terça-feira, 1 de Junho de 2010
O FIM DAS HUMANIDADES? (1)
Novo post de Eugénio Lisboa:
Por todo o lado – e não só em Portugal – se começa a murmurar e até mesmo a proclamar em voz alta e indiciadora de algum pânico o fim dos estudos humanísticos, alegadamente cilindrados pela proeminência devastadora da cultura científica que, primeiro lentamente, depois em aceleração assustadora, se tem vindo a impor e a tomar conta do palco nos teatros do mundo. Como é de regra, também nesta história, não há culpados, de um lado, e inocentes, do outro. As culpas distribuem-se cartesianamente bem pelos dois lados e alguma inocência também. Quando, em 1959, C. P. Snow lançou o grito de alarme, com o seu célebre ensaio sobre As Duas Culturas, embora não estivesse a dizer nada de novo, levantou ondas de aplauso sonoro, simultaneamente com gritos de indignação e mesmo, nalguns casos, com feios exemplos de vitupério e de vitríolo. A reacção do célebre académico de Cambridge, F. R. Leavis, considerado pelos britânicos como o maior crítico literário do nosso tempo, ultrapassou, em violência e desaforo, tudo quanto a tradicional cautela universitária tem por costume aconselhar. Reacções destas não pareciam sugerir – como visara Snow – a futura construção de pontes que ligassem a cultura humanística à cultura científica. O bioquímico Michael Yudkin, aludindo à controvérsia e entrando nela em cheio, fazia uma lúgubre profecia, nestes termos: “Há, infelizmente, dúzias de culturas no uso que Sir Charles faz do termo, mesmo que o fosso entre o cientista e o não-cientista seja provavelmente o maior... Não haverá [no futuro] construção de pontes através desse fosso, não aparecerão modernos Leonardos, não haverá migração de cientistas para a literatura. Em vez disso, verificar-se-á a atrofia da cultura tradicional e uma gradual anexação feita pelo científico – anexação não de território mas de homens. Talvez não passe muito tempo até se chegar a uma cultura única que vai ficar.”
Por todo o lado – e não só em Portugal – se começa a murmurar e até mesmo a proclamar em voz alta e indiciadora de algum pânico o fim dos estudos humanísticos, alegadamente cilindrados pela proeminência devastadora da cultura científica que, primeiro lentamente, depois em aceleração assustadora, se tem vindo a impor e a tomar conta do palco nos teatros do mundo. Como é de regra, também nesta história, não há culpados, de um lado, e inocentes, do outro. As culpas distribuem-se cartesianamente bem pelos dois lados e alguma inocência também. Quando, em 1959, C. P. Snow lançou o grito de alarme, com o seu célebre ensaio sobre As Duas Culturas, embora não estivesse a dizer nada de novo, levantou ondas de aplauso sonoro, simultaneamente com gritos de indignação e mesmo, nalguns casos, com feios exemplos de vitupério e de vitríolo. A reacção do célebre académico de Cambridge, F. R. Leavis, considerado pelos britânicos como o maior crítico literário do nosso tempo, ultrapassou, em violência e desaforo, tudo quanto a tradicional cautela universitária tem por costume aconselhar. Reacções destas não pareciam sugerir – como visara Snow – a futura construção de pontes que ligassem a cultura humanística à cultura científica. O bioquímico Michael Yudkin, aludindo à controvérsia e entrando nela em cheio, fazia uma lúgubre profecia, nestes termos: “Há, infelizmente, dúzias de culturas no uso que Sir Charles faz do termo, mesmo que o fosso entre o cientista e o não-cientista seja provavelmente o maior... Não haverá [no futuro] construção de pontes através desse fosso, não aparecerão modernos Leonardos, não haverá migração de cientistas para a literatura. Em vez disso, verificar-se-á a atrofia da cultura tradicional e uma gradual anexação feita pelo científico – anexação não de território mas de homens. Talvez não passe muito tempo até se chegar a uma cultura única que vai ficar.”
Nada disto fora a intenção de Sir Charles Snow, ao escrever o ensaio sobre As Duas Culturas. Num texto que publicou quatro anos depois (1963), Snow confessa, com alguma candura, que não esperava muito, em termos de reacção ao seu livro: “Não esperava grande coisa”, observa ele na adenda intitulada "Two Cultures: A Second Look”. E acrescentava: “Muita gente andava a dizer coisas semelhantes. Pareceu-me que era tempo de se falar a uma só voz.” Nesta mesma adenda, ele resume, deste modo, a modesta intenção do seu ensaio, que tanto ruído viria a produzir: “Na nossa sociedade (isto é, na sociedade avançada do ocidente) perdemos a mais ínfima pretensão a uma cultura comum. Pessoas educadas com a mais elevada intensidade sabe-se que deixaram de saber comunicar umas com as outras no plano das suas maiores preocupações intelectuais. Isto é grave para a nossa vida criativa e intelectual e ainda mais grave para a nossa vida normal.” E dizia ainda: “Dei o mais agudo exemplo desta falta de comunicação sob a forma de dois grupos de pessoas que representavam o que eu baptizei de ´as duas culturas´. Um destes grupos incluía os cientistas, cujo peso, realização e influência não precisam de ser realçados. O outro grupo continha os intelectuais da literatura. Entre estes dois grupos – os cientistas e os intelectuais da literatura – existe pouca comunicação e, em vez de um sentimento de companheirismo, verifica-se algo de muito parecido com hostilidade.” Snow acrescenta ainda, com alguma melancolia, que pretendera, com o seu ensaio, descrever apenas com alguma grosseira aproximação, um estado de coisas – o fosso entre duas culturas -, fosso esse que detestava. Para sua surpresa, verificou que alguns comentadores presumiram que ele o aprovava.
Esta “desaproximação” entre estes dois universos vinha de longe. Já os pensadores gregos do período romano, nota Asimov com alguma ironia, no seu utilíssimo New Guide to Science, se “viram cada vez mais arrastados para os subtis prazeres da filosofia moral e para longe da aparente esterilidade da filosofia natural”. E acrescentava: “O cristianismo , com a sua ênfase na natureza de Deus e da sua relação com o homem, introduziu uma dimensão inteiramente nova no tema da filosofia moral, que aumentou a sua superioridade aparente enquanto trabalho intelectual, relativamente à filosofia natural. Entre 200 d.C. e 1200 d.C. os europeus preocuparam-se quase exclusivamente com a filosofia moral, em particular com a teologia. A filosofia natural [isto é, a ciência) foi quase esquecida.”
Deve-se aos árabes a preservação de Aristóteles e Ptolomeu – arautos da filosofia natural, mesmo com os seus erros colossais – e foi, graças a isto, escreve ainda Asimov, que “as principais figuras do Renascimento deslocaram o centro do interesse das matérias relativas a Deus para as obras da humanidade” e, por isso, estas foram designadas de “humanistas”. Os grandes cientistas do Renascimento acabaram por virar resolutamente as costas aos preconceitos típicos dos pensadores gregos, mesmo dos grandes, os quais veneravam sobretudo a “perfeição”, a “beleza” do método dedutivo e não a menor esbelteza ou elegância do indutivo. Para os gregos, confirmar uma teoria pelo processo “grosseiro” da experimentação e da verificação estava fora do seu horizonte. Asimov nota, com ironia perversa, que “não se sabe se Aristóteles alguma vez deixou cair duas pedras de peso diferente a fim de verificar o seu pressuposto de que a velocidade da queda é proporcional ao peso do objecto.” E Bertrand Russell observaria, com a sua acutilância felina, que Aristóteles poderia ter evitado afirmar que as mulheres têm menos dentes do que os homens, pelo processo expedito de pedir à Sra. Aristóteles que abrisse a boca. Galileu, no Renascimento, pediu vénia ao grande filósofo grego e foi, ainda assim, verificar, com dois objectos de peso diferente, que a afirmação milenar do grande filósofo era falsa: o peso do objecto que cai não tem qualquer influência na aceleração do movimento. Citando de novo Asimov, “verificar uma teoria perfeita usando instrumentos imperfeitos não impressionava os filósofos gregos como modo válido de obter conhecimento.” Era por causa deste amor à esbelteza do conhecimento dedutivo que os astrónomos andaram mais de mil anos a dizer que os movimentos dos astros em torno de outros astros se faziam percorrendo circunferências porque, sendo a circunferência uma curva perfeita e, nos céus, por ali não haver corrupção, só haveria lugar para a perfeição, o movimento de um astro em torno de outro astro teria que obedecer a esse mandato de perfeição. Mesmo quando a observação directa e o registo implacável dos factos recomendavam a elipse, alguns grandes astrónomos, como Copérnico, já em pleno Renascimento, obstinavam-se na circunferência preferindo duvidar dos factos da observação e privilegiar o apetite de elegância. Mas foi a partir do século XVI que o cientista passou a usar o método indutivo como “processo essencial de obter conhecimento”. Galileu, Tycho Brahe e Kepler abriram o caminho à monumental construção de Newton, que são as suas três simples e elegantes leis do movimento: simples e elegantes mas verdadeiras porque verificáveis experimentalmente e não verdadeiras por serem simples e belas...N ewton, porventura o maior cientista de todos os tempos, foi idolatrado e a eminência do seu feito veio a constituir-se num potente motor de arranque para a extraordinária evolução que a ciência experimentou a partir dele. Mas foi, sobretudo, a partir da Segunda Guerra Mundial, que se começou a assistir a uma aceleração estonteante no progresso da investigação científica em todos os campos. Na física, na química, na astronomia, na biologia, na medicina. Em alargamento e em profundidade, aprende-se hoje mais em cinco anos do que se aprendia antes em dois milénios. Um aluno do secundário sabe hoje mais do que sabia Newton ou Galileu. E, com isto, vai-se criando, no domínio da ciência, uma linguagem cada vez mais opaca para o leigo nestas matérias. Como nota Asimov, no precioso livro que já citei: “As publicações de cientistas relativas ao seu trabalho individual nunca foram tão copiosas – e tão ilegíveis para toda a gente excepto os especialistas dos mesmos ramos. Isto transformou-se num prejuízo para a própria ciência, pois os avanços básicos do conhecimento científico decorrem muitas vezes da fertilização de conhecimentos entre diferentes especialidades.” E acrescenta: “Ainda pior, a ciência perdeu cada vez mais o contacto com os não cientistas. Nestas circunstâncias, os cientistas acabaram por ser vistos quase como mágicos – mais temidos que admirados. E a impressão de que a ciência é uma magia incompreensível, apenas compreendida por alguns escolhidos que são suspeitamente diferentes da humanidade normal, tende a afastar muitos jovens da ciência.”
O FIM DAS HUMANIDADES? (2)
Do lado dos intelectuais da cultura humanista, a reacção não tem sido boa. Como não compreendem, contra-atacam, desvalorizando e tentando impor, com o seu quê de arrogância, o primado dos seus próprios valores: ler Homero, ou Virgílio e tratar-se por tu com Shakespeare dispensa bem saber o que diz e significa o segundo princípio da termodinâmica. Os juristas, os letrados, os historiadores não raro “se gabam” de não terem inclinação para os números. Não perceber matemática é um galardão. O poeta inglês Wystan Hugh Auden disse um dia: “Quando me encontro na companhia de cientistas sinto-me como um pároco mal amanhado caído, por erro, numa sala repleta de duques.” Quase juraria tratar-se, aqui, não de genuína modéstia, mas sim, de falsa humildade, com o fim de (mal) esconder a alegria exuberante de poder manifestar o seu alheamento do “charabia” dos cientistas. Não ter inclinação nem para números nem para abstracções demasiado refinadas – é, para tantos, da nossa feira de vaidades, uma bandeira que se arvora com orgulho. E é assim que o fosso se aprofunda. Cada vez mais correríamos o risco de andar a criar duas linguagens sem denominador comum. O conhecido linguista americano Noam Chomsky julgou poder estabelecer que “todas as pessoas têm, programada nos seus genes, uma faculdade chamada gramática universal.” O avanço vertiginoso do cabedal científico do nosso tempo, desacompanhado de uma tentativa séria de o tornar partilhável pelo comum das pessoas pode levar a pôr em causa a assunção de Chomsky. Por um lado, como nota Asimov, “a ciência não pára. É uma paisagem que subtilmente se dissolve e altera enquanto a olhamos. Não pode ser fixada em todos os seus pormenores, num qualquer momento, sem nos deixar ficar para trás.” No entanto, de há várias décadas a esta parte, um número perigosamente elevado de pessoas foi-se deixando ficar para trás, para se não incomodar com a linguagem bizarra dos “duques”. E, todavia, o fosso real entre as duas culturas é, de sua natureza, bem menor do que se tem inculcado. O professor Sir Cyril Burt, num eloquente prefácio que escreveu para o celebrado e controverso livro de Arthur Koestler, The Act of Creation, notava com pertinência: “O estudante da natureza humana mostra-se hoje em dia muito inclinado a esquecer-se de que a maior parte do que sabemos sobre a mente do homem aprende-se em escritos, não de cientistas, mas de homens de letras – os poetas e os filósofos, os biógrafos e os historiadores, os romancistas e os críticos literários. Eu digo aos meus estudantes que leiam o Ensaio sobre o Homem de [Alexander] Pope, bem como livro de texto de Skinner sobre Ciências e Comportamento Humano (Pope foi poeta e Skinner cientista).” E concluía assim: “Mas, na verdade, o psicólogo moderno, tal como o jovem Bacon, precisa de 'meter todo o conhecimento dentro da sua província'.” Thomas Kuhn, o autor do celebrado livro A Estrutura das Revoluções Científicas, observava, com o seu quê de provocação, que, “mesmo hoje, a teoria geral [da relatividade] de Einstein, atrai os homens, principalmente por razões estéticas, uma atracção que poucas pessoas, fora das matemáticas, têm sido capazes de sentir.” E, já agora, lembrarei – o que por mais de uma vez fiz – o admirável livro de Bronowski, Science and Human Values, no qual o autor recorda que “a maçã [que cai] no jardim de verão e a grave lua [que se move] acima das nossas cabeças são por certo tão dissemelhantes nos seus movimentos quanto duas coisas o podem ser [mas que] Newton descobriu nelas duas expressões de um só conceito, a gravitação: e o conceito (e a unidade) são, nesse sentido, uma criação sua.” Newton teria, por outras palavras, encontrado “semelhanças escondidas” numa aparente dissemelhança. O mesmo faz o poeta, observa ainda Bronowski, porquanto “uma imagem poética [é apenas] a captação e a exploração de uma semelhança escondida, o manter unidas duas partes de uma comparação que assim se darão mutuamente um acréscimo de profundidade.” E conclui com uma saudável e fundamental audácia: “As descobertas da ciência, as obras de arte são explorações – melhor, são explosões de uma semelhança escondida. O descobridor [científico] ou o artista apresentam nelas dois aspectos da natureza e fundem-nos num só. Isto é um acto de criação, no qual nasce um pensamento original, e é o mesmo acto em ciência original e em arte original.” É neste mesmo – e essencial – sentido que Arthur Koestler, no toque de clarim com que abre o primeiro capítulo do seu livro The Act of Creation (que engloba na sua “província” as artes e as ciências), nos adverte com estas firmes palavras: “A fluidez de fronteiras entre Ciência e Arte é evidente, quer consideremos a Arquitectura, a Culinária, a Psicoterapia ou a escrita da História. O matemático fala de soluções 'elegantes', o cirurgião de uma 'bela' operação, o crítico literário de personagens bi-dimensionais. Diz-se que a ciência visa a Verdade, a Arte a beleza; mas os critérios de Verdade (tais como verificabilidade e refutabilidade) não são tão limpos e duros como tendemos a acreditar, e os critérios de Beleza são-no, é claro, ainda menos.”
Pois então, perguntava eu, num texto que em tempos escrevi para um simpósio de cientistas portugueses que viviam no estrangeiro, “se tanto de essencial aproxima o cientista do artista e do escritor criativo, não será o caso de se começar a fazer um pouco mais no sentido de se dar [nas universidade] expressão curricular a tal semelhança? Não será lisinhamente aconselhável que se acabe, de vez, com esse falso fosso que divide as duas culturas e se inclua, para maior abertura, equilíbrio e até alegria e sentido de descoberta de ambas as partes, [se inclua, dizia] no curriculum de alguns alguma matéria do pelouro dos outros? Não seria normal, fecundo e aproximador que durante algumas horas por semana as humanidades fecundassem a reflexão dos aprendizes de cientista, nas universidades, e vice-versa? Note-se que falo de fecundação curricular e não de docência tolerada a horas tardias [e voluntárias] de erosão e cansaço. A proposta pouco tem de idealista e nada tem de original. O mito da super-especialização [automaticamente estreitadora], como muitos outros mitos, começou há muito a meter água por todas as costuras. No fim de contas, homens como Einstein, Oppenheimer, Bento de Jesus Caraça, Mira Fernandes, Tiago de Oliveira ou António da Silveira, para só citar alguns ao acaso, eram vultos de ampla abertura cultural, fora do domínio específico em que se distinguiram. Se, como queria Durrell, “a ciência é a poesia do intelecto e a poesia é a ciência dos afectos do coração”, seria, a todos os títulos, recomendável que ciência e poesia melhor se conhecessem, para que o coração se aproprie um pouco mais da ciência e a ciência um pouco mais do coração.”
Era isto, em resumo, que Sir Charles Snow, ao lançar, em 1959, o alerta de As Duas Culturas, pretendia, no fundo: o aparecimento de uma terceira cultura que fechasse o fosso entre as outras duas. Seria esse o ideal a atingir. Começa-se, no entanto, a pensar – porque se começa a verificar – que a “terceira cultura” imaginada por Snow não corresponde exactamente à terceira cultura que começou de facto a emergir. No seu livro que recolhe textos antológicos de notáveis cientistas vivos, John Brockman, no prefácio que antecede a selecção , dá-nos conta daquilo em que parece estar a tornar-se, de facto, a terceira cultura. Brockman, no seu bem arguido comentário, observa: “Embora eu peça emprestada a Snow a frase [As Duas Culturas], ela não descreve a terceira cultura que ele previu. Os intelectuais literários não andam a comunicar com os cientistas. Os cientistas é que andam a comunicar directamente com o público em geral. Os media do intelectual tradicional jogavam um jogo vertical: os jornalistas escreviam de baixo para cima e os professores escreviam de cima para baixo. Hoje, os pensadores da terceira cultura tendem a evitar o intermediário e conseguem exprimir os seus pensamentos mais profundos de modo acessível ao público leitor inteligente.” Por isso, concluía Brockman, “os recentes êxitos editoriais de livros sérios de ciência só têm surpreendido os intelectuais do velho estilo."
O seu ponto de vista é que estes livros são anomalias – que são comprados mas não são lidos. Eu discordo. A emergência desta actividade da terceira cultura é o testemunho de que muita gente tem uma grande fome intelectual de novas e importantes ideias e estão desejosas de fazer o esforço necessário para se educarem. Se alguma coisa a terceira cultura veio fazer, foi marginalizar ainda mais uma classe de mandarins intelectuais antiquados e elitistas, abrindo-se à divulgação e livre discussão das ideias mais importantes e influentes do nosso século.
O FIM DAS HUMANIDADES? (3)
A antologia de textos de Brockman, escritos por eminências como Stephen Jay Gould, Richard Dawkins ou Paul Davies, entre muitos outros, evidencia a possibilidade de se escrever de modo claro, acessível e não raro brilhante para um público não iniciado. E saboreia-se, com gozo traçado de alguma melancolia, as farpas lançadas por Jay Gould aos intelectuais tradicionais: “A terceira cultura”, diz o autor de O Sorriso do Flamingo, “é uma ideia extremamente poderosa! Existe algo de parecido com uma conspiração, entre intelectuais literários que se tomam por donos da paisagem intelectual e das revistas de avaliação crítica, quando, de facto, há um grupo de escritores de não ficção, largamente oriundos das ciências, que possuem todo um exército de ideias fascinantes sobre que as pessoas querem ler". E, sublinha com fina ironia, “alguns de nós são escritores decentes e exprimem-se razoavelmente bem.” Gould cita, em abono da sua causa, o laureado com o Nobel, pelos seus estudos sobre imunologia, Sir Peter Medawar, além de mais, notabilíssimo escritor, “um cientista humanista e classicamente educado, [que] afirmou ser injusto que um cientista que não conhecesse nem arte nem música muito bem fosse, entre a gente da literatura, considerado um pateta e um filistino, ao passo que os literatos pensavam não terem necessidade de conhecer fosse o que fosse de ciência, para serem considerados pessoas educadas; tudo o que uma pessoa educada teria que saber era arte, música e literatura, mas não qualquer pedacito de ciência.” As espadas desembainhadas começavam a brilhar com fulgor intenso nas mãos de alguns dos mais notáveis cientistas que se mostravam, na esteira de Pascal, Descartes, Whitehead ou Russell, exímios ou mesmo grandes escritores (um deles, Russell, para grande pirraça de não poucos, laureado com o Nobel da... Literatura). O grande biólogo Richard Dawkins, por exemplo, reagiu à arrogância exclusivista dos humanistas com estas palavras desbocadas e certeiras: “Sinto-me um tanto paranóico com aquilo que tomo por um autêntico assalto dos media intelectuais por parte da gente literária. Não se trata apenas da palavra «intelectual» . Eu reparei, aqui há dias, num artigo, da autoria de um crítico literário, intitulado “Teoria”. Vocês querem acreditar? “Teoria” aparecia ali a significar apenas “teoria na crítica literária”. Aparecia num periódico generalista, como um diário de domingo. A própria palavra “teoria” foi tomada de assalto para fins literários extremamente paroquiais e de vistas estreitas – como se Einstein não tivesse teorias; como se Darwin não tivesse teorias.” Mais acutilante ainda – e dou-vo-lo como acepipe – o físico teórico e notabilíssimo popularizador de ciência, Paul Davies diz coisas como esta: “A maior parte dos políticos, os media e as pessoas que controlam os media – são licenciados de Oxford. Como resultado disso, a percepção pública de um intelectual é a de um gentleman de óculos e cabelos grisalhos, que estuda mitologia grega, beberica sherry e impele com vara preguiçosa e contemplativa o barco, rio abaixo, por entre os terrenos de algum colégio antigo. E é com esta percepção que é dado um status que sugere serem os intelectuais das artes e das letras que detêm o monopólio outorgado por Deus das grandes questões da existência.” Mas Davies, além de caricaturar sobre um aflitivo fundo de verdade, avisa: “O facto de os cientistas começarem a ser ouvidos, captando não só os espíritos mas também os corações da população – como se evidencia pelo fenomenal êxito dos livros de ciência – está a provocar o que se parece muito com uma gritaria territorial para os lados das letras. A repercussão disto tem assumido a forma de um palavreado histérico nos jornais e periódicos , e uma chuva de livros que denunciam os cientistas como fraudes arrogantes e interesseiras. [...] Durante anos e anos, os cientistas foram ignorados porque não eram ouvidos; agora que começam a ser ouvidos, são violentamente atacados por uma máfia intelectual.”
Sem negar mais do que alguma razão aos motivos que têm tido os cientistas para reagir, devemos, no entanto, lamentar que as coisas tenham chegado a este ponto – porque a nenhuma das partes aproveitam. As ciências são obviamente importantes mas, para existirem e se imporem, não precisam de aniquilar, no seu progresso, as humanidades. A “terceira cultura” que visionava Snow – uma interfecundação entre as duas que lhe pre-existiam – parece-me bem mais produtiva (menos destrutiva) do que aquela que Brockman nos veio apresentar. Contei já, noutro lugar, a história do chefe de empresa que deparou com dificuldades aparentemente insanáveis, quando se dispôs a dar aos seus engenheiros a oportunidade de subirem pelo organigrama acima até aos lugares de topo. Até certo nível da hierarquia, tudo corria bem mas, a partir de um certo nível, nem os engenheiros se sentiam muito confortáveis com os lugares, nem os lugares pareciam ajeitar-se demasiado bem aos engenheiros. Qual a razão? O chefe da empresa quebrou a cabeça durante anos, até que lhe apareceu a incrível solução do mistério: o que faltava aos seus engenheiros para fluírem suavemente pela escada acima era um pouco de “cultura geral”.
Peço licença para transcrever, a concluir, o que então escrevi sobre este conto exemplar e verídico. “Custara-lhe [ao chefe de empresa] chegar a uma conclusão que agora o ofuscava, pela sua evidência, mas não tinha dúvidas: 'aquilo' que a cultura geral dá – uma [abertura] de espírito, uma visão alargada dos comportamentos humanos da complexidade do ser humano, da beleza, do conhecimento e do seu valor, dos incentivos que o homem valoriza, da complexidade dos relacionamentos, do apreço pelo prazer que a música e a literatura e a arte dão, para além do que ensinam, a descoberta de que 'os escritores transformam os factos que o mundo produz – pessoas, lugares e objectos – em experiências que sugerem significados' – tudo isto dá a quem o 'possui' um maior à vontade, uma maior fluência no comércio de todos os dias com os outros, seja no âmbito privado, seja no âmbito profissional. São vantagens que ajudam quando, no desempenho das suas profissões, o engenheiro [ou o médico] não tem que se confinar ao técnico, mas tem, sobretudo, que resolver problemas de relacionamento com os outros: de persuasão, de convicção na 'venda' de uma ideia ou de um projecto, que em muito depende de uma avaliação correcta do interlocutor, ou da empatia que se saiba construir e pode depender de uma súbita revelação de sintonia de gostos ou de valores....” O ensino das humanidades pode trazer tudo isto e muito mais aos cientistas, aos técnicos, aos empresários e até aos economistas – estes últimos em grande parte responsáveis pela introdução, nas universidades, de um “economicismo redutor” e incapaz de medir o valor e a necessidade de um certo “desperdício” que a universitas convoca e sempre convocou – Einstein “desperdiçou” os últimos 30 anos da sua vida na busca infrutífera de uma via que em tudo se desviava das correntes dominantes da Física do seu tempo. Não consta que a sua universidade lhe tenha pedido contas do tempo investido nem o tenha intimado à produção de n papers por ano lectivo. O economicismo que actualmente devora o ensino superior é um cancro devastador e significa o triunfo de uma miopia de efeitos nefastos. Nisto, também, um bom banho de humanidades poderá ajudar a transformar o universo universitário e empresarial. “É por isso que”, dizíamos nós no texto que há pouco dedicámos a este tema, “mais do que estar [criminosamente] a transformar os departamentos de humanidades em 'escolas de línguas', para os 'salvar' de forma pífia, haveria que utilizar o saber dos seus docentes, no sentido de se poder ensinar aos alunos de todos os departamentos da Universidade aquele 'sistema de ideias vivas que o tempo possui' (Gasset) e dá pelo nome de ...cultura.” Que não é, nem deve ser, evidentemente, património exclusivo dos literatos e humanistas, mas que, ao longo dos séculos, tem sido por eles protegido, acarinhado e desenvolvido. Assim se poderia “aproveitar”, de modo fecundo, um saber e um estar na cultura de que poderiam fruir no melhor sentido, os alunos de biologia, de medicina, de física, de química, de engenharia, de arquitectura, de agricultura... Ter lido Dickens, ou Stendhal, ou Sófocles, ou Tácito, ou Camões, ou Cesário Verde não é, para o estudioso de cultura científica, tão irrelevante como possa parecer. Einstein dizia, sem pestanejar, que tinha uma visão artística do universo. O fim das humanidades? Só se não tivermos imaginação para fazer melhor.
Eugénio Lisboa