Aula magna de preconceito, na USP
ROBERTO ROMANO*
10 Maio 2015 | 03h 00
A eugenia constituiu uma doutrina
genocida espalhada no século 20, mas com raízes antigas no pensamento
ocidental. O etnocentrismo que a precede é patente na Política de
Aristóteles (Livro VI, 1327b). Os nórdicos, diz o preceptor de
Alexandre, são valentes, mas burros. Os asiáticos têm inteligência, mas
se acovardam. Já os helenos reúnem mente atilada e valentia. Eles seriam
os únicos a quem serve o designativo “homem”. Mas para os atenienses
“grego” bastava, porque o resto… era o resto. Como é cego para a
dignidade dos estrangeiros, o filósofo marca as mulheres como
inferiores, e assim por diante. A linhagem dos teóricos ocidentais que
desprezam etnias não brancas é imensa. Ela inclui I. Kant, David Hume,
Hegel e outros. Tempos atrás publiquei um artigo intitulado A Mulher e a
Desrazão Ocidental (no livro Lux in Tenebris). Nele cito exemplos nada
edificantes da filosofia presa ao racismo, ao gênero masculino, à
violência contra os mais fracos.
Mesmo em países democráticos brotam casos de preconceito larvar contra
judeus, negros, mulheres e pobres. No caso da eugenia, o processo Buck
versus Bell, definido na Suprema Corte norte-americana sob a égide do
juiz Oliver Wendell Holmes, mostra até onde pode ir a injustiça contra
indivíduos ou grupos sem riqueza e poder. A esterilização forçada de uma
suposta ou efetiva doente mental - Carrie Buck -, em nome da saúde
pública, tem sua joia discursiva na sentença de Holmes. Para ele, “três
gerações de imbecis é muito”. O magistrado, paradoxalmente, advogou em
favor da livre expressão. E, no entanto, as manifestações hoje
reprimidas nos EUA - Baltimore é uma cidade a mais - contra assassinatos
cometidos pela polícia provam que a liberdade de expressão vale para
quem ostenta colorido alvo da pele.
Edwin Black (A Guerra Contra os Fracos) mostra o itinerário da eugenia,
dos EUA à Europa, daí às práticas nazistas contra doentes. A eutanásia,
inaugurada por um decreto secreto de Hitler na Aktion T4, foi ampliada
para o massacre dos “inferiores” ao branco, louro, corajoso, inteligente
herdeiro dos gregos, o suposto ariano germânico.
As linhas acima servem como introito a um atentado cometido na USP
contra os afrodescendentes. Um professor, Peter Lees Pearson, no
Instituto de Biociências (22/4/2015), em aula de pós-graduação discorreu
apologeticamente sobre o artigo de J. Philippe Rusthon e Arthur R.
Jensen intitulado James Watson’s mostly inconvenient truth: race realism
and moralistic fallacy. Segundo esses autores, nada originais, pois
repetem um palavrório que impera desde Aristóteles, os testes de Q.I.
comprovariam que a força cognitiva dos negros africanos seria inferior à
dos brancos e asiáticos. O docente silencia que James Watson perdeu o
cargo de conselheiro do Spring Harbor Laboratory (CSHL) de Nova York por
exagerar em sua militância racista.
Afrodescendentes entraram na sala de aula para discutir o dogma exposto
por Lees Pearson. A postura do professor seguiu a linha grega de
argumentação. Nela, o xingatório do termo “bárbaro” designa indivíduos
sem capacidade de falar a superior língua helênica. Assim, eles seriam
desprovidos do logos, da razão. Pearson repete todos os pedantes
históricos ao ironizar os jovens. “Quem não fala inglês, fique sem se
expressar”, decretou o propagandista disfarçado de pesquisador. Cabe à
USP justificar o injustificável: como e por quem foi convidada uma
pessoa com tais formas de agir?
É moda, em tempos de conservadorismo com tinturas fascistas, desprezar
as Luzes, a filosofia emancipadora do século 18. Nem todos os
integrantes daquele movimento, é certo, foram democráticos. Voltaire é
prova. Mas ele batalhou contra a tortura e os processos judiciais
injustos, defendeu a minoria protestante. O caso Calas o imortalizou.
Diderot e Condorcet mostraram coragem inaudita ao defenderem os negros
contra a violência branca. No caso de Condorcet, também os judeus e as
mulheres receberam apoio combativo.
Condorcet invectivou os verdadeiros bandidos de seu tempo, aqueles
brancos que inventaram a mais “horrível barbárie”. Em escrito sobre o
pensamento de Pascal (1776), ele propõe a renúncia ao açúcar, guloseima
“suja pelo sangue de nossos irmãos negros”. E lutou contra o Código
Negro, que autorizava os donos de escravos a torturar sua mão de obra.
Em 1781 publicou, com o pseudônimo de Joachim Schwartz (Joaquim Negro),
escrito em que se dirigia aos afrodescendentes. A natureza, dizia ele,
vos formou “para ter o mesmo espírito, a mesma razão, as mesmas virtudes
dos brancos. (…) No relativo aos brancos das colônias, não vos faço a
injúria de a eles vos comparar. Sei bem o quanto a vossa fidelidade,
probidade, coragem fazem enrubescer os donos de escravos. Se
procurássemos um homem nas ilhas da América, ele não seria encontrado
entre as pessoas de carne branca”. A lembrança do filósofo Diógenes é
certeira: entre escravistas, sobretudo quando se imaginam gregos e
adeptos da filosofia, não existe humanidade, mas elegante e covarde
selvageria.
Graças aos iluministas e democratas, a escravidão foi abolida na França
em 1794. Os escravistas franceses negaram-se a obedecer à lei e pediram
ajuda dos espanhóis para vencer Toussaint L’ Ouverture, o líder da
negritude no Haiti. A derrota do general negro é percebida até hoje
naquele triste país, corroído pela miséria após ditaduras amigas dos
brancos, como a do sinistro Papa Doc. No Termidor veio o triunfo de
Bonaparte e a escravidão foi restabelecida. O imperador guerreiro
destruiu os revoltados escravos. Só em 1848 a escravidão foi novamente
abolida. Na Inglaterra tal fato ocorreu em 1833 e nos EUA, em 1865.
No Brasil, apesar da Lei Áurea, ainda hoje existem escravidão e
preconceitos nada disfarçados em todas as camadas sociais brancas. As
autoridades fingem reprimir o racismo e o antissemitismo, como alguns
colegas da USP fingem liberdade acadêmica e democracia. Desde que elas
sejam para pessoas de pela alva. Shame on you, colegas!
*PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE ‘RAZÃO DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO’ (PERSPECTIVA)