domingo, 31 de maio de 2015

Quando um grupo se torna hegemônico, em qualquer instituição ( a universidade entra no rol), os seus líderes se tornam intocáveis. Anátema para as críticas a eles dirigidas! E ao crítico, claro. Tempos atrás, acossado pelos ataques mais baixos de militantes petistas, que me diziam tucano ou qualquer outro designativo (basta olhar no Google para notar tais ataques), escrevi sobre uma "idola"do petismo em festa. E escrevi pouco, pois muito mais poderia vir a público. A partir de então surgiram os desconvites, as insinuações, as perseguições. Gente da grei escreveu que sou um intelectual amestrado. Mas não disseram nada que fosse provar o dito. Continuo contra o poder arbitrário, contra o fanatismo, contra o sectarismo, contra a mentira oficial. O que me traz aborrecimentos, mas a consciência livre e limpa. Segue abaixo um texto sobre uma proprietária de teclados e linguas, silente sempre que é preciso dizer, com prudência, o que ocorre nos palácios e adjacências. Continuo criticando tucanos (Richa no Paraná é exemplo de poder tirânico), petistas, psolistas, etc. É um direito humano que me assiste, além do direito cidadão. E que danem as seitas!

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O silêncio palavroso de Marilena Chaui

Por Roberto Romano 

Quando uma instituição autoritária deseja impor regras e atitudes aos seus integrantes, ela inicia os procedimentos para obrigá-los com o uso da censura. Caso os rebeldes não se curvem e desobedeçam as ordens superiores, eles recebem punições diversas, das mais leves às severas. A excomunhão é o ato final da tragédia ética, porque nela os dirigentes perdem algum poder (corpos e mentes saem do seu controle) e os expulsos ficam sem as antigas referências intelectuais ou emotivas. A Igreja Católica sabe que a excomunhão é traumática e acarreta resultados deletérios. O caso Lutero é por demais ilustrativo. É por esse fato que os cardeais e bispos, sob autorização papal, inventaram o "silêncio obsequioso". 

Quem o aceita mostra boa vontade e promete tacitamente retornar à plena obediência. Em vez de romper com as autoridades ou crenças criticadas, o silencioso por conveniência proclama, com o próprio mutismo, sua adesão ao poder imperante na igreja ou partido político. Ele permite que sua consciência seja estuprada pela metade, para manter a farsa desempenhada pelos seus carcereiros espirituais. Intelectual que aceita silenciar "em obséquio" nem é fiel nem infiel, é uma farsa. O mundo político ocidental, fruto de uma ruptura com o mando sagrado (consulte-se o livro de Ernst Kantorowicks, Os Dois Corpos do Rei), conserva a liturgia e os procedimentos religiosos, sem conexões com a transcendência. Trata-se de uma religião farsesca com os seus fiéis militantes (muitos deles fanáticos), uma Inquisição onde pontificam bruxos e perseguidores. O comunismo teve seus "obsequiosos" fantasiados de Galileu. G. Lukács foi um deles. 

O petismo, na derrocada axiológica que o leva, literalmente, ao lixo (Leão Leão e outras "empresas" do ramo) hoje apresenta os seus "intelectuais críticos" farsescos. Dentre eles, a professora Chauí, bem afeita ao verbo fluente quando se tratava de afastar os adversários do petismo, agora apoia o seu partido com a tática do silêncio falso. Após usar e abusar o quanto pôde da imprensa para os fins de sua propaganda, ela finge "não ler jornais". E fornece um subterfúgio aos seus colegas que, sem coragem ou honestidade intelectual para romper com o PT, encontram na imprensa o Judas para esquecer os Delúbios e Silvios Pereiras de quem ainda ontem obedeciam ordens. Diante de últimas marilenadas, em comícios disfarçados de seminário filosófico, a memória me traz fragmentos de um convívio desagradável com a professora da USP. 

Nos barracões onde se abriga a filosofia uspiana, o calor ameaça qualquer atenção. A professora arenga numa sala repleta de jovens boquiabertos. Cita enorme trecho de Kierkegaard. Pergunto: ela teria esquecido pedaços do texto ou se enganado? Algo era muito estranho. Em casa, corro ao livro em questão, sem acesso ao texto original, redigido em língua estranha à humanidade. Mas o disponível estava na língua francesa. Confiro as notas de aula e fico perplexo: cada linha, cada vírgula da tradução correspondem às palavras da professora. "A senhora tem razão, pois cita o texto sem erro." Resposta: "Eu sempre tenho razão!". Surge em mim o espanto e a repugnância. Quem fala daquele modo pratica apenas a retórica ou a ideologia. Memorizar um texto, ensina Platão, está muito longe de colher os objetos nele indicados. Papagaios repetem perfeitamente muitas palavras. 

A segunda vez em que me espantei com atitudes de Marilena Chauí: na visita inaugural de João Paulo II ao Brasil. A esquerda do catolicismo vulgar, liderada por pessoas pouco afeitas à cultura, afirmam que a Igreja seria socialista. Sem atenção aos fatos e às idéias, elas repetiam palavras de ordem que mais expressavam seu desejo do que alguma coisa efetiva. Eu defendera uma tese de doutorado na França e mostrara que os laços entre o mundo político e a Igreja eram mais sutis do que imaginavam os afeitos aos psitacismos de Marta Harnecker. Os donos da verdade "revolucionária" elaboraram suas falas como líderes de rebanhos humanos. Para ilustrar o clima do tempo, basta dizer que recebi certo projeto de tese a ser dirigido à Fapesp. A "tese" era simples: ao mudar o modo de produção, mudam as super estruturas. Ora, o modo de produção deixava o capitalismo pelo socialismo. Logo, a Igreja se transformava em socialista. No "projeto de tese" vinha uma bibliografia sublime: textos de Engels e Marx unidos "ao" documento do Vaticano 2. Quando encontrei a candidata (na presença de estudantes e docentes) falei sobre o trabalho que ele era "digno de Max Weber e de Karl Marx".

Continuo a história da moça que iria "provar" o socialismo fatal da Igreja Católica. Seu projeto, disse, era digno de Weber e de Marx. Após o sorriso satisfeito da moça, terminei: "Digna de Weber pouco antes de ser internado e de Marx quando os furúnculos lhe doíam na British Library". Como ela conseguiria demonstrar a passagem de um campo ao outro da vida social? Marx mesmo desistira do sipoal em questão. Entreguei à moça uma lista de livros a serem lidos, se ela quisesse falar algo sobre o tema, algo em torno de 100 títulos. Ela recebeu uma informação sobre "o" documento do Vaticano 2. O Concilio produziu milhares de páginas. A resposta da candidata foi honesta e singela, nos padrões da esquerda misóloga e militantes: "Não lerei tais livros e documentos, porque eles podem modificar o resultado da minha pesquisa!" A sua possível orientadora desistiu de ambas, tese e orientanda. 

A narrativa acima ilustra o ambiente da esquerda católica da época, com os seus parasitas de sempre. O saber estava dado nos lambões de marxismo e a pesquisa era roupagem para "expropriar" a Fapesp e demais instituições burguesas. No mesmo plano superficial da "pesquisadora" andavam importantes líderes da Teologia da Libertação, como Clodovis Boff, irmão de outro Boff mais famoso. Na resenha que escreveu para o meu livro (Brasil, Igreja contra Estado) e tentando ridicularizar minhas advertências sobre o conúbio entre socialismo e catolicidade, ele brindou a cultura política com lindas pérolas, referindo-se à "inegável tendência da Igreja na direção do projeto socialista". Burrice satisfeita e grosseria definiam os "projetos" da estudante uspiana e de Boff. Termina o autor a sua resenha de maneira gentil : "Este discurso altivo e coquete dá mostras de estar completamente por fora da questão real. Ele não se engata na caminhada dos oprimidos. A quem poderá interessar?" (A Igreja da Esperança, Leia Livros, Agosto de 1980). A "ciência marxista" rezava que a Igreja se tornaria irresistivelmente socialista. Quem não "engatasse" naquele trem perderia a história.

Volto à mestra Chaui. Se a Igreja era candidata certa ao socialismo, nada mais "natural" que João Paulo 2 assumisse semelhante "projeto". Afinada com todos os setores que lhe acarretam dividendos, a professora jogou Spinoza às urtigas, escondeu as críticas à dominação teológico-política e pregou as maravilhas do Bom Pastor. A Folha de São Paulo (Folhetim) organiza um encontro para discutir a visita papal ao Brasil. Foram convidados religiosos e até aquela data a muito atéia professora. Recebi um convite, pois imaginaram-me fervoroso adepto do novo papa. Engano fatal. Os religiosos cantaram João de Deus em prosa e verso. Chaui armou um aranzel para dizer que ele libertarias as massas oprimidas pelo capital. Alertei os presentes e a esquerda: o sumo pontífice era contrário ao socialismo e desmantelaria as teologias da "libertação". Matéria publicada, a censura mostrou-se com evidência, pois foram editadas frases minhas sem as bases críticas que avancei. Já a arenga "socialista, cristã e libertária" da professora foi publicada na íntegra. Seguiu-se a luta entre João Paulo 2, a URSS, e quejandos. As primeiras vítimas, merecidamente, foram os "teólogos" que preferiram insultar em vez de refletir no real alcance do delírio de uma catolicidade "socialista". Com a repressão do Vaticano, a professora calou o bico sobre o libertarismo religioso e, rápido, retornou a Spinoza.

Certo dia, ao ler o jornal, vejo um texto de José Guilherme Merquior acusando um plágio da professora. Movido pela piedade e diante dos lamentos dramáticos por ela encenados, tentei defendê-la. Como não pertencia ao PT, sugeri que os "companheiros" deveriam vir a público. Todos, menos um, declaravam-se "indignados" com Merquior. Logo, afirmavam, escreveriam algo contra ele. Nada aparecia. Vários dentre eles mantinham colunas em revistas do País. O "menos um" indicado, importantíssimo no Panteão da esquerda, disse clara e distintamente : "Ela colou". Com o silêncio dos intelectuais petistas, em companhia de uma docente da USP escrevi na Folha em defesa de Chaui. Levei merecidas pauladas de Merquior. Numa polêmica é preciso sair ou solicitar desculpas pelo começo. Marilena Chaui exigia que não respondêssemos ao crítico enquanto o objeto do plágio, Claude Lefort, não o desmentisse. Depois de muita espera escrevemos comunicando que não diríamos mais nada sobre o caso. A acusada se lixou para o que ocorreu conosco, uma vez "absolvida" por Lefort. Na época um universitário ligado ao petismo saiu-se com esta: "Marilena é intelectual e militante. Não possui o tempo necessário para leituras. Ela pode agir assim, pela causa". Adeus às aspas…