os valores da solidariedade e da cooperação àqueles da indiferença e omissão perante os excluídos.[6] Essas intenções são desde logo anunciadas como parte de uma política que pretende vê-las em operação, superando as posturas meramente reativas que habitualmente acompanham os discursos do gênero. Em setembro de 2005 Lula declara: “Não aceitamos como fato consumado uma ordem internacional injusta (...). Nossa atuação diplomática é fundada na defesa de Princípios, mas também na busca de resultados. Tem uma dimensão utópica sem deixar de ser pragmática”.
Mais adiante o presidente menciona a idéia da não-indiferença como norteador dessa política internacional que seu governo propôs-se a seguir: “Em um mundo globalizado e interdependente, nossa contribuição à paz e à democracia é determinada pelo Princípio da Não-Indiferença. Por isso nos engajamos nos esforços de estabilização do Haiti”.
Mencionam, ainda, outros novos caminhos da atuação internacional de seu governo, como a crescente intensificação das relações com países africanos e o incremento do diálogo Sul-Sul. Ao fim, volta a enfatizar a importância desse Princípio que sensibiliza o país para o que acontece além-fronteira através de uma alegoria que faz referência à importância do desenvolvimento conjunto da América do Sul: “(...) porque não seremos ricos se tivermos nas nossas costas países miseráveis onde persiste a fome, o desemprego e a miséria”.
A diplomacia do Governo Lula já estava definida em 2003. Segundo Celso Amorim, seus princípios e ações repousam na busca em assumir novas responsabilidades na cena internacional. Ela pretende ser pró-ativa e altiva, sem olvidar que estará “impregnada de perspectivas humanistas, que faz com que seja, a um só tempo, instrumento de desenvolvimento nacional e defensor de valores universais.”
Em 2005 a perspectiva humanista da atuação internacional brasileira volta a ser reforçada. Nesta ocasião, porém, após confirmar que um dos apoios da diplomacia brasileira encontra-se no Princípio da Não-Intervenção em assuntos internos, ressalta que isso não deve servir de pretexto para negar a solidariedade ativa do país:
A diplomacia brasileira pauta-se pelo Princípio de Não-Ingerência em assuntos internos, consagrado em nossa Carta. O governo do Presidente Lula tem associado a esse Princípio básico uma atitude que descrevemos como de não-indiferença. Temos prestado nosso apoio e solidariedade ativa em situações de crises, sempre que somos solicitados e consideramos ter um papel positivo.
A operacionalização da idéia da não-indiferença se faz a partir do conceito de diplomacia solidária.[7] Agindo coletivamente, desprovidos de interesses menores e subalternos, um grande número de países da América Latina fornece na atualidade o exemplo desta nova forma de perceber, além da fria Razão de Estado, os desafios dos Homens. A atuação desses países no Haiti deveria constituir esta nova perspectiva para as relações interamericanas.

Figura 1 – Características da não indiferença
Origem
Prática da política externa de Lula de solidariedade com os países do Sul
Concepção
Solidariedade internacional e responsabilidades compartilhadas
Institucionalização
Ausente uma institucionalização, surge nos discursos e práticas de agentes públicos
Atuação
Perdão de dividas, não exercício do Poder nas negociações com países débeis, Doutrina 6 ½ aplicada na crise do Haiti, etc.
Antecedentes
Inspira-se no Direito Internacional do Desenvolvimento e na filosofia da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI). Interpretação renovadora da Responsabilidade de Proteger acompanhada por elementos contidos no que denomino de Diplomacia Solidária.


Na América Latina, a não-indiferença vem legitimar uma atuação internacional que teve de ser refundida para melhor responder às demandas de um continente em crise, onde não se pode mais ignorar a incompatibilidade congênita entre democracia e segurança quando confrontadas às situações de miséria que levam à desesperança.
Este processo exige, no entanto, um longo caminho de amadurecimento e consolidação. Trata-se de idéia que dialoga para além do Estado, pois se dirige à Humanidade. Por ser jovem, carece de uma teorização e de uma prática que o torne geral e constante, para que se transforme em Direito. Se por um lado o conceito e a juridicidade da não-intervenção estão afirmados, há um longo caminho a ser trilhado para que a não-indiferença se consolide como conceito e se torne realidade.
A presença sul-americana no Haiti deve ser inserida, igualmente, no âmbito dos debates sobre o papel das Forças Armadas numa sociedade democrática. Ressalte-se a existência de um ainda tímido e sutil movimento em direção a formação de um sistema de segurança e de defesa sul-americano como o que esta sendo esboçado no âmbito da União das Nações Sul-americanas (UNASUL). Não há dúvida alguma que a experiência no Haiti trás consigo uma aproximação militar na região, principalmente no Cone Sul, entre Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Todavia, ressalte-se uma vez mais, a responsabilidade primordial brasileira, pois além de ser o maior contribuinte militar, manteve seu comando durante todo o período – o que contraria a doutrina das Nações Unidas sobre Operações de Paz.

Figura 2 - Composição da MINUSTAH segundo sua origem

País
Militares
Policiais
Total
Brasil
1670
5
1675
Uruguai
936
5
941
Argentina
569
20
589
Chile
464
12
476
Peru
373

373
Bolívia
206

206
Paraguai
164

164
Equador
68

137
Guatemala
137

68
El Salvador
34
7
41
Colômbia

25
25
Total
4621
74
4695
Fonte: Nações Unidas, DPKO, abril de 2013.

Apesar de pertinentes, as motivações latino-americanas padecem de duas debilidades. Por um lado, em sua grande maioria, são explicitadas a posteriori. Ou seja, primeiro há uma decisão em participar da futura MINUSTAH e somente após alguns meses começam a surgir explicações e supostas motivações. Nota-se, ademais, que o Brasil opôs-se em 1994 a uma ação militar conjunta, sugerida pelos Estados Unidos, para restaurar ao poder o então Presidente Aristide deposto por um golpe militar. Naquela ocasião o mesmo Celso Amorim ocupava a pasta das Relações Exteriores.

Do conjunto de decisões de política externa brasileira esta é a que melhor exemplifica a influência do Presidente na área externa e indica que não são totalmente infundadas as críticas a bicéfala condução dos assuntos externos a partir da assunção de Luis Inácio Lula da Silva.

À diplomacia tradicional baseada nos princípios fundamentais que regem a atuação externa brasileira, opõe-se uma visão inovadora e ativa, com um definido corte ideológico, a emanar do Palácio do Planalto sob a batuta de Marco Aurélio Garcia.

Ressalte-se, igualmente, que as forças que sustentam política e ideologicamente os governos de centro-esquerda latino-americanos rompem, em 2000, com o Fanmi Lavalas. Essa ruptura é acompanhada por um profundo e radical processo de distanciamento e de desencanto com o segundo mandato de Jean-Bertrand Aristide.

b) O afastamento da esquerda latino-americana do movimento Lavalas

Não deixa de ser surpreendente a atitude simpática ao golpe contra Aristide, seja por um cúmplice silêncio seja por declarações de apoio, manifestado por vários Estados latino-americanos governados pelo centro-esquerda e adeptos intransigentes do histórico princípio da não intervenção. Inclusive, todos eles, signatários da Carta Democrática Interamericana. Com um inusitado contorcionismo jurídico, político e ideológico a justificar a inexistência de ruptura da ordem constitucional haitiana, a esquerda latino-americana, de maneira unânime, condena Aristide, afasta-se do Lavalas, apóia e participa da intervenção militar estrangeira. Ao fazê-lo, concedem legitimidade ao golpe, associam-se às posições mais radicais dos Estados Unidos, França e Canadá, lhes fornecendo álibi e suporte ideológico. Assim abrem caminho para a participação de importantes Estados da região na composição das forças militares estrangeiras que, sob a bandeira das Nações Unidas, intervirão no Haiti.
Embora não tenha sido produto de uma Resolução do CSNU, o convite anteriormente referido para Brasília comandar o braço armado da futura MINUSTAH, deixa transparecer que Washington e Paris já haviam negociado o tema com os demais Estados membros permanentes do CSNU e com o SGNU. Em poucos meses o virtual convite se transforma em Resolução formal. A única, embora expressiva, diferença ficará por conta da composição do contingente militar pois ao contrário do apregoado por Singer, os militares do Canadá, França e Estados Unidos brilharão por suas ausências. A variante militar da MINUSTAH será composta por tropas da América Latina e da Ásia.
Como explicar a radical reviravolta sul-americana e a rapidez da decisão que a acompanha?
A inconciliável disputa no seio da esquerda haitiana a partir de 1999 entre, de um lado, Jean-Bertrand Aristide e de outro, Gérard Pierre-Charles, fará com que a totalidade dos movimentos sociais e dos partidos políticos de esquerda da América Latina afastem-se do movimento Lavalas e se declarem solidários a Pierre-Charles.
Este processo conhece seu transcurso político e ideológico nos debates sobre o Haiti que acontecem no interior do Foro de São Paulo. Ao analisá-lo pode-se melhor entender o papel preponderante desempenhado pelo Partido dos Trabalhadores brasileiro e do ex-Secretário Geral e um dos idealizadores do Foro, Professor Marco Aurélio Garcia, na decisão tomada afoitamente pelo governo brasileiro.
As dezenas de movimentos sociais e partidos políticos de esquerda da América Latina e do Caribe contam, a partir de 1990, com um espaço de diálogo e de concertação. O primeiro encontro convocado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro ocorreu em São Paulo em 1990 sob a denominação de “Encontro dos Partidos e Organizações Políticas de Esquerda da América Latina e do Caribe”. Logo o movimento foi cunhado de Foro de São Paulo (FSP) e nomeado como seu Secretário Executivo, Marco Aurélio Garcia, acumulando com as funções de responsável pelas Relações Exteriores do PT. 

Seus grandes artífices serão o PT sob a liderança de Luis Inácio Lula da Silva e o Partido Comunista de Cuba (PCC) sob a batuta de Fidel Castro. Seu nascimento decorre de estratégia petista e cubana buscando romper o isolamento da esquerda após a queda do Muro de Berlim. Na época, como declarou o Chefe do Departamento de Relações Internacionais do PCC, José Ramón Balaguer,

o entorno era bastante complicado para as forças de esquerda e revolucionária na América Latina e Caribe. A palavra imperialismo deixou de ser pronunciada e não se falavam mais de socialismo. Alguns partidos mudaram de nome. Inclusive alguns consideravam que não havia mais necessidade de fazer a revolução. [8]
   
Tal conjuntura fez com que “o objetivo inicial fosse o de convocar as forças de esquerda e demonstrar que, apesar do que ocorria no mundo, existia possibilidades para alcançar uma revolução social e implantar uma sociedade com justiça e igualdade de oportunidades.” [9]
 
Desde 1990 aconteceram dezenove reuniões sendo a última, em fins julho de 2013, em São Paulo. Segundo a documentação oficial apresentada na precedente reunião, realizada em maio de 2011 em Manágua, o Foro de São Paulo conheceu três grandes etapas. A primeira consistiu na “resistência ao neoliberalismo”; a segunda, nas vitórias para conquistar governos nacionais (1998-2009); e a terceira, atualmente, “começa com a crise do capitalismo e o contra-ataque da direita”.
Entre os desafios listados estão o de “manter os espaços conquistados, especialmente os governos nacionais, e seguir lutando para derrotar a direita onde ela governa”. Veremos que, quando aplicada ao caso haitiano, a estratégia do Foro recolheu resultado inverso ao preconizado, pois conduziu ao poder, em 2011, um conhecido simpatizante duvalierista.

A suposta esquerda haitiana participou do Foro de São Paulo. Seu representante foi até sua morte em outubro de 2004, Gérard Pierre-Charles, designado como coordenador do Movimento Lavalas, dirigido por Jean-Bertrand Aristide. Pierre-Charles integrou, inclusive, o Conselho Editorial da revista América Livre, divulgadora do Foro.

No VIII Encontro do Foro, realizado em novembro de 1998 na cidade do México, adota-se uma primeira Resolução sobre o Haiti na qual
tendo constatado o bloqueio político que agrava a crise econômica e também o perigo da instabilidade da vida institucional... Proclama sua solidariedade com o Povo haitiano e decide organizar uma missão de informação ao Haiti a fim de propor uma mediação entre os partidos em conflito.

Na reunião seguinte (Manágua, fevereiro de 2000), a qual precedeu as eleições haitianas daquele ano, a crise política no país caribenho sequer foi mencionada.

Tendo sido consumado o divórcio entre Aristide e Pierre-Charles por ocasião das contestadas e contestáveis votações de 2000, o Foro muda completamente de posição e ao ungir Pierre-Charles como seu solitário integrante haitiano, inicia suas agressões a Aristide e ao seu Governo. Assim, quando do X Encontro realizado em Havana em dezembro de 2001, a Resolução adotada sobre o Haiti esposa, inclusive em sua redação, a tese da Convergência Democrática de Pierre-Charles.

O X Encontro do Foro de São Paulo, reunido de quatro a sete de dezembro de 2001, em Havana, Cuba, chama a atenção sobre as conseqüências das eleições fraudulentas do ano de 2000 no Haiti, que exasperaram uma prolongada crise institucional, evidenciando a incapacidade do governo populista e corrupto de Aristide em encarar os graves problemas da nação. Crescem a miséria e o descontentamento, enquanto a repressão e as violações dos direitos humanos nutrem uma crescente instabilidade e polarização política. As repetidas missões de conciliação empreendidas pela OEA e a CARICOM não puderam ainda facilitar uma saída negociada entre o poder Lavalas e a Convergência Democrática, a qual, com o apoio de amplos setores da população, se mostram como a alternativa a este regime personalista que frustrou as esperanças populares.[10]

Utilizando-se de idêntica qualificação e vocabulário – tais como populista, corrupto, personalista – empregado por críticos de vários de seus governos, o Foro de São Paulo defende que o Haiti deveria prescindir de eleições. Bastaria substituir Aristide por Pierre-Charles.

No XI Encontro, realizado em Antigua (Guatemala, dezembro de 2002), o Foro de São Paulo “profundamente preocupado pelos acontecimentos de violência e repressão ocorridos no Haiti nos últimos meses” adota a seguinte Resolução sobre a crise haitiana:

O Foro de São Paulo denuncia a política antidemocrática do Governo de Jean-Bertrand Aristide no Haiti, que defraudou as esperanças do povo e submeteu este país a um regime de violação dos direitos políticos e liberdades individuais.

Em 17 de fevereiro de 2004, escassos dias precedendo ao golpe contra Aristide, o Grupo de Trabalho do Foro reunido em São Paulo, visivelmente traduzindo um texto redigido em outro idioma, espanhol ou francês, emitiu uma Resolução Especial sobre o Haiti – de confusa redação embora com a clara proposta de retirar Aristide do poder. Pela primeira vez, um documento oficial do Foro sobre a crise haitiana, apóia expressamente a um partido e a um político:

1. A crise política que vive a nação haitiana surge do flagrante desconhecimento das instituições democráticas que fizeram o governo de Jean-Bertrand Aristide e a constante violação aos direitos humanos que praticou nos últimos anos...

4. O Grupo de Trabalho do Foro de São Paulo se solidariza com a luta do povo haitiano e da Plataforma Democrática, em particular, emitem seu más [sic] amplo respaldo político à Organização do Povo em Luta, encabeçada por Gérard Pierre-Charles, partido irmão membro do Foro de São Paulo.[11]

O que seria impensável anteriormente torna-se agora palpável realidade. A esquerda latino-americana não somente concede apoio irrestrito ao golpe, como também apela para que ele aconteça.
  Sentindo-se integralmente respaldada pelo Foro de São Paulo, a Plataforma Democrática e a OPL de Pierre-Charles sentem-se seguras em sua estratégia de não buscar uma saída negociada. Trata-se do jogo de soma zero que logo será encampada pela França, Estados Unidos e Canadá.

Em 2005 o introdutor diplomático do Presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, realiza missão ao Haiti e confirma o que esperava encontrar. Ele recebeu

da parte de muitos setores, informações muito graves em relação a Aristide. Em primeiro lugar, violação dos direitos humanos, sobre as quais eu tinha informação direta, porque conhecia muita gente anteriormente. Em segundo lugar, que ele estaria envolvido com tráfico de drogas e que também teria responsabilidade sobre problemas de corrupção. [12]

Embora Garcia declare não dispor de parâmetros para opinar e havia simplesmente “tomada nota” sugerindo que o governo empreendesse um processo judicial o qual “disseram que iam fazer e não fizeram”, se trata, em realidade, de idênticas acusações às da oposição e dos setores golpistas estrangeiros. Logo elas são assimiladas pelo Governo Lula e por numerosos governos da região como verdades incontestes.

Uma única fissura na posição do Foro sobre o Haiti surge a partir do XII Encontro realizado em São Paulo em 2005. Ocorre que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) se opõe à Resolução adotada. Nesta o Foro decide enviar uma missão ao Haiti com “o objetivo de aprofundar o conhecimento da situação e discutir ações comuns para a reconstrução política, econômica, social e ambiental do Haiti”. Além disso, o Foro enfatiza que:

Considerando que o Foro de São Paulo respeita e aplica como princípio geral do direito internacional o direito à autodeterminação dos povos, fazemos votos para a rápida re-inserção soberana da nação caribenha na Comunidade Internacional.
Com esta finalidade solicitamos que a totalidade da dívida externa do Haiti seja perdoada como contribuição para superar a situação de pobreza extrema na qual vive seu povo.
Exigimos que os países doadores, comprometidos com as Nações Unidas a financiar o plano de reconstrução do Haiti, cumpram esse compromisso imediatamente.

Os desconfortos do PCB com a Resolução provem de vários elementos. Embora ela mencione o principio da autodeterminação dos povos, o Foro utiliza a tímida expressão de “fazer votos” quando deveria exigir a retirada da MINUSTAH; solicitação e exigência somente surgem quando implicam os países doadores e os que possuem créditos da dívida externa haitiana. Ou seja, os Estados desenvolvidos. Jamais os governos latino-americanos integrantes do Foro.

Contudo, foi somente em 2012 que a crítica aparece de forma contundente. O conhecido intelectual comunista e chavista argentino, Atílio Boron, ao fazer um balanço do XVIII Encontro realizado em Caracas e de sua Declaração final, assinala que esta

condena as tentativas golpistas contra Evo Morales, Mel Zelaya, Rafael Correa e a mais recente contra Fernando Lugo. Ela se esquece de assinalar, infelizmente, o golpe perpetrado contra Jean-Bertrand Aristide, no Haiti, em 2004. Falha grave porque não se pode dissociar esse esquecimento da infeliz presença de tropas de vários países latino-americanos – Brasil, Chile, Argentina, dentre outros – no Haiti, quando na realidade o que faz falta nesse sofrido país são médicos, enfermeiros, professores. Mas disso Cuba se encarrega; seu generoso internacionalismo é um dos sinais mais honrosos da sua revolução.

Ao responder às críticas de Boron, o petista Valter Pomar, Secretário Executivo do Foro de São Paulo, indica que

talvez Boron não saiba, mas as Declarações finais são consensuadas nas reuniões do Grupo de Trabalho. Do qual participaram, neste XVIII Encontro, dirigentes haitianos. Que apresentaram uma Resolução, aprovada em plenário, sobre a situação do Haiti.

Extraem-se três reveladoras lições da resposta do Secretário Executivo do Foro. A primeira consiste em desconsiderar a queda de Aristide como tendo sido um golpe. Embora ativa e decisiva intervenção estrangeira, inclusive militar, no golpe, para o Foro trata-se de uma singela “derrubada”. Inútil fazer uso da semântica quando límpida é a realidade dos fatos.

A segunda lição revela o leviano funcionamento do Foro quando se trata do Haiti. Praticamente todos os países da região possuem vários partidos de esquerda e movimentos sociais que participam do Foro e transmitem percepções detalhadas, por vezes contraditórias, sobre sua realidade nacional. Este não é o caso do Haiti. Ao referir-se à participação de “dirigentes haitianos” Pomar não explicita – por evidentes razões – que se trata exclusivamente de responsáveis políticos da OPL. Ou seja, um partido que tenta conquistar o poder e cujo candidato (Paul Denis) recolheu míseros 2,5% dos votos nas eleições presidenciais de 2006. Nas presidenciais de 2010 sequer participou.

O Haiti conta com mais de três dezenas de partidos e plataformas políticas perfazendo amplo leque ideológico. Muitos são de esquerda e de centro-esquerda. Nenhum deles consegue filiar-se ao Foro. A título de comparação, a vizinha República Dominicana que dispõe de similar quantidade de partidos políticos, é representada por seis agrupamentos no Foro de São Paulo.

A terceira lição consiste na revelação do dogma em que se transformou para o Foro de São Paulo a discussão sobre a presença de forças militares latino-americanas no empobrecido Haiti. Como compatibilizar o discurso em torno da autodeterminação dos povos e o respeito ao princípio de não intervenção nos assuntos internos dos Estados com o que ocorre atualmente no Haiti? Frente à impossível resposta, que desembocaria inevitavelmente em crítica à política dos governos patrocinadores do Foro, este prefere calar-se.

Aprofundando sua posição expressada por ocasião do XII Encontro do Foro, em agosto de 2010 o Partido Comunista Brasileiro lança uma nota política endereçada ao Foro na qual propõe

a realização de uma campanha, em âmbito continental e mundial, pela retirada de todas as tropas estrangeiras presentes hoje no Haiti e sua substituição por engenheiros, médicos e outros profissionais que possam ajudar o país a se recuperar da miséria agravada pelos furacões.

Ocorre que o Foro de São Paulo prossegue em silêncio sobre a presença militar latino-americana no Haiti. Em seu XIII Encontro realizado em El Salvador em janeiro de 2007, a Declaração final se restringe a salientar que no “Haiti o imperialismo norte-americano e a direita local não puderam consumar a fraude para evitar a eleição do Presidente René Préval”. Todavia, o Documento de Base fazia, pela primeira vez, uma referência ao assunto nos seguintes termos:

De antemão, o XIII Encontro se dirige aos partidos que integram governos que têm tropas na MINUSTAH, informando que em nossa opinião se faz necessário criar condições para, no prazo mais curto, substituir a presença de tropas da MINUSTAH por um apoio exclusivamente humanitário.

O não acolhimento da sugestão do Documento de Base na Declaração Final revela a falta de consenso do Foro de São Paulo sobre o delicado tema. Assim, não surpreende a ausência da crise haitiana e de seus desdobramentos nos três Encontros subseqüentes do Foro de São Paulo (Montevidéu 2008, Cidade do México 2009 e Buenos Aires 2010).

O Haiti retorna à pauta do Foro no XVII Encontro, realizado em Manágua em 2011, quando o Documento de Base menciona simplesmente a necessidade de “tomar medidas concretas para a reconstrução do Haiti”. 

Por ocasião do XVIII Encontro (Caracas 2012) o Plano de Trabalho proposto para o Documento de Base pelo PT brasileiro menciona a necessidade de “revisar o caso do Haiti” (ponto nove). Apesar deste indício, a Direção Nacional do partido sequer refere à crise haitiana em seu pronunciamento.
Finalmente o Documento de Base do XIX Encontro do Foro de São Paulo (julho 2013) indica em seu Plano de Ação
Nossa solidariedade firme com a luta do povo irmão do Haiti para superar as condições ancestrais de pobreza e marginalidade, e a favor da plena democratização da sociedade haitiana, sem ingerência estrangeira e com respeito a sua soberania nacional, desenvolvendo esforços para apoiar as forças de esquerda naquele país.

As contradições e superficialidades do documento obrigam os responsáveis pelo Foro a passar sob total silêncio o imbróglio haitiano que sequer é mencionado na Declaração Final.  

Através do Foro de São Paulo a esquerda latino-americana apresenta sua leitura e interpretação sobre a crise haitiana. Servindo de suporte e complementando-a, ideólogos funcionais aportam sua contribuição. Ao longo da crise, com raras exceções como o uruguaio Eduardo Galeano e o argentino Juan Gelman, as declarações e análises provenientes de intelectuais de esquerda defendem uma única perspectiva: acusar Aristide de todos os pecados.

Com juras de amor e admiração pelo Povo haitiano, travestido suas análises com justos sobrevôos da História haitiana, os autores aportam, invariavelmente, ao mesmo porto: a vítima do golpe foi, de fato, o algoz da democracia haitiana.

Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, sublinha o suposto “governo decepcionante” quando do primeiro mandato de Aristide. Ora, depois de uma eleição apoteótica, Aristide sequer havia cumprido nove meses de governo quando foi derrubado por um golpe militar.
Da crise de 2004, o teólogo da libertação possui uma leitura extremamente original. Para Frei Betto, Aristide “acusado de corrupção e em conivência com Washington [sic], exilou-se na África do Sul”. Difícil seria encontrar maior primor de desinformação e, para um homem de fé, maior testemunho de como utilizá-la de maneira malévola.

A não-intervenção deixa de ser um sacrossanto princípio defendido pelos países do Sul, especialmente pelos seus movimentos progressistas. A partir da atual crise haitiana há intervenções aceitáveis e outras não, há intervenções de esquerda e de direita, há guerras boas e guerras más.

Finalmente em 2011, algumas vozes da esquerda latino-americana, entre elas a de Frei Betto, surgem reclamando em Carta Aberta ao Secretário Geral da ONU e da OEA, uma mudança radical de estratégia e o fim da ocupação militar do Haiti. Serão elas ouvidas em Nova York e em Washington se sequer são escutadas nas capitais de seus respectivos países?

Com as raras exceções de pequenos partidos da extrema-esquerda e de personalidades independentes, a oposição aos governos de turno na América Latina tampouco critica a presença militar no Haiti. No caso brasileiro, o único opositor digno de nota foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele declarou, em janeiro de 2006, que “não conseguia ver bem qual é o interesse nacional na questão”. 

Cardoso considerava que o governo Lula havia se precipitado em tomar a decisão de enviar tropas ao Haiti. Percebia “com preocupação a participação do Brasil no Haiti, principalmente diante da extensão e duração da missão. Está cada vez mais complexa a situação e o pior é que não há uma data para a volta dos soldados brasileiros ao país”.[13]

A contradição congênita entre a natureza do desafio e os instrumentos para enfrentá-la atingiu seu ápice com o terremoto de 2010, a epidemia de cólera e a recorrente instabilidade política – temas incompatíveis com o capítulo VII da Carta das Nações Unidas que sustenta as Operações de Paz. Todavia, com o beneplácito da ampla maioria da esquerda latino-americana, a MINUSTAH se fortaleceu ao longo do tempo e o Haiti tornou-se cliente preferencial do CSNU. Dificilmente deixará de sê-lo em um futuro próximo.


[1] Professor da Universidade Federal de Santa Maria (Brasil), ex-Representante Especial da OEA no Haiti (2009-2011). Consultar o site www.seitenfus.com.br
[2] O Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política da América Latina e do Caribe, conhecido como Grupo do Rio, conta naquele momento com a participação de dezoito Estados latino-americanos e caribenhos (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela).
[3] Sublinhado pelo Autor.
[4] Coletiva de André Singer, RADIOBRÁS, 4/3/2004.
[5] Hesitantes no início, os militares brasileiros foram convencidos de participar na medida em que todos os equipamentos, os sistemas de comunicação e transporte e o material a ser utilizado seriam nacionais. É a primeira vez em sua história que uma importante força militar é enviada ao exterior nestas condições. Para os estrategistas a operação se transformou num desafio na preparação dos homens, na capacidade de comunicação e de transporte bem como um teste da confiabilidade de indústria brasileira de armamentos.
[6] Neste aspecto o discurso do Presidente Lula apresenta traços que o aproximam dos presidentes africanos, como, por exemplo, aquele de Alpha Oumar Konaré, ex-presidente de Mali e da Comissão da UA, quando, referindo-se ao dever de cooperação em relação ao episódio de Darfur, afirma: “somos a favor de que a África assuma o seu dever de não-indiferença (que se traduz em) uma ingerência solidária”.
[7] Ricardo Seitenfus, “Elementos para uma diplomacia solidária: a crise haitiana e os desafios da ordem internacional”, in Carta Internacional, São Paulo, 2006, vol. 1, n. 1, pp. 5-12.
[8] Prensa Latina, 26 de abril de 2013.
[9] Ibidem.
[10] Ressaltado pelo Autor. Note-se que esta tomada de posição radical antecede de poucos dias os ataques contra a oposição de 17 de dezembro daquele ano. Estas agressões resultaram em irreparável dano à respeitabilidade de Aristide e o afastaram definitivamente dos movimentos e partidos de esquerda latino-americana, que haviam alcançado o poder em vários países.
[11] Ibidem.
[12] In Folha de S. Paulo, 23/01/2011.
[13] Jamil Chade, “Fernando Henrique questiona missão no Haiti”, in Estado de São Paulo, 24 de janeiro de 2006.