A decisão sul-americana de intervir
militarmente no Haiti
Ricardo Seitenfus[1]
MINUSTAH
is the best example of mismatch between needs on the ground and the tools the
Security Council uses to address them.
Mark Lyall Grant,
Representante do Reino Unido na reunião do CS em 10 de outubro de 2013.
O Grupo do Rio, em total descompasso
com a decisão franco-americana, tornada pública em 25 de fevereiro de 2004, em
acelerar o processo visando à queda do Presidente Jean-Bertrand Aristide, emite
um Comunicado no final do mesmo dia em Brasília, no qual “respaldam as
atividades da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Comunidade do
Caribe (CARICOM) com vistas à solução pacífica da situação no Haiti; e o
oferecimento, pela Organização das Nações Unidas, de assistência humanitária
àquele país”. [2]
Ademais, “instam as partes
envolvidas a endossar o Plano de Ação Prévio proposto pela CARICOM; condenam
energicamente os atos de violência que vêm sendo praticados no Haiti; e
manifestam seu apoio ao Presidente constitucionalmente eleito daquele país,
Jean-Bertrand Aristide”.[3]
Apesar da oposição latino-americana,
na madrugada do dia 29 de fevereiro Aristide é forçado ao exílio. No dia 4 de março de 2004, após
entrevista telefônica do Presidente Luis Inácio Lula da Silva com o Presidente George
W. Bush e com o Presidente Jacques Chirac, o porta-voz da Presidência da
República do Brasil, André Singer, anuncia que:
O Presidente Chirac evocou, na conversa com o
Presidente Lula, a crise do Haiti. O Presidente Chirac disse que na segunda
etapa das operações internacionais de paz naquele país, quando será formada uma
força multilateral das Nações Unidas, conforme decisão do Conselho de Segurança
é fundamental a participação de tropas brasileiras.
Acrescentou que seria de suma importância, também, que
o Brasil assumisse o comando dessa força, a ser composta de contingentes
canadenses, franceses, norte-americanos e argentinos, além dos brasileiros. O
Presidente da França lembrou que essa é, também, a opinião do Secretário-geral
da ONU, Kofi Annan.
O Presidente Lula disse que o Brasil fica honrado com
essa indicação, e que está à disposição das Nações Unidas, tanto para o envio
de tropas quanto para o exercício do comando. Informou, também, ao Presidente
Chirac, que está pronto a ser enviado ao Haiti um contingente de 1.100
militares brasileiros especialmente treinados para essas missões.[4]
Em pouco mais de uma semana, o
Brasil muda radicalmente de posição levando consigo parte considerável de seus
vizinhos. De uma defesa intransigente do princípio da não-intervenção, Brasília
decide comandar o braço armado da futura Missão das Nações Unidas para a
Estabilização do Haiti (MINUSTAH). A que se deve a surpreendente e impensável
reviravolta?
Diga-se,
desde logo, que a decisão foi tomada pelo Palácio do Planalto em detrimento à
posição histórica do Itamaraty de não-intervenção nos assuntos internos dos
Estados, sobretudo com forças militares, quando se trata de questões
estritamente domésticas de natureza política e constitucional.
Apesar
de inserir-se em um contexto de colaboração permanente com o sistema das Nações
Unidas para a prevenção e solução de litígios, a participação nesta Operação de
Paz se reveste de particular característica.
Com
efeito, embora seguindo às regras gerais do Departamento de Operações de Paz
das Nações Unidas (DPKO), a MINUSTAH apresenta um forte viés regional. Por um
lado, seu Comando militar esteve sempre a cargo de militares brasileiros. Por
outro, a grande maioria de seu contingente militar provêem das Forças Armadas
latino-americanas. Para ilustrar o fenômeno, notemos que dos 6.589 militares
latino-americanos atualmente a serviço das Operações de Paz das Nações Unidas
no mundo, nada menos de 4.621 atuam no Haiti. Portanto, de cada 10 militares
latino-americanos disponibilizados às Nações Unidas, 7 foram enviados ao Haiti.
Dois grupos de razões impelem os
militares brasileiros em direção ao Caribe. As primeiras, de natureza difusa e
discursiva, devem pavimentar uma nova inserção internacional da América Latina
(a) e as segundas estão voltadas ao passado recente e a aversão suscitada na
região, a partir de 2000, pelo Movimento Lavalas de Jean-Bertrand Aristide
conforme indicam os debates no Foro de
São Paulo (b).
a) A re-inserção
da América Latina nas relações internacionais
Oficialmente
a decisão de participar sustentou-se tanto na necessidade de reforçar o sistema
multilateral vilipendiado quando da invasão do Iraque quanto na expressão de um desejo em participar
mais ativamente nos processos de prevenção e solução de conflitos. Caso a
América Latina não fosse capaz de oferecer alternativa a um conflito doméstico
de baixa intensidade que afeta dramaticamente a população do mais empobrecido
Estado membro da comunidade americana, como poderia ela aspirar a influir nas questões
da paz e segurança internacionais?
A
participação na MINUSTAH se constitui no primeiro teste real da afirmação de
uma nova concepção de segurança coletiva no âmbito da União de Nações
Sul-Americanas (UNASUL). Entre seus objetivos os seguintes estão contemplados
na operação haitiana:
-
comungar doutrina e estratégia;
-
realizar exercícios militares conjuntos;
-
testar, adequar e modernizar equipamentos bélicos;
-
unificar posições frente aos desafios de segurança internacionais;
-
provar a capacidade de mobilizar tropas
-
implementar ações humanitárias
-
conviver com culturas distintas
Alcançar
tais objetivos constitui premissa para assentar as bases de um sistema coletivo
de defesa no subcontinente americano. Este poderia desembocar em uma futura Organização
do Atlântico Sul (OTAS), autônoma e independente.
Com
uma visão solidária e compartilhada, a participação sul-americana defende a
tese que o drama haitiano possui raízes
profundas muito além de seus aspectos securitários. A natureza multifacetada da
crise deve desembocar em estratégias que levem em consideração as causas e
origens da instabilidade e não unicamente seus resultados e conseqüências. Com
sua participação, a América Latina pretende fazer com que as Nações Unidas
tornem mais complexas as Operações de Manutenção da Paz.
Visto da América Latina, um dos
maiores desafios que marcam as atuais relações internacionais prende-se a
ineficácia do sistema de prevenção e solução de conflitos – que permanece sendo
uma construção política, à margem do Direito – além de estar sob a guarda e
controle dos vencedores da Segunda Guerra Mundial. Esta exigência é tanto mais
importante para os Estados do Sul do planeta na medida em que os litígios
bélicos que marcaram o mundo no pós-1945 penalizaram essencialmente os países
em desenvolvimento, cenário das maiores atrocidades cometidas por razões
internas e internacionais.
O marcante contraste entre o mundo
bipolar da Guerra Fria e o multipolar do pós-1989, conduz a América Latina em
particular e os países do Sul em geral, a preocuparem-se pelos problemas em
torno da segurança internacional. Inevitavelmente eles devem estar presentes
nos debates da alta política internacional e não somente nas questões
envolvendo o desenvolvimento econômico e social ou o meio ambiente. Assim se
explicam os esforços sulistas com vistas à reforma do CSNU.
Surge
o que pode denominar-se de diplomacia
solidária. Ela se define como sendo a concepção e a aplicação de uma ação
coletiva internacional, sob os auspícios do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, feita por terceiros Estados intervenientes num conflito interno ou
internacional, desprovidos de motivações decorrentes de seu interesse nacional
e movidos unicamente por um dever de consciência.
O
desinteresse material ou estratégico constitui sua marca registrada. Para que
tal ausência de interesse seja inconteste é necessário igualmente que o
Estado-sujeito não tenha tido no passado qualquer relação especial com o
Estado-objeto de intervenção.
Quando um Estado – ente desprovido de
sentimentos – toma a decisão pela intervenção em outro Estado? Há dois
conjuntos de fatores principais: por um lado à suposta existência de interesses
nacionais a defender, sejam eles financeiros, militares, estratégicos,
políticos, diplomáticos ou de prestígio. Por outro, quando ocorrem catástrofes
naturais ou humanitárias e guerras civis ou internacionais. Então, surge uma
ativa e influente opinião pública a exigir uma resposta do Estado-sujeito com
vistas a colocar um termo ao sofrimento da população civil indefesa.
O que ocorreu no caso da América
Latina? Nenhum desses dois grupos de interesse pressionou o Estado-sujeito para
agir. Ele o fez por motu proprio, ausente uma pressão da opinião pública
e, indefinidos, para dizer o mínimo, os interesses a serem defendidos. Portanto
não houve nem ação moral (da opinião pública) nem material (dos interesses) que
impelissem o Estado-sujeito a intervir. Neste caso, ele o fez contrariando os
fundamentos da teoria realista das relações internacionais.
O chanceler brasileiro, embaixador
Celso Amorim, fornece uma valiosa e original contribuição à teoria da
diplomacia solidária ao declarar que o Brasil está “profundamente comprometido
no Haiti, política e emocionalmente,
e isso no longo prazo”. Ao fazê-lo indica que os parâmetros sobre os quais o
Brasil tomou a decisão de intervir devem ser compreendidos à luz de critérios
outros que os decorrentes da fria razão (ou interesse) de Estado.
Embora não o verbalize publicamente, o Brasil
espera que sua ativa e preponderante participação na vertente militar da
MINUSTAH tenham como resultado aumentar as credenciais para integrar de maneira
permanente o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Muitos dirigentes
brasileiros crêem, ingenuamente, que o caminho para Nova Iorque passa
necessariamente por Porto Príncipe.
A ação do país pretende sustentar a idéia que os
conflitos – mormente os de natureza interna como no caso haitiano – devem ser
enfrentados a partir de suas raízes e não somente segundo suas conseqüências.
Portanto, paralelamente às questões estritamente securitárias[5],
outros se adicionam tais como a necessidade do diálogo político entre facções e
partidos e, sobretudo, um plano de desenvolvimento econômico capaz de aliviar o
Haiti de seus graves problemas sociais.
A experiência brasileira na MINUSTAH, apesar de não
ser a primeira vez que o Brasil participa de uma missão desta natureza,
comporta alguns fatores que tornam essa atuação especial e paradigmática:
a) é o maior contingente militar deslocado fora das
fronteiras nacionais desde o final da Segunda Guerra Mundial;
b) pela primeira vez a América do Sul tem a maioria da
tropa ao longo de uma Missão de Paz da ONU;
c) pela primeira vez o Brasil conserva ao longo de
toda a Missão seu comando militar;
d) a proposta brasileira ultrapassa os objetivos de
garantir a instauração de condições seguras para o desenvolvimento de um
processo que garanta a livre expressão do povo haitiano para a escolha de seus
dirigentes.
As condições sócio-econômicas haitianas, agravadas
pelas crises políticas que há décadas assolam o país e as reiteradas
catástrofes naturais, tornam inconteste o risco iminente e irreparável de vida
que correm milhares de seres humanos e que fazem urgente a cooperação
internacional imediata. Mesmo ciente de suas próprias necessidades, o Brasil
destacou esforços não só na seara militar, mas também, mais amplamente, em
outras dimensões, como a social, técnica e cívica, para assistir a população
haitiana e para chamar a atenção da Comunidade Internacional para as necessidades
do país. Seu caráter inovador evidencia-se pela solidariedade e
responsabilidade devidas para com as populações que sofrem em função de
conflitos internos, carências de todas as ordens, repressão, falência do
Estado, impossibilidade ou ausência de vontade deste de reduzir tais
sofrimentos.
A participação brasileira na crise haitiana permite
que a prática se coloque frente da retórica. No entanto, há um imberbe discurso
fundador para justificar a realização dos anseios brasileiros. O discurso do
Presidente Lula é, desde seu início, marcado por uma forte perspectiva
humanista, que reconhece a importância e busca sobrepor os valores da
solidariedade e da cooperação àqueles da indiferença e omissão perante os
excluídos.[6] Essas intenções são desde logo anunciadas como parte
de uma política que pretende vê-las em operação, superando as posturas
meramente reativas que habitualmente acompanham os discursos do gênero. Em
setembro de 2005 Lula declara: “Não aceitamos como fato consumado uma ordem
internacional injusta (...). Nossa atuação diplomática é fundada na defesa de
Princípios, mas também na busca de resultados. Tem uma dimensão utópica sem
deixar de ser pragmática”.
Mais adiante o presidente menciona a idéia da não-indiferença como norteador dessa
política internacional que seu governo propôs-se a seguir: “Em um mundo
globalizado e interdependente, nossa contribuição à paz e à democracia é
determinada pelo Princípio da Não-Indiferença. Por isso nos engajamos nos
esforços de estabilização do Haiti”.
Mencionam, ainda, outros novos caminhos da atuação
internacional de seu governo, como a crescente intensificação das relações com
países africanos e o incremento do diálogo Sul-Sul. Ao fim, volta a enfatizar a
importância desse Princípio que sensibiliza o país para o que acontece
além-fronteira através de uma alegoria que faz referência à importância do
desenvolvimento conjunto da América do Sul: “(...) porque não seremos ricos se
tivermos nas nossas costas países miseráveis onde persiste a fome, o desemprego
e a miséria”.
A diplomacia do Governo Lula já estava definida em
2003. Segundo Celso Amorim, seus princípios e ações repousam na busca em
assumir novas responsabilidades na cena internacional. Ela pretende ser pró-ativa e altiva, sem olvidar que
estará “impregnada de perspectivas humanistas, que faz com que seja, a um só
tempo, instrumento de desenvolvimento nacional e defensor de valores
universais.”
Em 2005 a perspectiva humanista da atuação
internacional brasileira volta a ser reforçada. Nesta ocasião, porém, após
confirmar que um dos apoios da diplomacia brasileira encontra-se no Princípio
da Não-Intervenção em assuntos internos, ressalta que isso não deve servir de
pretexto para negar a solidariedade ativa do país:
A diplomacia
brasileira pauta-se pelo Princípio de Não-Ingerência em assuntos internos,
consagrado em nossa Carta. O governo do Presidente Lula tem associado a esse
Princípio básico uma atitude que descrevemos como de não-indiferença. Temos
prestado nosso apoio e solidariedade ativa em situações de crises, sempre que
somos solicitados e consideramos ter um papel positivo.
A operacionalização da idéia da não-indiferença se faz a partir do
conceito de diplomacia solidária.[7]
Agindo coletivamente, desprovidos de interesses menores e subalternos, um grande
número de países da América Latina fornece na atualidade o exemplo desta nova
forma de perceber, além da fria Razão de Estado, os desafios dos Homens. A
atuação desses países no Haiti deveria constituir esta nova perspectiva para as
relações interamericanas.
Figura 1 –
Características da não indiferença
Origem
|
Prática da política externa de Lula de solidariedade com os países do
Sul
|
Concepção
|
Solidariedade internacional e responsabilidades compartilhadas
|
Institucionalização
|
Ausente uma institucionalização, surge nos discursos e práticas de
agentes públicos
|
Atuação
|
Perdão de dividas, não exercício do Poder nas negociações com países
débeis, Doutrina 6 ½ aplicada na crise do Haiti, etc.
|
Antecedentes
|
Inspira-se no Direito Internacional do Desenvolvimento e na filosofia
da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI). Interpretação renovadora da
Responsabilidade de Proteger acompanhada por elementos contidos no que
denomino de Diplomacia Solidária.
|
Na América Latina, a não-indiferença vem legitimar uma atuação internacional que teve de
ser refundida para melhor responder às demandas de um continente em crise, onde
não se pode mais ignorar a incompatibilidade congênita entre democracia e
segurança quando confrontadas às situações de miséria que levam à desesperança.
Este processo exige, no entanto, um longo caminho de
amadurecimento e consolidação. Trata-se de idéia que dialoga para além do
Estado, pois se dirige à Humanidade. Por ser jovem, carece de uma teorização e
de uma prática que o torne geral e constante, para que se transforme em
Direito. Se por um lado o conceito e a juridicidade da não-intervenção estão
afirmados, há um longo caminho a ser trilhado para que a não-indiferença se consolide como conceito e se torne realidade.
A presença sul-americana no Haiti deve ser
inserida, igualmente, no âmbito dos debates sobre o papel das Forças Armadas
numa sociedade democrática. Ressalte-se a existência de um ainda tímido e sutil
movimento em direção a formação de um sistema de segurança e de defesa sul-americano
como o que esta sendo esboçado no âmbito da União das Nações Sul-americanas (UNASUL).
Não há dúvida alguma que a experiência no Haiti trás consigo uma aproximação
militar na região, principalmente no Cone Sul, entre Argentina, Brasil, Chile,
Paraguai e Uruguai. Todavia, ressalte-se uma vez mais, a responsabilidade
primordial brasileira, pois além de ser o maior contribuinte militar, manteve
seu comando durante todo o período – o que contraria a doutrina das Nações
Unidas sobre Operações de Paz.
Figura 2 - Composição da MINUSTAH segundo sua origem
País
|
Militares
|
Policiais
|
Total
|
Brasil
|
1670
|
5
|
1675
|
Uruguai
|
936
|
5
|
941
|
Argentina
|
569
|
20
|
589
|
Chile
|
464
|
12
|
476
|
Peru
|
373
|
|
373
|
Bolívia
|
206
|
|
206
|
Paraguai
|
164
|
|
164
|
Equador
|
68
|
|
137
|
Guatemala
|
137
|
|
68
|
El Salvador
|
34
|
7
|
41
|
Colômbia
|
|
25
|
25
|
Total
|
4621
|
74
|
4695
|
Fonte: Nações Unidas,
DPKO, abril de 2013.
Apesar de pertinentes, as motivações
latino-americanas padecem de duas debilidades. Por um lado, em sua grande
maioria, são explicitadas a posteriori.
Ou seja, primeiro há uma decisão em participar da futura MINUSTAH e somente
após alguns meses começam a surgir explicações e supostas motivações. Nota-se,
ademais, que o Brasil opôs-se em 1994 a uma ação militar conjunta, sugerida
pelos Estados Unidos, para restaurar ao poder o então Presidente Aristide
deposto por um golpe militar. Naquela ocasião o mesmo Celso Amorim ocupava a
pasta das Relações Exteriores.
Do conjunto de decisões de política externa
brasileira esta é a que melhor exemplifica a influência do Presidente na área
externa e indica que não são totalmente infundadas as críticas a bicéfala condução
dos assuntos externos a partir da assunção de Luis Inácio Lula da Silva.
À diplomacia tradicional baseada nos princípios
fundamentais que regem a atuação externa brasileira, opõe-se uma visão
inovadora e ativa, com um definido corte ideológico, a emanar do Palácio do
Planalto sob a batuta de Marco Aurélio Garcia.
Ressalte-se, igualmente, que as forças que
sustentam política e ideologicamente os governos de centro-esquerda
latino-americanos rompem, em 2000, com o Fanmi Lavalas. Essa ruptura é
acompanhada por um profundo e radical processo de distanciamento e de
desencanto com o segundo mandato de Jean-Bertrand Aristide.
b) O
afastamento da esquerda latino-americana do movimento Lavalas
Não deixa de ser surpreendente a
atitude simpática ao golpe contra Aristide, seja por um cúmplice silêncio seja
por declarações de apoio, manifestado por vários Estados latino-americanos
governados pelo centro-esquerda e adeptos intransigentes do histórico princípio
da não intervenção. Inclusive, todos eles, signatários da Carta Democrática
Interamericana. Com um inusitado contorcionismo jurídico, político e ideológico
a justificar a inexistência de ruptura da ordem constitucional haitiana, a
esquerda latino-americana, de maneira unânime, condena Aristide, afasta-se do
Lavalas, apóia e participa da intervenção militar estrangeira. Ao fazê-lo,
concedem legitimidade ao golpe, associam-se às posições mais radicais dos
Estados Unidos, França e Canadá, lhes fornecendo álibi e suporte ideológico.
Assim abrem caminho para a participação de importantes Estados da região na
composição das forças militares estrangeiras que, sob a bandeira das Nações
Unidas, intervirão no Haiti.
Embora não tenha sido produto de uma
Resolução do CSNU, o convite anteriormente referido para Brasília comandar o
braço armado da futura MINUSTAH, deixa transparecer que Washington e Paris já
haviam negociado o tema com os demais Estados membros permanentes do CSNU e com
o SGNU. Em poucos meses o virtual convite se transforma em Resolução formal. A
única, embora expressiva, diferença ficará por conta da composição do
contingente militar pois ao contrário do apregoado por Singer, os militares do
Canadá, França e Estados Unidos brilharão por suas ausências. A variante
militar da MINUSTAH será composta por tropas da América Latina e da Ásia.
Como explicar a radical reviravolta
sul-americana e a rapidez da decisão que a acompanha?
A inconciliável disputa no seio da
esquerda haitiana a partir de 1999 entre, de um lado, Jean-Bertrand Aristide e
de outro, Gérard Pierre-Charles, fará com que a totalidade dos movimentos
sociais e dos partidos políticos de esquerda da América Latina afastem-se do
movimento Lavalas e se declarem solidários a Pierre-Charles.
Este processo conhece seu transcurso político e
ideológico nos debates sobre o Haiti que acontecem no interior do Foro de São
Paulo. Ao analisá-lo pode-se melhor entender o papel preponderante desempenhado
pelo Partido dos Trabalhadores brasileiro e do ex-Secretário Geral e um dos
idealizadores do Foro, Professor Marco Aurélio Garcia, na decisão tomada
afoitamente pelo governo brasileiro.
As dezenas de movimentos sociais e partidos
políticos de esquerda da América Latina e do Caribe contam, a partir de 1990,
com um espaço de diálogo e de concertação. O primeiro encontro convocado pelo
Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro ocorreu em São Paulo em 1990 sob a
denominação de “Encontro dos Partidos e Organizações Políticas de Esquerda da
América Latina e do Caribe”. Logo o movimento foi cunhado de Foro de São Paulo
(FSP) e nomeado como seu Secretário Executivo, Marco Aurélio Garcia, acumulando
com as funções de responsável pelas Relações Exteriores do PT.
Seus grandes artífices serão o PT sob a
liderança de Luis Inácio Lula da Silva e o Partido Comunista de Cuba (PCC) sob
a batuta de Fidel Castro. Seu nascimento decorre de estratégia petista e cubana
buscando romper o isolamento da esquerda após a queda do Muro de Berlim. Na
época, como declarou o Chefe do Departamento de Relações Internacionais do PCC,
José Ramón Balaguer,
o
entorno era bastante complicado para as forças de esquerda e revolucionária na
América Latina e Caribe. A palavra imperialismo deixou de ser pronunciada e não
se falavam mais de socialismo. Alguns partidos mudaram de nome. Inclusive
alguns consideravam que não havia mais necessidade de fazer a revolução. [8]
Tal conjuntura fez com que “o objetivo inicial
fosse o de convocar as forças de esquerda e demonstrar que, apesar do que
ocorria no mundo, existia possibilidades para alcançar uma revolução social e
implantar uma sociedade com justiça e igualdade de oportunidades.” [9]
Desde 1990 aconteceram dezenove reuniões sendo a
última, em fins julho de 2013, em São Paulo. Segundo a documentação oficial
apresentada na precedente reunião, realizada em maio de 2011 em Manágua, o Foro
de São Paulo conheceu três grandes etapas. A primeira consistiu na “resistência
ao neoliberalismo”; a segunda, nas vitórias para conquistar governos nacionais
(1998-2009); e a terceira, atualmente, “começa com a crise do capitalismo e o
contra-ataque da direita”.
Entre os desafios listados estão o de “manter os
espaços conquistados, especialmente os governos nacionais, e seguir lutando
para derrotar a direita onde ela governa”. Veremos que, quando aplicada ao caso
haitiano, a estratégia do Foro recolheu resultado inverso ao preconizado, pois
conduziu ao poder, em 2011, um conhecido simpatizante duvalierista.
A suposta esquerda haitiana participou do Foro
de São Paulo. Seu representante foi até sua morte em outubro de 2004, Gérard
Pierre-Charles, designado como coordenador do Movimento Lavalas, dirigido por
Jean-Bertrand Aristide. Pierre-Charles integrou, inclusive, o Conselho
Editorial da revista América Livre, divulgadora do Foro.
No VIII Encontro do Foro, realizado em novembro
de 1998 na cidade do México, adota-se uma primeira Resolução sobre o Haiti na
qual
tendo
constatado o bloqueio político que agrava a crise econômica e também o perigo
da instabilidade da vida institucional... Proclama sua solidariedade com o Povo
haitiano e decide organizar uma missão de informação ao Haiti a fim de propor
uma mediação entre os partidos em conflito.
Na reunião seguinte (Manágua, fevereiro de
2000), a qual precedeu as eleições haitianas daquele ano, a crise política no
país caribenho sequer foi mencionada.
Tendo sido consumado o divórcio entre Aristide e
Pierre-Charles por ocasião das contestadas e contestáveis votações de 2000, o
Foro muda completamente de posição e ao ungir Pierre-Charles como seu solitário
integrante haitiano, inicia suas agressões a Aristide e ao seu Governo. Assim,
quando do X Encontro realizado em Havana em dezembro de 2001, a Resolução
adotada sobre o Haiti esposa, inclusive em sua redação, a tese da Convergência
Democrática de Pierre-Charles.
O
X Encontro do Foro de São Paulo, reunido de quatro a sete de dezembro de 2001,
em Havana, Cuba, chama a atenção sobre as conseqüências das eleições
fraudulentas do ano de 2000 no Haiti, que exasperaram uma prolongada crise
institucional, evidenciando a incapacidade do governo populista e corrupto
de Aristide em encarar os graves problemas da nação. Crescem a miséria e o
descontentamento, enquanto a repressão e as violações dos direitos humanos
nutrem uma crescente instabilidade e polarização política. As repetidas missões
de conciliação empreendidas pela OEA e a CARICOM não puderam ainda facilitar
uma saída negociada entre o poder Lavalas e a Convergência Democrática, a
qual, com o apoio de amplos setores da população, se mostram como a alternativa
a este regime personalista que frustrou as esperanças populares.[10]
Utilizando-se de idêntica qualificação e
vocabulário – tais como populista, corrupto, personalista – empregado por
críticos de vários de seus governos, o Foro de São Paulo defende que o Haiti
deveria prescindir de eleições. Bastaria substituir Aristide por
Pierre-Charles.
No XI Encontro, realizado em Antigua (Guatemala, dezembro de 2002),
o Foro de São Paulo “profundamente preocupado pelos acontecimentos de violência
e repressão ocorridos no Haiti nos últimos meses” adota a seguinte Resolução
sobre a crise haitiana:
O Foro de São Paulo denuncia a política
antidemocrática do Governo de Jean-Bertrand Aristide no Haiti, que defraudou as
esperanças do povo e submeteu este país a um regime de violação dos direitos
políticos e liberdades individuais.
Em 17 de fevereiro de 2004, escassos dias
precedendo ao golpe contra Aristide, o Grupo de Trabalho do Foro reunido em São
Paulo, visivelmente traduzindo um texto redigido em outro idioma, espanhol ou
francês, emitiu uma Resolução Especial sobre o Haiti – de confusa redação
embora com a clara proposta de retirar Aristide do poder. Pela primeira vez, um
documento oficial do Foro sobre a crise haitiana, apóia expressamente a um
partido e a um político:
1.
A crise política que vive a nação haitiana surge do flagrante desconhecimento
das instituições democráticas que fizeram o governo de Jean-Bertrand Aristide e
a constante violação aos direitos humanos que praticou nos últimos anos...
4.
O Grupo de Trabalho do Foro de São Paulo se solidariza com a luta do povo
haitiano e da Plataforma Democrática, em particular, emitem seu más [sic]
amplo respaldo político à Organização do Povo em Luta, encabeçada por Gérard
Pierre-Charles, partido irmão membro do Foro de São Paulo.[11]
O que seria impensável anteriormente torna-se
agora palpável realidade. A esquerda latino-americana não somente concede apoio
irrestrito ao golpe, como também apela para que ele aconteça.
Sentindo-se integralmente respaldada pelo
Foro de São Paulo, a Plataforma Democrática e a OPL de Pierre-Charles sentem-se
seguras em sua estratégia de não buscar uma saída negociada. Trata-se do jogo de soma zero que logo será
encampada pela França, Estados Unidos e Canadá.
Em
2005 o introdutor diplomático do Presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, realiza
missão ao Haiti e confirma o que esperava encontrar. Ele recebeu
da
parte de muitos setores, informações muito graves em relação a Aristide. Em
primeiro lugar, violação dos direitos humanos, sobre as quais eu tinha
informação direta, porque conhecia muita gente anteriormente. Em segundo lugar,
que ele estaria envolvido com tráfico de drogas e que também teria
responsabilidade sobre problemas de corrupção. [12]
Embora
Garcia declare não dispor de parâmetros para opinar e havia simplesmente
“tomada nota” sugerindo que o governo empreendesse um processo judicial o qual
“disseram que iam fazer e não fizeram”, se trata, em realidade, de idênticas
acusações às da oposição e dos setores golpistas estrangeiros. Logo elas são
assimiladas pelo Governo Lula e por numerosos governos da região como verdades
incontestes.
Uma
única fissura na posição do Foro sobre o Haiti surge a partir do XII Encontro
realizado em São Paulo em 2005. Ocorre que o Partido Comunista Brasileiro (PCB)
se opõe à Resolução adotada. Nesta o Foro decide enviar uma missão ao Haiti com
“o objetivo de aprofundar o conhecimento da situação e discutir ações comuns
para a reconstrução política, econômica, social e ambiental do Haiti”. Além
disso, o Foro enfatiza que:
Considerando
que o Foro de São Paulo respeita e aplica como princípio geral do direito
internacional o direito à autodeterminação dos povos, fazemos votos para a
rápida re-inserção soberana da nação caribenha na Comunidade Internacional.
Com
esta finalidade solicitamos que a totalidade da dívida externa do Haiti seja
perdoada como contribuição para superar a situação de pobreza extrema na qual
vive seu povo.
Exigimos
que os países doadores, comprometidos com as Nações Unidas a financiar o plano
de reconstrução do Haiti, cumpram esse compromisso imediatamente.
Os
desconfortos do PCB com a Resolução provem de vários elementos. Embora ela
mencione o principio da autodeterminação dos povos, o Foro utiliza a tímida
expressão de “fazer votos” quando deveria exigir a retirada da MINUSTAH;
solicitação e exigência somente surgem quando implicam os países doadores e os
que possuem créditos da dívida externa haitiana. Ou seja, os Estados
desenvolvidos. Jamais os governos latino-americanos integrantes do Foro.
Contudo,
foi somente em 2012 que a crítica aparece de forma contundente. O conhecido
intelectual comunista e chavista argentino, Atílio Boron, ao fazer um balanço
do XVIII Encontro realizado em Caracas e de sua Declaração final, assinala que
esta
condena
as tentativas golpistas contra Evo Morales, Mel Zelaya, Rafael Correa e a mais
recente contra Fernando Lugo. Ela se esquece de assinalar, infelizmente, o
golpe perpetrado contra Jean-Bertrand Aristide, no Haiti, em 2004. Falha grave
porque não se pode dissociar esse esquecimento da infeliz presença de tropas de
vários países latino-americanos – Brasil, Chile, Argentina, dentre outros – no
Haiti, quando na realidade o que faz falta nesse sofrido país são médicos, enfermeiros,
professores. Mas disso Cuba se encarrega; seu generoso internacionalismo é um
dos sinais mais honrosos da sua revolução.
Ao
responder às críticas de Boron, o petista Valter Pomar, Secretário Executivo do
Foro de São Paulo, indica que
talvez
Boron não saiba, mas as Declarações finais são consensuadas nas reuniões do
Grupo de Trabalho. Do qual participaram, neste XVIII Encontro, dirigentes
haitianos. Que apresentaram uma Resolução, aprovada em plenário, sobre a
situação do Haiti.
Extraem-se
três reveladoras lições da resposta do Secretário Executivo do Foro. A primeira
consiste em desconsiderar a queda de Aristide como tendo sido um golpe. Embora
ativa e decisiva intervenção estrangeira, inclusive militar, no golpe, para o
Foro trata-se de uma singela “derrubada”. Inútil fazer uso da semântica quando
límpida é a realidade dos fatos.
A
segunda lição revela o leviano funcionamento do Foro quando se trata do Haiti.
Praticamente todos os países da região possuem vários partidos de esquerda e
movimentos sociais que participam do Foro e transmitem percepções detalhadas,
por vezes contraditórias, sobre sua realidade nacional. Este não é o caso do
Haiti. Ao referir-se à participação de “dirigentes haitianos” Pomar não
explicita – por evidentes razões – que se trata exclusivamente de responsáveis
políticos da OPL. Ou seja, um partido que tenta conquistar o poder e cujo
candidato (Paul Denis) recolheu míseros 2,5% dos votos nas eleições
presidenciais de 2006. Nas presidenciais de 2010 sequer participou.
O
Haiti conta com mais de três dezenas de partidos e plataformas políticas
perfazendo amplo leque ideológico. Muitos são de esquerda e de centro-esquerda.
Nenhum deles consegue filiar-se ao Foro. A título de comparação, a vizinha
República Dominicana que dispõe de similar quantidade de partidos políticos, é
representada por seis agrupamentos no Foro de São Paulo.
A
terceira lição consiste na revelação do dogma em que se transformou para o Foro
de São Paulo a discussão sobre a presença de forças militares latino-americanas
no empobrecido Haiti. Como compatibilizar o discurso em torno da
autodeterminação dos povos e o respeito ao princípio de não intervenção nos
assuntos internos dos Estados com o que ocorre atualmente no Haiti? Frente à
impossível resposta, que desembocaria inevitavelmente em crítica à política dos
governos patrocinadores do Foro, este prefere calar-se.
Aprofundando
sua posição expressada por ocasião do XII Encontro do Foro, em agosto de 2010 o
Partido Comunista Brasileiro lança uma nota política endereçada ao Foro na qual
propõe
a
realização de uma campanha, em âmbito continental e mundial, pela retirada de
todas as tropas estrangeiras presentes hoje no Haiti e sua substituição por
engenheiros, médicos e outros profissionais que possam ajudar o país a se
recuperar da miséria agravada pelos furacões.
Ocorre
que o Foro de São Paulo prossegue em silêncio sobre a presença militar
latino-americana no Haiti. Em seu XIII Encontro realizado em El Salvador em
janeiro de 2007, a Declaração final se restringe a salientar que no “Haiti o
imperialismo norte-americano e a direita local não puderam consumar a fraude
para evitar a eleição do Presidente René Préval”. Todavia, o Documento de Base
fazia, pela primeira vez, uma referência ao assunto nos seguintes termos:
De
antemão, o XIII Encontro se dirige aos partidos que integram governos que têm
tropas na MINUSTAH, informando que em nossa opinião se faz necessário criar
condições para, no prazo mais curto, substituir a presença de tropas da
MINUSTAH por um apoio exclusivamente humanitário.
O
não acolhimento da sugestão do Documento de Base na Declaração Final revela a
falta de consenso do Foro de São Paulo sobre o delicado tema. Assim, não
surpreende a ausência da crise haitiana e de seus desdobramentos nos três Encontros
subseqüentes do Foro de São Paulo (Montevidéu 2008, Cidade do México 2009 e
Buenos Aires 2010).
O
Haiti retorna à pauta do Foro no XVII Encontro, realizado em Manágua em 2011,
quando o Documento de Base menciona simplesmente a necessidade de “tomar
medidas concretas para a reconstrução do Haiti”.
Por
ocasião do XVIII Encontro (Caracas 2012) o Plano de Trabalho proposto para o
Documento de Base pelo PT brasileiro menciona a necessidade de “revisar o caso
do Haiti” (ponto nove). Apesar deste indício, a Direção Nacional do partido
sequer refere à crise haitiana em seu pronunciamento.
Finalmente
o Documento de Base do XIX Encontro do Foro de São Paulo (julho 2013) indica em
seu Plano de Ação
Nossa
solidariedade firme com a luta do povo irmão do Haiti para superar as condições
ancestrais de pobreza e marginalidade, e a favor da plena democratização da
sociedade haitiana, sem ingerência estrangeira e com respeito a sua soberania
nacional, desenvolvendo esforços para apoiar as forças de esquerda naquele país.
As
contradições e superficialidades do documento obrigam os responsáveis pelo Foro
a passar sob total silêncio o imbróglio haitiano que sequer é mencionado na
Declaração Final.
Através
do Foro de São Paulo a esquerda latino-americana apresenta sua leitura e
interpretação sobre a crise haitiana. Servindo de suporte e complementando-a,
ideólogos funcionais aportam sua contribuição. Ao longo da crise, com raras
exceções como o uruguaio Eduardo Galeano e o argentino Juan Gelman, as
declarações e análises provenientes de intelectuais de esquerda defendem uma
única perspectiva: acusar Aristide de todos os pecados.
Com
juras de amor e admiração pelo Povo haitiano, travestido suas análises com
justos sobrevôos da História haitiana, os autores aportam, invariavelmente, ao
mesmo porto: a vítima do golpe foi, de fato, o algoz da democracia haitiana.
Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como
Frei Betto, sublinha o suposto “governo decepcionante” quando do primeiro
mandato de Aristide. Ora, depois de uma eleição apoteótica, Aristide sequer
havia cumprido nove meses de governo quando foi derrubado por um golpe militar.
Da crise de 2004, o teólogo da libertação possui
uma leitura extremamente original. Para Frei Betto, Aristide “acusado de
corrupção e em conivência com Washington [sic], exilou-se na África do Sul”.
Difícil seria encontrar maior primor de desinformação e, para um homem de fé,
maior testemunho de como utilizá-la de maneira malévola.
A não-intervenção deixa de ser um sacrossanto
princípio defendido pelos países do Sul, especialmente pelos seus movimentos
progressistas. A partir da atual crise haitiana há intervenções aceitáveis e
outras não, há intervenções de esquerda e de direita, há guerras boas e guerras
más.
Finalmente em 2011, algumas vozes da esquerda
latino-americana, entre elas a de Frei Betto, surgem reclamando em Carta Aberta
ao Secretário Geral da ONU e da OEA, uma mudança radical de estratégia e o fim
da ocupação militar do Haiti. Serão elas ouvidas em Nova York e em Washington
se sequer são escutadas nas capitais de seus respectivos países?
Com as raras exceções de pequenos partidos da
extrema-esquerda e de personalidades independentes, a oposição aos governos de
turno na América Latina tampouco critica a presença militar no Haiti. No caso brasileiro,
o único opositor digno de nota foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Ele declarou, em janeiro de 2006, que “não conseguia ver bem qual é o interesse
nacional na questão”.
Cardoso considerava que o governo Lula havia se
precipitado em tomar a decisão de enviar tropas ao Haiti. Percebia “com
preocupação a participação do Brasil no Haiti, principalmente diante da
extensão e duração da missão. Está cada vez mais complexa a situação e o pior é
que não há uma data para a volta dos soldados brasileiros ao país”.[13]
A contradição congênita entre a natureza do
desafio e os instrumentos para enfrentá-la atingiu seu ápice com o terremoto de
2010, a epidemia de cólera e a recorrente instabilidade política – temas
incompatíveis com o capítulo VII da Carta das Nações Unidas que sustenta as
Operações de Paz. Todavia, com o beneplácito da ampla maioria da esquerda
latino-americana, a MINUSTAH se fortaleceu ao longo do tempo e o Haiti
tornou-se cliente preferencial do CSNU. Dificilmente deixará de sê-lo em um
futuro próximo.
[1] Professor da Universidade Federal de Santa Maria (Brasil),
ex-Representante Especial da OEA no Haiti (2009-2011). Consultar o site www.seitenfus.com.br
[2] O Mecanismo Permanente de
Consulta e Concertação Política da América Latina e do Caribe, conhecido
como Grupo do Rio, conta naquele
momento com a participação de dezoito Estados latino-americanos e caribenhos
(Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador,
Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República
Dominicana, Uruguai e Venezuela).
[3] Sublinhado pelo Autor.
[4] Coletiva de André Singer, RADIOBRÁS, 4/3/2004.
[5] Hesitantes no início, os militares
brasileiros foram convencidos de participar na medida em que todos os
equipamentos, os sistemas de comunicação e transporte e o material a ser
utilizado seriam nacionais. É a primeira vez em sua história que uma importante
força militar é enviada ao exterior nestas condições. Para os estrategistas a
operação se transformou num desafio na preparação dos homens, na capacidade de
comunicação e de transporte bem como um teste da confiabilidade de indústria
brasileira de armamentos.
[6] Neste aspecto o discurso do Presidente Lula apresenta traços que o
aproximam dos presidentes africanos, como, por exemplo, aquele de Alpha Oumar
Konaré, ex-presidente de Mali e da Comissão da UA, quando, referindo-se ao
dever de cooperação em relação ao episódio de Darfur, afirma: “somos a favor de que a África assuma o seu
dever de não-indiferença (que se traduz em) uma ingerência solidária”.
[7] Ricardo Seitenfus, “Elementos para uma diplomacia solidária: a
crise haitiana e os desafios da ordem internacional”, in Carta Internacional, São Paulo, 2006, vol. 1, n. 1, pp. 5-12.
[8] Prensa Latina, 26 de
abril de 2013.
[9] Ibidem.
[10] Ressaltado pelo Autor. Note-se que esta tomada de posição radical
antecede de poucos dias os ataques contra a oposição de 17 de dezembro daquele
ano. Estas agressões resultaram em irreparável dano à respeitabilidade de
Aristide e o afastaram definitivamente dos movimentos e partidos de esquerda
latino-americana, que haviam alcançado o poder em vários países.
[11] Ibidem.
[12] In Folha de S. Paulo,
23/01/2011.
[13] Jamil Chade, “Fernando Henrique questiona missão no Haiti”, in Estado de São Paulo, 24 de janeiro de
2006.