quarta-feira, 23 de junho de 2010

Correio Popular de Campinas

Publicada em 23/6/2010


Direito Penal e Constituição



Tempos atrás, analisei nesta coluna a ética horrenda que permeia setores da sociedade brasileira, deformada no século XX por duas ditaduras. O foco do exame era a selvageria da massa - movida por uma imprensa fascista - posta dias e dias na frente do Fórum, em São Paulo, culminando na agressão criminosa contra Roberto Podval, digno advogado dos Nardoni. No texto, cito um jovem estudioso do Direito Penal, professor universitário na Facamp e em outros centros de ensino paulista. Refiro-me a João Paulo Martinelli. Finalmente, tive acesso a dois novos estudos seus que, pela doutrina e prudência, anunciam grande futuro na vida pública. Em volume editado pela Academia Jundiaiense de Letras Jurídicas (ano de 2008), denso ensaio sobre a Constituição e o Direito Penal mostra estarmos longe do Estado democrático. Cito frases lapidares do estudo: “Interpretar a lei penal de acordo com a Carta Magna é regra absoluta que não deve ser ignorada. Afinal, já passou a hora de compreender o Direito como sinônimo de justiça e não como instrumento de repressão e arbitrariedade de uma sociedade cada vez mais dominada pelos detentores do capital”.

Martinelli aponta a tirania Vargas como uma das causas da inversão indicada acima. Anos atrás, a professora Alba Zaluar mostrou, em estudos antropológicos, que o vezo positivista de penalizar formas de vida como “vadiagem” produziu em parte a fábrica de crimes instalada nos presídios brasileiros. O regime Vargas, eivado de moralismo positivista, no mesmo instante em que anuncia o mítico “Direito do trabalho” (cópia do pior fascismo), arranca das massas o sentimento do Direito e favorece o poder do Estado. O próprio tirano disse tudo: “O Estado não conhece direitos de indivíduos contra a coletividade. Os indivíduos não têm direitos, têm deveres! Os direitos pertencem à coletividade!” (Getúlio Vargas, discurso em 1/5/1938, ver L. W. Viana, Liberalismo e sindicato no Brasil, RJ, Paz e Terra, 1976). Na segunda ditadura, civil e militar, ocorreu perfeita simbiose entre os dois segmentos. Nela, não raro os civis - os que Martinelli aponta como “detentores do capital” - foram mais duros do que o quartel. Eles se cobriram com a farda alheia para atingir alvos econômicos e políticos grupais. Basta pensar nos que infestaram e infestam as nossas “casas das leis” e que exerceram contra os castrenses a mesma chantagem hoje empregada contra os governantes supostamente democráticos. Para quem, sob a ditadura, estava no campo liberal ou à esquerda do espectro político, seria inimaginável aplaudir José Sarney em evento do Partido dos Trabalhadores. Mas, agora, como então, a chantagem é via de mão dupla, ela segue o costume brasileiro da troca de favores, o lamentável “é dando que se recebe”.

Boa parte dos temas, no texto de Martinelli (recomenda-se a leitura, urgente), pode ser pensada a partir das lições hegelianas sobre a Filosofia do Direito (§127): “Em perigo supremo e conflitos que surgem a propósito da propriedade jurídica de outrem, a existência pessoal tem um direito de necessidade (Notrecht) que deve prevalecer. Não se trata apenas de equidade, mas de direito”. Hegel explica: “Enquanto é conjunto de fins, a vida tem um direito contra o direito abstrato” (“Das Leben....hat ein Recht gegen das abstrakte Recht”). E mais: “Se o roubo de um pão pode prolongar a vida, é manifestamente um atentado à propriedade de um homem, mas seria injusto (unrecht) considerar esta ação como roubo comum. Se não fosse permitido ao homem, cuja vida é ameaçada, agir deste modo, nós o consideraríamos como um ser privado de direitos (rechtlos) e negaríamos sua liberdade recusando-lhe o direito de viver”.

Consola constatar que, no mundo do pensamento, as melhores doutrinas são continuadas por jovens como o professor João Paulo Martinelli. Todos conhecem o dito do moleiro que recebeu justiça contra um poderoso rei alemão: “Es gibt noch Richter in Berlin” (Ainda existem juízes em Berlim). O mundo da justiça, assegurado por juízes prudentes, não pode ser apenas esperança vazia, mesmo para os brasileiros.