O silêncio palavroso de Marilena Chaui
Por Roberto Romano
Quando uma instituição autoritária deseja impor regras e atitudes aos
seus integrantes, ela inicia os procedimentos para obrigá-los com o uso da
censura. Caso os rebeldes não se curvem e desobedeçam as ordens superiores,
eles recebem punições diversas, das mais leves às severas. A excomunhão é o ato
final da tragédia ética, porque nela os dirigentes perdem algum poder (corpos e
mentes saem do seu controle) e os expulsos ficam sem as antigas referências
intelectuais ou emotivas. A Igreja Católica sabe que a excomunhão é traumática
e acarreta resultados deletérios. O caso Lutero é por demais ilustrativo. É por
esse fato que os cardeais e bispos, sob autorização papal, inventaram o
"silêncio obsequioso".
Quem o aceita mostra boa vontade e promete
tacitamente retornar à plena obediência. Em vez de romper com as autoridades ou
crenças criticadas, o silencioso por conveniência proclama, com o próprio
mutismo, sua adesão ao poder imperante na igreja ou partido político. Ele
permite que sua consciência seja estuprada pela metade, para manter a farsa
desempenhada pelos seus carcereiros espirituais. Intelectual que aceita
silenciar "em obséquio" nem é fiel nem infiel, é uma farsa. O mundo
político ocidental, fruto de uma ruptura com o mando sagrado (consulte-se o
livro de Ernst Kantorowicks, Os Dois Corpos do Rei), conserva a liturgia e os
procedimentos religiosos, sem conexões com a transcendência. Trata-se de uma
religião farsesca com os seus fiéis militantes (muitos deles fanáticos), uma
Inquisição onde pontificam bruxos e perseguidores. O comunismo teve seus
"obsequiosos" fantasiados de Galileu. G. Lukács foi um deles.
O
petismo, na derrocada axiológica que o leva, literalmente, ao lixo (Leão Leão
e outras "empresas" do ramo) hoje
apresenta os seus "intelectuais críticos" farsescos. Dentre eles, a
professora Chauí, bem afeita ao verbo fluente quando se tratava de afastar os
adversários do petismo, agora apoia o seu partido com a tática do silêncio
falso. Após usar e abusar o quanto pôde da imprensa para os fins de sua
propaganda, ela finge "não ler jornais". E fornece um subterfúgio aos
seus colegas que, sem coragem ou honestidade intelectual para romper com o PT,
encontram na imprensa o Judas para esquecer os Delúbios e Silvios Pereiras de
quem ainda ontem obedeciam ordens. Diante de últimas marilenadas, em comícios
disfarçados de seminário filosófico, a memória me traz fragmentos de um
convívio desagradável com a professora da USP.
Nos barracões onde se abriga a filosofia uspiana, o calor ameaça qualquer atenção. A professora arenga numa sala repleta de jovens boquiabertos. Cita enorme trecho de Kierkegaard. Pergunto: ela teria esquecido pedaços do texto ou se enganado? Algo era muito estranho. Em casa, corro ao livro em questão, sem acesso ao texto original, redigido em língua estranha à humanidade. Mas o disponível estava na língua francesa. Confiro as notas de aula e fico perplexo: cada linha, cada vírgula da tradução correspondem às palavras da professora. "A senhora tem razão, pois cita o texto sem erro." Resposta: "Eu sempre tenho razão!". Surge em mim o espanto e a repugnância. Quem fala daquele modo pratica apenas a retórica ou a ideologia. Memorizar um texto, ensina Platão, está muito longe de colher os objetos nele indicados. Papagaios repetem perfeitamente muitas palavras.
A segunda vez em que me espantei com atitudes de Marilena Chauí: na visita
inaugural de João Paulo II ao Brasil. A esquerda do catolicismo vulgar,
liderada por pessoas pouco afeitas à cultura, afirmam que a Igreja seria
socialista. Sem atenção aos fatos e às idéias, elas repetiam palavras de ordem
que mais expressavam seu desejo do que alguma coisa efetiva. Eu defendera uma
tese de doutorado na França e mostrara que os laços entre o mundo político e a
Igreja eram mais sutis do que imaginavam os afeitos aos psitacismos de Marta
Harnecker. Os donos da verdade "revolucionária" elaboraram suas falas
como líderes de rebanhos humanos. Para ilustrar o clima do tempo, basta dizer
que recebi certo projeto de tese a ser dirigido à Fapesp. A "tese"
era simples: ao mudar o modo de produção, mudam as super estruturas. Ora, o modo
de produção deixava o capitalismo pelo socialismo. Logo, a Igreja se
transformava em socialista. No "projeto de tese" vinha uma bibliografia sublime: textos
de Engels e Marx unidos "ao" documento do Vaticano 2. Quando
encontrei a candidata (na presença de estudantes e docentes) falei sobre o
trabalho que ele era "digno de Max Weber e de Karl Marx".
Continuo a história da moça que iria "provar" o
socialismo fatal da Igreja Católica. Seu projeto, disse, era digno de Weber e
de Marx. Após o sorriso satisfeito da moça, terminei: "Digna de Weber
pouco antes de ser internado e de Marx quando os furúnculos lhe doíam na
British Library". Como ela conseguiria demonstrar a passagem de um campo
ao outro da vida social? Marx mesmo desistira do sipoal em questão. Entreguei à
moça uma lista de livros a serem lidos, se ela quisesse falar algo sobre o
tema, algo em torno de 100 títulos. Ela recebeu uma informação sobre
"o" documento do Vaticano 2. O Concilio produziu milhares de páginas.
A resposta da candidata foi honesta e singela, nos padrões da esquerda misóloga
e militantes: "Não lerei tais livros e documentos, porque eles podem
modificar o resultado da minha pesquisa!" A sua possível orientadora
desistiu de ambas, tese e orientanda.
A narrativa acima ilustra o ambiente da esquerda católica da
época, com os seus parasitas de sempre. O saber estava dado nos lambões de
marxismo e a pesquisa era roupagem para "expropriar" a Fapesp e
demais instituições burguesas. No mesmo plano superficial da
"pesquisadora" andavam importantes líderes da Teologia da Libertação,
como Clodovis Boff, irmão de outro Boff mais famoso. Na resenha que escreveu
para o meu livro (Brasil, Igreja contra Estado) e tentando ridicularizar minhas
advertências sobre o conúbio entre socialismo e catolicidade, ele brindou a
cultura política com lindas pérolas, referindo-se à "inegável tendência da
Igreja na direção do projeto socialista". Burrice satisfeita e grosseria
definiam os "projetos" da estudante uspiana e de Boff. Termina o
autor a sua resenha de maneira gentil : "Este discurso altivo e coquete dá
mostras de estar completamente por fora da questão real. Ele não se engata na
caminhada dos oprimidos. A quem poderá interessar?" (A Igreja da
Esperança, Leia Livros, Agosto de 1980). A "ciência marxista" rezava
que a Igreja se tornaria irresistivelmente socialista. Quem não
"engatasse" naquele trem perderia a história.
Volto à mestra Chaui. Se a Igreja era candidata certa ao
socialismo, nada mais "natural" que João Paulo 2 assumisse semelhante
"projeto". Afinada com todos os setores que lhe acarretam dividendos,
a professora jogou Spinoza às urtigas, escondeu as críticas à dominação
teológico-política e pregou as maravilhas do Bom Pastor. A Folha de São Paulo
(Folhetim) organiza um encontro para discutir a visita papal ao Brasil. Foram
convidados religiosos e até aquela data a muito atéia professora. Recebi um
convite, pois imaginaram-me fervoroso adepto do novo papa. Engano fatal. Os
religiosos cantaram João de Deus em prosa e verso. Chaui armou um aranzel para
dizer que ele libertarias as massas oprimidas pelo capital. Alertei os
presentes e a esquerda: o sumo pontífice era contrário ao socialismo e
desmantelaria as teologias da "libertação". Matéria publicada, a
censura mostrou-se com evidência, pois foram editadas frases minhas sem as
bases críticas que avancei. Já a arenga "socialista, cristã e
libertária" da professora foi publicada na íntegra. Seguiu-se a luta entre
João Paulo 2, a URSS, e quejandos. As primeiras vítimas, merecidamente, foram
os "teólogos" que preferiram insultar em vez de refletir no real
alcance do delírio de uma catolicidade "socialista". Com a repressão
do Vaticano, a professora calou o bico sobre o libertarismo religioso e,
rápido, retornou a Spinoza.
Certo dia, ao ler o jornal, vejo um texto de José Guilherme Merquior acusando um plágio da professora. Movido pela piedade e diante dos lamentos dramáticos por ela encenados, tentei defendê-la. Como não pertencia ao PT, sugeri que os "companheiros" deveriam vir a público. Todos, menos um, declaravam-se "indignados" com Merquior. Logo, afirmavam, escreveriam algo contra ele. Nada aparecia. Vários dentre eles mantinham colunas em revistas do País. O "menos um" indicado, importantíssimo no Panteão da esquerda, disse clara e distintamente : "Ela colou". Com o silêncio dos intelectuais petistas, em companhia de uma docente da USP escrevi na Folha em defesa de Chaui. Levei merecidas pauladas de Merquior. Numa polêmica é preciso sair ou solicitar desculpas pelo começo. Marilena Chaui exigia que não respondêssemos ao crítico enquanto o objeto do plágio, Claude Lefort, não o desmentisse. Depois de muita espera escrevemos comunicando que não diríamos mais nada sobre o caso. A acusada se lixou para o que ocorreu conosco, uma vez "absolvida" por Lefort. Na época um universitário ligado ao petismo saiu-se com esta: "Marilena é intelectual e militante. Não possui o tempo necessário para leituras. Ela pode agir assim, pela causa". Adeus às aspas…
Certo dia, ao ler o jornal, vejo um texto de José Guilherme Merquior acusando um plágio da professora. Movido pela piedade e diante dos lamentos dramáticos por ela encenados, tentei defendê-la. Como não pertencia ao PT, sugeri que os "companheiros" deveriam vir a público. Todos, menos um, declaravam-se "indignados" com Merquior. Logo, afirmavam, escreveriam algo contra ele. Nada aparecia. Vários dentre eles mantinham colunas em revistas do País. O "menos um" indicado, importantíssimo no Panteão da esquerda, disse clara e distintamente : "Ela colou". Com o silêncio dos intelectuais petistas, em companhia de uma docente da USP escrevi na Folha em defesa de Chaui. Levei merecidas pauladas de Merquior. Numa polêmica é preciso sair ou solicitar desculpas pelo começo. Marilena Chaui exigia que não respondêssemos ao crítico enquanto o objeto do plágio, Claude Lefort, não o desmentisse. Depois de muita espera escrevemos comunicando que não diríamos mais nada sobre o caso. A acusada se lixou para o que ocorreu conosco, uma vez "absolvida" por Lefort. Na época um universitário ligado ao petismo saiu-se com esta: "Marilena é intelectual e militante. Não possui o tempo necessário para leituras. Ela pode agir assim, pela causa". Adeus às aspas…