Colunistas
Roberto Romano: latinos?
"A fórmula 'América Latina' não denota uma cultura comum gerada no Latium via Espanha e Portugal. Ela traz o selo de uma invenção diplomática"
por Roberto Romano*
Memorial da América Latina, em São Paulo
Foto:
Ver Descrição / Ver Descrição
* Professor titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp. Estreia nesta semana e escreverá quinzenalmente no caderno PrOA
Amigos do Rio Grande, meus respeitos! Recebi a honra de escrever na
Zero Hora em companhia de ilustres colegas e jornalistas. O nosso
convívio, penso, pode ser destinado ao diálogo sobre questões éticas,
estéticas e políticas. Escolhi para a primeira conversa um tema
espinhoso.
Usamos sem cautelas a palavra “latino” para indicar quem vive abaixo
do México. A recusa do apelativo, não raro, é punida com linchamentos
ideológicos. Numa reunião acadêmica, fui proibido de questionar o fato e
a palavra. E o evento era um “debate”. Discordar, pouco a pouco, se
transforma em sinônimo de crime. Mas pensemos o dogma.
O termo “América Latina” surge em 1856 com Francisco Bilbao e Torres
Caicedo. Ele se amplia com o padre Lamennais e se vulgariza sob Napoleão
III. Mesmo com Lamennais, teórico e suposto progressista – de fato um
conservador desiludido – ele assume forma problemática. Para a política
internacional da França, importa que os EUA não controlem o México.
“Se”, escreve o imperador ao General Forey em 1862, “o México mantiver
sua independência e integridade territorial, e com ajuda da França um
governo estável se estabelecer ali, podemos restaurar a força e o
prestígio da raça latina no ‘outro’ lado do Atlântico (…) é nosso dever
intervir no México com nossa bandeira”. E mais: “estamos interessados em
manter os EUA como poderosa república; não é interesse nosso que ele se
aposse de todo o Golfo do México e governe as Índias Ocidentais e a
América do Sul, controle toda a produção do Novo Mundo”. Leia-se M.
Rojas, Los Cien Nombres de America (1991).
O nome se reforça com a imposição sangrenta ao México de um
governante estrangeiro, o patético Maximiliano de Habsburgo. A
latinidade oficial nasce numa concorrência entre imperialismos. O mito
legitima canhões e baionetas de Napoleão III, cujo alvo era garantir
“mercado para nossas fábricas, matéria-prima para nossas manufaturas” na
mesma carta ao general Forey).
O “latino” atribuído à nossa gente surge em conflitos políticos,
econômicos, ideológicos e religiosos que envolviam a Europa, os EUA e as
nações que conseguiram independência no século 19. A fórmula “América
Latina” não denota uma cultura comum gerada no Latium via
Espanha e Portugal. Ela traz o selo de uma invenção diplomática
(mentirosa como toda razão de Estado) para definir o território de caça
francês, contra a notória voracidade norte-americana de espaço. A
propaganda gálica indica os protestantes do Norte como ateus presos ao
mercado. Já a França seria espiritual. No fato, Paris quer a riqueza
americana, jamais o diálogo com nosso espírito, demasiado primitivo
segundo seus filósofos. Vicente Romero tem outra versão, plausível. A
ela voltarei se preciso. As vítimas devem optar entre imperialismos:
qual rapina é menor? Vencidos os franceses, nossa gente é estigmatizada
como “latina”. Nos EUA de hoje, o termo designa cidadania inferior.
O apelativo silencia que os indígenas e seus filhos são alheios à
cultura de Cícero. Eles eram muitos antes dos europeus. Após o seu
genocídio nos EUA, na América Central e do Sul, congregam povos que
vincam a nossa fala e vida ética. Africanos nada possuem que os ligue à
cultura “latina”. Dela, recebem morte e dor. Os afrodescendentes não são
“minoritários”, pois só aqui eles contam 101.923.585 (IBGE). Se
passamos aos alemães, ucranianos, poloneses, russos, japoneses,
húngaros, holandeses, chineses, coreanos, sírios, libaneses, turcos e
outras etnias, piora o equívoco do “latino”. E o fato existe no
continente inteiro. Analiso o tema na revista Art-Press (How “latin” is Latin America?).
O termo “latino” não significa, de modo imediato, liberdade
democrática. Em vez de retomar algo que nos prende às ideologias do
século 19, importa pensar o Brasil como síntese dinâmica de múltiplas e
diferentes culturas, política inclusive. Tensões entre elas ocorrem, mas
todas entram na paleta de nosso povo sem nada dever aos pretensos
donos, gálicos ou saxões, do mundo.